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Lupicínio e a dor-de-cotovelo / Rosa Dias
Um dos objetivos centrais do livro é o de investigar o processo criativo através do qual Lupicínio Rodrigues transfigurou suas dolorosas decepções afetivas em belas canções. A autora leva em consideração a advertência presente na contracapa do LP de que “o disco não é para ser examinado, é necessário sentí-lo […] é preciso saber sentir com a garganta seca, mãos trêmulas, olhos úmidos, a sua, a nossa, a vossa, a universal dor de cotovelo”. Neste sentido, Dias ressalta que a linguagem teórica tende a afastar as paixões de seu núcleo de pensamento e assume o desafio de conduzir suas análises em sentido oposto ao do costumeiro ascetismo acadêmico ao desenvolver uma interpretação mais próxima de uma dramatização do discurso apaixonado do que de uma metalinguagem a respeito dele.
Para Rosa Dias, “Lupicínio esquadrinha em suas letras os desenlaces e os desencontros amorosos” e “nesse disco, como em todos os outros, ele aparece sempre com um único querer que sofre e para quem não existe salvação a não ser continuar amando”. A saudade provocada pela ausência da amada desperta no sujeito amoroso o ressentimento e a culpa que o convertem em um sujeito moral, movido simultaneamente pela necessidade de consolo e pelo desejo de vingança. Sentimentos que transformam o peito do apaixonado em “uma caixa de ódio com um coração que não quer perdoar” (versos da música “Caixa de ódio”).
Enquanto sujeito ressentido movido por uma ideia fixa, o protagonista das canções “recrimina a mulher amada pela separação, por suas dores e pelo seu desassossego” e, enquanto sujeito culpado, “incrimina-se por uma falta cometida contra o ser amado; acredita tê-lo ofendido e experimenta por isso um sentimento de remorso”. Em ambas situações é intensa a vitimização daquele que se sente injustiçado, assim como seu clamor pela punição do pretenso responsável por seu sofrimento. Como exemplo podemos nos recordar de um dos mais agressivos trechos de sua célebre composição “Vingança”:
Mas equanto houver força em meu peito
Eu não quero mais nada
Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar
Você há de rolar como as pedras
Que rolam na estrada
Sem ter nunca um cantinho de seu
Pra poder descansar
Apesar das viscerais letras aparentemente biográficas em primeira pessoa, a autora procura desvincular o artista de seus personagens ao defender que as paixões tristes presentes nas composições não bastam para identificar seu criador ao sujeito bilioso nelas descrito. Em contrapartida, apresenta a hipótese de que o fato de Lupicínio costumeiramente cantar as dores do sujeito moral ressentido e culpado não significa necessariamente que ele próprio possua tais sentimentos. Pois, à medida que são cantadas, as vivências estão subjugadas a uma potência criadora artística impessoal que reflete sentimentos gerais, universais, comuns a todos os seres humanos e não apenas referentes à subjetividade individual daquele que lhes conferiu forma de expressão: “Quando capturada pela arte, a dor amorosa não exerce uma ação nociva sobre o coração. O artista é capaz de assimilar o passado, assenhorar-se do caos de si mesmo e transfigurá-lo”.
Tamanha distância a pesquisadora considera haver entre o compositor e seus personagens que chega a caracterizar a experiência musical do inventor da dor de cotovelo como essencialmente alegre: “Postos em música, tecidos com alegria, os sentimentos do ressentimento passam com o tempo, são ‘chuvas de verão’ e não sentimentos mediante os quais Lupicínio nega o amor e, consequentemente, a vida”. Interpretação endossada por declarações do próprio compositor, como a que está presente em seu depoimento concedido ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro em 1968: “Eu faço música por brincadeira, para me divertir e divertir os amigos […] Tive mil problemas com mulheres, mas acho que foram problemas bons, entre outros motivos, porque me deram horas de felicidade e vários sambas.” As dificuldades afetivas pelas quais passou não paralisaram sua vida nem o levaram a desistir do amor, ao contrário, serviram de estímulo para outras tentativas de relacionamentos afetivos e de matéria-prima para novas canções.
