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Escolarização, livros escolares e movimentos migratórios / Cadernos de História da Educação / 2019
A Itália, assim como Alemanha, Polônia e Espanha, para mencionar apenas alguns europeus, se constituíram em países de emigração e o Brasil de imigração, acentuadamente entre meados do século XIX e primeiras décadas do século XX. A presença de movimentos migratórios nos provoca a pensar a transnacionalidade e a necessária suspensão de recortes de pesquisa que se pautem exclusivamente no contexto das fronteiras nacionais. Pensar as relações entre processos de escolarização e produção de livros escolares, permenado pelo olhar dos movimentos migratórios é o intuito principal deste dossiê. Atentamos para as ideias que circularam por meio dos materiais escolares que foram produzidos em épocas distintas e com intuitos diferenciados. Compreendemos que no interior das escolas se encontram e confrontam culturas e, por meio de olhares históricos, é possível compreender a diversidade étnica, bem como a pluralidade de práticas e de itinerários. Tal movimento investigativo também é importante para os interessados em compreenderem a história das instituições escolares. Especial atenção reside nos materiais escolares produzidos pelo governo italiano e distribuídos entre imigrantes no contexto brasileiro.
Para tal, consideramos que os livros são portadores de valores morais, sociais e éticos, são expressões dos modos de pensar e compreender o que a educação escolar deve ensinar às novas gerações. Percorrer as páginas de manuais e livros escolares significa, para os historiadores da educação, compreendê-los na sua produção, interrogá-los na sua circulação, apropriação e nos modos como foram preservados e nos chegam até a contemporaneidade. Livros escolares podem ser pensados como guias que buscaram conduzir professores e alunos em suas práticas pedagógicas ao serem portadores de conteúdo, reveladores de intenções e projetos políticos de formação sociocultural. Os livros, quadros murais e impressos analisados nesse Dossiê são entendidos como mediadores culturais que permitem pensar concepções políticas para a educação escolar produzida pelo Governo Italiano para regular as escolas italianas do exterior, aqui investigadas especialmente aquelas do Brasil. Ou produzidos no Brasil para promover renovação pedagógica por meio de quadros murais ou ensino de disciplinas como a de Trabalhos Manuais. Atentar para a similaridade de algumas práticas e pensar como os materiais escolares, em especiais os livros e impressos escolares, são portadores e difusores de modos de ser, pensar e viver, constituem o fio condutor dos artigos aqui reunidos.
O primeiro artigo, “Patria, razza e civiltà. Le istruzioni per um’emigrazione di sucesso nei manuali scolastici di Geografia Italiani tra fine ‘800 e inizio’900” (Pátria, raça e civilização: as instruções para a emigração de sucesso nos manuais de Geografia italianos entre o final do 800 e início do 900) de Paolo Bianchini analisa um conjunto de livros escolares de geografia que circularam na Itália em escolas primárias e secundárias e que tratam a questão da emigração italiana, referindo o papel da escola e dos manuais escolares de geografia, em especial, na construção de conceitos centrais como pátria, raça e civilização, que ainda hoje são fortemente influenciados pelas imagens e ensinamentos constituídos nos séculos passados.
O segundo artigo do dossiê, intitulado “Uma impronta di italianitá”: os livros didáticos para escolas étnicas italianas no Brasil entre liberalismo e fascismo de Alberto Barausse aprofunda a análise do processo histórico das políticas empreendidas pelo Governo Italiano no processo de seleção dos livros escolares a serem produzidos e adotados nas escolas no exterior. Atenta para as dinâmicas e complexas relações de acompanhamento e desenvolvimento da escolarização, dos processos culturais e formativos, sobretudo identitários, dos colonos italianos no Brasil, entre a segunda metade do século XIX e a fim dos anos 30, do século XX. Considera que os livros didáticos foram, desde o começo da experiência da unificação italiana, um instrumento fundamental para as classes dirigentes que tinham por finalidade modernizar e, sobretudo, homogeneizar e uniformizar o ensino nas escolas em sentido nacional. Ressalta a italianidade como objetivo a ser difundido, como sentimento de interligação com a Pátria-Mãe, as estratégias mobilizadas variaram e o entendimento de italianidade também.
