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La Edad Media en capítulos. Panorama introductorio a los estudios medievales | Lídia Raquel Miranda
Este livro é uma introdução geral à cultura medieval, particularmente à sua literatura, destinada aos que, estudantes ou leitores comuns, precisam conhecer os traços fundamentais dessa cultura. O livro está dividido em oito capítulos, cada um deles concluindo com exercícios de análise e interpretação prática: “Manos a obra” prevendo portanto o seu uso em sala de aula ou em grupos de estudo. A Professora Lídia Raquel Miranda, editora e inspiradora da obra, redigiu cinco capítulos, pelos quais começaremos a apresentação. O primeiro tem como título (tradução nossa):” O medievo em metáforas e apreciações: a cultura popular e a cultura acadêmica na encruzilhada”, e discute como formamos mentalmente nossas ideias acerca do passado. As recordações do passado pessoal e familiar são distintas das elaborações acadêmicas acerca da história das culturas e civilizações, mas existe certa contaminação das imagens comuns, por vezes perpassadas de ideologias, mesmo em sala de aula, por preconceitos e noções deturpadas. É o que explica que a palavra Idade Média seja rodeada de conotações estranhas, mesmo entre pessoas instruídas: teria sido uma sociedade violenta, pobre, sem lei, ou então exótica, vivendo na natureza… A historiadora desenvolve a seguir sua argumentação sobre qual seria o modo mais correto de abordar a Idade Média, já que ela se constitui como a matriz do presente. Aqui radica a questão que conclui o capítulo: porque estudar a Idade Média? Mais do que respostas prontas Lídia Raquel levanta reflexões, indica bibliografia variada, e propõe dois exercícios: um de análise de um texto de autoria de um medievalista da Universidade de Córdova (Argentina), e outro de interpretação de um texto de opereta medieval. A mesma historiadora aborda, no capítulo 5º, a tradição do amor cortês na cultura ocidental. A construção e consolidação da cristandade europeia deu-se através de sucessivas realizações e conflitos, e deu origem a uma cultura diferenciada regionalmente, mas que tinha na região central da Europa seu principal foco de criação de dispersão. Foi aí, na França, que se originou um dos complexos culturais mais significativos e quase onipresentes: o amor cortês. Dele a autora descreve e analisa as variantes e características. Destaque especial merece a obra de André Capelão – Os três livros do amor – extensamente descrito e comentado. No 6º capítulo Lídia Raquel trata da retórica medieval introduzindo o tema sob uma ampla teoria semiótica, e ao mesmo tempo atenta à importância prática e às variedades do discurso medieval; para ter em conta esses diversos aspectos a autora aborda questões da retórica clássica grega e romana, da exegese cristã e da pregação dos primeiros séculos, e da posterior arte de pregar, bem como os modelos do discurso escolástico. A retórica é característica da vida pública e na Grécia nasceu com as práticas jurídicas e políticas, passando depois às educacionais; pouco a pouco nela se distinguiram as partes da comunicação, suas operações e formas. Santo Agostinho recomendava que para o orador cristão é mais importante conhecer as Escrituras (exegese) do que usar os artifícios da oratória, princípio que orientou os sermões medievais; mas o capítulo lembra também os poetas laicos, particularmente os jograis, e sua influência na fala religiosa; menos poético, mais formal e estruturado, foi o discurso acadêmico, que conhecemos como escolástica. O capítulo conclui ressaltando a importância da retórica atual, e propondo vários exercícios baseados em texto literários medievais, e sobre o marketing político (coach). No capítulo 7º Lídia Raquel estuda o surgimento dos idiomas românicos, a partir do latim, sua vulgarização e evolução por influência de outros povos que circularam no continente e ilhas. Dois tipos de idiomas se formaram, em toda a Europa romanizada: os regionais, muito variados e mesclados, e o latim erudito, que permitia a comunicação literária entre as novas nações. A autora detém-se na descrição de como se formou a língua castelhana, estudando não só os processos filológicos, mas também os políticos, que conduziram ao predomínio do castelhano como idioma espanhol, tanto na Península como na América Hispânica. Algumas propostas de exercícios, e a bibliografia auxiliam o estudante a aprofundar as questões, nomeadamente a origem dos vocábulos e as ambiguidades fonéticas. O capítulo final (8º), ainda de autoria da organizadora da obra tem como título “Um estudante perdido no museu: à procura das cores e formas do Medioevo” (tradução nossa); propõe-se ser um guia para que o iniciante se oriente no meio dos significados estéticos medievais: as cores e as formas das imagens. Resume em poucos traços o tipo de arte das várias épocas e lugares – primeiros séculos, bizantina, arte das nações germânicas, arte nos mosteiros, românico, gótico. Feita esta apresentação o capítulo discute os valores humanos transmitidos pelas imagens, pelos espaços divididos e organizados. Assim, no que se refere ao simbolismo da cidade, encontra-se a sobreposição ou justaposição de quatro modelos: Jerusalém, Babilônia, Roma e Bizâncio; conforme as intenções e propósitos o mapa medieval, ou a ilustração, trazem um ou mais desses modelos, substituindo deste modo longas explicações. Outras metáforas e símbolos do espaço são explicadas: o castelo, o labirinto, o mar, a floresta, o jardim, a água… O imaginário medieval passa ainda pelas representações de Deus, de Jesus Cristo, e dos santos, e também do homem e do corpo humano em suas atividades. Lugar importante era dado aos animais (os bestiários) e também aos animais mitológicos. Nas propostas de atividades práticas do capítulo destaca-se a intenção de relacionar entre si as diversas artes medievais e a literatura.
Passamos aos três capítulos elaborados por autores convidados. Jorge Luís Ferrari faz um percurso histórico pela economia e pela sociedade medievais (cap. 2º) dos séculos XI ao XV. Em breves pinceladas Ferrari expõe a composição social do Império Romano, seus conflitos de classe, e as causas da decadência, onde o cristianismo se insere. Entretanto os germanos invadiram o mundo romano, e de toda essa mescla surge o sistema político, social e econômico do feudalismo. Este é descrito em sua estrutura e fundamentos ideológicos e em suas fases e modificações, inclusive pela introdução de técnicas agrícolas. Mecanismos e rotas de mercado explicam o apogeu dos séculos finais da Idade Média, mas a crise do século XIV –peste negra e Guerra dos Cem anos – decretaram o declínio da civilização europeia, enquanto o feudalismo estremecia, e o poder real se fortalecia com o apoio da burguesia. Helga Maria Lell, no capítulo (o 3º) sobre as instituições jurídicas e filosóficas da Idade Média, começa por expor o nascimento das instituições do direito romano para em seguida mostrar como elas se alteraram, ou completaram, com o advento do cristianismo. Essa evolução conduz ao estudo da filosofia, e ao seu uso a serviço da religião cristã. A autora dedica então algumas páginas a expor as doutrinas dos dois principais mestres da filosofia cristã – Agostinho e Tomás – feito o que volta à Hispânia Romana, para se deter na relação entre direito, filosofia e religião durante o domínio visigótico, e apenas lembrando a fase seguinte da Península: as peculiaridades da cultura árabe/muçulmana. É também de forma breve que a autora descreve os traços do direito canônico, da organização universitária, e da consolidação do direito hispânico, sobretudo em Castela. Uma linha de tempo, ou cronologia simplificada, permite abranger em síntese rápida os principais traços destacados no capítulo. O exercício final é bastante extenso e completo, baseado na Carta Puebla, ou ordenação de repovoamento, confrontando-a com um texto de Tomás de Aquino. O capítulo 4º é de autoria de David Rodríguez Chaves; nele se descreve e comenta a literatura irlandesa e inglesa medievais, destacando no título duas características: o sincretismo pagão/cristão, e o uso da alegoria e da metáfora. Da literatura irlandesa e sua continuidade bretã são expostos temas mais conhecidos: as viagens para Ocidente e o ciclo arturiano, mas também outro menos citado: o Sonho da Cruz. As viagens dos monges irlandeses, os imrama, eram um derivado da tradição celta da aventura espiritual incerta em direção ao desconhecido; elas são símbolos da busca da perfeição repassados de fantasias, de encontros com animais fabulosos, homens estranhos, gigantes, visões e miragens, fontes milagrosas, seres meio homens meio animais. O autor não diz, mas sugere, ou subentende, que as Viagens de Gulliver podem ser descendentes desta literatura, até porque seu autor, Jonathan Swift (1667-1745) era irlandês. A narrativa de Sir Gawain e o Cavaleiro Verde utiliza outro topo de simbolismo para passar do relato pagão para o cristão: os símbolos referentes aos ciclos da natureza. Neles sobressai a passagem da natureza morta para o mundo dos vivos por ação do Sol (Gawain) e da Deusa Mãe. O caso do Sonho da Cruz é inverso: o evento cristão é visto pela cosmovisão pagã celto/germânica, em que a cruz é a árvore Yggdrasil, e Cristo é um chefe guerreiro. No conjunto da obra este capítulo é importante porque é o que mais clara e consistentemente relaciona o apogeu do cristianismo com seus antecedentes da Antiguidade Tardia e com as religiões proto-históricas. Essa interpretação, realizada em poucas páginas, foi possível não só pela habilidade e conhecimentos do autor mas também pelas características da cultura celta, que manteve até aos dias atuais uma capacidade de inserção no cristianismo que lhe deu durabilidade e pervivência. Os exercícios propostos em Mãos à obra dão sequência a essa ideia de interpenetração cultural, ao usar verbos como relacionar, mesclar, amalgamar, influir apontando não só para comparações de formas externas mas de temáticas, que evoluíram sem perder seu significado original.
O livro cumpre os seus objetivos de forma muito adequada e satisfatória: mostra a grande variedade de expressões da cultura medieval, contrapondo-se à ideia comum de uma Idade Média uniforme e monótona; destaca a vitalidade das realizações medievais, e sua criatividade; sugere e desperta curiosidade para futuros estudos de quem lê o livro. Talvez por necessidade pedagógica de se ater ao que é mais usualmente discutido, e ao que é mais diretamente influente na realidade sul-americana os autores optaram por não desenvolver algumas dessas variáveis, sobretudo as que dizem respeito à primeira fase da Idade Média – ou Alta Idade Média – e as que tratam da cultura medieval na Europa do Norte e do Leste. No entanto os diversos capítulos, e o conjunto da obra, oferecem suficientes indícios para que o estudante procure colmatar essas lacunas.
