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Lutas Sociais e Cultura Política / Projeto História / 2009
Os esforços de divulgação da Projeto Historia pelo corpo docente que compõem o seu conselho, particularmente na região latino americana, vêm ampliando o universo de colaboradores da revista que assume assim, cada vez mais, um caráter internacional.
A temática sobre lutas sociais e cultura política surge como a síntese das colaborações de especialistas que propiciam ao leitor adentrar a uma historiografia que adentram a aspectos antes pouco enfatizados anteriormente.
Deve-se em grande parte esta renovação aos esforços de aprofundar as reflexões sobre a diversidade e as identidades latino-americanas na contemporaneidade particularmente decorrente, por um lado, da posição que os países da região adquirem ante a mundialização do capital e dos esforços de integração regionais e, de outro, pela ampliação do acesso às fontes documentais, propiciado pela informatização de incontáveis acervos públicos e privados os quais trazem à tona novas evidências históricas ou simplesmente permitem reforçar ou redimensionar evidências já analisadas. “
Nadie ne manda a mi, yo soy el mandón de otros”,[1] assim resume o autor que discute a utopia de um direito que se torna inalienável desde os primórdios da colonização européia na America – o do direito individual que se sobrepõe ao direito coletivo, advindo de um direito de procedência arrogada pelos representantes da ordem nas Índias – que incluem as Américas. Um direito que funda a aura autocrática dos governos patriarcais que passaram a regular o metabolismo sócio-econômico e cultural geradora de uma sociedade de servos, escravos, concubinatos e clientes de toda ordem e que confere à formação dos estados nacionais latino-americanos, no pós-independência, singularidades no interior do liberalismo que grassava no mundo ocidental desde os idos do século XIX.
Após as independências, distantes de suas duas fontes de legitimidade – Deus e o Rei -, os governantes radicados nas Américas interpretam os códices ao seu livre arbítrio e definem os termos da coexistência, das colaborações e das soluções às contradições. É como uma lógica fundamental e inerente à constituição destas sociedades: a política é o direito da autoridade, do governante decidir sobre as políticas de contenção social, sobre as soluções jurisdicionais.
A cultura política que se instaura radicaliza a constatação de Marx, de que
o Estado deixa que a propriedade privada, a cultura, a ocupação ‘atuem a seu modo’, ou seja, como propriedade privada, como cultura e como ocupação, e façam valer sua natureza ‘especial’. Longe de acabar com estas diferenças de fato, o Estado só existe sobre tais premissas (…). Onde o Estado político já tiver alcançado seu pleno desenvolvimento, o homem leva,- não só no plano do pensamento, da consciência, mas também no plano da realidade, da vida,- uma dupla vida: uma celestial e outra terrena, a vida na ‘comunidade política’, na qual ele se considera um ‘ser coletivo’, e no da ‘sociedade civil’, na qual ele atua como ‘particular’; considera os outros homens como meios, se degrada a si mesmo como meio e se converte em joguete de poderes estranhos.[2]
As características dessa cultura política, inicialmente entendida como uma via de mão única, pela qual os mandatários locais reinóis ou criollos lideravam a condução do processo colonial, vêm sendo aprofundadas pela historiografia recente, ante as evidências de que forças sociais múltiplas, de magnitudes distintas e procedências diversas contribuíram para as resultantes constitutivas das latinidades que compõem o continente. É o que se observa, por exemplo, sobre as reações contra as independências as quais advieram, não apenas de monarquistas, mas também dos segmentos que, embora possuidores de bens materiais e de patrimônios se vêm excluídos do acesso aos benefícios conforme propostos nas Constituições ou normas legais que passam a gerir Estados em formação.
Inicialmente denominadas simplesmente de conservadoras, a evidência de que muitos eram integrantes de nações indígenas que, além de serem grandes comerciantes e produtores possuíam força militar, possibilita novas reflexões dos historiadores. A partir daí, a participação de tais povos nos processos independentistas passa a ser analisada a partir da perspectiva de sua força social e não mais como simplesmente subordinada ao mandonismo criollo, além de verem sob nova ótica suas reações ante a iminência de perder direitos conquistados ainda sob o jugo colonial.