O texto “Scuole Italiane all´estero: livros de leitura para as escolas italianas no Brasil (São Paulo / SP, 1911 – 1931) de Claudia Panizzollo analisa um dos livros produzidos na Itália e publicado pela Editora Bemporad que circulou intensamente pelo Brasil. O livro Piccolo Mondo, letture per Le scuole elementar, de 1910, de autoria de Fanny Romagnoli e Silvia Albertoni atravessou o oceano e chegou à Escola Principe di Napoli. Escrito para as escolas da península italiana circulou também nas escolas all’estero, e merece destaque a longevidade da publicação, sendo sua última edição no ano de 2011. Piccolo Mondo conforme Panizzollo apresenta uma preocupação com o ensino científico e valoriza as Ciências Naturais. O livro apresenta um conjunto de historietas que abordam temáticas voltadas à higiene, à saúde, à morte adulta e infantil e à nutrição, aos remédios e vacinas e às plantas. Na análise de Panizzollo, Romagnoli e Albertoni destinaram significativo espaço para o aprendizado da civilidade, buscando disciplinar as almas dos pequenos italianos ou seus filhos, por meio de coerção exercida sobre o corpo, além de impor à coletividade de crianças uma mesma norma de comportamento considerado adequado e aceitável, o que se faz por meio da transmissão de valores como bondade, caridade, paciência, trabalho, respeito aos mais velhos, ao mesmo tempo em que se busca distanciar as crianças do orgulho, do apego aos valores materiais, da preguiça, da cobiça, entre outros sentimentos. Em suas páginas emerge um projeto, ao mesmo tempo, civilizatório e de constituição da italianidade.
No quarto artigo, “‘E não nos deixeis cair em tentação’: livros de leitura religiosa do governo fascista para as escolas italianas no Brasil (anos 20 e 30 do século XX), Terciane Ângela Luchese atenta para a produção, a circulação e as estratégias de (con)formação postos em jogo pelos dois volumes do livro Letture di Religione, distribuídos gratuitamente aos alunos das escolas italianas do Brasil. Os livros foram escritos e compilados por Giuseppe Fanciulli, também conhecido como Maestro Sapone. Italiano nascido em Firenze, com formação em Filosofia, Psicologia e Direito, publicou inúmeros livros para as escolas italianas recomendados pelas comissões no período fascista abordando temáticas diversificadas como História e Leitura. As duas obras de Letture di Religione contavam com páginas inteiras ilustradas por Beryl Tumiati. Eram portadores de uma proposta educativa ligada à ideologia fascista que não deixou de considerar e construir a relação entre pátria (fascista), conduta moral, religião e família. O texto analisa as aproximações entre fascismo e catolicismo no contexto italiano e sua repercussão na produção e envio de livros escolares para as escolas étnicas italianas no Brasil, destacando-se que se trata de dois dos poucos manuais publicados para ensino religioso para as escolas italianas no exterior.
O quinto artigo, intitulado “O ethos do trabalho como signo de modernização pedagógica: artes de fazer prescritas na imprensa pedagógica (Minas Gerais, 1925 – 1934)” de Marcus Aurélio Taborda de Oliveira entrelaça a noção de economia moral, de Edward Thompson e trabalho desenvolvida por Hannah Arendt, para discutir a presença dos Trabalhos Manuais no contexto das Minas Gerais nas décadas de 1920 e 1930, tendo como referência a Revista do Ensino, publicada a partir de 1925, mas com destaque ao livro Trabalhos Manuaes Escolares, de Manuel Penna, de 1934. O autor considera que essas publicações representam como intelectuais e agentes públicos buscaram estabelecer parâmetros para a escola pública brasileira, objetivando renovar pedagogicamente a escola, a par da urbanização, industrialização e combate ao desprezo pelo trabalho manual no Brasil.