João Lupi – Docente do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
MIRANDA, Lídia Raquel (Editora). La Edad Media en capítulos. Panorama introductorio a los estudios medievales. Santa Rosa: Universidad Nacional de La Pampa, 2015. Resenha de: LUPI, João. “La Edad Media en capítulos” por João Lupi. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.18, n.2, p. 136- 139, 2018. Acessar publicação original [DR]
L’Époque romaine ou la Mediterranée au nord des Alpes | Flutsch
No final do século V a.C. os celtas ocuparam o território da atual Suíça, sobrepondo-se às antigas populações lacustres, agrícolas e de pastores. Nova invasão ocorreu no final do séc. II a.C., quando os helvécios – também celtas – liderados por Divico, avançaram do sul da Germânia em direção à Gália. Em 61, então já estabelecidos no território alpino, que os romanos englobavam no nome genérico de gaulês, prepararam-se para nova migração em direção ao oeste, comandados por Orgétorix, migração fracassada pelo assassinato do líder. Entretanto os romanos já haviam dominado parcialmente esse território, isto é, todo o sul da Gália, e o conflito foi inevitável, terminando com a vitória dos romanos sobre os helvécios em 58 a.C.. Tomando partido desse fato Júlio César obriga os helvécios a permanecer na região alpina e dá início à conquista completa da Gália. Estas e outras circunstâncias, afirma Flutsch, têm impedido os suíços contemporâneos de reconhecer Divico ou Orgétorix como heróis nacionais, e leva o autor a falar da cultura ou do legado da romanização mais em termos de galo-romanos (mais abrangente) do que helveto-romanos – mais restrito e discutível, já que os helvécios não defenderam uma “pátria” contra os romanos, mas foram por eles impedidos de sair de onde se tinham estabelecido. Após a vitória sobre os helvécios os romanos iniciaram o estabelecimento de colônias e legiões: por volta de 44 a.C. foi criada a Colonia Julia Equestris (atual Nyon, próximo a Genebra, na margem do lago), e por volta de 20 a. C. começaram as construções na Colonia Raurica, em território dos rauraques, outra população celta – é a atual Augst, próxima a Basiléia, cujos vestígios estão hoje em muito bom estado de recuperação. Portanto no I século a.C. a presença romana embora marcante deixava quase total independência às populações alpinas. Com a chegada do Império as terras da atual Suíça foram ocupadas pelas legiões e pelas instituições políticas e administrativas romanas, que, contudo, não eliminaram as estruturas sociais e a organização dos vários grupos celtas. Nessa fase o território estava dividido por cinco distintas províncias romanas: o norte pertencia à Germânia Superior, o oeste à Narbonense, o sul aos Alpes e à Itália, e o leste à Récia. Ao destacar este fato Flutsch faz notar que a romanização, embora não tenha contribuído para criar uma consciência de unidade no que veio a ser o povo suíço, definiu a “cantonização” que hoje constitui a Confederação Helvética (em que pese a dubiedade deste termo, que ele evitou). De fato, na confederação o norte e centro é de língua alemã, o oeste de língua francesa, o sul de língua italiana, e o sudeste romanche. Depois do seu apogeu no século II d.C. o Império Romano entrou em decadência e em meados do séc. III a crise econômica da Itália atingiu as províncias: as guerras e a anarquia, aliadas aos impostos escorchantes fizeram os agricultores desistir da lavoura, e engrossar as turbas de ociosos e bandidos. Fome e peste provocaram a baixa demográfica, e os germanos, aproveitando-se da fraqueza imperial, começaram a atacar as fronteiras e fazer suas primeiras incursões em território alpino. Apesar da recuperação sob Diocleciano, e depois sob Constantino, os romanos continuaram a sofrer os embates com os invasores, e repetidas vezes os alamanos (354, 365, 375) atacaram as legiões e penetraram no território rauraque. Mas o território dito gaulês, ou helvécio, da posterior Suíça não recebeu, antes do séc.VI, invasões maciças germânicas, mesmo quando as legiões abandonaram o território em 401. Quando os Borguinhões, em 443, se instalaram na região de Genebra, rapidamente se incorporaram à cultura galo-romana. Já os alamanos, que ocuparam o norte no século seguinte, impuseram seu idioma germânico, que se mantém até hoje. Depois dessa revisão histórica do período romano (I a.C. a V d.C.) que ocupa metade do livro, o autor dedica um capítulo à “globalização econômica”, ou seja, às marcas deixadas pela romanização no modo de vida material. A incorporação das regiões alpinas gaulesas e helvéticas à economia do Império trouxe estruturas administrativas eficientes; todos os tipos de produção usual da época floresceram, novas profissões surgiram, estradas foram construídas – definindo em seus cruzamentos e passagens quase todas as principais cidades suíças da atualidade. A ligação dos Alpes com o Mediterrâneo (razão do subtítulo da obra) não só exportava os produtos locais, mas propiciava à população das montanhas consumir produtos até então desconhecidos ou reservados à elite celta: vinho, azeite, frutas e conservas de peixe passaram a estar ao alcance de grande parte da população alpina. Percorrendo diversos aspectos da vida comum, desde a tecnologia de construção à produção agrícola, Flutsch vai mostrando como o período romano lançou as bases da sociedade suíça; contudo adverte: a romanização operou-se principalmente nos centros urbanos, enquanto nas regiões rurais a cultura celta permaneceu; por outro lado, após o desmoronamento do Império muitas de suas características desapareceram, como certos tipos de bens de consumo e de conforto, que só voltaram à Suíça no séc. XX. Se ao falar de economia Flutsch mostra sua formação e pendor de arqueólogo, apoiando-se freqüentemente nos vestígios materiais da romanização, o último capítulo – “o casamento das culturas” – é ainda mais objetivo e concreto na apresentação de elementos materiais: para comprovar a importância das construções civis e da urbanização como modeladoras e ao mesmo tempo indicadores da vida social; ao trazer inscrições latinas que denotam peculiaridades da continuidade da cultura celta, inclusive familiar, sob capa romana, ou a presença das mulheres nas atividades da elite; receitas médicas evidenciando a introdução da medicina greco-romana; mosaicos e esculturas caseiras mostrando a aceitação da mitologia e da religião romanas; a completa alteração dos hábitos de alimentação pela importação de muitos produtos e dos modos de cozinhar mais sofisticados. Os exemplos que aduz são muitos bastando completá-los com os traços referentes ao que é menos material: as crenças. Uma cabeça de touro tricórnio celta esculpida em estilo romano; as inúmeras estatuetas de Lug disfarçado de Mercúrio; Caturix, deus protetor dos helvécios, que surge como Marte Caturix; Taranis empunhando o raio de Júpiter; o culto às novas divindades orientais que tinham entrado no Império, inclusive o cristianismo, cuja presença em território suíço é atestada desde o final do séc. IV, ou ainda os costumes celtas de velório e sepultamento modificados pelos romanos. Na conclusão, intitulada “um parêntese que não se fechou” o autor retoma e resume as principais aportações da romanização à Helvécia galo-romana desde o latim e a telha ao gato doméstico e ao alho, para defender as suas teses, entre as quais destacamos: 1. a arqueologia é uma ciência bem fundamentada em técnicas de interpretação de vestígios materiais, mas não está imune a influências doutrinais e ideológicas, nem à percepção do antigo pelos olhos da atualidade; é assim que discretamente alude à integração alpina na cultura mediterrânica e na globalização imperial para sugerir (129) que essa antiga abertura conduz a Suíça à integração na União Européia; 2. a romanização lançou os fundamentos do modo de vida suíço da atualidade, mas não construiu uma consciência de nacionalidade unificada, que é muito recente; daí as suas críticas às alusões do passado como criador dessa identidade de povo, que ele considera um erro de interpretação que falseia a própria visão da Suíça – aliás o autor continuamente se dirige a seus patrícios, pois usa muito o termo “nós” e “nosso” para falar da região. Deste modo, um pequeno volume de introdução a um período histórico é de fato, como toda a coleção Savoir Suisse, um chamado à revisão da percepção que os suíços têm de si mesmos e do seu papel na atualidade. De alguma forma a arqueologia de Laurent Flutsch, diretor de escavações, de exposições e do Museu romano de Lausanne-Vidy, é uma ciência de intervenção política.
João Lupi – Departamento de Filosofia UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
FLUTSCH, Laurent. L’Époque romaine ou la Mediterranée au nord des Alpes. Lausana: Presses polytechniques; Universitaires romandes, col. Le Savoir Suisse, 2005. Resenha de: LUPI, João. A Suíça e o Mediterrâneo. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.7, n.1, p. 101-103, 2007. Acessar publicação original [DR]
The Rock Basins of Serra do Cume: Azores megalithic rocks and enigmatic inscriptions rearrange the old Atlantic geography / Maria Antonieta Costa
A formação vulcânica do arquipélago dos Açores apresenta uma admirável variedade de litologias (composições rochosas) com propriedades mineralógicas interessantes – assim começa o Abstract introdutório do livro. E continua: no que respeita à formação geológica da ilha Terceira encontram-se presentes quantidades notáveis de sílica, elemento que parece ser fundamental também na composição das construções megalíticas do continente europeu. Seja ou não uma coincidência esse fato dá a impressão de ser ele a razão explicativa segundo a qual os indícios (sinais) encontrados na ilha Terceira, tais como marcas em forma de cortes e de taças, construções megalíticas, “inscrições”, sugerindo que intercâmbios semelhantes entre seres humanos e seu ambiente, que se sabe ocorrerem no continente, podem surgir em lugares mais improváveis, como no meio do Oceano Atlântico. A escolha de tais rochas para construir as ocorrências descritas também implica a existência de um “plano” anterior à sua implantação.
Até aqui o Abstract. O projeto desta investigação faz parte das atividades da Autora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde atua em estágio de pós-doutorado, e onde conta com o apoio da Professora Doutora Alice Duarte, tutora do projeto. Embora a presença de formações rochosas de configuração incomum, e em grande quantidade, desde longa data tenha despertado a atenção de moradores e visitantes da ilha Terceira nunca um estudo sistemático fora empreendido, até que Maria Antonieta Costa, pesquisadora de História da Cultura, resolveu dedicar-se ao tema. Para levar a cabo uma investigação detalhada, cuidadosa, e em larga escala, ela convidou geólogos e arqueólogos, e pesquisadores de áreas afins, e com eles fez o levantamento completo de todo o conjunto. Uma vez que não se encontraram (ainda) vestígios de ocupação humana anteriores à presença portuguesa a atenção voltou-se para definir a sua maior probabilidade através de dois caminhos: comparação com sítios arqueológicos similares em outros locais da Europa (quase todos na Escandinávia), e a análise/interpretação do conjunto em termos de Antropologia do Espaço, ou Antropologia da paisagem cultural. Segundo este ponto de vista certas configurações do ambiente natural (flora, geologia) oferecem à observação um potencial de imaginário cultural que atraem a presença humana, ou, quando menos, a suspeita fundamentada dessa presença.
Uma das questões mais destacadas pela autora é a forte presença de sílica na composição rochosa da Serra do Cume: essa presença não existe em outros locais dos Açores, mas é conhecida em rochas de outros lugares do mundo, onde as propriedades “mágicas” (curativas) da sílica fazem as populações atribuir poderes sobrenaturais às formações rochosas. Há ainda outros aspectos (sinais) destacados no texto e muitos deles fotografados: os riscos e sulcos nas rochas, as formações que lembram animais, ou humanos, as construções de pedras sobrepostas em muros, as taças aparentemente esculpidas na pedra, e o conjunto todo dessas rochas, algumas das quais dificilmente se podem imaginar sem a ação humana, que parece demonstrar uma intencionalidade na sua disposição.
Redigindo a conclusão do livro (agosto de 2014) a Autora afirma que as taças na rocha (rock basins), que foram o pretexto inicial para conduzir a pesquisa, passaram a segundo plano perante a importância que entretanto se revelou no conjunto. Ao preparar uma nova etapa da pesquisa, com o apoio de mais especialistas, e ampliando o campo de ação, Costa já estava também iniciando outras abordagens e consolidações do projeto: o convite a antropólogos europeus para visitarem a Serra do Cume, e a publicação de crônicas em jornais locais – em ambos os casos com a intenção de captar a atenção e o interesse do público, estudiosos, e autoridades, e garantir meios de investigação e credibilidade aos seus resultados.
