Posts com a Tag ‘Locus – Revista de História (L-RHd)’
O dia que mudou o mundo? O 11 de Setembro 20 anos depois | Locus | 2021
Uma das imagens-choque da manhã dos atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001, foi a de pessoas a atiraram-se, esbracejando no ar, das torres gémeas de Nova Iorque em chamas. Praticamente 20 anos depois, uma das imagens-choque da retirada Americana do Afeganistão, invadido pelos EUA a seguir ao 11 de Setembro, foi a de civis afegãos a caírem de um avião militar Americano. Iniciar este texto sobre o 11 de Setembro sobre aquilo que uma pessoa vê, e o poder do visual, faz sentido na medida em que esse episódio tem um efeito de “lâmpada” na memória das pessoas – e à escala internacional até porque se deu num contexto muito mais tecnologicamente mediatizado do que no passado, instantâneo e visto e comentado em directo – fazendo-as relembrar, às gerações da passagem do século XX para o século XXI, onde e com quem estavam quando se deu o “evento”. Para muitos pareceu uma interrupção no tempo histórico – havia o antes e o depois, e dizia-se que “nada será como dantes”, e que o mundo, pelo menos Ocidental, teria mudado “para sempre”, na sua confiança, na sua vertigem pela abertura e interconexão, e por uma globalização liberal e capitalista que, pensava-se, iria chegar (e transformar) a todos os cantos do mundo – o mundo que, pensava-se, estava cada vez mais plano, tornava-se subitamente outra vez rugoso e acidentado. E, para quem antes tinha pensado num fim da história, ela depois e sem aviso, fazia-se ouvir, imprevisível, desconcertante e, como sempre, destruidora de profecias. Leia Mais
Visões da História Chinesa | Locus | 2021
Tendo como motivo o 120º aniversário da imigração chinesa para o Brasil, esta revista convidou famosos sinólogos americanos, europeus e chineses, bem como estudiosos brasileiros engajados no estudo das relações sino-brasileiras para, por meio de uma coletânea de textos acadêmicos, comemorar esta ocasião auspiciosa. Esta publicação possui dois objetivos. O primeiro é parabenizar os chineses que vivem no Brasil e os brasileiros de origem chinesa. Por mais de 100 anos, os chineses vem enriquecendo vários aspectos da vida e cultura brasileiras. Os imigrantes chineses e seus descendentes brasileiros fizeram contribuições extraordinárias em termos de comércio sino-brasileiro, intercâmbios culturais, formação acadêmica e até cooperação política. Por exemplo, como Renata Palandri Sigolo e Luis Fernando Bernardi Junqueira apontam em “Entre agulhas e mãos: a ‘medicina chinesa’ no Brasil da década de 1970”, os imigrantes chineses que vieram para o Brasil desempenharam um papel crucial na divulgação da cultura da medicina chinesa. O segundo objetivo desta publicação é promover o interesse e a compreensão do povo brasileiro pela história, cultura, língua, religião e política chinesas. Embora a China seja o maior parceiro comercial do Brasil, a sinologia brasileira ainda está em sua infância. Diante da ascensão política, econômica e cultura da China, tanto os países ricos da Europa, e da América do Norte quanto o Brasil, que desempenha um papel de liderança na América Latina, precisam produzir um conhecimento acadêmico mais preciso e objetivo sobre a história e a cultura chinesas. Este é, sem dúvida, um conhecimento indispensável para pessoas envolvidas na política, comércio e empreendimentos culturais em alto nível. Leia Mais
Patrimônio e Relações Internacionais / Locus – Revista de História / 2020
As relações internacionais ligadas à preservação do patrimônio mudarão em um mundo pós pandemia?
Como é de costume em épocas de crise, a COVID-19 evidenciou a
necessidade da existência da cultura para o aliviar o estresse de pessoas e
comunidades. Em um momento no qual bilhões de pessoas estão
fisicamente separadas umas das outras, a cultura nos une.
(Ottone 2020)
Em momentos de crise, pessoas precisam de cultura. É com esse chamamento que Ernesto Ottone, Diretor Assistente Geral para a Cultura da UNESCO ilustra o cenário em que vivemos no primeiro semestre de 2020. É esta a dimensão que os atores vinculados ao patrimônio mundial começam a tomar conhecimento. Atualmente, estamos enfrentando uma crise global diferente de qualquer outra que vimos neste século. Milhares de pessoas perderam a vida para o COVID-19 e muitas outras foram infectadas. Bilhões de pessoas agora tem estado confinadas em suas casas em todo o mundo. O impacto do COVID-19 provavelmente será sentido muito tempo após o término desta crise sanitária.
A UNESCO está incentivando os locais do Patrimônio Mundial e plataformas da UNESCO, como as Jornadas Europeias do Patrimônio Mundial, a oferecerem meios para as pessoas explorarem o Patrimônio Mundial em suas casas. Numa época em que bilhões de pessoas estão fisicamente separadas uma da outra, a cultura nos une, mantendo-nos conectados e diminuindo a distância entre nós. Então, diante dessa mudança na visão global, como ficarão os agora já “antigos” temas do patrimônio? Como não sair impactado dessa nova ordem mundial?
Em publicação recente, Guilherme d’Oliveira Martins convoca a atualidade do tema do patrimônio cultural e de seu valor econômico, afirmando a urgência em desenvolver a ligação entre o patrimônio comum, os valores humanos universais e o equilíbrio entre as diferenças (2020, 32). Num contexto de isolamento social imposto pela pandemia COVID-19 colocado à escala internacional urge questionar o lugar do patrimônio na sociedade. De acordo com o mesmo autor, “quando falamos de patrimônio cultural, há a tentação de pensar que falamos de coisas do passado, irremediavelmente perdidas num canto recôndito da memória coletiva” (Martins 2020, 33). Daí que anteveja que “a necessidade de promover a diversidade cultural, o diálogo entre culturas e a coesão social, (…) bem como, salientar o papel do patrimônio nas relações internacionais, desde a prevenção de conflitos à reconciliação pós-conflito ou a recuperação do patrimônio destruído” (Martins 2020, 33-34). Foi motivado por esta nova realidade que nasceu a ideia deste Dossiê. Provavelmente, as relações internacionais nunca mais serão as mesmas após essa pandemia e, por extensão, o patrimônio e sua gestão também não serão como antes.
A título de exemplo, recorde-se que os maiores museus do mundo disponibilizaram recursos digitais sobre as suas coleções que até então tinham o seu acesso condicionado. Nunca como antes a visita virtual teve tanto impacto, perante a impossibilidade colocada pela ausência de acesso físico causado pelo isolamento social. Diante de um cenário interconectado pela veiculação de informação (não raras vezes, na chave da inverdade), essa temática se apresenta como um dos domínios a ser debatido, pois tem atuado na compreensão de elementos variados, funcionando como embaixadores de novas demandas mundiais. O tema é não só atual, como de discussão urgente.