O último artigo, “Um olhar alemão para a escola brasileira: Carl Ernest Zeuner desenhando quadros murais (1963 – 1969)” de Maria Helena Camara Bastos analisa os suplementos didáticos ou quadros murais, encartados mensalmente e destacáveis, também denominados “Material Didático para as Classes do Curso Primário” e que circularam junto à Revista do Ensino no Rio Grande do Sul. Esses quadros murais foram desenhados pelo imigrante alemão Carl Ernest Zeuner, formado na Academia de Artes Gráficas de Leipzig / Alemanha e que chegou ao Brasil em 1922, radicando-se em Porto Alegre. Foi pintor, desenhista e ilustrador, permanecendo por quatro décadas na Livraria e Editora Globo. Na década de 1960, seus desenhos ilustraram os quadros murais, a partir das orientações da direção do periódico. A observação e experimentação visual possível pelos quadros murais produziram representações que puderam ser lidas e fomentaram uma formação moral, cívica, religiosa e patriótica.
Chartier (1990) afirma que o livro, mas também outros impressos como jornais e revistas, são materialidades que colocam em circulação ideias sobre os quais podemos questionar processos de produção, conteúdos e discursos de que são portadores. Podemos, a partir desses documentos perscrutar a distribuição e a apropriação em diferentes espaços e tempos, além de sua preservação. É em torno dessas questões e da compreensão dos movimentos migratórios e sua relação com a escolarização que os pesquisadores se articulam para pensar a História da Educação. No conjunto, os textos desse dossiê permitem compreender as políticas de seleção e produção de livros escolares pelo governo italiano e destinados às escolas no exterior, atentando para a circulação e a distribuição dos livros, bem como a compreensão, a partir da análise de alguns dos exemplares – vinculados à leitura, ao ensino histórico-geográfico, à ciências e à religiosidade – dos modos como se buscou educar os italianos e seus descendentes no interior das escolas étnicas italianas no Brasil, entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Também atenta para a inserção de Trabalhos Manuais na escolarização percebendo as relações cruzadas entre trabalho, economia moral e renovação pedagógica, além de atentar-se para a produção e a circulação dos quadros-murais na Revista de Ensino do Rio Grande do Sul, outra materialidade educativa do olhar que produziu representações e resultou do trabalho do imigrante alemão Carl Zeuner. Caminhos interpretativos cruzados sobre o passado da escola e suas materialidades em circulação e que buscaram educar, mobilizando memórias sobre processos identitários, civismo e patriotismo.
Referências
CHARTIER, R. (1990). A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Portugal: DIFEL.
Terciane Ângela Luchese – Universidade de Caxias do Sul (Brasil) https: / / orcid.org / 0000-0002-6608-9728 http: / / lattes.cnpq.br / 7640634913198342 E-mail: taluches@ucs.br
Alberto Barausse – Università degli Studi del Molise (Italia) https: / / orcid.org / 0000-0002-8326-046X E-mail: barausse@unimol.it
LUCHESE, Terciane Ângela; BARAUSSE, Alberto. Apresentação. Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 18, n.2, maio / ago., 2019. Acessar publicação original [DR]
Da Itália ao Brasil: processos educativos e formativos, séculos 19 e 20 / Revista História da Educação / 2017
No ano de 2015 comemoramos os 140 anos de história da colonização italiana no Estado do Rio Grande do Sul. Tal momento ofereceu a oportunidade de retomarmos com maior ímpeto um campo de estudo que há algum tempo é fonte de interesse de historiadores italianos e brasileiros. A oportunidade permitiu pensar de modo sistemático e orgânico aspectos menos conhecidos e estudados e que estão relacionados com o fenômeno: as experiências e os fatores que caracterizaram e acompanharam os processos de educação, de formação e cultura dos imigrantes italianos no Estado e no Brasil nos séculos 19 e 20.
As migrações são consideradas um dos acontecimentos mais relevantes da recente história contemporânea e expressa os movimentos de caráter transnacional que marcam os últimos dois séculos. As dinâmicas de caráter mais educativo, que acompanharam esses processos, representam um espaço de pesquisa que se demonstra muito fértil e pelo qual verificamos como foram desenvolvidas as sociedades multiculturais contemporâneas. Aos historiadores da educação cabe reconhecer que, nos últimos dois decênios, não manifestaram um grande interesse pelos processos educativos entre imigrantes e minorias étnicas (Myers, 2009).