Sir Barry Cunliffe, professor em Oxford, é um dos antropólogos europeus mais respeitados da atualidade;nos últimos anos ele vem defendendo a hipótese da existência de uma cultura megalítica atlântica muito anterior (nove mil anos a.C.) à suposta “chegada” dos celtas ao extremo ocidente europeu. Pelo contrário, segundo ele – no que é secundado, senão antecipado, por investigadores espanhóis como Ramon Sainero – teria sido nesse extremo ocidente que se teria originado a cultura depois conhecida como celta. Não é pois de admirar que Sir Barry Cunliffe atendesse prontamente o convite, visitasse a Serra do Cume, e no dia 15 de outubro de 2014, ao proferir palestra na Câmara de Vereadores de Angra do Heroísmo (Terceira) se mostrasse muito favorável à continuação das pesquisas. Além disso indicou o antropólogo George Nash para também ele visitar a ilha Terceira, o que o professor britânico aceitou, permanecendo na ilha de 15 a 25 de fevereiro de 2015, e apresentando relatório com suas conclusões.
George Nash percorreu os locais e observou as evidências rochosas mais destacadas: grutas, petroglifos, muros de pedra, rochas zoomórficas, sulcos nas lajes do solo, e concluiu que há possibilidade de serem sinais de ação humana. Constatou, porém, que não há nenhuma prova concreta da presença humanas na ilha anterior aos europeus (portugueses e flamengos); e que o pote de moedas fenícias e cartaginesas encontrado na ilha do Corvo (distante da Terceira) em 1749 só por si não garante que os fenícios tenham visitado as ilhas – as moedas podem ter sido um trote, colocado lá intencionalmente. Por isso ele recomenda que se realize um amplo projeto paleoambiental, procurando, por exemplo, sinais de pólen exótico, ou indícios de corte de floresta; mas aceita a viabilidade de resultados positivos, ao concluir pelo seu engajamento nesse futuro projeto.
As crônicas, onde a autora traduz e detalha diversos aspetos do livro, foram iniciadas no final de novembro de 2014, e no início de abril de 2015 somavam 17 textos publicados, quase todos de cerca de uma página, e sempre com o mesmo título: “Crónicas de uma causa mal-amada” – mal amada porque tem sido rejeitada, ou pelo menos desconsiderada pelo público açoriano. Pelos moradores, que dizem: “Quem gostaria de vir de longe, ver pedras?” (Crónica 9); pelas autoridades, particularmente do Geoparque dos Açores, que se mostram “relutantes” e mesmo “irredutíveis” a propor a candidatura do local investigado para ser classificado de forma diferenciada (Crónica 10); e pelos especialistas, nomeadamente arqueólogos, que têm sido “cegos” (Crónica 11) para as evidências que contrariam a história oficial: a de que o arquipélago era desabitado e não tinha recebido presença humana antes da chegada dos portugueses. Mas, tanto as crônicas como o livro destacam a colaboração que a A. tem recebido de profissionais e especialistas, não só no levantamento completo do sítio (mapas, fotografias, descrições) como na análise e interpretação de alguns aspetos e no seu enquadramento teórico mais amplo. Contudo essas colaborações voluntárias, e os esforços da autora – apresentando-se em congressos, fazendo palestras, e seriados na televisão – não alcançaram ainda um objetivo fundamental do projeto: o de ter aprovada a realização de uma pesquisa arqueológica profunda e vasta, e com ela o reconhecimento da importância do sítio pelas autoridades e público interessados. É notável, porém, que uma obra composta numa ilha no meio do Atlântico, com pouco mais de cinqüenta páginas de texto, e 90 fotografias, tenha despertado a atenção de uma editora alemã e o interesse de dois importantes antropólogos europeus. Há nele certamente mais do que uma ingênua curiosidade, duas qualidades que fazem de Maria Antonieta uma descobridora de mundos novos, ou de novas maneiras de ver o mundo.
João Lupi – Docente do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: lupi@cfh.ufsc.br.
COSTA, Maria Antonieta. The Rock Basins of Serra do Cume: Azores megalithic rocks and enigmatic inscriptions rearrange the old Atlantic geography. Saarbrücken: LAP/Lambert Publ., 2014, 73p. Resenha de: Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luis, v.15, n.2, 2015. Acessar publicação original. [IF]
O Pacto das Fadas na Idade Média Ibérica | Aline Dias da Silveira
“O objetivo desta obra – diz a Autora, p.18 – é identificar a estrutura simbólica das narrativas feéricas, comparando-a com a estrutura ritualística e simbólica dos pactos vassálico e matrimonial”. Nesta frase concisa encontramos o núcleo fundamental do trabalho: como é que as narrativas medievais sobre fadas (e feiticeiras) revelam a estrutura do feudalismo – ou, mais exatamente: do casamento na sociedade feudal, mostrado através dos seus ritos e imagens. O estudo de Aline Silveira é um trabalho de análise e interpretação do Livro de Linhagens, escrito na década de 1340, por Dom Pedro, Conde de Barcelos (c.1285-1354). Filho bastardo do rei Dom Diniz (1279-1325), e de Glória Anes, (natural de Torres Vedras), D. Pedro viveu num reino que pela primeira vez estava livre de guerras com os sarracenos, e governado por um monarca educado, culto, e bom administrador: a D. Diniz se devem, entre outras obras que permanecem até hoje, a plantação do pinhal de Leiria (que forneceu madeira para caravelas e naus), a fundação da Universidade de Lisboa/Coimbra, e a criação das Festas do Divino Espírito Santo, além de ter sido compositor de peças de poesia e música na Corte.
Educado nesse meio por sua madrasta, a Rainha Santa Isabel, irmã do reio de Aragão, D. Pedro desenvolveu importante atividade literária, reunindo e compondo poesias trovadorescas, e também se lhe atribui, além do Livro de Linhagens, uma Crônica de Espanha (1344) – Espanha não designava então o país ainda inexistente, mas a Hispania, lembrança dos períodos romano e visigótico, quando a Península Ibérica estava unificada. D. Pedro, que se desentendeu com o pai e algum tempo viveu em Castela, interessava-se especialmente por questões de legitimidade feudal e genealógica, razão pela qual se colocou ao lado da Rainha Santa, como intermediário nas disputas entre seu meio-irmão Afonso (primogênito e herdeiro do reino) e o rei seu pai. Temos assim o esboço do porquê de alguns traços da personalidade daquele que, no Livro de Linhagens, faz remontar os laços de fidelidade e ascendência feudal aos arquétipos e às fontes da mitologia, e da religiosidade popular. O que Aline Silveira faz no seu livro é trazer à tona e desvendar essas ligações de certo modo ocultas pelas metáforas e lendas, particularmente as que mostram o poder feminino, que o patriarcalismo feudal e guerreiro parece minimizar, mas que a literatura apresenta disfarçadas de fadas e feiticeiras, tipificadas na Dama Pé de Cabra. Esta mulher, filha de um ser meio humano (de quem herdara os pés ungulados), vivia na Biscaia (Euzkadi, País Basco, ou Vasco) e casou com Diego Lopes de Haro, da mais importante família basca. Com ele teve filhos, e iniciou uma dinastia, que deste modo legitimou sua origem não só numa lenda, mas numa sucessão de ligações míticas que fazem remontar a família Haro a antepassados préhistóricos e, na interpretação da Autora, a concepções fundamentais da visão histórica e mítica do mundo.
Ampliando seu comentário pela comparação com outras narrativas lendárias medievais – a Melusina de João de Arras, e o romance de Froiam da Galiza com Marinha – a interpretação busca raízes na cultura celta, e procura ainda contatos com outras mitologias, particularmente a grega. No Livro de Linhagens há outra idéia norteadora, complementar à anterior – que O Pacto das Fadas explica e comenta: o reforço dos laços feudais de vassalagem pelo parentesco e o casamento; neste caso as “fadas“ são as esposas, aquelas que fazem a ligação entre duas casas nobres, ou reais. A esse propósito a Autora discute a opinião de historiadores portugueses que consideram o feudalismo em Portugal diferente do “modelo francês”.
Ora, na realidade, se observarmos bem a Europa medieval, o feudalismo francês (restrito ao norte da França), só foi modelo porque era mais central, mais influente na época, e porque os historiadores franceses do século XIX foram mais competentes para analisá-lo e propô-lo como modelo; mas de fato cada reino, e cada época, teve suas peculiaridades. Mesmo que, ao tempo de D. Diniz, o feudalismo em Portugal já fosse distinto da estrutura política do reino quando D. Afonso Henrique (1109-1185) liderou a independência, é preciso também ter em conta que o feudalismo, com seus laços de vassalagem e relações de poder, não é só uma estrutura social, política, econômica e guerreira, mas, como a Autora muito bem salienta, é uma maneira de pensar. E é esse pensar que Aline procura descobrir no Conde D. Pedro de Barcelos, o qual entendia que a sociedade se mantinha coesa não só pelas relações de poder, mas também pelas de amor e amizade. Talvez D. Pedro apelasse para esta questão porque estava presenciando mudanças perceptíveis, embora ainda não definitivas: pelos casamentos reais Portugal estava recebendo influências diretas de Castela (de onde era sua avó Beatriz), de Aragão (então a maior potência marítima do Mediterrâneo ocidental) e da França: seu avô. D. Afonso III (1210-1279), fora casado (1238) com Dona Matilde condessa de Bolonha, até assumir o trono de Portugal após a deposição ( 1247) de seu irmão Sancho II, que se desentendera com o clero e a nobreza; no reinado de Afonso III Portugal completou a sua formação territorial, pela conquista definitiva do Algarve (1249), e, ao contrário de seu irmão, o rei conseguiu conter em parte o poder da nobreza nas Cortes de Leiria, e pelas inquirições contra os abusos da nobreza e do clero; se lembrarmos que o pai de D. Pedro, além das realizações que anotamos acima, afrontou o poder da Igreja em diversas ocasiões, mas principalmente ao criar a Ordem de Aviz, na qual recebeu os monges templários condenados e expulsos pelo Papa e pelo rei de França, veremos os indícios de uma concentração do poder real, que se tornará forte na dinastia fundada (1385) por D. João I, Mestre de Aviz.
Finalmente Aline Silveira relaciona a fada (a Dama) com o nobre (o Conde), e o arquétipo mítico com o imaginário social, através de um pano de fundo constituído pelo mito das origens. É o mito, resultado narrativo das idéias presentes no imaginário fundamental e permanente da humanidade, mas realizado em cada cultura regional, que dá sentido à relação entre a fada e o nobre, e portanto à solidez da estrutura social da nobreza. Neste ponto a historiadora amplia e aprofunda o que já estava fazendo desde o início, ao reconhecer a insuficiência da História, como ciência humana narrativa e factual, para se explicar a si mesma, e portanto recorre a outras ciências, como Antropologia, Ciências da Religião, Crítica literária e Psicologia, para descobrir o que há de mais íntimo na humanidade, que faz da história humana regional e local um reflexo da existência humana como um todo. Esta combinação de ideias diversas a Autora realiza com detalhe, perfeição e competência. E nesse pano de fundo ela mostra que o imaginário vassálico era comum não só a toda a Europa, mas se estendia além Europa – ou de lá provinha. Resta perguntar aos jovens historiadores: essas representações sociais, esses arquétipos tipificados e concretizados na Ibéria, que prolongações tiveram na América Latina?