As novas autoridades que surgem radicalizam o mandonismo que subordina tudo aos interesses da lógica do capitalismo subordinado e dependente da órbita do centro desenvolvido, cujo cérebro naqueles fins do século XIX estava na Inglaterra. A crise ibérica já há muito não fazia frente à lógica da industrialização e comercialização que demandava das burguesias emergentes nas Américas apenas uma complementação na cadeia produtiva, com matérias primas e alguns produtos manufaturados. Tornava-se imprescindível produzir em larga escala para exportação e, por outro lado, eliminar a capacidade de atendimento às demandas internas com produtos locais.
Para situar a los países de la América hispana en la nueva orbita de dominación inglesa se tuvieran que producir dos movimientos simultáneos, pero no paralelos sino contradictorios: por un lado –el político- constituir entidades políticamente soberanas- un avance-, y por otro –el económico- destruir en las más destacadas de ellos el grado de desarrollo manufacturero artesanal que habían alcanzado, para configurarse únicamente como proveedoras de productos primarios- un retroceso-. Los dos movimientos combinados produjeron, también, el mal de la fragmentación.[3]
Tal condição de dependência e subordinação tantas vezes denunciada, o autor venezuelano, presente nesta edição, traz pelas palavras de Che Guevara, que, como muitos, buscaram alternativas de cunho socialista como solução. Destaca-se que este último, já na década de 1960, considerava, diversamente ao especialista citado acima, que
la soberanía política y la independencia económica van unidas. Si no hay economía propia, si se está penetrado por un capital extranjero, no se puede estar libre de la tutela del país del cual se depende, ni mucho menos se puede hacer la voluntad de ese país si choca con los grandes intereses de aquel otro que la domina económicamente.[4]
Na cultura política gestada desde as independências, a apropriação privada do poder público transmuta bandeiras tradicionalmente defendidas pelos movimentos que lutam pelo acesso aos direitos fundamentais do homem, em benesses para os privilegiados. Assim, por exemplo, os novos donos do poder promovem reformas agrárias que transformam policulturas coletivas em monoculturas privadas. Enquanto no período colonial, particularmente após a época bourbônica, as reclamações das comunidades indígenas contra a expropriação de suas terras pelos reinóis podiam resultar na manutenção de suas herdades, particularmente quando comprovavam que eram os que realmente as cultivavam; no período pós-colonial os julgamentos passam a ser efetivados por novos juízes, agora subordinados não mais a uma coroa distante, mas vinculados aos novos donos dos estados em constituição. No período colonial, antes, portanto, da revolução industrial, as metrópoles expropriavam as matérias primas, mas as demandas internas de produtos manufaturados continuaram a ser supridas por quem detinha a condição de produtor, por quem dominava a tecnologia, conhecia as rotas, organizava as feiras de artesanato e as ofertas de produtos da terra. Aos reinóis e aos criollos burocratas interessava mais assumir postos na administração, nos comandos das milícias, no sistema judiciário, na hierarquia da Igreja católica. Embora não deixassem de lado qualquer oportunidade para se apossarem das terras mais produtivas, quando as comunidades conseguiam levar à coroa suas denúncias, muitas conseguiam fazer valer seus direitos ancestrais por decisão de suas majestades. Assim a metrópole não apenas punha rédea ao poder dos reinóis e criollos, como também garantia que o abastecimento das demandas internas se mantivesse num fluxo razoável e, portanto, evitava mais focos de rebeliões.
Com as independências, eliminado este poder exterior que funcionava como uma espécie de contendor dos conflitos internos, a construção das novas nações experimenta a radicalidade das contradições, não apenas entre as classes, mas também no interior de segmentos que compõem as burguesias locais, tanto agrárias, quanto comerciárias e produtoras. O não reconhecimento da capacidade produtora e comerciária das comunidades locais reduziu, por anos, a percepção historiográfica sobre das lutas sociais que se instauram no momento da construção das nações.
Ficaram assim, subsumidas à luta política contra a metrópole, tais intencionalidades que conferem um caráter particular às lutas sociais da região ao longo de quase um século e mais, ocultaram a qualidade de produtores e comerciantes das comunidades nativas, capazes de manter uma economia quase autônoma à região, ao longo de todo o período colonial. E isto apesar de todas as perseguições, destruição de sua cultura, genocídios e massacres.