O imediatismo dos media e das redes sociais tem trazido novo olhar sobre o patrimônio em escala internacional. O registro e a notícia de catástrofes, recentemente reportadas como a dos incêndios do Museu Nacional do Rio de Janeiro ou da Catedral de Notre-Dame de Paris, ou das enchentes de Veneza, bem como as ações iconoclastas desenvolvidas em Bamiyan ou Mossul, só para referir alguns exemplos, tinham dado um novo lugar ao Patrimônio à escala das relações internacionais. Dois fatores se somam às assertivas elencadas acima. O primeiro diz respeito à incorporação crescente do patrimônio cultural em outras áreas do discurso internacional. O patrimônio cultural passou a ter maior visibilidade e participação relevante, muito por força da ação das redes sociais e dos media, havendo como consequência um avanço na presença de organismos de valorização nas mesas de negociação das políticas internacionais como jamais visto antes. O segundo se refere ao crescente poder econômico e político que países detentores de agendas preservacionistas desfrutam no cenário internacional.
À medida que o novo século se desnuda, a radiografia dessas relações de poder revela novos atores, espaços e representações. O patrimônio cultural tem se tornado um ator cada vez mais importante dos diálogos multilaterais e, como tal, faz parte do alargamento das ações no âmbito das relações internacionais. Daí derivam outros objetos de estudo, ainda pouco incorporados pela temática: as marcas de um soft power cada vez mais multilateralizado; as dinâmicas de hierarquização dos temas e critérios consagrados pelos órgãos de assessoria da UNESCO; a presença cada vez maior de temas que abordem as “africanidades”, “asianidades”, “latinidades” e os “orientalismos” (tão pouco explorados por nossos pesquisadores, dada a hegemonia da visão europeísta / estadunidense); dentre outros. Em consonância, sítios arqueológicos, museus, espaços culturais, organismos internacionais de preservação, Estados nacionais, atores da paradiplomacia, expressões de tradição, vivência e modos de se fazer, a dicotomia entre inflação e destruição de patrimônios, dentre outros elementos tornaram-se protagonistas dessas representações mentais sobre o patrimônio que tem se transformado constantemente. Apreender os mecanismos de compreensão dessa expansão temática favoreceria a montagem de novas valorações do patrimônio, nacional e internacionalmente. Acrescentamos a este cenário o mundo digital que, superando os constrangimentos de um isolamento social forçado à escala global se assume como o único veículo de visita e transmissão de conhecimento dos recursos patrimoniais.
Como se percebe, todas as temáticas elencadas faziam sentido em um mundo sem restrição social, isolamento compulsório e combate a um vírus letal. Os temas elencados neste dossiê, seguiram uma realidade anterior à pandemia. As preocupações, necessidades e objetos respondiam a um mundo complexo, mas conhecido. As regras do jogo eram todas acordadas. Agora, diante desse novo alinhamento, tudo muda, inclusive as relações internacionais e suas preocupações. Por este motivo, acreditamos que este Dossiê poderá colaborar para unirmos os dois mundos: o das preocupações pregressas e das novas necessidades. Não fazemos futurologia quanto ao universo da preservação dos patrimônios no mundo, mas sinaliza-se uma considerável modificação nas políticas públicas, no financiamento e na projeção de novas regras para um jogo que ainda não se saber jogar. Por este motivo, os textos selecionados para este Dossiê discutem realidades que provavelmente deverão também ser impactadas por esta mudança brusca nos caminhos recentes do mundo globalizado.
O texto de Amélia Polónia e Cátia Miriam Costa, Preservar patrimônios e partilhar memórias em cidades-porto latino-americanas. Um projeto em ação: CoopMar – Cooperação Transoceânica, Políticas Públicas e Comunidade Sociocultural Ibero-Americana analisa o projeto de uma rede de investigação e desenvolvimento financiada pelo CYTED (Programa Ibero-americano de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento) que promove formas ativas de diplomacia científica, visando potenciar sinergias existentes entre vários parceiros em torno de uma agenda de “mar e sociedade para o desenvolvimento”. CoopMar dá prioridade à circulação de conhecimento entre diferentes atores (universidades, museus, fundações, empresas, instituições públicas e sociedade em geral) e visa contribuir para uma sociedade do conhecimento, transnacional e transdisciplinar. Assume a troca cooperativa de valores e visões como um valor intangível que funciona como capital social capaz de beneficiar cidades portuárias da região Ibero-latino-americana.
Frédéric Lerich discute em Regional Assets, Industrial Growth, Global Reach: The Case Study of the Film Industry in the San Francisco Bay Area, uma dimensão pouco conhecida do público. De acordo com Lerich, dentro da indústria cinematográfica dos EUA, Hollywood é uma (grande) árvore que esconde a floresta. De fato, além desse cluster poderoso e dominante, existem outras formas – embora menores – de indústria cinematográfica, particularmente em Nova York e São Francisco. O artigo enfoca o último e argumenta que o desenvolvimento da indústria cinematográfica na área da baía de São Francisco depende de ativos regionais específicos: (1) uma cultura alternativa, (2) uma cultura tecnológica e (3) uma experiência urbana única. O artigo se baseia na ideia de que São Francisco é um local acolhedor para filmar e produzir filmes e que, como corolário, hoje em dia acolhe um cluster industrial dinâmico e com vários locais. Destaca diferentes estratégias que visam promover o desenvolvimento de ativos regionais relacionados à indústria cinematográfica e questiona suas capacidades de recuperação destacando seus impactos na influência global de São Francisco.
Jaime Nuño González constrói uma narrativa envolvente ao analisar em Patrimonio Cultural y globalización: Trayectoria, proyectos y estrategias de la Fundación Santa María la Real (Aguilar de Campoo, Castilla y León. España), as dinâmicas de preservação em torno das ruínas de um mosteiro medieval situado na pequena localidade de Aguilar de Campoo (Palencia, Castilla y León. Espanha). Em 1977 uma associação foi formada com o objetivo de recuperar o monumento e transformá-lo no centro da dinamização cultural de uma região em crescente processo de despovoamento. A Fundação Santa María la Real, herdeira dessa associação, diversificou os setores em que atua, ampliando suas intervenções em toda a Espanha. Neste texto, González apresenta os projetos de gestão, comunicação e preservação da fundação, apontando os caminhos pelos quais essas ruínas se tornaram um dos mais proeminentes exemplos de preservação patrimonial ibérico.
Gilberto Marcos Antônio Rodrigues discute os impactos do Patrimônio cultural como inserção internacional de cidades. Em Política Externa de Cidades: Estratégia Internacional Modelada e Patrimônio Cultural aborda uma questão central: no caso de patrimônios culturais, sejam eles materiais ou imateriais, que não dispõem de valorização ou proteção nacional, como pode a cidade aproveitá-lo como vetor de uma ação internacional? No âmbito da dimensão cultural das relações internacionais de cidades, o patrimônio cultural é um vetor pouco explorado em sua potencialidade e capacidade de promover a inserção internacional local no Brasil. O objetivo do artigo é analisar como o patrimônio cultural pode ser transformado em recurso ativo para uma Estratégia Internacional Modelada (EIM) visando alavancar e apoiar a política externa de cidades médias ou pequenas no Brasil.