João Lupi – Professor Voluntário do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Filosofia – UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
SILVEIRA, Aline Dias da. O Pacto das Fadas na Idade Média Ibérica. Apresentação de José Rivair Macedo. São Paulo: Annablume, 2013. Resenha de: LUPI, João. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.14, n.1, p. 146-149, 2014. Acessar publicação original [DR]
Kalevala. O poema épico finlandês | Elias Lönnrot
A obra e o autor
O Kalevala é a representação poética mais destacada da cultura tradicional dos povos fin – os finlandeses. Tal como outros poemas clássicos “nacionais”, ou étnicos ele é o resultado da composição, em uma obra só, de relatos poéticos variados e dispersos. Mas, ao contrário da maioria desses poemas, cuja composição remonta a épocas arcaicas, a redação do Kalevala é recente, e seu autor é bem conhecido: o médico e etnólogo Elias Lönnrot (1802-1884). Formado em medicina pela Universidade de Turku trabalhou como secretário de saúde em Kainuu, e aproveitou sua profissão, que o levava a percorrer o meio rural, para coletar poesias regionais tradicionais. Com elas compilou diversas obras, entre as quais Kantele (1831) – o título é uma referência ao instrumento de cordas tradicional – a primeira versão do Kalevala (Antigo: 1835), Kanteletar (1840) e Kalevala (o Novo: de 1849, sendo esta a versão aqui traduzida). Lönnroth selecionou narrativas míticas e lendárias, simplificou os relatos, procurou dar-lhes unidade de conjunto, se necessário inventando um ou outro trecho ou traço poético a fim de organizar o poema final; este processo foi semelhante ao que quase na mesma data (1848) Richard Wagner usaria para dar início à composição do Anel do Nibelungo a partir das mitologias nórdicas. A estrutura do poema em sua versão atual é composta de cinquenta cantos, ou capítulos, de dimensões variáveis, num total de 22.795 versos. O conjunto não forma uma narrativa única, mas uma sucessão de relatos cuja unidade é realizada não só pelo estilo e referências contextuais, mas por um grupo de personagens que vão se sucedendo e entrosando ao longo do poema. A ação, ou ações, passa-se em diversos territórios, que em tempos préhistóricos eram ocupados por povos distintos, mas no poema abrangem praticamente todo o território (e apenas ele) atualmente constituído pelo país Finlândia, e unificado também pelo idioma finlandês contemporâneo, o que fez do Kalevala um símbolo e um “tônico” espiritual na luta dos finlandeses (final do século XIX e início do XX) pela sua independência contra as nações vizinhas e particularmente contra a Rússia (1917).
Estrutura do poema
As narrativas passam-se num contexto de “antes do tempo”, quando os seres humanos conviviam com os animais, e neste sentido elas são mitológicas; todos os seres possuíam poderes superiores aos comuns da humanidade e natureza atual. Mas o Kalevala não é uma narrativa mítica no sentido de Jung e Eliade – em que o fato acontecido no “mundo dos deuses” é o protótipo e arquétipo do que acontece no mundo dos humanos – a não ser, como dissemos, como possível arquétipo da cultura e modo de pensar dos finlandeses. Considerando o Kalevala sob o aspecto das narrativas temáticas temos três grupos principais, constituídos pelas narrativas referentes a cada um dos heróis dominantes – Väinämöinen e Lemminkäinen – e o “coadjuvante” que é Ilmarinen, interrompidas, porém, por dois episódios: o referente à noiva de Ilmarinen, com as recomendações à mulher que vai casar (XX – XXV) e o referente a Kulervo, escravo de Ilmarinen (XXXI – XXXVI) que se compõe de uma sucessão de vinganças e tragédias. Outro tema é um objeto especial, que percorre e unifica todo o poema: o Sampo – algo que é indefinido, talvez indefinível, do qual depende, ao menos em parte, a ordem do mundo e a felicidade das pessoas, algo que se pode perder, ou quebrar, mas que pode ser reconstituído, mas que não se sabe, ou não se diz, o que é. Mas o tema da busca do misterioso Sampo começa no canto VII (310) e só termina com a sua destruição nos últimos cantos (XLVIII a L).
Os personagens
Os heróis do Kalevala, tal como os deuses e heróis da mitologia grega e nórdica, não são modelos das virtudes tradicionais, clássicas ou cristãs, mas são modelos de astúcia, como Ulisses, e de uso de poderes mágicos. São heróis “nacionais”, mas não são modelos morais nem arquétipos míticos. São fantasias da vida popular rural, talvez representem aspirações, talvez indiquem traços da mentalidade, ou do subconsciente coletivo. Todos os heróis têm que realizar tarefas difíceis para conseguir a mão das donzelas pretendidas: capturar um alce, derrubar um urso, construir um barco… Os dois personagens mais constantes e significativos – Väinämöinen e Lemminkäinen- são um velho feiticeiro (o primeiro), e um jovem estouvado (o outro). Väinämöinen aparece já no canto I, quando Ukko, o Criador, dá origem ao mundo, e, depois do surgimento do Sol, da Lua e das estrelas, a mãe-d’água Ilmatar dá à luz o herói. As circunstâncias deste nascimento, e o fato de estar colocado no início do poema mostram que Lönnroth destacou Väinämöinen como personagem principal de toda a narrativa; essa importância vem ainda dos poderes do herói semideus, que completa a criação do mundo como um demiurgo prometéico. Ao longo dos 50 cantos ele é citado e atuante em pelo menos trinta; além de demiurgo ele combate adversários, conquista mulheres, realiza prodígios, canta músicas encantadoras, e cura doenças. Lemminkäinen é o resultado da sobreposição de diversos personagens das poesias populares, e por isso aparece ao longo do poema com diversos nomes; mas sempre como o jovem estouvado; é citado na criação do mundo, mas só começa a ser atuante nos cantos XI – XV; vai ao casamento de Ilmarinen sem ser convidado; mata o amo de Pohja, e foge: perseguido, esconde-se numa ilha, conquista todas as mulheres, foge de novo, volta para casa, e vai fazer a guerra contra Pohja (XXVI – XXX); sua atividade “preferida” é conquistar donzelas, que persegue ao longo do poema, acabando por ter uma merecida fama de “garanhão” (Canto XXIX 243-246). Por isso e por ser arrogante e dado a brigas e bravatas, sofre perseguições, é morto, mas ressuscitado por sua mãe. Ilmarinen, o terceiro herói, é o ferreiro com poderes extraordinários, consegue forjar até um novo Sol; ele aparece em diversas passagens, mas só começa a ter papel destacado quando disputa com Väinämöinen, a mesma donzela de Pohja (ou Pohjola), e realiza proezas como lavrar um campo de víboras e capturar um urso (XIX). Finalmente Ilmarinen descobre que em Pohjola se vive bem porque têm o Sampo, e o conta a Väinämöinen (XXXVIII); é então que os três heróis principais se encontram (XXXIX) para juntos irem à procura do Sampo; enfrentam perigos de peixes gigantes, mas, morto o peixe (XL), Väinämöinen fabrica com as espinhas um kantele e com ele toca uma música que encanta o mundo inteiro (XLI) e adormece o povo de Pohja, a quem os heróis roubam o Sampo (XLII). Perseguidos pela dama de Pohjola, o Sampo se quebra e cai ao mar. Com sua música, poderes e unções Väinämöinen traz felicidade ao mundo, e Kalevala vence Pohjola. Numa sucessão de breves episódios finais (quase como adendos) Väinämöinen vence o urso (um ritual arcaico siberiano) e com Ilmarinen vai à procura do Sol, da Lua e do fogo, roubados pela dama de Pohja, conseguindo recuperálos. No final um velho batiza um menino como rei da Carélia; Väinämöinen retira-se deixando para o povo o seu kantele, seus cânticos, e a esperança de reaver o Sampo. Dos personagens haveria que destacar muitos outros elementos masculinos, mas há que referir sobretudo a presença de mulheres, algumas delas com ação importante, sobretudo a dama de Pohjola; dizer que a figura da mulher aparece sempre num papel secundário e submisso ao homem seria bastante óbvio, mas isso nem sempre é assim, e haveria que analisar o poema de maneira mais atenta para perceber que as ideias referentes à mulher não são sempre machistas. Entre os personagens não humanos há os animais, que na maioria dos casos são agentes passivos, e os sobrenaturais, como fadas, e semideuses, que não têm ação preponderante; apenas o criador, Ukko, é chamado algumas vezes para intervir, sabendo-se que tem poder decisivo, que pode modificar a sequencia dos acontecimentos.
Poema étnico
O lugar de origem das narrativas poéticas que compõem o Kalevala, onde Lönnroth os recolheu, é a Carélia, região que se divide entre o Sudeste da atual Finlândia, e a correspondente região fronteiriça da Rússia. Mas ao longo dos diversos cantos faz-se referência não só às outras regiões do atual país, inclusive até à Lapônia, no extremo norte, como a povos vizinhos, particularmente alemães, russos e estonianos. Na pré e proto-história o território da atual Finlândia era habitado por diversos povos, que foram sendo unificados, embora ainda subsistam evidências da diversidade: o país que conhecemos como Terra dos Fin, ou Finlândia, designa-se a si mesmo como Suomi, nome de outro povo. Mas desde antes da Idade Média as influências nórdicas, ou vikings, na maioria suecas e dinamarquesas, estão bem atestadas, por exemplo, pela fundação, no século XII, de Talin (capital da Estônia) com o nome de Tanikka (canto XXV 613) abreviatura provável de Tanimerki (Dinamarca, nota 219). Foi nesse período da Baixa Idade Média que se reforçou e consolidou a influência do cristianismo nos povos da Carélia e seus vizinhos do Báltico. Os especialistas consideram que de fato a mitologia e em geral a cultura da Escandinávia germânica, e a doutrina cristã, deixaram traços no Kalevala, mas só uma análise comparativa atenta pode destacar aquilo que para o leitor comum é sutil e passa despercebido.
A tradução
A linguagem original dos textos que compõem o Kalevala seria certamente o finlandês arcaico, ou mesmo outro idioma dos muitos povos que habitavam a região do Báltico; mas Lönnroth os recolheu em finlandês do século XIX, e deu-lhe ainda algumas características peculiares para reforçar o estilo poético-lendário, como a inclusão de muitas expressões onomatopaicas. A primeira tradução para o inglês é a de John Martin Crawford em 1888: ela acompanha rigorosamente o ritmo original do poema, que já está traduzido em mais de sessenta idiomas. No caso da tradução para português a principal dificuldade a resolver é o fato de o idioma finlandês ser uma língua do grupo uralo-altaico (correspondendo a alguns povos da Sibéria e do Altai, na Ásia Central), aparentada com o húngaro (magiar) e o estoniano, mas muito distinto, em estrutura gramatical, e vocabulário, dos idiomas indo-europeus; os vocábulos finlandeses possuem até dezesseis declinações, e as frases podem ser construídas sem verbo; além disso, a terminologia refere-se constantemente, e de modo particularmente expressivo na sua singularidade musical, a um contexto ambiental (natureza) diferente do português. As tradutoras procuraram resolver esses problemas mantendo o formato poético, a estrutura rítmica, e sempre que possível a rima dos versos; além disso realizaram um trabalho se não exaustivo pelo menos muito completo de apresentação de informações e complementos por meio de notas. O convite a um desenhista – Rogério Ribeiro – bom conhecedor da cultura finlandesa, permitiu, através de ilustrações, ampliar o aspecto figurativo da linguagem, infelizmente, porém, o ilustrador faleceu antes de concluir sua obra, que, em alguns casos, ficou apenas nos esboços.