As comemorações ligadas aos 140 anos da colonização italiana no estado do Rio Grande do Sul permitiram constituir uma retomada da reflexão historiográfica em torno da experiência histórica da imigração italiana no Brasil. A cooperação entre historiadores da educação brasileiros e italianos foi proposta como metodologia de trabalho, capaz de fecundar pesquisas já iniciadas. O contato entre as diversas experiências historiográficas constitui um caminho interessante para acrescentar conhecimentos e aprofundamentos analíticos a um âmbito histórico que ainda está por ser explorado, seja no contexto histórico italiano, seja no brasileiro.
Os estudos conduzidos pelo grupo de pesquisa História da Educação, Imigração e Memória – Grupheim – tem gerado a necessidade de promover questionamentos de pesquisa mais aprofundados e que permitam construir análises atentas à complexidade dos processos educativos dos grupos de imigrantes italianos, alemães e poloneses a partir da metade do século 19. Nos últimos anos investigações específicas foram desenvolvidas no âmbito das experiências da escolarização italiana, como em São Paulo, sendo pioneiro o estudo de Mimesse (2014), além de Franchini (2015). Os da área colonial italiana no Rio Grande do Sul, caso do estudo de Luchese (2015), Luchese; Rech (2014). Da colônia Colombo, no Paraná, os estudos de Maschio (2014, 2015). No Espírito Santo o estudo de Simões e Franco (2014), em Santa Catarina, a pesquisa de Otto (2014) e de Virtuoso (2008). Estudos sobre as escolas entre imigrantes italianos em Minas Gerais foram realizados por Rodrigues (2014), bem como no Rio de Janeiro por Pagani (2014). No conjunto esses estudos lançam luz sobre as diversas formas pelas quais a escolarização foi sendo constituída pelas iniciativas étnicas italianas, na configuração do fenômeno migratório nos diferentes estados brasileiros.
O processo da imigração italiana nos Estados de Minas Gerais e São Paulo, por exemplo, foram muito diferentes daqueles vivenciados no Rio Grande do Sul ou em Santa Catarina, seja pela dimensão quantitativa, seja pela qualitativa. Os contextos locais produziram escolhas diferenciadas nos processos de escolarização. Nos Estados cujos núcleos coloniais não tiveram maioria italiana as orientações de alguns grupos dirigentes eram favoráveis à institucionalização de escolas mistas, atendendo italianos e descendentes e, também, os brasileiros. Características diversas são daquelas escolas localizadas em núcleos em que os imigrantes italianos foram predominantes.
Recentemente historiadores da educação começaram a demonstrar maior interesse sobre os processos educativos e identitários que tem inspirado algumas iniciativas ligadas à escolarização dos italianos e descendentes no Brasil. Também nesse caso é relevante destacar que, nos anos 1990, a proposta de prestar maior atenção aos processos educativos dos imigrantes durante os séculos 19 e 20 produziu algumas publicações sobre os países de destino da América do Sul e Estados Unidos, caso de Ambrosoli (1995) e Rosoli (1999). Algumas investigações ofereceram um primeiro quadro geral, sintético das políticas adotadas pelo governo italiano na promoção da escolarização dos italianos emigrados, caso de Salvetti (2002) e Ciampi (1998). Em outros casos os estudos foram desenvolvidos de modo mais aprofundado, mesmo que limitados a uma fase ou período específico, às orientações e às intervenções adotadas em nível ministerial para o lançamento de políticas em defesa da italianidade, caso de Pretelli (2010) e Barausse (2016).
Dentre as pesquisas ligadas às associações chamadas para empenhar-se na difusão da instrução e da cultura italiana, seja de caráter laico ou religioso, consta a Associação de inspiração laica Dante Alighieri, estudada por Salvetti (1995), a Associação Nacional para socorrer imigrantes e missionários italianos no mundo e a Italica Gens, conforme Confessore (1987) e Rosoli (1990).