Em diálogo com o texto de Rodrigues, Gustavo de Jesus Nóbrega, perscruta o universo da paradiplomacia e apresenta os resultados parciais de pesquisa ligada ao projeto interdisciplinar “Os diversos usos dos espaços institucionais na preservação do Patrimônio Cultural”, na qual analisa o uso e a apropriação da Universidade de Coimbra (UC) e da própria cidade em questão por diversos agentes, a partir da apresentação da instituição de ensino como um Patrimônio Cultural da Humanidade e seus bens edificados como verdadeiros acervos de um museu a céu aberto. A hipótese levantada por Nóbrega em A Universidade de Coimbra e as diversas apropriações da chancela internacional de Patrimônio da Humanidade atribuída pela UNESCO, é que a nomeação pela UNESCO, em 2013, alavancou a iniciativa de utilizar a marca “Coimbra”, como um soft power que objetiva reestabelecer a notoriedade da cidade e da Universidade como espaços de ponta em nível mundial.
O artigo de Bruno Miranda Zétola, Troféus de guerra e relações diplomáticas examina as singularidades do troféu de guerra como patrimônio cultural e sua relevância para as relações diplomáticas. A partir de três estudos de caso, aponta-se para possíveis paradigmas do uso desse tipo de patrimônio como recurso de política externa. Troféus de guerra são uma categoria muito especifica de patrimônio, visto tratar-se de artefatos militares obtidos no campo de batalha e cujo valor cultural é aferido após sua apreensão. Prática recorrente desde a Antiguidade clássica, a obtenção e exibição de troféus de guerra nunca foi considerada ilícito internacional. Suas implicações para as relações internacionais, entretanto, podem ser significativas, consoante a valorização do artefato tornado troféu pelas narrativas historiográficas das sociedades que o perdem ou que o conquistam.
O Louvre, renomado museu e patrimônio francês, agora responde a um pedido do governo para aperfeiçoar sua interação e influência internacionais. A internacionalização do Louvre é, portanto, entendida não como a reputação do Louvre em nível internacional, mas como o uso dessa herança em estratégias políticas internacionais. O texto de Marie-Alix-Mólinier-Andlauer, Political Issues of the Louvre’s Internationalisation enfoca a internacionalização do Louvre desde os anos 2000. O Estado francês, através de sucessivos governos, vem mobilizando o Louvre, como intermediário em acordos internacionais. Este museu e instituição cultural tornou-se participante direto das relações internacionais francesas, o que motivou Andlauer a analisar as questões e controvérsias que cercam a estreita relação entre o Louvre e o Estado francês. Concluí este trabalho, uma análise do discurso da mídia francesa sobre a mobilização do Louvre pelo Estado o que revela tensões e controvérsias em torno da internacionalização de um dos museus mais famosos do mundo.
Se por um lado museus guardam estátuas (independentemente da discussão se devem ou não manter sob sua tutela peças controvertidas de origens, muitas vezes, duvidosas), por outro, em certas ocasiões, são palco de destruição e vandalismo. A onda de destruição de museus e estátuas locais realizados pelo DAESH (Estado Islâmico) na Síria e no Iraque não deve ser considerada simples ato de vandalismo ou ação iconoclasta com base em sua interpretação radical e distorcida do Islã. Tais atos ocultam um discurso complexo que deve ser compreendido no debate atual sobre a redefinição do patrimônio, particularmente de estátuas, questionada por representar um passado colonial ou autocrático que não é mais considerado digno de ser preservado e lembrado. Em Las estatuas también mueren. Patrimonio, museos y memorias en el punto de mira de DAESH, Jorge Elices Ocón apresenta o estado da arte deste debate focalizando a diferença notável entre as ações iconoclastas mencionadas no texto e as do DAESH. Para os terroristas, não há possibilidade de ressignificação das estátuas. Como vaticina Ocón, “não é um discurso de justiça, mas de ódio, e não busca apenas a morte de estátuas, mas a de pessoas e culturas”.
Para além da destruição, do tráfico ilícito de bens culturais e da revisão histórica de símbolos outrora extorquidos, um dos temas de maior visibilidade dentro das relações internacionais é o das solicitações de restituição de patrimônios espoliados. Colabora nesta temática o texto de Karine Lima da Costa que analisa a questão da restituição ou repatriação dos bens culturais, especialmente os artefatos da África subsaariana, a partir da publicação do Relatório Savoy-Sarr, concluído em 2018. Em, A restituição do patrimônio cultural através das relações entre a África e a Europa Costa aborda o caso dos bronzes do Benin, retirados da África no século XIX, e atualmente distribuídos em diferentes instituições museológicas, sobretudo na França e na Inglaterra. A repatriação e / ou restituição também diz respeito à uma mudança de atitude em relação ao tratamento e entendimento dos bens culturais, que deve considerar algo que, às vezes, parece ser esquecido nesse processo: o seu sentido coletivo. Por este motivo, são as novas formas de se relacionar com o patrimônio cultural que a problemática da repatriação convoca, pois ao falarmos de restituição estamos falando, também, de diplomacia. Essas formas não devem se limitar apenas ao retorno permanente, mas ao empréstimo, ao intercâmbio cultural, à circulação das obras – algo que já faz parte do cotidiano de muitas instituições museológicas, mas que são limitados por falta de acordos e cooperação entre os agentes envolvidos.
Em diálogo aberto com o texto de Costa, Manuel Burón Díaz, apresenta o caminho percorrido pelo patrimônio da Nova Zelândia, analisando o estudo da construção, intercâmbio, exibição, reclamação e restituição do patrimônio, por meio de uma leitura crítica do próprio estatuto de devolução. Para o autor, o patrimônio, os materiais que o compõem, assim como os significados que lhes damos, não são estáticos; variam com o tempo e, na sua mudança, desenham no mapa interessantes trajetórias. Neste texto, Díaz aborda como as recentes demandas da restituição patrimonial supõem um desdobramento mais atuante na alargada série de significados que atribuímos a certos materiais culturais, sublinhando como, na atualidade, a repatriação de certos objetos tem se convertido em uma importante ferramenta de relações internacionais. Cabezas y pájaros: La construcción y restitución del patrimonio en Nueva Zelanda é, portanto, uma busca por clarificar a ideia de que o patrimônio tem sido um instrumento fundamental para as relações diplomáticas, pois ao simbolizar diferentes desejos e atender a diferentes necessidades, regula os contatos entre culturas ou nações. Mas isso, adverte o autor, não deve fazer o observador cair no mais estéril relativismo nem no mais imóvel essencialismo cultural.
Em, Soft Power Mineiro: O edital Circula Minas (2015-2018) como medida de preservação e difusão nacional e internacional da cultura e do patrimônio de Minas Gerais, Vanessa Gomes de Castro e Thiago Rodrigues Tavares discutem o programa de internacionalização da cultura do estado de Minas Gerais, por meio do Programa Circula Minas. Os autores analisam os resultados e implicações do intercâmbio cultural patrocinado pela Secretaria de estado da Cultura de Minas Gerais, sobretudo, em relação ao patrimônio cultural, apresentando seus argumentos a partir de uma leitura crítica do conceito de soft power. Para os autores o Edital Circula Minas, ao receber e apoiar financeiramente projetos na área da cultura, possibilitou a participação da sociedade civil na salvaguarda dos bens culturais, mas, políticas culturais não podem ser apenas prerrogativa exclusiva do Estado e seus representantes, devendo envolver a participação da sociedade civil nas diversas etapas do processo de preservação, fato legitimado pelos dispositivos jurídicos internacionais.