Os povos eslavos, e, em parte, os bálticos, são aparentados com os celtas e germanos, e suas culturas e, particularmente, as literaturas, têm muito em comum; mas os europeus fino-úgrios, como uralo-altaicos que são, têm afinidades mais afastadas. Porém a história e a vizinhança criaram tantas interferências e intercâmbios que não podemos considerar o Kalevala uma literatura distante: ele nos é próximo, e, se nas semelhanças, podemos com ele recuar a traços comuns meso e neolíticos, nas diferenças podemos destacar os componentes do mosaico cultural que compõe a humanidade.
João Lupi – Departamento de Filosofia – UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
LÖNNROT, Elias. Kalevala. O poema épico finlandês. Introdução de Seppo Knuuttila. Tradução de Merja de Mattos-Parreira e Ana Isabel Soares. Desenhos de Rogério Ribeiro. Alfragide (Lisboa): Dom Quixote, 2013. Resenha de: LUPI, João. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.13, n.1, p. 120-124, 2013. Acessar publicação original [DR]
III Simpósio Nacional e II Internacional de Estudos Celtas e Germânicos | Moisés R. Tôrres e Adriene B. Tacla
De 8 a 11 de julho de 2008, na Universidade Federal de São João Del Rei, Minas Gerais, realizou-se o III Simpósio Nacional (2ºinternacional) de Estudos Celtas e Germânicos, subordinado ao tema “Saber e poder entre celtas e germanos: formação, representação e transformação” que figura como subtítulo deste Livro de Atas. O Promotor do evento foi o grupo Brathair de Estudos Celtas e Germânicos, que, iniciado em 9 de julho de 1999 numa Reunião Nacional da Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) cumpria então nove anos de criação, mas que, embora recente, mantinha uma linha de atuação que começava a se constituir em tradição. Não sendo uma associação, mas um grupo de pesquisa, o GECG tem primado pela seriedade e cientificidade não só dos trabalhos do grupo, mas também dos convidados a participar na revista Brathair e nos simpósios e colóquios. É o que transparece neste volume de atas, onde o nível e qualidade dos textos dos contribuintes de outros países – Klaus Millitzer, Ramón Sainero, e Helmut Birkhan (ausente do simpósio por doença) – valoriza e ressalta os trabalhos dos convidados nacionais – Norma M. Mendes, Elisa Abrantes, Mônica Amim, e Rita C. M. Pereira – bem como dos membros do próprio grupo organizador.
Um livro de atas, porém, não reflete toda a amplitude do seu evento; neste caso há, além de conferencistas que por motivos alheios à sua e à nossa vontade não incluíram seu trabalho nas atas, mas sobretudo as dezenas de contribuições de estudantes que representaram um dos maiores objetivos e resultados do grupo Brathair: o estímulo aos jovens acadêmicos brasileiros para que se interessem pelos estudos celtas e germânicos e os incluam em seus projetos de vida intelectual, ao menos como parte de objetivos mais amplos, como os estudos medievais, e as influências da pré-história na cultura atual. Neste aspecto o Livro de Atas reflete bem o simpósio: são duas seções – Saber, poder e religiosidade (8 textos) e Literatura e preservação do saber (5 textos) abrangendo quatro momentos bem definidos ao longo da história cultural européia. No primeiro vemos a formação das tribos germânicas (Millitzer) e a organização do poder celta na Idade do Ferro (Tacla); no segundo sente-se o impacto do Império Romano (Mendes) e a proto-história romano-celta (Olivieri); no terceiro vemos a permanência forte dos celtas e germanos na formação da Europa medieval, quer na política (Lupi), quer na literatura (Amim, Pereira, Zierer) e na filosofia (Tôrres) com temáticas que se definem na cultura medieval a partir de fontes pré-históricas, indo até às raízes sânscritas (Sainero); e finalmente no período contemporâneo ressaltando a presença das tradições quer na imaginação de elfos e fadas (Birkhan) quer no romance (Abrantes).
Vejamos alguns traços gerais, ou mais marcantes, das duas áreas nas quais se distribuíram as pesquisas/palestras: política, e literatura. A formação da Europa a partir da desintegração do Império teve como um de seus fatores constantes e determinantes a consolidação de nações a partir da aglutinação de grupos, ou etnias (etnogênese); os elementos, ou focos aglutinadores foram diversos: na Idade do Ferro destacaram-se as chefias, embora a concepção sobre seu domínio seja contestada, mas que em diversas formas permaneceu ao longo dos séculos; no caso da Escócia as chefias foram importantes, mas a ação dos monges irlandeses (ou seus discípulos) foi preponderante para reforçá-las ideologicamente; entre as tribos germânicas pode destacar-se a importância da nobreza guerreira, enquanto na Lusitânia o sistema de economia imperial romano redefiniu a comunidade nativa.
Por outro lado, as forças que atuaram na formação das nacionalidades, e consequentemente da Europa como um todo, não foram apenas as lideranças mais evidentes, como os chefes, os monges, os nobres, e os comerciantes/empresários, mas também forças mais discretas, quase ocultas, que mantiveram identidades tradicionais, como as druidesas (ou o que a elas pode equivaler). Assim decorreu a Alta Idade Média, quando as tradições celtas e germânicas convergiram para a constituição das nacionalidades e reinos; posteriormente a consolidação destes reinos deu lugar a uma convivência, em que, no seio do cristianismo, na Baixa Idade Média, as lendas e contos antigos foram refeitos e recompostos em literatura escrita com abrangência mais ampla. É o caso do Mabinogion, coletânea de narrativas originárias do País de Gales, e da literatura em torno da demanda do Graal, esta de muito mais ampla circulação na Europa; nela se reflete e configura um conjunto de fontes – bíblica, heróica, cavalheiresca, cortês – que constitui uma das obras pedagógicas da cultura européia e ocidental.
Outro aspecto importante da contribuição celta e germânica para a formação da identidade européia está na Filosofia, já que, em questões antigas, como a existência de conceitos universais (que de fato respondem à pergunta: como pensamos?) problema que já vinha desde os filósofos de Atenas, a contribuição de teólogos de diversas origens étnicas, convergindo para uma discussão comum, mostrou como na Baixa Idade Média os celtas e germanos já eram, junto com italianos e outros povos, plenamente europeus, e parte integrante e atuante da civilização ocidental. Uma questão destacada em diversos trabalhos é a peculiar e forte presença da mulher nas sociedades celtas, revelada por diversos tipos de literatura e personagens: rainhas irlandesas e seus triângulos amorosos, adivinhas e videntes que deram continuidade à memória dos druidas, fadas e ondinas que ainda povoam a imaginação de crianças e adultos – “dominam o universo”, no dizer do Professor Birkhan – e estão presentes na literatura irlandesa contemporânea personificando a identidade celta.
Este Livro de Atas tem muitos méritos, e certamente um deles é o fato de ser a primeira publicação brasileira, em livro, com textos de pesquisadores brasileiros, sobre temas celtas e germânicos, antecipando-se assim às publicações de outros simpósios e colóquios do grupo Brathair que o precederam. Além disso, apresenta um panorama deste estudos, como se viu, tanto em amplitude histórica quanto temática, que, apesar do exíguo número (13) de títulos consegue ser uma introdução geral para quem se interessar pelo assunto. Finalmente as metodologias, pacientes e cautelosas, fundamentadas em extensas bibliografias e notas (num total de 33 páginas, 13% do texto, e 380 obras citadas) são o plano aval e garantia da seriedade e espírito científico com que se deve trabalhar, e se trabalha no Brasil, os estudos das culturas celtas e germânicas.
João Lupi – UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
TÔRRES, Moisés Romanazzi; TACLA, Adriene B., e outros (coordenadores). Livro de Atas. III Simpósio Nacional e II Internacional de Estudos Celtas e Germânicos. São João Del Rei: UFSJ e Brathair, 2008. Resenha de: LUPI, João. Saber e Poder entre Celtas e Germanos. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.9, n.2, p. 46-47, 2009. Acessar publicação original [DR]
A Galicia celta | Antonio Balboa Salgado
Quem estudou, mesmo que brevemente, algumas questões da história e da cultura dos celtas já se deparou com as grandes divergências que aparecem entre os investigadores, sobretudo nos últimos anos. Os estudiosos dos celtas da Galiza (os castelhanos preferem que se diga Galícia) não fogem à regra, e não será difícil encontrar entre eles opiniões diferentes em pontos importantes da história dos celtas galegos (ou calaicos). Duas coisas são certas: que há hoje em dia muitos pesquisadores com trabalhos sérios e pesquisas alentadas, e que o acervo de conhecimentos obtido ainda não é suficiente para se dirimirem as divergências, algumas delas das mais relevantes e fundamentais, como as que Balboa Salgado coloca no início do seu livro: qual o conceito de celtas? Os galegos têm origens celtas?
Três são as posições básicas com que o A. abre a discussão: para os estudiosos mais conservadores, e para os nacionalistas galegos do século XIX, os celtas constituíam um povo que, em invasões e migrações, disseminou pela Europa ocidental uma cultura bem identificada e distinta das demais – mas hoje, tais invasões são muito discutíveis, e as idéias de povo e de cultura celta devem entender-se com muita variedade de concretizações, e flexibilidade de definição. A reação contrária seria a segunda opinião, e consistiu em negar a própria existência dos povos e culturas celtas, que não seriam mais do que construções literárias, às vezes com propósitos políticos separatistas; também esta posição cética radical não é mais aceitável, frente à convergência de inúmeros testemunhos e pesquisas, que constituem o arcabouço da metodologia do autor. Embora ainda se encontrem estudiosos que mantêm opiniões próximas a estas duas antagônicas a posição atual, que Balboa segue, é crítica sem ser negativa. É neste sentido, cuidadoso, e procedendo por análises precisas dos vestígios encontrados, que Balboa empreende seu trabalho de exposição geral do celtismo galego. Nele recolhe e completa três publicações suas sobre religião, guerra, e língua, que permanecem como os capítulos do livro. Como é de praxe em obras desta natureza o autor começa por apresentar as narrativas de antigos escritores gregos e romanos – Estrabão, Pompônio Mela, Plínio, Floro – sobre os diversos povos calaicos; passa ao estudo das inscrições em estelas funerárias e tésseras; como nestas os indivíduos se dizem celtas, da comparação entre elas e as narrativas, e outros dados arqueológicos, Balboa conclui que na Galiza Romana (a Galécia) e pré-romana existiram povos que se consideravam, e eram considerados, celtas. Destes dados iniciais retira ainda o autor duas hipóteses: a existência de chefias locais, e a importância da hospitalidade na sociedade galega antiga.