Ainda temos uma ou outra pesquisa esporádica de casos, como a que aprofundou um estudo específico sobre o Instituto Médio Ítalo-Brasileiro Dante Alighieri (Dell´Aira, 2011). Recentemente, enfim, a atenção está nas culturas escolares e, de modo particular, nos livros didáticos e de texto que foram utilizados nas experiências escolares étnicas, caso dos estudos de Barausse (2015, 2016) e Luchese (2016), dentre outros.
Os artigos reunidos nesse dossiê não têm a intenção de serem estudos exaustivos no que diz respeito ao âmbito da investigação sobre as relações entre imigração italiana e educação, mas, buscam estimular a compreensão da necessidade de uma maior articulação dos caminhos investigativos e também do aprofundamento do que, até o presente momento, foi realizado. Com tal intento, as contribuições de Barausse, Maschio, Mimesse, Ascenzi, Luchese e Sani refletem os campos de pesquisa que podem ser, posteriormente, enriquecidos.
Já são alguns decênios que o estudioso italiano do fenômeno migratório Gianfausto Rosoli (1999) havia solicitado uma maior atenção da historiografia na identificação dos níveis de alfabetismo das populações de imigrantes, sua chegada aos países de destino e seus percursos de escolarização, em especial, atentando para como os imigrantes promoveram processos de alfabetização para os próprios filhos. Naquela ocasião, Rosoli (1999) apresentava a hipótese de que a imigração haveria alavacado, entre populações mais atrasadas, um processo de superação do analfabetismo presente entre muitos imigrantes. O estudioso documentou como os emigrantes solicitaram às suas famílias de origem que enviassem as crianças para a escola para dar-lhes melhores condições para enfrentar os desafios da integração nos países de recepção. Ao mesmo tempo, evidenciou que, para manter o contato com os lugares de proveniência, os imigrantes aprendiam a ler e a escrever.
As pesquisas desenvolvidas no decurso dos últimos anos por Luchese (2015) têm confirmado as intuições de Rosoli (1999), contrapondo o que alguns estudiosos no curso dos anos 1980 haviam formulado e tem lançando luz ao modo como os imigrantes agiram a favor de uma crescente demanda por instrução. Estamos, no entanto, ainda distantes da identificação de um mapa que consiga dar conta das múltiplas experiências de alfabetização e escolarização no Brasil. De todo modo a população imigrada deu valor aos processos de escolarização. Não estamos ainda em condições de definir quais e quantos os tipos de escola foram destinados aos filhos de imigrantes e aos seus descendentes, ou mesmo aos adultos, que tipo de escola e de educação foram predispostas para adultos imigrantes. Em tal direção é necessário considerar a presença de uma larga variedade de agências e atores destinados a promover a escola com base étnica: escolas rurais comunitárias, escolas urbanas e aquelas ligadas às associações de mútuo socorro, professores privados pagos pelas famílias, escolas paroquiais e também confessionais, escolas coloniais distintas com um vínculo muito próximo das autoridades consulares, escolas subsidiadas pelos Estados ou municípios. No conjunto, revelam o papel complexo da atuação consular, das instituições de caráter religioso, das autoridades locais e das famílias na promoção de processos educativos entre imigrantes e descentes.
A variedade de iniciativas nos impele a definir melhor a natureza e, em primeiro lugar, a distinguir entre as intervenções de caráter institucional e aquelas da sociedade civil que são a base para o desenvolvimento das formas de escolarização dos emigrados e imigrantes.
O artigo de Barausse, Focolari di educazione nazionale e di sentimento pátrio: le scuole italiane nel Rio Grande do Sul durante gli anni della colonizzazione di fine Ottocento (1875-1898), presta atenção ao primeiro movimento de escolas elementares étnicas com base nas fontes consulares utilizadas parcialmente pela historiografia da educação brasileira. Trata-se de uma primeira reconstrução que de um lado demonstra a heterogeneidade de características das escolas organizadas, a maior parte delas subsidiadas pelo governo italiano, a diversidade curricular e também de professores que atuaram. Ao lado do associacionismo mutualístico nos núcleos coloniais ou de imigração mais consistentes, muitos outros professores operaram nas áreas periféricas e isoladas das colônias para garantir instrução e educação, mediante as crescentes demandas.