O texto As timbila de Moçambique no concerto das nações, de Sara S. Morais discute aspectos do processo de patrimonialização das “timbila chopes” de Moçambique que culminou com seu reconhecimento como Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade em 2005, pelo Programa das Obras-Primas da UNESCO. Inspirada em análises sobre processos de objetificação e redução semântica implicados no reconhecimento oficial de expressões como patrimônio cultural, a autora abordo elementos da trajetória histórica e social das timbila para compreender seu lugar no imaginário nacional e sua escolha como o primeiro bem cultural imaterial em Moçambique consagrado em arenas internacionais. Enfatiza diversos elementos que localizam esse país africano no âmbito das suas relações internacionais; discutindo algumas das dinâmicas perpetuadas pelo colonialismo, traçando reflexões sobre a relação de Moçambique com a UNESCO, à luz da história política do país e de sua recepção em relação a certos critérios e entendimentos desse organismo internacional no que tange ao patrimônio imaterial. Destaca, por fim as interpretações dadas pelo Estado moçambicano aos ideais de participação social da UNESCO e mostra como o dossiê produzido pelo governo moçambicano utilizou o critério de autenticidade para justificar a escolha das timbila.
Encerra o Dossiê, o texto provocativo de Marcos Olender que aborda nova leitura sobre um dos documentos mais conhecidos da preservação do patrimônio. Para responder às indagações do presente e compreender as dinâmicas na construção do imaginário dos patrimônios mundiais, Olender retroage à icônica Carta de Atenas de 1931, produzindo uma leitura verticalizada dos bastidores do primeiro documento internacional referente à proteção do patrimônio histórico e artístico em âmbito institucional internacional. O texto “O abismo da história é grande o suficiente para todos”. Os primórdios da Carta de Atenas de 1931 e a afirmação da noção de patrimônio da humanidade aborda o processo histórico que constrói a conjuntura da elaboração do citado documento, iniciado no contexto da Primeira Grande Guerra e pela implantação de instituições que começaram a estruturação de uma política internacional de proteção ao patrimônio, na qual é destacada a preocupação pela conceituação de um patrimônio da humanidade.
As inquietações apresentadas pelos autores ajudaram na elaboração da entrevista transcrita neste volume. A premissa básica foi discutir: como a leitura de um observador do presente dá conta de compreender as mudanças que se aceleram no universo da preservação dos patrimônios em um mundo oscilante entre a perpetuação e efemeridade? Este foi o mote da entrevista com o historiador britânico, Peter Burke, interlocutor que buscou consolidar respostas concisas, “diante do tempo das indefinições”. Frente a um cenário interconectado e em função do caráter de “novidade temática”, como enxergar a crescente preocupação sobre a preservação do patrimônio em tempos que pendulam entre o esquecimento generalizado e a super produção de memórias? O patrimônio (sobretudo, o chancelado como mundial) tem força para ser combustível de mudança social e política? E diante da pandemia de COVID-19 e as sequentes restrições ao nível da acessibilidade, como fugir da “despatrimonialização” desses lugares? Estaremos já a caminhar para um tempo do “pós-patrimônio”? Responder a esses questionamentos não foi tarefa fácil, mas as respostas elencadas por Burke, podem nos auxiliar a compreender um pouco mais o cenário em que vivemos, independentemente da concordância ou discordância de seus posicionamentos.
Mesmo diante do imponderável, continuaremos trabalhando para que a temática ganhe cada vez mais destaque e que as mudanças que se projetam sejam assimiladas pelos temas correlatos à preservação do patrimônio cultural e seus aspectos internacionais. Conseguir responder ao questionamento central desse dossiê, se as relações internacionais ligadas à preservação do patrimônio mudarão em um mundo pós pandemia? nos parece precipitado. No entanto, a cada dia que passa projeta-se um cenário no qual o planeta e, por tabela, o próprio patrimônio mundial refletirão as mudanças ocorridas nas agendas dos governos, na preferência dos estudiosos e na dinâmica global de um mundo afetado em grande escala.
As palavras de Oliveira Martins, para quem: “o valor do patrimônio cultural, material e imaterial exige a aceitação da verdade dos acontecimentos, positivos e negativos, para que possamos ganhar em experiência, pelo ‘trabalho de memória’” (2020, 28), nos motiva a continuar preservando. Neste mundo, marcado por uma pandemia sem igual, cabe questionar os acontecimentos, buscar compreendê-los, criar deles memória patrimonial e, por meio da experiência obtida, abrir novos caminhos para a compreensão sobre nós mesmos. Certos estamos que tais caminhos jamais serão como antes, mas que o novo aprendizado venha carregado de significados para que saibamos dosar a preservação entre o novo e o ancestral. Que o patrimônio (elemento que transita entre a memória e a história) encontre nas agendas internacionais espaço de protagonismo, mediando as demandas existentes entre o local e o global, sem sobreposições ou prejuízos de nenhuma natureza. E não podemos deixar de lembrar, as palavras visionárias de Carlos Alberto Ferreira de Almeida (1998), publicadas em tempos tão diferentes daqueles em que vivemos, que “Patrimônio é tudo o que tem qualidade para a vida cultural e física do homem e tem notório significado na existência e na afirmação das diferentes comunidades” às mais diversas escalas. Se assim o é, também concordamos com este autor quando tão antecipadamente escreveu que
o Patrimônio não pode ser olhado apenas como uma reserva e, menos ainda, como uma recordação ou nostalgia do passado mas, antes, como algo que tem de fazer parte do nosso presente. O Patrimônio, para o ser, tem de estar presente e vivo, de algum modo (Almeida 1998).
O Dossiê que agora se dá ao prelo bem o reflete e demonstra. O patrimônio tem hoje um novo lugar: é um ator efetivo nas relações internacionais às mais diversas escalas. Alcançou este status porque não é mais uma reserva do passado. Está no presente e tem valores prospectivos.
Referências
ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de. Patrimônio. O seu entendimento e a sua gestão. Porto: Edições Etnos, 1998.
MARTINS, Guilherme d’Oliveira. Patrimônio cultural: realidade viva. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020.
