Contribuição à crítica da historiografia revisionista – SENA JÚNIOR (RTF)

SENA JÚNIOR, Carlos Zacarias de; MELO, Demian Bezerra de; CALIL, Gilberto Grassi (Org.). Contribuição à crítica da historiografia revisionista. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2017. 380 p. Resenha de: CASA GRANDE, Dirceu Junior. “Boa memória” e “conciliação”: a crítica da historiografia revisionista no Brasil. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 11, n. 1, jan.-jul., 2018.

A História e a memória não se equilibram mais entre a lembrança e o esquecimento. Tomadas de assalto nos dias atuais, lutam agora contra um espectro ainda mais obsedante, o silenciamento. O livro organizado por Carlos Zacarias de Sena Júnior, Demian Bezerra de Melo e Gilberto Grassi Calil, Contribuição à crítica da historiografia revisionista, publicado pela Consequência Editora em 2017, é mais um esforço de resistência às tentativas de amordaçar a História. Avessos a ideia de “conciliação” e construção da “boa memória”, o tema do revisionismo historiográfico é abordado por autores que escolheram combater aqueles que trabalham para apropriar-se do ofício de lembrar e impor versões definitivas para fatos e acontecimentos polêmicos e conflituosos.

Esta nova obra é o desdobramento de um trabalho anterior de crítica historiográfica, que reuniu textos de inúmeros historiadores no livro, A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo, organizado por Demian Bezerra de Melo, publicado 2014. O novo conjunto de textos deu sequência às críticas historiográficas e aos debates em torno das apropriações do passado propostas por “revisões” de caráter meramente apologéticos. Não pode haver “conciliação”, assim como não existe a “boa” ou a “melhor” memória. As “revisões” apologéticas não passam de impulsos ideológicos que tem como objetivo habilitar ou reabilitar versões que não possuem nenhuma base teórico-metodológica viável ou qualquer proposição inovadora. Como alertou Virginia Fontes no prefácio da obra, “vivemos tempos em que se propõe ‘escolas sem partido’, impondo uma pretensa neutralidade para aniquilar o formidável conhecimento sobre a historicidade humana, a democracia e a revolução” (2017, p. 15).

O primeiro artigo do livro, intitulado “Revisão e Revisionismo”, foi escrito pelo historiador italiano Enzo Traverso. Em seu texto, o autor estabeleceu uma tensão entre ambos os conceitos e o ofício do historiador. O objetivo é refutar o perspectivismo, as tendências apologéticas e os usos públicos e inconsequentes das narrativas historiográficas. Conforme avaliou Traverso, o ofício do historiador consiste em criticar os fatos e os acontecimentos e revisar as versões com base na descoberta de novas fontes e documentos desconhecidos ou inexplorados. A crítica avalia o trabalho empreendido pelos pares e a revisão abre novas possibilidades de compreensão da História – com seus métodos e procedimentos – e do passado.

As conclusões das críticas e revisões historiográficas devem contribuir para ampliar os conhecimentos históricos, não silenciá-los. Quando porém, os historiadores relativizam aquilo que sabemos sobre um evento histórico com o objetivo de estabelecer uma nova perspectiva sobre ele ou direcioná-lo para usos públicos específicos como a ação política, ultrapassam os limites da pesquisa e da elaboração do conhecimento histórico-científico, incorrendo naquilo que Traverso denominou “revisionismos”.

Nesses processos, os revisionistas nunca utilizam uma nova fonte ou um documento inédito. Via de regra, promovem uma “viragem étnico-política” (p. 32) nos modos de enxergar e lidar com um fato ou acontecimento e elaboram narrativas com “tendências apologéticas” bem demarcadas. Os objetivos são o convencimento de indivíduos, a formação de públicos cativos, a imposição de versões pretensamente definitivas ou hegemônicas e a desconstrução inadvertida das teses marxistas.

Os revisionistas ignoram que os conhecimentos que possuímos do passado são sempre frágeis e temporários, dadas as características precárias e instáveis da História.

As críticas e revisões historiográficas normalmente suprem essas fragilidades dirimindo conflitos, desfazendo equívocos, esclarecendo e ampliando o conhecimento histórico.

Nesses casos, os trabalhos de revisão dão conta de atender expectativas de conhecimento e abrir novas possibilidades de análise, tornando a História mais fecunda. Na contra mão desses processos, as “revisões” apresentam, em suma, duas características marcantes em relação aos seus “métodos” e “conteúdos”: ou são inteiramente discutíveis ou inevitavelmente nefastos.

Mas, assim como o historiador conhece os limites e as possibilidades do seu trabalho e as implicações que suas teses podem produzir, os “revisionistas” conhecem perfeitamente os objetivos que desejam atingir e os caminhos que precisam percorrer para impor suas perspectivas. O primeiro passo é a afirmação de uma ortodoxia, de uma crença inabalável ou uma ideia fixa sobre um conjunto de fatos e acontecimentos. O segundo passo é a eliminação do diálogo e da discussão mediante o uso deliberado de práticas inquisitoriais ou estratagemas para vencer um debate sem ter razão. O terceiro passo consiste na excomunhão dos divergentes e na eliminação daqueles que defendem o caráter fecundo da História. Esses são os expedientes que dão voz e “razão” tanto aos historiadores oficiais quanto aos revisionistas. Ambos agem ideologicamente para partidarizar a História e polarizar as discussões sem trazer, no entanto, nada de novo para o debate.