É sobre tais elementos preliminares que Balboa vai construindo o esboço geral da Galiza celta, sempre confirmando a celticidade com novos dados obtidos, sobretudo pela arqueologia. Na religião o A. destaca os santuários esculpidos na rocha no alto dos montes, mostrando a existência de sacrifícios e daí a possível existência de uma classe religiosa; analisando porém as referências ao tema supõe que as pessoas encarregadas do culto teriam organização e poderes inferiores aos dos druidas de outras regiões célticas. As poucas alusões aos deuses – nomeadamente Lug, em Lugo – que se encontram, mormente epigráficas, mostram também certa afinidade com o panteão de outros povos celtas. Muitos outros topônimos e termos referentes a objetos têm origem evidentemente celta, e é destes paralelismos que o A. se serve amplamente para confirmar sua suposição de que os galegos têm origem celta indiscutível.
Balboa faz constantes referências aos celtiberos e particularmente aos lusitanos, que viviam em estreita vizinhança com os calaicos do sul, o atual Norte de Portugal, entre Douro e Minho. Faz muitas alusões à Irlanda, tanto no vocabulário como em aspectos da sociedade (juramentos, irmandades) – relação histórica que conhecemos bem através de Raimón Sainero, palestrante do simpósio do Brathair em São João Del Rei (cf. resenha do Livro de Atas). Tal como Sainero e outros pesquisadores, Balboa procura por vezes enquadrar os traços celtas da Galiza no quadro mais amplo indoeuropeu. Mas por vezes deixa passar, ou esquece, alusões que poderiam reforçar esse paralelismo, como no topônimo Eburia, e Eburus, que ele cita e que corresponde ao de Évora em Portugal e a York na Nortúmbria; ou o gaulês Dumnorix, o Rei da Fortaleza, que poderia ter comparado com dun, ou duns, povoado fortificado, na Escócia. Aparte estas e outras falhas menores (falta de mapas com os nomes das atuais localidades e rios que ele cita) o livro é muito bem documentado com imagens e mapas antigos, e é de elogiar a variedade de fontes e, sobretudo, o uso criterioso dos textos.
João Lupi – UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
BALBOA SALGADO, Antonio. A Galicia celta. 2ª edição. Santiago: Edicións Lóstrego, 2007. Resenha de: LUPI, João. Os galegos têm origens celtas? Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.9, n.2, p. 44-45, 2009. Acessar publicação original [DR]
Ambiorix. La résistance des Belges face aux Romains. Racontée aux enfants… et aux grands qui l’ont oublié | Dominique Bockstael
Dominique Bockstael é professor e tradutor de latim em Bruxelas, e assíduo leitor da obra de Júlio César; baseado nela publicou em 1960 um livro sobre Ambiorix, intitulado O javali das Ardenas (cognome do personagem), e refez agora esse texto para inseri-lo numa coleção de vários títulos sobre a História da Bélgica contada às crianças. O caráter didático transparece não só no estilo romanceado, mas também nas notas explicativas, nos mapas de povos gauleses, nas imagens, completadas por uma cronologia e um breve dossiê sobre o modo de vida dos gauleses; no final são ainda listados, com endereços, os museus históricos da Bélgica, particularmente os galoromanos.
A narrativa segue fielmente o texto de César no De Bello Gallico (livro 5, cap. 24 a 41; livro 6: 2 a 43; livro 8: 24 e 25), sem uso aparente de outras fontes. Vejamos a história. Júlio César submeteu os celtas das Gálias, porém a conquista e ocupação do território não se processou facilmente: a resistência à invasão foi seguida em toda a parte de revoltas contra Roma. Ou como diriam as aventuras de Astérix e Obélix: “Toda a Gália está ocupada pelos romanos… Toda? Não! Uma aldeia habitada por irredutíveis gauleses resiste ainda e sempre ao invasor.” De fato depois da vitória decisiva contra Bogduognat e os nérvios em 57 a.C. César estabeleceu na Gália Belga sete legiões reforçadas por cinco coortes; elas impuseram o domínio romano sobre a confederação dos povos belgas, que se estendia entre os rios Reno e Sena. Mas o próprio Júlio César dizia: “De todos os povos da Gália os belgas são os mais fortes” e a revolta eclodiu em 54 a.C. liderada pelo rei dos eburões, Ambiorix.
A coligação gaulesa, reunindo guerreiros de diversos povos, infligiu aos romanos uma derrota esmagadora em Aduatuca (atual Tongeren ou Tongres, um pouco ao norte de Liège). Mas Cícero – o irmão do orador e político – que comandava a legião acampada entre os nérvios, apelou a Júlio César, então a caminho da Itália; César retrocedeu e derrotou os belgas, perseguindo e massacrando os fugitivos. Apenas Ambiorix e uns poucos fiéis companheiros de armas conseguiram se refugiar na floresta, onde nunca foram encontrados. E por alguns anos Ambiorix permaneceu na esperança e na lenda como aquele rei que um dia voltará das brumas para, qual Dom Sebastião, libertar seu povo – até ser esquecido por muitos séculos.
O livro de Bockstael relata essa rebelião transpondo para uma linguagem romanceada a Guerra da Gália na explícita intenção, presente no subtítulo, de tornar acessível às crianças belgas um dos fatos fundadores da sua identidade nacional. Mas o texto não se limita a expor campanhas militares e batalhas, e aproveita as narrações fictícias para descrever a vida quotidiana dos belgas: como eram as casas, quais os trabalhos domésticos, o papel das mulheres na guerra, as relações de família, as virtudes admiradas, o que se comia e bebia, onde e como se dormia, os trabalhos do campo.
O fio condutor da ação é o pequeno grupo que se forma em torno de Ambiorix e que ao final vai compor a escolta que se esconde com ele na floresta; esta é a trama de ficção com diálogos e detalhes que dão vivência ao desenrolar do romance. Mas a didática e a imaginação literária têm uma direção doutrinária e ideológica: defender a unidade e a identidade da Bélgica atual; o teor da empolgação da narrativa e dos adjetivos é não apenas patriótico e épico, mas ufanista: os belgas são (caps. II a IV) intrépidos e dispostos a todos os riscos na revolta contra o opressor; seus valorosos guerreiros são heróicos, seus chefes indomáveis, e na luta morrem como bravos. Em contrapartida (ibidem) os romanos são cruéis, brutais, ladrões gananciosos que pilham tudo o que encontram; a vergonhosa rapina dos legionários não poupa sequer os tesouros sagrados; foi com assassinatos e incêndios que eles sujeitaram, humilharam e ultrajaram um povo altivo e livre, atacado sem motivo; e os gauleses que se aliam aos romanos são traidores detestados e infames. Daí a sede de vingança dos que escaparam dos ataques das legiões, vingança que acorda as virtudes ancestrais, desperta a raiva e acende a coragem.
O bardo canta louvores aos valorosos filhos dos nobres, “de um povo orgulhoso e forte cujas vitórias ressoarão por toda a Gália”. É neste estilo encomiástico que prossegue toda a primeira parte do livro (até ao capítulo VII); mas já aqui se assinala o ponto fraco dos gauleses: estão divididos na oposição ao dominador, não têm disciplina, não têm um plano de ataque, suas ações são isoladas e sem envergadura. O texto abre assim o caminho para uma segunda parte (caps. VIII a XIV e epílogo) em que aparece o ponto de vista do adversário e dominante: a inteligência e tática de comando, e o valor dos legionários; os soldados extenuados e feridos são, perante Júlio César que lhes passa revista, heróicos e firmes combatentes, e o comandante se emociona com os “belos legionários” estropiados mas de pé no seu posto, e lhes diz que o Senado e o povo romanos lhes devem “ a mais bela conquista da sua história” (95). A partir do cap. X a derrota total é inevitável, e começam a ser acusados aqueles que compactuam com os romanos: eles são pérfidos, traidores, usurpadores; Júlio César conseguiu até que certos gauleses menos escrupulosos ajudassem as legiões a pilhar os bens dos vencidos. Os legionários, quase sem oposição, destroem tudo, arrasam as povoações, e para os sobreviventes só existe a servidão ou a morte: “é o fim do mundo” (cap.XII, 113, e 117).
O patriotismo desta narrativa, que pode parecer um tanto ingênuo e excessivo, tem seu sentido numa Europa que aboliu as fronteiras e onde a identidade nacional precisa ser reforçada (aos olhos de muitos); como a Bélgica vive há um século a fratura de sua unidade nacional, devido à luta dos flamengos contra o poder dos valões, a identidade começa pela unidade. Por isso o autor insiste em usar os nomes que assinalam a existência secular de uma entidade que antecipa a nação, referindo-se ao povo em geral ora como gauleses, ora como belgas, e lembra, sempre que vem a propósito, que o território onde se desenrola a ação se chamava Gália Belga; marca a cada página a diluição das diferenças entre os povos que compõem a coligação belga: nérvios, aduatas, eburões, trevinos… todos se uniram contra o invasor, todos são “filhos de brenn” isto é nobres guerreiros gauleses. Na trama da história, eles são belgas e, longinquamente, lançaram as raízes da Bélgica moderna. Assinale-se ainda que o fato de a Bélgica ser um país novo (sua independência data de 1831) obriga a um certo esforço, perante as nações milenares da Europa, de procurar antepassados e origens tão antigas quanto as dos outros.
O recuo até aos belgas é estratégico, pois quando no século IV a.C. eles entraram na região depois chamada Flandres já traziam uma importante miscigenação germânica – curiosamente o autor não o assinala – sinalizando assim, na convivência atual entre valões e flamengos, um objetivo de unidade nacional, se não étnica. É importante destacar que foi só depois da independência que os belgas “descobriram” o seu herói Ambiorix, através do poema de Joannes Nolet de Brauwere van Steeland, datado de 1841; e a primeira estátua ao herói nacional foi erigida em Tongeren (Atuatuca Tongorum) em 1866 (inaugurada em 5 de setembro). Aliás, os eburões eram etnicamente mais germânicos do que celtas, e numa pesquisa de 2005 Ambiorix o gaulês goza de mais popularidade entre flamengos (germânicos) do que entre valões (de língua e cultura francesa). Como disse João Ameal: cada povo escolhe os antepassados que quer e lhe convêm. Ambiorix foi convocado, a posteriori, a unificar a Bélgica – à custa dos romanos; ele não imaginava, quando se refugiou na floresta, que sua ação ia ser tão importante e de tão longo prazo.
João Lupi – Departamento de Filosofia UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
BOCKSTAEL, Dominique. Ambiorix. La résistance des Belges face aux Romains. Racontée aux enfants… et aux grands qui l’ont oubliée. Fléron: Éditions Jourdain Le Clercq, 2005. Resenha de: LUPI, João. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.7, n.2, p. 169-171, 2007. Acessar publicação original [DR]
Les Lacustres. Archéologie et mythe national | Marc-Antoine Kaeser
A coleção “Le savoir suisse” (www.lesavoirsuisse.ch ) conta atualmente 34 títulos dedicados a tornar acessíveis ao grande público as pesquisas universitárias da área francófona suíça, com temas históricos e questões pertinentes à identidade nacional da Confederação Helvética – mas, por estranho que pareça, não há ainda um volume dedicado aos helvécios. A presente obra, n. 14 da coleção, tem por objetivo refazer e criticar o mito da origem dessa mesma identidade nacional: os povos lacustres, os habitantes pré-históricos cujas características peculiares teriam marcado o ponto de partida da cultura alpina nessa região de montanhas e lagos que hoje se conhece pelo nome de Suiça.