OTTONE, Ernesto. 2020. “Em momentos de crise, as pessoas precisam de cultura”. https: / / pt.unesco.org / news / em-momentos-crise-pessoas-precisam-cultura
Rodrigo Christofoletti – Professor de Patrimônio Cultural no curso de graduação e Pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Líder do grupo de pesquisa Patrimônio e Relações Internacionais (CNPq). Conselheiro do COMPPAC – Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico de Juiz de Fora. Colaborador do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM) – Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-CPDOC). Atua na interface entre História e Relações Internacionais com foco no patrimônio cultural. E-mail: r.christofoletti@uol.com.br https: / / orcid.org / 0000-0002-6346-6890
Maria Leonor Botelho – Professora Auxiliar do Departamento de Ciências e Técnicas do Patrimônio da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Diretora do Curso de Mestrado em História da Arte, Patrimônio e Cultura Visual. É investigadora do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM / FLUP). Com a Prof. Lúcia Rosas e o Prof. Mário Barroca, coordena a Enciclopédia do Românico em Portugal (2018-2021), no âmbito do protocolo de colaboração celebrado entre a FLUP e a Fundación Santa María la Real del Patrimônio Histórico, un Proyecto desde Castilla y Leon. Os seus interesses de investigação são a gestão do patrimônio, o patrimônio mundial, o digital heritage, a história urbana e a historiografia da arquitetura da época românica. E-mail: mlbotelho@letras.up.pt http: / / orcid.org / 0000-0002-2981-0694
CHRISTOFOLETTI, Rodrigo; BOTELHO, Maria Leonor. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.26, n.2, 2020. Acessar publicação original [DR]
Identidades e sexualidades hegemônicas e contra-hegemônicas. Feminidades e masculinidades em tempos autoritários / Locus – Revista de História / 2020
Identidades y sexualidades hegemónicas y contrahegemónicas. Feminidades y masculinidades en tiempos autoritarios*
El artículo de la historiadora Joan Scott, El género una categoría útil para el análisis histórico, supuso un importante marco interpretativo en la disciplina de la Historia al abordar la categoría de género como una construcción sociocultural. Esta interpretación implica que las diferencias de género no son “naturales” según el sexo biológico, sino que tienen un carácter mutable y no fijo y, por lo tanto, son fenómenos histórico-culturales. Dicha visión, que rechaza la idea determinista y biologicista del género, significó un giro radical en las interpretaciones de las ciencias humanas y sociales en el Occidente. No obstante, desde diferentes latitudes del mundo, varios / as teóricos / as han profundizado y complejizado el concepto de género desde miradas interseccionales gracias a los aportes de las feministas negras y a partir de epistemologías procedentes del Sur. Con la pregunta realizada por la teórica india del Grupo de Estudios Subalternos, Gayatri Chakravorty Spivak, en ¿Puede hablar el subalterno / a?, la teoría postcolonial llevó a cabo una profunda crítica a la permanencia de un único sujeto con voz, a la invisibilización y a la construcción de las representaciones de la otredad desde Occidente. En este sentido, el feminismo postcolonial ha sido importante para resaltar la naturaleza compleja de las identidades y, en consecuencia, ha logrado rechazar la noción de que el género es una categoría universal y homogénea.
Los feminismos postcoloniales desafiaron las bases etnocéntricas de los feminismos occidentales y cuestionaron su supuesta neutralidad, su carácter universalizador, y su poder de representación y de creación de identidades (Landaluze y Espel 2015, p.36). Más recientemente, surgieron las teorías decoloniales en América Latina, cuyo enfoque se relaciona con la herencia colonial que se instala en América a partir de 1492 y que está conectada con el pensamiento, filosofía y teoría latinoamericana, La decolonialidad rompe así con las tradiciones modernas y occidentales, con el eurocentrismo. Es aquí donde emergen los saberes y epistemologías comunitarias, indígenas, afros, populares urbanos en el centro (Espinosa Miñoso 2014). Las diferencias en el acceso al conocimiento y a los espacios de debate de dichas universidades marcan también una diferencia fundamental entre decoloniales y postcoloniales. Así todo, la fecha de 1492 es considerada el punto de partida fundamental, pues es desde esta temporalidad que se construye la superioridad epistémica y política de Occidente sobre el resto del mundo, aunque, desde “lo decolonial” se invitará a poner América en el centro a partir de los trabajos del peruano Aníbal Quijano (Bidaseca et.al 2016, p. 199).
Desde las teorías feministas que han roto con la matriz colonial destaca la argentina María Lugones, quien ha propuesto el concepto de colonialidad del género [1] . De la mano del enfoque de la interseccionalidad, se busca interpelar las teorías decoloniales desde los feminismos y poner en el centro el cuestionamiento de la lógica opresiva de la modernidad colonial al desvelar la organización biológica dimórfica y heteropatriarcal de las relaciones sociales (Lugones 2010). Como ha señalado Karina Bidaseca, “la alteridad se realiza en lo femenino”, es decir, la forma en la cual los cuerpos femeninos de las latitudes de América del Sur han sido vistos como territorio de conquista (2014, p. 587). El feminismo decolonial pretende construir otro horizonte de sentido histórico, es decir, realizar una relectura de la historia con nuevas temporalidades y desde las múltiples miradas, categorías, epistemologías y cosmovisiones construidas por las mujeres de la región, otras formas de resistencia o transgresión de las estructuras del coloniaje. De esta forma, las mujeres indígenas —o más bien las “feministas desde Abya Yala [2] ” y las antipatriarcales— proponen epistemologías que parten de la cosmovisión de los pueblos originarios también modificadas por las construcciones sociohistóricas patriarcales que llegaron con el coloniaje, a las que buscan combatir al interior de sus comunidades. También en este camino se sitúan las feministas afrodiaspóricas que pretenden ennegrecer el feminismo al mostrar el peso de la raza, así como la visibilización de sus conocimientos ancestrales y de sus epistemologias [3].
A partir esas nuevas miradas desde los estudios de género también se han abierto posibilidades para la teorización sobre masculinidad(es), en especial en aquellas cuestiones referidas a conceptos como la sexualidad o la normalidad (Simón Alegre 2014). Las masculinidad(es) pueden ser entendidas como una construcción sociocultural que comprende una serie de valores, creencias, actitudes, comportamientos, conductas, lenguajes, deseos, subjetividades, las cuales son configuradas a través de discursos y representaciones culturales socialmente legitimados y constantemente negociados en un tiempo y en un contexto cultural específico (De Martino Bermúdez, 2013). En definitiva, se trata de comprender la forma en la cual las masculinidades funcionan en las diferentes facetas de la vida a partir de las tres esferas que define R.W Connell: productiva, poder y cathesis. Es decir, en primer lugar una división sexual del trabajo configurada en torno a la estratificación del trabajo productivo según las relaciones de género; en segundo lugar, el poder que ha configurado la dominación de los hombres sobre las mujeres con el patriarcado histórico, y, en último lugar, la cathesis, que se refiere a la emocionalidad, la construcción social del deseo. Los modelos de género contenidos en las representaciones culturales en cualquier etapa y tiempo histórico moldean o afectan todas las áreas vitales de las personas.
En este sentido, de acuerdo con R. W. Connell (2005), el género pasa a ser comprendido como una forma de expresión de las estructuras, dentro de un sistema que limita y define las múltiples feminidades / masculinidades. De esta forma, los abordajes sobre masculinidades buscan subrayar la complejidad de las construcciones sobre masculinidad y feminidad, puesto que el sistema de género “involves male / male and female / female relations as well as male / female” (Connell y Pearse 2014, p. 69). De la misma forma pensamos, siguiendo a Scott, que aquello que discursivamente o por medio de representaciones se construye sobre las mujeres sirve a su vez como información para el colectivo de las identidades “hombre”, en tanto se influyen mutuamente (Ayala-Carrillo 2007, p. 741). Así, masculinidad y feminidad se construyen en constante diálogo como potenciales de identidad colectiva, percibidas en términos de relaciones de poder, las cuales pueden ser complejizadas desde el enfoque interseccional de género, clase, raza, sexualidades, edad, etc. Asimismo, en la cultura occidental, donde la visión es el sentido privilegiado (Oculocentrismo), el cuerpo tiene una importancia decisiva en la construcción del género. Así para Connell (1995, p. 53), “the physical sense of maleness and femaleness is central to the cultural interpretation of gender”. La teórica nigeriana Oyèrónké Oyewùmí (2005) señala que la cultura occidental se ha construido en base a dicotomías: público / privado, visible / invisible, civilizado / bárbaro, naturaleza / cultura, hombre / mujer. Sin embargo, en otras sociedades, como en la cultura Yorùbá, se han privilegiado otros sentidos más allá de lo visual y, lógicamente, las construcciones de género son distintas o incluso pueden no existir como tales.