O autor põe em evidência as estratégias e a mentalidade de uma parte consistente da diplomacia italiana estabelecida no Brasil meridional e a perspectiva que animava os cônsules para quem a escola não foi considerada apenas um veículo de alfabetização, mas também uma das principais agências de civilização e nacionalização: chamas de educação nacional, como definiu o subsecretário de Estado ao Ministério das Relações Exteriores italiano. A afirmativa consistia em uma tentativa de solicitar aos cônsules um empenho maior para fomentar a italianidade, contendo as forças de assimilação das autoridades políticas brasileiras, segundo uma perspectiva de defesa da laicidade do ensino, sem, no entanto, fechar-se às exigências de colaboração que poderiam surgir com parte do clero italiano estabelecido junto às comunidades de imigrantes.
O artigo de Maschio e Mimesse, Entraves no ensino da língua portuguesa nas escolas italianas privadas curitibanas e paulistanas (1883-1907), aborda a especificidade das características de algumas das múltiplas escolas italianas instituídas no Estado do Paraná e de São Paulo, bem com as problemáticas da nacionalização do ensino que seguiram um calendário diverso e que, no caso paulista, foi condicionada pela criação de um corpo de inspetores. Se as escolas no contexto paulista, segundo as duas autoras, eram subsidiadas pelo governo italiano e não atenderam às disposições de obrigatoriedade previstas pelo Estado, em virtude da fragilidade da rede de escolas públicas, no caso paranaense de Curitiba as escolas foram vinculadas às associações de mútuo socorro e receberam o subsídio do governo, mesmo tendo desconsiderado as disposições previstas nas normativas estaduais. Apresentam a análise das relações do corpo de inspetores que tinha como tarefa monitorar a aplicação de leis e regulamentos introduzidos em diversos momentos nos dois Estados e com a finalidade de ampliar as escolas públicas elementares no contexto paranaense e paulista. As duas autoras fazem emergir não apenas as condições de precariedade das escolas privadas italianas, mas a relutância em introduzir o ensino da língua portuguesa no currículo escolar, suscitando reações negativas nos inspetores.
As insatisfações e as tensões geradas entre as autoridades escolares brasileiras constituem o reflexo das consequências do duplo processo de nacionalização que submeteram os imigrantes. As consequências dos processos de nacionalização reverberam também em outro plano, aquele das práticas e dos saberes escolares. Sobre essas temáticas os artigos de Ascenzi e Luchese aprofundam a análise sobre um dos pontos mais interessantes do debate historiográfico atual na história da educação: os livros escolares.
O contexto no qual fazem referência é marcado pela experiência do fascismo na Itália e a crise da República Velha, seguida da Era Vargas no Brasil. Data desse período a difusão, nas escolas elementares italianas do Brasil, as leituras de Luigi Bertelli e Clementina Bagagli. O artigo de Ascenzi, Per l’educazione patriottica e nazionale degli italiani all’estero: l’edizione postuma del libro di lettura O Patria mia di Luigi Bertelli (Vamba) e la sua diffusione in Brasile, se concentra na reconstrução da gênese, dos conteúdos e dos endereços ideológicos e culturais e, a particular riqueza editorial registrada também no Brasil de um dos mais importantes e longevos livros de leitura para as escolas italianas no exterior entre as duas guerras mundiais: o Patria mia. A obra póstuma do célebre escritor para a infância Luigi Bertelli, melhor conhecido da vasta plateia de pequenos leitores, sobretudo como diretor do periódico semanal Il Giornalino della Domenica, com o pseudônimo de Vamba [1]. A estudiosa italiana refere à configuração da obra nacionalista de Vamba, a qual, após o advento do regime fascista na Itália, foi submetida, por desejo do editor florentino Bemporad, a uma espécie de fascistização do conteúdo. Ascenzi recorda que como a obra não foi a preferida pelo regime, na metade dos anos 1930, mediante a vasta difusão registrada, por exemplo, nas escolas italianas no Brasil, se decidiu por substituí-la por textos ideológica e politicamente mais sintonizados com os endereços do totalitarismo fascista.