Tais leituras estigmatizaram também as lutas advindas dos povos africanos radicados e escravizados nas Américas, de que é um exemplo a revolução haitiana, cujo autor, neste numero da revista, destaca a importância histórica da região na transformação do capitalismo em um sistema econômico mundial, de “explotación integrado por metrópolis europeas y colonias caribeñas. A partir de entonces, esta región contribuyó, al tránsito y desarrollo de las etapas evolutivas del capitalismo. Es decir, al paso de la fase mercantil- manufacturera a la industrial y de ésta a la imperialista”. Etapas durante las cuales, el territorio que hoy denominamos Gran Caribe, sistemáticamente ha sido objeto y sujeto de de interés para las potencias capitalistas, resultado de lo cual, las entidades que integran esa área han sido subordinadas y explotadas por dichos imperios”. Sob o signo da liberdade e da igualdade as Américas independentes promoveram reformas agrárias que eliminaram o direito à produção e apropriação coletivas que às duras penas os povos nativos de muitas regiões do continente haviam granjeado, ainda sob os auspícios dos reis e mesmo da Igreja católica.
A percepção destas relações entre a coroa e os povos nativos pela historiografia recente não se contradita com as evidências do trato violento dos monarcas na America, conforme aponta o autor presente nesta revista que nos fala sobre o Brasil colônia. Conforme ele, a “violência foi uma ferramenta fundamental das autoridades (e da própria Coroa) inclusive para estabelecer alianças e compelir os índios ao serviço dos moradores portugueses. É que, como se procura apresentar neste texto, apesar da legislação instituída pela própria Coroa, a política em relação aos índios adaptou-se às circunstâncias concretas, mais do que a princípios gerais”.
A diversidade de circunstâncias inerentes aos processos independentistas instaura, portanto, uma nova lógica de dominação que, embora gestada no interior do jugo colonial espanhol e português, a ele ficara subsumida.
Após as independências, quando os interesses de determinadas oligarquias regionais se unem aos das nações industrializadas nada se contrapõe a esta nova correlação de forças que esmaga qualquer veleidade de desenvolvimento autônomo ao longo do século XX. Conforme apontam os autores, o desenvolvimento econômico experimentado pelas recém formações nacionais resulta no aumento da miserabilidade de sua população, na proporção direta da industrialização e da introdução de novas relações produtivas.[5]
A cultura política que resulta desta nova configuração do poder confronta-se com os anseios das mais distintas populações na região, anseios estes liberados pela perspectiva que, em tese, se punham com as independências.
Por tal configuração a violência integra de forma inerente o metabolismo social resultando em uma sociedade que se arma, tanto para a defesa de seus interesses materiais, quanto para confrontar um estado também bélico, que se impõe ditatoriamente ao longo do século XX, na maior parte dos países que surgem da fragmentação independentista. Por isto as abstrações constantes em um dos artigos que compõe esta edição, explicitam bem, não apenas a particularidade analisada, mas poderia estar referida a muitas outras na região. Conforme diz o autor, a “história da região mato-grossense até meados do século XX foi literalmente a história de um povo armado. Desde a penetração dos sertanistas paulistas, as relações de violência ficaram estabelecidas no confronto com uma natureza hostil, com o nativo da região e pelas disputas fronteiriças. No século XX, a região foi tumultuada por um nativismo exacerbado e violento. Depois, a parte sul foi envolvida no grande conflito com Paraguai. Herdando essas fortes raízes, surgidas a partir da convivência com a violência, nas primeiras décadas do século XX a região ficou marcada pelo domínio de coronéis e de bandidos”.
Tal violência é de tal forma inerente à formação da nova ordem oligárquica que, mesmo quando politicamente se alteram estruturas ou se implantam novas instituições com a intencionalidade, pelo menos expressa, de minimizar tal configuração. É o que conclui, por exemplo, a análise de outro autor sobre a mesma região, mas já na década de 1930. Esta demonstra, a partir de textos de um jornalista deste período para o qual as novas instituições implantadas pelo “novo regime” getulista seriam incapazes de mudar o quadro histórico de violências vigente. Conforme ela, o jornalista
não vislumbrou, possivelmente, qualquer papel que o novo governo, por meio de uma política que mudasse as estruturas econômicas e culturais, desempenharia para a superação da situação de violência que, com tanta força e indignação, (ele) narrou. Por isso, resumiu-se à exposição aberta dos problemas fronteiriços, gerados pela violência dos poderosos, pelo banditismo e pelo abandono do Estado.