Otro enfoque que posibilitó una de las mayores renovaciones teóricas en los estudios feministas es la llamada teoría Queer. En el idioma inglés, la palabra queer significa extraño y anormal. Esta palabra se usó durante muchos años como una forma peyorativa para referirse a los homosexuales, y luego fue reemplazada por la palabra gay. Sin embargo, en la década de los años noventa la palabra queer fue resignificada por los movimientos de liberación sexual y pasó a tener una connotación política. La feminista Teresa de Laurentis fue la primera persona en utilizar el término en la Academia, lo que posibilitó cuestionar las normas heterosexistas en las investigaciones.
La llamada teoría queer es producto del cuestionamiento sobre la categoría mujer basado en una referencia genital, y por ello busca incluir en las discusiones filosóficas la sexualidad, las identidades de género y la construcción sociocultural del deseo. Con la inclusión del enfoque queer, las lentes violetas son ampliadas al criticar la heterosexualidad y la cis-normatividad. Entre sus teóricas / os más conocidas / os se encuentra Judith Butler, quien explora las diversas formas de expresión de la sexualidad. Para Butler (2018), los discursos heteronormativos y falocéntricos han disciplinado milenariamente a los cuerpos, obligando a varones y mujeres a jugar papeles predefinidos de varón / mujer. En este sentido, los individuos performan el género para intentar conformarlo en el ideal cisheteronormativo. Por ello, sostiene que el proyecto político del feminismo debe tener como objetivo central la deconstrucción del binarismo sexo-género.
Dentro de los estudios sobre sexualidad encontramos también diversas teóricas decoloniales, como Ochy Curiel con su trabajo La nación heterosexual (2013), en el que critica el sistema cisheteropatriarcal como un régimen político. Las teóricas bolivianas Adriana Guzmán y Julieta Paredes (2014, 37-38) del feminismo comunitario, también señalan la importancia de las “relaciones lésbicas como parte de la resistencia a la norma heterosexual”. En este sentido son también valiosos los trabajos de la socióloga Leticia Sabsay sobre teoría queer y sexualidad, los cuales precisamente proponen esta interseccionalidad para pensar políticas sexuales que discutan los marcos liberales (Sabsay 2011). Sin embargo, critican la teoría queer, y especialmente las aportaciones de Judith Butler, por rechazar la existencia del sujeto mujer, ya que defienden que el patriarcado es el origen de todas las opresiones y que éste es construido sobre el cuerpo de las mujeres. Por otra parte, otras teóricas como Iki Yos Pîña Narváez u Oyèrónké Oyewùmí plantean el binarismo de género y la construcción de los cuerpos como una imposición colonial. Para Yos Piña, el concepto queer es una categoría neocolonial y apropiada desde la blanquitud académica (Piña 2017, p. 38). Así, la “queer normativity forma parte de la producción de poderes epistémicos y silencios que soportan la autoridad de la supremacía blanca” (Piña 2017, p. 43), pues excluyen los cuerpos no binarios desde otras culturas y cosmologías como la de los Orishas o las de la cosmopolítica Yoruba.
De esta forma, a partir de este bagaje teórico plural y en constante reelaboración, el presente dossier se propone indagar en los aportes derivados del estudio de las masculinidades y de las feminidades que pervivieron en el marco del autoritarismo -en sus diversas estructuras de control, represión y poder- durante los siglos XIX, XX y XXI. Se pretende esclarecer qué ha significado ser hombre y ser mujer y qué visión se ha naturalizado de la “masculinidad” y “feminidad” en diferentes periodos, así como de los individuos disidentes sexuales en contextos de persecución y de autoritarismo. Siendo las relaciones de género un ingrediente central de los discursos y proyectos de Estado, la aspiración de promover un ideal normativo de masculinidad y feminidad hegemónicas configura un orden de género determinado en diversos contextos. Sin embargo, también es interesante señalar que tantos los gobiernos democráticos, como los estados europeos, latinoamericanos, israelí, estadounidense, entre otros, fueron y siguen siendo extremadamente autoritarios en cuanto a sus formulaciones de género desde una matriz colonial, patriarcal y blancocéntrica.
Por otra parte, la historiadora Inmaculada Blasco (2010) señala la importancia de observar más allá de la sumisión y relativizar la eficacia de los discursos de género con el fin de no aceptar como dato incuestionable la ausencia de autonomía de conciencia y la agencia e identidad de los sujetos históricos. En este sentido, el propósito del dossier Identidades y sexualidades hegemónicas y contrahegemónicas. Feminidades y masculinidades en tiempos autoritarios se encuentra en la exploración de las identidades y subjetividades que emergieron bajo diferentes contextos históricos y políticosociales, dando especial importancia a las transformaciones que acontecieron bajo estructuras autoritarias. Son de especial importancia los trabajos que van más allá de los discursos hegemónicos y la interiorización de los mismos. Por ello, son importantes los análisis de procesos y prácticas “desde abajo”; es decir, las experiencias de los sujetos subalternos, la posibilidad de construcción de identidades no-hegemónicas y las contribuciones anti-discursivas que resistieron y negociaron con los “de arriba”, prestando especial atención a las distintas formas de resistencia y agencia que se formulan / formularon desde la subalternidad4 . En este sentido partimos de los postulados abiertos por las narrativas de la history from below (Bhattacharya 1983).
El presente dossier está compuesto por ocho artículos, una entrevista y una reseña. El primer artículo de las autoras Adriana Fiuza y Simone Achre, Revisitando o nascimento da teoria feminista no Brasil a partir de “A mulher é uma degenerada?” de Maria Lacerda de Moura, trata sobre una figura emblemática del anarcofeminismo brasileño, la teórica Maria Lacerda de Moura. Dicho texto analiza, de manera somera, la biografía de la autora y el contexto del feminismo occidental para luego analizar más detalladamente el pensamiento de Moura por medio de la obra A mulher é uma degenerada?. Por una parte, la autora es sumamente crítica con la Iglesia Católica, pues pensaba que dicha institución contribuya al mantenimiento del patriarcado y, en consecuencia, a la sumisión de las mujeres a través de narrativas cristianas como la culpa del “pecado original” o el ideal de pureza de María. Por otra parte, aboga por una educación liberadora como elemento clave de la emancipación y autonomía de las mujeres. Maria Lacerda de Moura critica a las sufragistas por no incluir en su agenda las especificidades de las demandas político-sociales de las obreras y las mujeres negras. Pese a la gran importancia de sus aportaciones teóricas y políticas, Moura es una figura prácticamente olvidada en la historia de Brasil e, incluso, en el feminismo brasileño.