As estratégias dos “revisionistas” consistem essencialmente em projetar para o primeiro plano lembranças vagas do passado e introduzir aspectos difusos da memória coletiva como instrumentos de avaliação dos acontecimentos, não de análise. O objetivo é acumular “vantagens” no debate público e obter a primazia do lembrar e do revelar.

Os métodos historiográficos são sumariamente descartados em favor de interpretações ideológicas, partidárias e relativistas. O que prevalece são falas generalizantes e radicalizadas que celebram ficções, reabilitam indivíduos, restituem ações ou validam versões e perspectivas detestáveis. O resultado são versões apologéticas cujas cores revelam os matizes de uma “ordem” falsamente estabelecida e supostamente inquestionável ou “novas verdades”, aparentemente revigorantes e esclarecedoras.

O livro conta com o prefácio de Virginia Fontes e uma introdução redigida pelos organizadores da obra, além de outros dez capítulos. Os três primeiros textos estão agrupados em uma parte denominada, “Ditadura e Democracia”. Outros quatro artigos foram reunidos em uma parte chamada “Revolução e Contrarrevolução”. E finalmente, os três últimos capítulos compõem uma parte que recebeu o título de “Capitalismo e Luta de Classes”. Nos referidos textos, os autores avaliaram as versões revisionistas sobre o golpe de 1964 e o período ditatorial que ele inaugurou, as revoluções portuguesa e russa e as teses do revisionismo conservador sobre o totalitarismo e o fascismo. Na terceira parte, revolução industrial, capitalismo e luta de classes, segregação urbana, criminalidade e banditismo são os temas dos últimos capítulos do livro.

No primeiro capítulo do livro, A “boa memória”: algumas questões sobre o revisionismo na historiografia brasileira contemporânea, Carlos Zacarias de Sena Junior aponta para a existência de uma “guerra de memória” (p. 63). Mais uma vez, as “revisões” apologéticas, ao insistirem na relativização do golpe de 1964, propõem um perspectivismo sutil para discutir temas singularmente polêmicos. Nessa dinâmica, a historiografia sobre o golpe e a ditadura que se seguiu, passaram a figurar entre os objetos preferidos dos “revisionistas”, empenhados na ressignificação dos eventos. Não por acaso, assim como ocorreu com outros temas polêmicos da História, como as revoluções francesa, portuguesa e russa, o resultado das versões seletivas sobre 1964 revelam reminiscências e ideologias políticas, mas não contribuem com a fecundidade do conhecimento histórico. Isso é o que facilita sua absorção pelos leitores desavisados ou pelos ouvintes cativos, bem como, favorece a consequente condenação de todas as teses que contrariam as expectativas dos adeptos das “revisões”.

Para Gilberto Grassi Calil, que escreveu o capítulo intitulado Elio Gaspari e a ditadura brasileira, o jornalista foi capaz de converter conspiradores, golpistas e torturadores em lideranças políticas bem intencionadas e austeras, além de transformar vítimas em culpados. Em uma perspectiva ainda mais apologética e centrada na ação de grandes personagens como o ex-presidente Ernesto Geisel e o General Golbery, o jornalista Elio Gaspari nos revelou uma visão suavizada da ditadura. Sua amizade com os personagens demonstram como a intimidade do autor com os atores de uma trama podem contaminar irremediavelmente a narrativa. Gaspari promoveu um abrandamento descarado da ditadura, restringindo-a temporalmente, absolvendo atores importantes, como o empresariado e os agentes norte-americanos, atribuindo à esquerda parte da culpa pelos rumos que os acontecimentos tomaram, elaborando uma versão parcial dos fatos sem qualquer tipo de apoio documental mais robusto.

Quando a paixão dirige o trabalho historiográfico, os resultados são “vertiginosas piruetas intelectuais” (p. 113), penduradas em tentativas para produzir conciliações e consensos políticos ou justificar atos de violência ostensiva. Eurelino Coelho analisou o trabalho de Ângela Castro Gomes e Jorge Ferreira, O livro de 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Na tentativa de compreender a vitória dos golpistas civis e militares, os autores utilizaram um tempo verbal estranho ao trabalho do historiador, argumentando que, “se os personagens históricos tivessem se comportado de outra maneira… outra teria sido a história” (p. 117). Como é possível realizar uma revisão historiográfica no futuro do pretérito, questiona Eurelino? Mesmo existindo alternativas à disposição dos atores, eles fazem suas escolhas. Portanto, a história que deve ser contada é essa, centrada nas escolhas dos atores e não em possibilidades remotas do que poderia ter sido, e não foi.