Mesmo quando a intervenção do Estado faz valer o texto da lei, os resultados de sua aplicação demonstram a que interesses atende. O exemplo esta concretude observa-se nas reflexões deste numero, particularmente o artigo que demonstra como a legislação que dispunha sobre a tutela de menores, filhos de ex-escravas ou mulheres solteiras pobres, dificultava ou mesmo impedia que a luta das mulheres para obter a guarda de seus filhos junto à justiça atendesse às suas justas demandas. Embora tal legislação viesse no sentido de proteger o menor desvalido da exploração do trabalho por fazendeiros e membros da elite, conforme diz o autor, na realidade a tutela do estado corroborava com tal exploração.
Configura-se assim um tecido social cujas relações desumanizadas se expressam em todas as dimensões societárias, desde as relações públicas que, em princípio, se dedicam ao desenvolvimento humano, até as familiares. Para exemplificar a violência presente nestas dimensões, nada melhor do que o exercício da pedagogia, seja ela tomada como atributo escolar, seja como educacional, tanto na esfera publica, quanto na privada. Conforme diz o autor aqui presente,”desde el discurso pedagógico podemos introducirnos en las complejidades del entretejido social. Las críticas, censuras y reprensiones de conductas infantiles en las escuelas, así como de determinados comportamientos a escala social, dejan entrever realidades codificadas no como deseables, pero realidades al fin”. Analisando, como desde o século XVIII até meados do início do século XX, práticas pedagógicas violentas vigentes em escolas cubanas, recupera para o publico leitor uma bibliografia inédita que, pari passu a estes tempos, já as denunciava como estratégias de dominação, subordinação e de quebra da dignidade humana. Conforme ressalta um dos autores referidos em seu artigo, “el castigo físico estaba generalizado y aprobado en Cuba al igual que en el resto de las colonias españolas. El proverbio de Salomón: Qui bene amat bene castigar y que “golpeando con la vara a tu hijo no morirás” haría de la vara -más tarde instrumento de piedad- una de las herramientas predilectas para imponer severos castigos, junto con el bastón y el látigo”.
Por isto talvez não cause espécie ao leitor deste numero da revista, a demonstração da violência que se manifesta nas relações pessoais, privadas, afetas aos círculos das relações pessoais, que perpassam o quotidiano da vida, o dia a dia que, mesmo situado no campo dos afetos, traduz o esgarçamento social. Refere-se o autor à violência presente no interior da convivência amásia e matrimonial. Homens e mulheres, segundo ele, executavam diversas modalidades de agressões, sempre interligadas com a tentativa de manutenção das relações de poder e força, manifesta em diversas gradações e escalas.
Esperamos que a leitura do presente dossiê instigue a comunidade de autores voltados para os estudos sobre as relações entre os movimentos sociais e a cultura política na região e no mundo, a novas reflexões e aprofundamentos.
Notas
1. STERNS, Steve J. Paradgms of conquest, Journal of Latin American Studies, The colonial and post-colonial experience. Guest Editor: DONGHI, Halpherin, vol. 24, Cambridge University Press, 1992, p. 9.
2. MARX, Karl. A questão judaica. 2º ed. São Paulo, Morais, 1991. p. 37-41.
3. CÓRDEN, JOSÉ Luis Rubio. La rebeldía artesanal frente a la neocolonización de América del sur in SOLER, ROSÁRIO Sebilla (coord.) Consolidación republicana en América Latina. Sevilla, Consejo superior de Investigaciones científicas de Escuela de Estudios Hispano-americanos, 1999, p. 133.
4. GUEVARA, Ernesto (Che). Soberanía política, independencia económica. Conferencia pronunciada en La Habana, el 20 de marzo de 1960. Archivo Chile: historia político social – movimiento popular. CEME. Centro de Estudios Miguel Enríquez. http: / / www.archivochile.com / America_latina / Doc_paises_al / Cuba / Escritos_del_Che / escritosdelche0017.pdf
5. OUWENEEL y Arij & TORALES PACHECO, Cristina. Empresàrios, indios y estado. Perfil de la economía mexicana (siglo XVIII) in Latin America Studies (CEDLA), nº 45, USA, FORIS Publications, 1988. PEREZ BRIGNOLI, Hector. Breve historia de centroamérica. Madrid, Alianza Editorial, 1985.
Vera Lucia Vieira
Antonio Rago Filho
VIEIRA, Vera Lúcia; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 39, 2009. Acessar publicação original [DR]