En el segundo texto, Catolicismo, Vanguardia y mujeres. La refemenización de lo religioso en las obras de Norah Borges y Adalgisa Nery, Laura Cabezas analiza las trayectorias de la artista plástica argentina, Norah Borges, y de la poeta brasileña Adalgisa Nery dentro de un contexto cultural latinoamericano que define como de “refeminización de la religión”. Se trata de una aportación circunscrita más a la historia del arte, donde su autora se pregunta por los límites de la dimensión religiosa en la construcción de las identidades plásticas de estas artistas a través de la contraposición fe y modernidad. Más allá, Laura Cabezas trata en sus líneas, a partir de un lenguaje mucho más literario a lo que los artículos académicos acostumbran, a vislumbrar un territorio que Borges y Nery tratan de habitar —donde aparentemente muestran u ocultan su sexualidad— en sus respectivos contextos de cultura vanguardista. Para ello en su relato enfatiza en aspectos biográficos de la vida personal de ambas y en sus primeras incursiones en los mundos de la cultura y del arte. La religión se refleja en la obra artística de ambas y sirve para poner de manifiesto la importancia del aspecto espiritual en la reconfiguración social latinoamericana de su tiempo, por ejemplo, en la construcción de los cuerpos femeninos desde la pintura en connivencia con los códigos de feminidad que redefinen cuáles son las “cualidades femeninas”. A partir de un marco teórico donde se pone en relevancia el tomismo y los aportes filosóficos de Jacques Maritain, François Mauriac y Reginald Garrigou Lagrange, la investigadora muestra cómo el catolicismo se inserta en los lenguajes modernos del arte y la literatura. De la misma manera, va a desengranar en su artículo de qué forma se construye una creencia religiosa por fuera de los límites de la emoción, y cómo se coloca en el centro de la racionalidad o pensamiento. De esta forma traza una línea con aquellas investigaciones contemporáneas que han cuestionado las tesis de la feminización de la religión, y señala que gran parte de la tarea de la intelectualidad católica residió en devolver “el razocinio” a la religión.
El texto de Elisabet Velo i Fabregat, Un abordaje para el estudio de la represión sobre las mujeres durante el franquismo desde historia del derecho: las juzgadas en el Tribunal Regional de Responsabilidades Políticas, busca resolver preguntas más profundas acerca de las políticas de género que se mantuvieron vigentes durante la dictadura de Francisco Franco en España. Su autora se pregunta cómo ha recaído históricamente la ley sobre las mujeres y cuáles han sido las formas y métodos para su condena o absolución desde el punto de vista de la jurisdicción. En este sentido, el trabajo de Velo i Fabregat indaga en cómo las construcciones de feminidad sirvieron de pretexto para condenar políticamente a aquellas que se atrevieron a resistir dichos modelos de género. A través de un ejercicio de historia local, centrado en el caso de Catalunya, la autora indaga en varios expedientes jurídicos para confirmar dicha hipótesis y resolver una pregunta mayor ¿De qué se acusa o absuelve a las mujeres? En los expedientes analizados, su autora va a reflejar cómo operan las nociones de maternidad, familia y conducta moral en los testimonios de acusación y defensa de las mujeres. También va a reflejar cómo la violencia política, jurídica y económica acaban siendo un instrumento más para garantizar un ordenamiento de género en el franquismo, concretamente a través de la Ley de Responsabilidades Políticas de 1939.
El cuarto artículo Entre tanques y pañuelos: domesticidad y trabajo femenino en los posters de guerra del gobierno estadounidense (1941-1943) ha sido elaborado por Sol Glik. En él la investigadora indaga desde una perspectiva de género en el rol de las construcciones de feminidad en la cartelería, concretamente a través de representaciones iconográficas, entre ellas, la emblemática imagen del pañuelo de Rosie y los significados que éstas adquieren en determinados momentos históricos como la segunda guerra mundial. Es a través de las fuentes iconográficas “sexuadas” donde, señala su autora, los regímenes autoritarios, encuentran formas de ejercer el control y disciplinar a la sociedad, pero también de fomentar una serie de comportamientos deseables entre la población, en especial, entre las mujeres. Sol Glick va a presentar en su relato narrativo diferentes análisis de carteles que se difundieron en los Estados Unidos durante la Segunda Guerra Mundial con el propósito de movilizar a las mujeres hacia actividades históricamente asociadas al arquetipo masculino de proveedor, mientras se perpetúan ciertas nociones de feminidad clásicas de la etapa contemporánea. Glik combina algunos carteles de propaganda oficial junto a otros de publicidades más comerciales para reflejar una vida cotidiana que cada vez más se acerca a la sociedad de consumo, atravesada por los valores del American Way of Life, con las necesidades de un contexto bélico.
Contamos también con el artículo de Fabio de Sousa Fernandes, Carlos Henrique de Lucas y Diana Yoshie Takemoto, titulado “A louca dos gatos” ou sobre como gaslaitear o feminino: um estudo sobre a violência psicológica no âmbito do gênero. A partir de una metodología que dialoga con los estudios Queer y la perspectiva feminista posestructuralista, el artículo explora el fenómeno social del gaslighting (expresión en inglés cuyo sentido se refiere a modos de violencia psicológica hacia las mujeres). Lxs autores analizan ejemplos concretos de gaslighting conectados al mito de “la loca de los gatos” (alegoría representativa da retórica sexista), a través de una protagonista de los Simpsons o de imágenes periodísticas de la canciller alemana Angela Merkel y de la ex-presidenta de Brasil, Dilma Rousseff. La novedad del artículo reside en su aportación teórico-metodológica al introducir en los estudios feministas el gaslighting como concepto analítico. Éste contribuye a un examen más detallado respecto de las construcciones sociales o discursivas violentas y estereotipadas en relación a las mujeres en los sistemas patriarcales y heteronormativos.
Los autores João Gomes Junior y Thiago Barcelos Solival presentan en su texto Entre vedetes e “Homens em Travesti”. Um estudo sobre corpos e performances dissidentes no Rio de Janeiro na primeira metade do século XX (1900-1950) un examen sobre las prácticas resistentes de individuos cuyas identidades de género y sexuales no-hegemónicas hicieron frente al sistema heteronormativo y patriarcal carioca durante las primeras décadas del siglo XX. Tras un análisis teórico e histórico —a partir especialmente de Foucault, su historia de la sexualidad y la tríada histórico-discursiva de lo religioso, lo médico y lo policial— lxs autores llevan a cabo un estudio sobre prácticas resistentes de sujetxs disidentes de género en los albores del republicanismo brasileño. Asimismo, analizan un modelo de experiencia único, el Teatro de Revista, el cual se conformó como un espacio de sociabilidad, de creación de vínculos y como canal de resistencias tanto discursivas, culturales como performáticas para burlar los padrones burgueses y heteronormativos durante la primera mitad del siglo XX en la ciudad de Río de Janeiro.