A obra avança e os demais artigos do livro discutem amplamente as ideias e contextos de temas como Revolução e Contrarrevolução. Manuel Loff e Luciana Soutelo descrevem como as revisões sobre esses temas promoveram a suspensão do conceito de revolução e igualaram o fascismo e o comunismo para atribuir aos regimes totalitários um viés exclusivamente de esquerda. O objetivo dessas revisões, esclarecem os autores, é a legitimação do liberalismo ocidental, sua desideologização e naturalização históricas. As ressignificações do fascismo, a negação dos conflitos de classes e o abrandamento das ações da direita conservadora abriram caminho para a permanência dos discursos fascistas na sociedade atual. Ao analisar o que foi escrito pela imprensa nos períodos de transição da ditadura para a democracia, Carla Luciana Silva descreveu as atitudes e práticas totalitárias que resistiram ao fim dos períodos autoritários e permanecem virtualmente cativantes atualmente, tal como ocorreu em Portugal e Espanha pós-Salazar e pós-Franco, respectivamente.

Tatiana Figueiredo, por sua vez, avaliou o “revisionismo” histórico a partir da relativização do conceito de revolução, o qual passou a ser identificado pelos “revisionistas” como um caminho para a servidão e o terror, menosprezando conteúdos políticos, além da vontade e da participação popular nesses eventos. A autora criticou a elaboração de arquétipos e constatou que os movimentos que derrotaram a opressão e o terror, logo foram classificados da mesma forma. Na avaliação de Figueiredo, os revisionistas obscureceram o caráter antiautoritário das revoluções para promover novas formas de organização social e política, justificar atos extremos de violência, isentar de culpa empresários, políticos e intelectuais, além dos grandes monopólios empresariais, tal como ocorreu com os colaboradores do nazismo na Alemanha do pósguerra.

Na última parte do livro, “Capitalismo e Luta de Classes”, os autores destacam que o fortalecimento das teses “revisionistas” não geraram somente prejuízos para historiografia e para o conhecimento histórico. O predomínio dessas perspectivas com seus abrandamentos, reducionismos, generalizações e pregações otimistas sobre os avanços e o desempenho da democracia e da economia de mercado, escondem problemas mais sérios como as desigualdades sociais, a segregação urbana, a criminalidade, o banditismo e a violência. O empenho desses revisionistas, agrupados no que se convencionou chamar de “escola otimista”, reforçou as teses conformistas e a ideologia da sociedade de uma “classe só”, como sublinha Igor Gomes no último capítulo do livro (p. 331). De acordo com os autores do livro, paira sobre a História, suas pesquisas e narrativas, uma imensa nuvem de silêncios, todos discutíveis e nefastos.

Dirceu Junior Casa Grande – Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP-Assis-SP e Docente da área de Ciência Humanas e Sociais da Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR-Câmpus Cornélio Procópio-PR. Endereço profissional: AV. Alberto Carazzai, 1640 – Cornélio Procópio-PR – CEP-86300-000. E-mail: dirceujunior@utfpr.edu.br.

Imperialismo e luta de classes no mundo contemporâneo | James Petras

O debate sobre o imperialismo e a luta de classes, abandonado por uma parte da esquerda e não considerado pela maioria dos pós-modernos, sempre esteve presente na vida dos povos latino-americanos. Na América Central, no Caribe e no México, onde o imperialismo se manifestou de forma mais atuante e visível, os movimentos revolucionários não apenas tomaram em armas, mas também apresentaram um projeto nacional para se contrapor ao Estado imperialista. Essa luta começou no final do século XIX e início do XX, com José Martí, em Cuba, que denunciou a ideologia colonizadora do pan-americanismo; passou por Emiliano Zapata e Francisco Villa, que expropriaram terras de estadunidenses em território mexicano para fazer suas reformas agrárias durante a Revolução de 1910; continuou com Augusto C. Sandino, que lutou contra a ocupação estrangeira para construir um Estado nacional na Nicarágua; e chegou a Che Guevara, que defendeu a tese da criação do segundo e do terceiro Vietnã para derrotar militarmente o imperialismo.

Hoje, líderes nacionalistas de esquerda começam a ganhar as eleições em vários países da América Latina, fazendo-o sobre os escombros das políticas neoliberais aplicadas a partir de meados dos anos 1970. Venezuela, Bolívia, Equador, Nicarágua e a própria Argentina são os exemplos mais conhecidos. Todos estes governos têm implementado, em menor ou maior grau, um projeto nacional de esquerda que se opõe frontalmente ao imperialismo. O Documento de Santa Fé II (1988), que orientou a política externa do Departamento de Estado estadunidense, afirmava que “o matrimônio do comunismo com o nacionalismo, na América Latina, representava o maior perigo para a região e para os interesses dos Estados Unidos”. Leia Mais

O silêncio dos vencidos – DE DECA (PH)

DE DECCA, Edgar. 1930: O silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1981. Resenha de: AUN-KHOURY, Yara. Projeto História, São Paulo, v.2, 1982.

Yara Aun-Khoury

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