A autora também destaca que “quando se trata de Lupicínio, torna-se impossível desvincular melodia, letra e canto” e dedica a parte final de seu livro a evidenciar sua relevância não apenas enquanto compositor, mas também como músico e cantor. Mostra que, apesar da aparente simplicidade, muitos de seus versos e melodias são resultantes de um apurado trabalho técnico para melhor transmitir os estados de alma do sujeito apaixonado de suas canções.
Lupicínio foi um dos primeiros a ousar cantar profissionalmente sem possuir a potência vocal que se exigia dos grandes cantores de sua época, razão pela qual costumeiramente ironizavam que ele dizia suas letras em vez de propriamente cantá-las. Talvez esse preconceito que o tenha feito humildemente escrever que seu tão conceituado disco de 1973 “pretende apenas ser um singelo roteiro musical visando facilitar os cantores e intérpretes de meu país, que se interessem pelas composições […] Não se trata de um disco de cantor. É um autor – entre tantos – vendendo seu ‘peixe’”. A esse respeito, Rosa Dias chama atenção para o importante fato de que Lupicínio foi um dos principais precursores do cantor “sem voz” que interpreta suas músicas de modo próximo ao da palavra falada, estilo que só viria a se consolidar no Brasil a partir da Bossa Nova. Além disso, como todos sabemos, muitas de suas composições se tornaram presença obrigatória no repertório de praticamente todos os intérpretes populares de canções brasileiras.
As paixões tristes: Lupicínio e a dor-de-cotovelo, relançado neste mês de julho de 2020 pela Coleção X da editora carioca Ape’Ku, foi inicialmente publicado em 1994[1] e teve nova edição em 2009[2]. Uma de suas leitoras foi a cantora e compositora Adriana Calcanhotto que batizou seu álbum lançado em 2011 de O micróbio do samba[3] inspirada pela referência biográfica apresentada por Rosa Dias de que Lupicínio costumava dizer com orgulho que desde pequeno trazia no sangue o micróbio do samba.[4] Isso porque já na infância os professores chamavam sua atenção por batucar durante as aulas, o que fez com que, aos 5 anos de idade, em 1919, fosse expulso do Colégio São Sebastião.
“Eu arriscaria dizer que As paixões tristes: Lupicínio e a dor-de-cotovelo é uma das primeiras experiências de uma filosofia popular brasileira realizadas em nossas universidades”, escreve Rafael Haddock-Lobo[5] em seu texto de Apresentação para a mais recente edição do livro. Sem dúvida alguma, essa cuidadosa, original e apaixonante pesquisa de Rosa Dias deve ser lida atentamente não apenas pelos que visam conhecer melhor o histórico disco de 1973, mas também é leitura obrigatória para todos os que desejam saber mais a respeito da singular visão de mundo de Lupicínio Rodrigues e do lugar de destaque que ele ocupa em nossa cultura.
Notas
1. DIAS, Rosa Maria. As paixões tristes: Lupicínio e a dor-de-cotovelo. Rio de Janeiro: Leviatã, 1994.
2. DIAS, Rosa. Lupicínio e a dor de cotovelo. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009.
3. Álbum de estúdio com sambas autorais de Adriana Calcanhotto. No ano seguinte também lançou o CD e o DVD Micróbio Vivo, registro audiovisual de um dos show da turnê de Micróbio do samba. Em 2015 Adriana Calcanhotto lançou o álbum e o DVD Loucura em que interpreta exclusivamente canções de Lupicínio Rodrigues.
4. Cf. http://www.blognotasmusicais.com.br/2011/10/roteiro-de-microbio-do-samba-inclui.html: “[…] a origem da contaminação de Calcanhotto pelo ritmo-síntese da identidade nacional foi a leitura de Lupicínio e a Dor de Cotovelo (Editora Língua Geral, 2009), livro em que a autora, Rosa Maria Dias, conta que o então garoto Lupicínio dizia com orgulho que estava com o micróbio do samba ao ser retaliado no colégio por batucar na sala de aula.”
Tiago Barros – Doutor em Filosofia pela UERJ e professor de Filosofia do IFRJ.
DIAS, Rosa. As paixões tristes: Lupicínio e a dor-de-cotovelo. Rio de Janeiro: Ape´Ku, 2020. Resenha de: BARROS, Tiago. Rosa Dias e as paixões tristes de Lupicínio Rodrigues. HH Magazine – Humanidades em Rede. 23 jul. 2020. Acessar publicação original [IF].