Marc-Antoine Kaeser tem um perfil que o assinala como um cientista que há tempos vem se debruçando sobre o tema: entre suas publicações estão as que versam sobre a ideologia do suposto pacifismo lacustre (1997), a busca de antepassados operacionais (1998), o mito do fantasma lacustre (2000), as representações coletivas e construção da identidade nacional (2002) – temas que se destacam nos títulos que já publicou, e que mostram uma intenção clara de corrigir o discurso e a mentalidade políticas alimentadas por teorias científicas mais idealistas do que realistas. A frase com que abre este volume é bem explícita: “Há um século e meio a aldeia lacustre ocupa um lugar privilegiado na representação coletiva do passado pré-histórico da Suíça” (p. 9). E, contudo, hoje em dia os suíços se perguntam: esse povo lacustre existiu mesmo, dessa maneira como nos descrevem os historiadores? E eles são de fato os nossos antepassados? A resposta vem logo (ib.) radical: “A arqueologia contemporânea responde simplesmente com uma negação categórica – porém circunstanciada”. De fato ao longo do livro M.A. Kaeser tempera bastante essa negação: os povos pré-históricos alpinos não viviam em aldeias lacustres de palafitas, mas as povoações construídas nas margens dos lagos tinham algumas casas edificadas sobre postes dentro de água. Não existiram aquelas grandes plataformas que avançavam lago adentro, suportadas por colunas de madeira, e por sua vez suportando toda a aldeia. No sentido tradicional do termo não houve povo lacustre nem civilização lacustre entre as montanhas alpinas, mas houve uma população dispersa e variada, subsistindo com diversos tipos de economia além da pesca no lago, que construiu aldeias junto aos lagos – não sobre eles.
O autor passa a descrever a origem e evolução da “mitologia nacionalista”, começando pela grande seca de 1853/54 que, tendo posto a descoberto extensos trechos nas margens dos lagos, permitiu aos estudiosos identificar e reconstituir as populações ditas lacustres; e coube ao Presidente da Associação dos Antiquários de Zurique, Ferdinand Keller, iniciar uma série de publicações que constituíram o início da construção desse mito da origem nacional suíça. Numa época em que, após os tumultos das invasões francesas, a consciência nacional se afirmava por toda a Europa, a descoberta de que a Suíça também tinha um passado pré-romano, e que esse passado era digno de memória, dava aos suíços antepassados dos quais podiam se orgulhar. Daí até à representação gráfica idealizada das aldeias lacustres foi um passo. Kaeser ilustra a sua obra com muitos desenhos desse período, quando os “proto-helvécios” apareciam como vivendo em paz e harmonia com a natureza. Inspirados em Rousseau os historiadores suíços discípulos de Ferdinand Keller repassaram para esses ancestrais imaginários as virtudes que os suíços contemporâneos se atribuem: austeridade, pureza, não contaminação pelos males da civilização, cultivo da paz; o povo lacustre teria ainda sido o criador da linguagem, e, portanto, seria a sociedade humana mais antiga – um oásis de tranqüilidade no meio do mundo agitado (p. 62), um paraíso perdido para os demais, mas preservado para os suíços.
O autor vai descrevendo a construção popular dessa identidade nacional, mostrando o papel político da arqueologia. Contudo na década de 1920 os arqueólogos alemães, na seqüência dos trabalhos de Hans Reinerth, iniciaram o combate à “ideologia lacustre suíça”, negando a originalidade dessa sociedade e até sua existência; os suíços viram na destruição da representação dos lacustres uma agressão não só à pré-história nacional, mas à própria identidade nacional suíça, e, portanto, um atentado perpetrado pelo imperialismo alemão, secundado pelas ambições nazistas. A reação nacionalista não se fez esperar, mas a retomada das pesquisas arqueológicas sob outras perspectivas acabou dando razão, parcial, às críticas. Concluiu-se que os povos pré-históricos que ocuparam o atual território da Suíça viviam em diversos tipos de meios físicos (não só nos lagos), portanto em culturas diferenciadas (não homogêneas), e apenas alguns deles construíram algumas casas sobre plataformas de palafitas. As pesquisas arqueológicas de Emil Vogt na década de 1950 estabeleceram novos parâmetros de investigação que foram se afirmando até hoje, e que o autor vai apresentando numa narrativa acessível mesmo para quem não conhece arqueologia nem está a par dos embates doutrinários do nacionalismo suíço; mapas, gráficos, uma breve cronologia (desde o fim da glaciação de Würm até à submissão dos helvécios em 58 a.C.) além de uma bibliografia sucinta ajudam o leitor a acompanhar a argumentação de Marc-Antoine Kaeser.
A obra termina com algumas considerações e retrospectivas: por um lado o “mito da civilização lacustre” persiste, mas, menos ingênuo e menos “crença” adaptou-se eficazmente a idéias recentes incarnando o ideal de uma Suíça “harmoniosa, pacífica, igualitária e solidária”: mais ainda, a aldeia lacustre passou a ser uma referência para a doutrina ecológica (p. 132). Por outro lado, a arqueologia tomou suas distâncias com respeito a essa representação coletiva: “a arqueologia deve reconhecer e assumir o fato de que a interpretação do passado comporta quase inevitavelmente uma dimensão ideológica”; porém onde essas representações incluem visões errôneas e imaginações fictícias o arqueólogo tem obrigação de intervir e desmenti-las. Deve fazê-lo, contudo, de maneira pontual, e não atacar o mito como um todo, pois este é um saber que dá significado ao presente. O arqueólogo, ao contrário, deve abster-se do presente e dos saberes não científicos “para interrogar e compreender o passado” (p. 133).
João Lupi – Departamento de Filosofia UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
KAESER, Marc-Antoine. Les Lacustres. Archéologie et mythe national. Lausanne: Presses polytechniques; Universitaires romandes, 2004. Resenha de: LUPI, João. Povos lacustres: arqueologia, história ou mito? Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.1, p. 55-56, 2006. Acessar publicação original [DR]
Os Lusitanos | Adriano Vasco Rodrigues
No primeiro número do Brathair apresentei um artigo sobre os lusitanos. Entendi que um grupo de estudo dedicado aos “Celtas e Germanos” deveria, em sua manifestação inicial ao público, lembrar o principal laço que pela tradição une os brasileiros aos celtas. Essa iniciativa a assumi por ser, no grupo do Brathair, o único português, provável descendente dos lusitanos. Sabia que seria difícil encontrar bibliografia que me fornecesse subsídios para redigir o artigo, e a de que dispunha estava desatualizada; mas contava com a colaboração de professores portugueses, e de livrarias de Lisboa. As expectativas, porém, foram fraudadas e tudo o que me respondiam era “não há obras disponíveis sobre esse assunto”, “não sei quem se interessa pelo tema”. Lembrando porém antigas leituras, consultando amigos esforçados em me ajudar, e comparando a literatura possível, cheguei a conclusões e definições que arrisquei expor, e que brevemente retomo aqui, com os retoques próprios de uma apresentação sumária, começando pela questão da ascendência lusitana dos portugueses. Ora neste ponto parece que se pode dizer com tranqüilidade que os lusitanos são prováveis antepassados dos atuais portugueses, mas não de todos, nem no todo: a área abrangida pela ocupação desse povo na Península Ibérica corresponde apenas à região entre o Douro e o Tejo, e avança pela Estremadura espanhola e Castela-a-Nova; e como ascendentes dos portugueses os lusitanos se miscigenaram em proporções variáveis com os romanos (mais no Sul), com os germanos (mais no Norte) com mouros e berberes (no Sul) e muitos outros povos; além disso, sobretudo se acreditarmos nos relatos dos romanos, na longa guerra de dois séculos que sustentaram contra o Império, os lusitanos foram dizimados, e não foram muitos os que ficaram para serem legítimos antepassados dos portugueses.
Outra questão controversa é a da origem dos lusitanos; parece que a maioria dos autores se inclina pela ascendência local, recuando às ocupações megalíticas da Península; os lusitanos seriam a resultante de um povo de migração muito antiga, de cultura aparentada com outras culturas pré-históricas européias, que sofreu influências ibéricas em muitos aspectos da vida quotidiana – embora também pouco se saiba sobre a origem dos iberos. Será preciso também, para abordar corretamente a origem étnica e a cultura dos lusitanos, distinguir os das montanhas do interior dos habitantes das cidades do litoral, bem como os do norte dos do sul, sobretudo pelo fato da região do Tejo Ter ficado muito mais exposta à penetração dos povos do sul: célticos, cinéticos, e cônios, por sua vez relacionados com turdetanos, fenícios, e norte africanos. Por outro lado, a arqueologia diz-nos muito pouco das relações deste povo com os celtas, e as narrativas gregas e romanas também não a confirmam. A influência celta sobre os lusitanos é inegável, mas limitada, pouco comprovada, e posterior à existência dos lusitanos como povo identificado, sendo portanto provavelmente incorreto dizer que os lusitanos eram celtas, ao menos perante os dados disponíveis hoje em dia. Contudo, uma vez que a celtização da Península partiu dos Pirinéus em direção ao Atlântico pode se supor que a influência céltica sobre os lusitanos foi maior nas montanhas (atual Beira Interior, pátria dos lusitanos, segundo a tradição mais forte) do que no litoral.
A ideologia lusitana no Renascimento foi determinante para a construção doutrinal da idéia de Pátria com raízes compostas, entre a romanização e a oposição ao Império. Desde André de Resende (sempre citado) e Gil Vicente (com seu Auto da Luzitânia, pouco lembrado) a Luís Vaz de Camões (da ocidental praia lusitana) em cerca de um século se montou e difundiu a idéia de que os portugueses são descendentes dos valorosos lusitanos e de seus inimigos romanos. A idéia de pátria, como todos os mitos políticos de qualquer época, é complexa; mas os nossos renascentistas souberam articulá-la muito bem: por um lado descendemos dos romanos, cujo Império colocou neste território marcos indeléveis na língua e nos costumes; por outro somos herdeiros do confronto nascido nas raízes do território, nos lusitanos, miticamente ligados a deuses (da mitologia romana, não céltica nem ibérica). Essa dualidade, esses dois gêmeos que lutam no seio da mãe, constitui um paradigma de origem conflituosa, que serve para explicar todos os antagonismos existentes no povo, os ciclos e os altos e baixos da História de Portugal, toso o mito e realidade dos descendentes dos lusitanos.
Ao chegar a este ponto – que no meu artigo do Brathair entrevia, mas explicitei com outras palavras – duvidando ainda da consistência das minhas hipóteses, continuava esperando que as explicações dos especialistas de campo e de prática me confirmassem os pontos de vista. Mas foi só depois da edição desse primeiro número da nossa revista que me chegou às mãos o livro de Adriano Vasco Rodrigues. Adriano é arqueólogo e pesquisador da Universidade Portucalense e da Academia Internacional de Cultura Portuguesa, dirigiu uma instituição de ensino na Bélgica, criou o Instituto de Estudos Lusitanos no Porto (1961); em 1956 localizou uma inscrição lusitana (no Cabeço das Fráguas, Guarda, Beira Alta) que tem sido estudada pelo Professor António Tovar e considerada decisiva para o conhecimento da língua e do modo de vida dos antepassados (se não étnicos, ao menos simbólicos) dos portugueses. O que encontrei no livro de Rodrigues, anterior ao meu trabalho de busca de fontes para o artigo do Brathair, veio, para minha tranqüilidade, confirmar as hipóteses acima expostas, com algumas variantes ou pequenas diferenças que passo a explicar.