O artigo de Luchese, intitulado Da Itália ao Brasil: indícios da produção, circulação e consumo de livros de leitura (1875-1945), mapeia o contexto da imigração italiana e dos processos de escolarização no âmbito brasileiro e do Rio Grande do Sul, para em seguida tratar da produção e circulação dos livros e alguns outros materiais didáticos produzidos e enviados pelo governo italiano para sinalizar sobre as possibilidades de consumo de tais livros. O percurso da análise atenta, em especial, para a coleção de livros de leitura organizados por Clementina Bagagli e que, nos registros de nacionalização, foram um dos estopins que justificaram o fechamento das escolas italianas no Rio Grande do Sul, em 1938.
Para além das intervenções de caráter institucional do governo italiano ou brasileiro, pelo texto de Roberto Sani Tra esigenze pastorali e impegno per la preservazione dell’identità nazionale: la Santa Sede e l’emigrazione italiana all’estero tra Otto e Novecento, podemos compreender os processos que orientaram um outro projeto institucional, o religioso. A contribuição de Sani analisa o percurso da Igreja Católica com relação ao fenômeno imigratório e, com rica documentação, apresenta as mudanças que, após as dificuldades iniciais em enfrentar a emigração de massas produziu, no interior da Igreja, novas orientações durante os pontificados de Leão XIII e de Pio X em matéria de assistência e pastoral dos emigrados para o exterior. Sani aprofunda e ilustra o percurso por meio das solicitações das autoridades eclesiásticas italianas, como Bonomelli e Scalabrini, mas também de alguns componentes do episcopado europeu e americano, sinalizando para o crescimento das obras de assistência e a tendência de centralização do governo no cuidado pastoral dos emigrantes.
O artigo introduz a complexidade que acompanhou o processo de resistência eclesiástica, seja em nível italiano ou aquele do episcopado brasileiro. Sani documenta, pois, que as dificuldades e resistências foram amadurecidas no interior do episcopado e induziram Pio X a sinalizar a uma crescente centralização das funções e das competências relativas à criação de uma pluralidade de instituições e iniciativas práticas para a assistência dos imigrantes. É no interior deste quadro que nasce a associação como a obra Bonomelli e a Federação Itálica Gens, junto com iniciativas dos comitês para a emigração no contexto nacional de partida e o nascimento da seção para emigração no interior da Sagrada Congregação Consistorial para a composição de um instituto de formação para o recrutamento e formação espiritual do clero, destinado à animação da vida religiosa das comunidades de imigrantes. Iniciativas destinadas a serem integradas ou suprimidas nos decênios sucessivos à Primeira Guerra Mundial, sob o pontificado de Pio XI, por novos organismos como o Prelado para a emigração italiana ou suprimidas pela Igreja para evitar a instrumentalização dos regimes totalitários.
No conjunto de artigos que compõem este dossiê desejamos que os leitores percebam a potencialidade e as brechas a serem pesquisadas na relação entre processos migratórios e práticas educativas, ultrapassando fronteiras nacionais e pensando-se em histórias conectadas, portanto, um calidoscópio de temas a serem investigados pelos historiadores da educação.
Nota do editor
1. ver ASCENZI, Anna; PATRIZI, Elisabetta. A missão educativa da geração intemediária em tempo de guerra: textos para a escola e para a juventude de Luigi Bertelli entre 1914 e 1918. Hist. Educ. (Online), Porto Alegre: Asphe, v. 20, n. 50, 2016, p. 193-218.
Referências
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Alberto Barausse – Professor do Departamento de Ciências Humanísticas, Sociais e da Educação da Universitá degli Studi del Molise, onde lidera o Centro di documentazione e ricerca sulla Storia delle Istituzioni scolastiche, del libro per la scuola e della letteratura per l’infanzia e o Museo della scuola e dell’educazione popolare. Professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: barausse@unimol.it
Terciane Ângela Luchese – Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Caxias do Sul. Lidera o Grupo de Pesquisa História da Educação, Imigração e Memória – Grupheim. E-mail: taluches@ucs.br
BARAUSSE, Alberto; LUCHESE, Terciane Ângela. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 21, n. 51, Jan / abr, 2017. Acessar publicação original [DR]