Em primeiro lugar vamos apreciar a composição e o conjunto do livro. No que se refere ao método de distribuição dos assuntos o texto deixa a desejar: está dividido em dezenove capítulos de tamanho muito desigual, variando de duas até 47 páginas de extensão; freqüentemente no corpo do mesmo capítulo misturam-se digressões e interpolações sobre temas de outros capítulos bem distintos, e que, não vindo a propósito, prejudicam o acompanhamento da argumentação. Contudo é possível distinguir-lhes uma ordem agrupando-os em três partes: 1. Questões gerais e metodológicas, incluindo historiografia e a problemática do estudo dos lusitanos, além do enquadramento etnológico e geográfico (p.13 – 142): 2. A cultura lusitana: economia, sociedade, religião, medicina, tática militar (143 – 308); e 3. O comunitarismo agro-pastoril lusitano e português (309 – 353). O índice está mal distribuído, e não há uma bibliografia final, mas apenas referências bibliográficas (notas) após cada capítulo; também não há índices de nomes, de temas, ou de autores citados, o que, dada a frequente discussão de questões, seria importante para nos localizarmos no texto. Estas falhas de metodologia, que prejudicam a apresentação e dificultam a consulta, não invalidam porém o conteúdo da obra e as teses apresentadas, que estão bem documentadas, cuidadosamente discutidas, e claramente definidas, além de apoiadas numa variedade consistente de fatores: geográficos e climáticos, de fontes históricas e etnográficas, de economia e de religião… É importante, por exemplo, a longa exposição da organização da Mesta, que desde pelo menos a Idade Média controla e disciplina a transumância na região central da Península, comparando-a com o modo de vida pastoril das montanhas e com as estratégias de guerra de Viriato; ou o paralelo que se estabelece entre o comunitarismo trasmontano e beirão, que perdurou até ao século XX, e a estrutura comunitária lusitana. Neste ponto, porém, o autor aparenta certa incoerência: por um lado utiliza a etnografia pastoril contemporânea para entender o modo de vida lusitano de dois mil anos atrás; por outro critica aqueles que usam relatos de escritores romanos, redigidos após a dominação dos lusitanos pelo Império, para discutir o modo de vida pré-romano – de dois séculos antes. Dizemos “aparenta “ porque de fato é inegável que a ocupação romana produziu sensíveis alterações no modo de vida dos lusitanos – sobretudo na maior sedentarização, ênfase na economia agrícola, e controle do bandoleirismo; enquanto, por outro lado, deve-se reconhecer que há traços da economia e das relações sociais dos montanheses e dos pastores nômades que têm tendência a longa vitalidade. É preciso ressaltar esta questão porque ela perpassa todo o livro de Adriano Rodrigues.
Um dos temas que mais nos interessa é o da relação entre os lusitanos e os celtas. O Autor começa por ser bastante explícito na negação do relacionamento étnico, para depois mostrar certa hesitação. Nas páginas 40-41 afirma: “A leitura da inscrição do Cabeço das Fráguas veio mostrar que a linguagem dos lusitanos não era céltica. Se compararmos agora um elemento de interesse etnográfico importante, o vestuário, veremos que se afasta daquele que nos chegou das descrições dos celtas (…) Pois os Celtas foram os inventores das calças. Os lusitanos não usavam calças. Os Celtas combatiam servindo-se de carros de guerra, praticando uma luta totalmente diferente da seguida pelos Lusitanos, que nunca recorrem ao carro de combate “. Aparte o detalhe de escrever Celtas com maiúscula e lusitanos geralmente com minúscula, sem motivo aparente, o Autor utilizou três elementos relevantes para demonstrar que os lusitanos não eram celtas: a língua, o traje, e as táticas de guerra. Podem se fazer vários reparos a distinções tão taxativas (e, ao contrário do que faz em outras questões, apressadas), porque: (a) sabe-se muito a respeito das línguas celtas para se conhecer grande variedade de idiomas distintos, e sabe-se muito pouco da língua lusitana para poder afiliá-la – ou não – com certeza a algum grupo lingüístico; (b) se o uso das calças fosse determinante na cultura celta os escoceses, que têm no saiote o traje tradicional, teriam que ser excluídos dessa família; (c) os celtas não usavam nem todos nem sempre os carros de guerra quando combatiam. Mas Adriano Rodrigues foi claro ao afastar o parentesco céltico dos lusitanos, como também foi claro ao não o negar completamente: “os Lusitanos poderão ter recebido aculturação do tipo céltico, gerada pelos contactos (…)” (ib.) Portanto, para o A. os lusitanos não eram originários nem descendentes dos grupos celtas que invadiram a Península Ibérica a partir do século VI ou V a.C., mas receberam influências culturais desses grupos.
Contudo, no decorrer das suas explicações e exposições, Rodrigues insiste tantas vezes em mostrar elementos celtas em território lusitano que parece duvidar de suas afirmações iniciais. Essa insistência aparece por exemplo a propósito dos topônimos, já que em terras lusitanas muitas localidades têm nomes derivados do celta, e o A. lembra todos eles, mesmo quando a distância torna as filiações lingüísticas muito improváveis, como ao sugerir relação entre a portuguesa Panóias e a imperial Panônia. Também na vida religiosa Rodrigues está sempre a lembrar o celtismo dos lusitanos, tanto nos nomes dos deuses como nas práticas de culto: até as tão conhecidas alminhas (pequenos nichos de rua com imagens dos santos populares) ele faz remontar ao culto dos mortos dos celtas (p.182). Ora se as localidades têm nomes celtas é porque os celtas andaram por lá, e não apenas mantiveram contactos com os lusitanos, como se estes se lembrassem de termos ouvidos em viagem por terras dos celtas peninsulares. Quanto à religião, sendo algo tão íntimo e arraigado à tradição, não se copia facilmente nem se abandona só por influência distante: é preciso um parentesco mais sólido para que se adotem deuses alheios. O A. pode até ter razão em descartar parentesco étnico entre os dois povos, mas como não discute o problema nos deixa em dúvida sobre as provas de que os lusitanos não eram celtas, mas só vagamente celtizados.
Pela nossa parte achamos mais provável, e já o dissemos no artigo do n. 1 do Brathair, que alguns grupos celtas tenham se estabelecido em terras lusitanas e contribuído não só para a formação cultural mas também para a composição étnica dos lusitanos, e por isso vamos deter-nos um pouco mais na questão.
No capítulo “ Sobrevivências actuais da religião dos lusitanos” Rodrigues trata da religião pré-romana, da influência céltica, celtibérica e romana, e da continuidade do paganismo nos cultos populares cristianizados – mas sem observar esta ordem de assuntos, antes todos eles mesclados. Nas 26 páginas do capítulo as palavras celta ou céltico aparecem 23 vezes, mas sem que em nenhum momento se faça uma análise detida do relacionamento entre as religiões em causa; apenas vai dizendo: “também os Celtas “(180) , “faz lembrar o deus celta “(181) , “tal como entre os Celtas “(181) , “o mesmo aconteceu com os Celtas “ (185), e vai justapondo radicais de nomes de deuses, festas cíclicas, cultos, e símbolos, mas sempre de passagem, sem ordem, para concluir : “(…) os lusitanos, que, como está provado, sofreram influências religiosas célticas “ (195) . A impressão é de que Adriano Rodrigues já estava convencido dessa influência e apenas se foi referindo a ela à medida que se lembra. Certamente não negamos a adoção de elementos religiosos celtas pelos lusitanos, mas fica a dúvida sobre se uma influência tão marcante, como AR aponta, viria só por contato externo, e não seria devida a uma presença céltica na Lusitânia. Dito de outro modo: a romanização da religião lusitana foi forte porque os romanos estavam no meio desse povo e o dominavam; não seria o caso de pensar que, de modo semelhante, os celtas se tivessem mesclado (em pequena proporção) com os lusitanos, pois desse modo se explicaria melhor a celtização da religião dos primeiros ocupantes dessa região? Ora o A., que afirma a relação entre as duas religiões mas nega a relação étnica entre os dois povos, nos deixa, pela sua forma de argumentar, a dúvida acerca da sua própria convicção e razão. Por outro lado, a presença dos celtas em manifestações religiosas e lápides de cemitérios em terras lusitanas comprovada incontestavelmente pelos trabalhos arqueológicos de Fernando de Almeida na Idanha (que citamos no nosso artigo) não é discutida, como se fosse para AR uma lembrança incômoda. Mas se os celtas morreram na Lusitânia é porque viveram por lá.
Os três últimos capítulos, que designamos por terceira parte, e que tratam das sobrevivências do comunitarismo agro-pastoril no Norte de Portugal, mais se deveriam considerar um apêndice, que parece que o A. pretendia colocar como introdutório, pois numa das páginas finais (321) escreveu: “(…) que ao longo deste livro iremos referindo (…)”. O caráter de anexo deve-se a que pouco faz menção do personagem principal da obra – os lusitanos – no decorrer dessas quase cinqüenta páginas. A hipótese básica é de o comunitarismo lusitano tenha de alguma forma persistido no português, “sem pretendermos que o sistema comunitário actual seja o dos lusitanos (…) “(30() pois as posteriores ocupações da Península por outros povos alterou a estrutura e o funcionamento do sistema de relações sociais e econômicas.. E após a descrição narrativa dos usos portugueses, sem se deter em análises e comparações, fecha o livro (p. 348, antes das notas finais) com a seguinte frase: “Apesar de mais de dois mil anos nos separarem dos lusitanos e profundas mudanças acentuarem as diferenças entre dois mundos, o deles e o nosso, nem tudo o tempo apagou na sua marcha inexorável.”
A obra de Adriano Vasco Rodrigues ficará certamente como uma referência importante para o estudo dos lusitanos: é alicerçada em vastas pesquisas arqueológicas, do autor e alheias, num considerável e por vezes exaustivo trabalho de campo etnográfico, e por demorada análise de fontes documentais antigas e de investigadores modernos. A desordem, ou quase desarrumação do texto, e a falta de revisão ortográfica e sintática prejudicam o entendimento do texto a tal ponto que muitas vezes deixam dúvidas sobre o que o A. pretende dizer. Quanto ao que procurávamos parece que as teses principais que Rodrigues defende são claras: a constituição da etnia e da comunidade de lusitanos, e sua presença contínua nas terras de Entre-Douro-e-Tejo são anteriores às migrações celtas; a cultura celta influenciou a lusitana em muitos aspectos, mas sobretudo na vida do espírito, sem alterar seus traços básicos; as migrações celtas não atingiram a Lusitânia com a sua presença física mas só pela sua influência cultural; os lusitanos contam-se entre os antepassados de uma parte dos portugueses mas também dos espanhóis da Estremadura e de parte de Castela-a-Nova; muitos outros povos e culturas contribuíram para a formação do povo português cabendo aos lusitanos um lugar predominante porém mais simbólico do que efetivo; a ascendência lusitana é desigual nas diversas regiões de Portugal, sendo mais forte nas regiões montanhosas do interior central e norte do País.
João Lupi – Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
RODRIGUES, Adriano Vasco. Os Lusitanos. Mito e realidade. Lisboa: Academia Internacional da Cultura Portuguesa, 1998. Resenha de: LUPI, João. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.2, n.1, p.64-68, 2002. Acessar publicação original [DR]