En el texto Da diáspora à nação, de casa à dispersão: a subjetividade queer palestiniana, los autores Bruno Costa y Manuel Loff analizan la construcción de una masculinidad hegemónica judía (Muskeljude) —que se identifica y se aproxima al varón blanco europeo, construido a imagen y semejanza de un Occidente moderno—, la cual a la vez se erige en contraposición a los judíos mizrahim —identificados con el Oriente premoderno, “bárbaro” y “feminizado”—. A los mizrahim, por lo tanto, se les impone una masculinidad subalterna y son vistos como una amenaza a la misión “civilizadora moderna” judío-occidental. De ahí que se refuerce la creación de un “Otro” subalterno, el palestino, no reconocido como sujeto en la ocupación colonial sionista. Por otra parte, al identificarse como un país excepcional en el Medio Oriente en cuanto a la defensa de los derechos de las minorías sexuales, Israel permite el despliegue de un proceso de colonización de las sexualidades disidentes desde una óptica de “homonacionalismo”. El palestino, así, es identificado, además de bárbaro e incivilizado, como homofóbico, en un intento del Estado de Israel de domesticar las sexualidades disidentes y fortalecer las dicotomías entre civilizados / bárbaros. Desde un análisis muy novedoso, los autores examinan cómo la subjetividad queer palestina pasa a entrar en el proyecto colonizador sionista.
El octavo artículo de este dossier, titulado Toda Biologia é queer, del autor José Luis Ferraro, trabaja las identidades de género desde una perspectiva de las ciencias biológicas. Para ello, parte de diversas teorías, como las de Michel Foucault, Judith Butler o Jacques Derrida. Su principal objetivo es problematizar las identidades sexuales queer y abogar por la participación desde una mirada inclusiva de la Biología en las luchas de la comunidad LGTBI. Para el autor, la biología, cuyo elemento esencial es la biodiversidad, no debe ser instrumentalizada negativamente, sino a partir de su positividad y potencialidad, es decir, la diversidad inherente a la Biología. Por ello, Ferraro sostiene que hay que subvertir la lógica heteronormativa y patriarcal inculcada en los argumentos biologicistas, puesto que estos son transformados en regímenes de verdade e incluso en políticas de gobierno, ejemplificado en la falacia argumentativa de la “ideología de género”. En este sentido, el autor argumenta en favor de una Biología que contribuya a la deconstrucción del binarismo sexual y de género y, por lo tanto, a la liberación de las identidades y sexualidades no-hegemónicas, puesto que “toda Biología es queer”.
Para cerrar el dossier presentamos la entrevista de Iki Yos Pîña Narváez. La activista e investigadora trans nos abre una puerta para conocer de cerca cómo el conocimiento hegemónico blanco, heteropatriarcal, condena al ostracismo a las subjetividades e identidades disidentes a uno y otro lado de la orilla. Las políticas migratorias, la herencia colonial y la opresión interseccional son algunas de las realidades que atraviesan la identidad y corporalidad de Iki Yos, su nombre escogido, Piña Narváez. Su historia de vida, de exilio, migración, ruptura, sanación y reconfiguración constante de una identidad en la subalternidad en el mundo actual, es tan solo, como ella apunta, un reflejo de las puntas de lanzas de un sistema de múltiples opresiones (patriarcales, capitalistas, extractivistas, coloniales, raciales, cis-heterosexuales) histórico. Así, a través de sus experiencias conecta y evoca la trayectoria de un linaje ancestral que ha sufrido desde 1492 múltiples violencias, pero también, que ha sabido tejer una serie de tecnologías de escape para construir una resistencia histórica. Iki Yos nos muestra como, en tiempos de vorágine y autoritarismo, recuperar su sabiduría y epistemología de escape, anticolonial, es una forma de lucha, de (re)conocimiento de estrategias políticas para hacer frente a un sistema que promueve la social death de los colectivos subalternos y marginados de la sociedad. La Ley de Extranjería española, las leyes de identidad de género o los procesos de hormonación de las disidencias sexuales son algunas de las cuestiones que pone sobre la mesa Yos, visibilizando los privilegios, los de aquellos y aquellas que pertenecen, frente a la falta de derechos, especialmente de quienes se sitúan por fuera de los bordes.
Finalmente, este dossier se cierra con la reseña de Redistribuição ou Reconhecimento? Um debate entre marxismo e feminismo, elaborada por Marta Caro Olivares. En ella, se presenta un pequeño estudio del título ¿Reconocimiento o redistribución? Un debate entre marxismo y Feminismo publicado por Judith Butler y Nancy Fraser, editado por la editorial Traficantes de Sueños. Caro Olivares repasa los debates filosóficos acerca de la modernidad que Butler y Fraser han mantenido desde el año 2000, mientras indaga en las articulaciones de algunos feminismos y en la persecución colonial que sufren las disidencias sexuales y raciales en los tiempos del capitalismo. Los acosamientos a los cuerpos trans y el binarismo sexo-género son algunos de los debates que Caro destaca del entramado teórico de estas referentes de los estudios de género y las posibilidades que surgen tras incorporar los enfoques decoloniales y postcoloniales en las investigaciones.
¡Les deseamos una excelente lectura!
Notas
* Este texto forma parte de una investigación financiada por la Comunidad de Madrid en el marco de las Ayudas destinadas a la Atracción de Talento Investigador y del Proyecto de I+D para Jóvenes Investigadores de la Universidad Autónoma de Madrid, Las relaciones de las dictaduras europeas y latinoamericanas en clave transnacional: entendimiento, rivalidades y conexiones con los Estados democráticos (1930´s 1980´s) (Referencia SI1 / PJI / 2019-00257). Asimismo, el artículo ha sido realizado en el marco del Programa Postdoctoral en Ciencias Humanas y Sociales de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires y con la financiación de una beca interna postdoctoral de CONICET.
1. Denota la influencia que Aníbal Quijano ejerció en el territorio latinoamericano gracias a su trabajo pionero donde expuso el concepto de colonialidad del poder. Si bien en este trabajo publicado a comienzos de los noventa no puso a dialogar a los estudios de género con esta teorización a propósito de la herencia colonialidad, este aspecto sí que ha sido desarrollado por teóricas como María Lugones, Rita Segato o Breny Mendoza.
2. Ver: Gargallo, Francesca. Feminismos desde Abya Yala. Ideas y Proposiciones de las mujeres de 607 pueblos en Nuestra América. Editorial Corte y Confección: México, 2014; Miñoso, Yuderkys Espinosa (coord.). Tejiendo de otro modo: Feminismo, Epistemología y Apuestas Descoloniales en Abya Yala. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2014.
3. Según Aura Cumes, “No parece ser nada nuevo el que se cuestione el uso de la categoría de género y feminismo como occidentales y, de esa forma, se ponga en entredicho su uso”. En este sentido, el concepto de género pareciera generar menos tensiones entre las voces indígenas que el vocablo feminista (Cumes 2009, 37).
4. Una genealogía de este concepto desde Gramsci a Spivak desde la mirada de teóricas feministas latinoamericanas en Hernández (2013).
Referencias
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Sara Martín Gutiérrez – Doctora en Historia Contemporánea por la Universidad Complutense de Madrid con mención europea por la Università degli Studi di Firenze (2017). Actualmente desarrolla sus investigaciones postdoctorales gracias a una beca del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) en Argentina, vinculada al Instituto de Investigaciones en Estudios de Género de la Universidad de Buenos Aires. Es miembra fundadora del Grupo Kollontai. Espacio de debate teórico-práctico: Las mujeres en la historia, con sede en el Instituto de Investigaciones Feministas de la Universidad Complutense de Madrid. Este trabajo se inscribe en el marco del Programa Postdoctoral en Ciencias Sociales y Humanas que desarrolla en la Universidad de Buenos Aires (UBA). E-mail: sarmar02@ucm.es https: / / orcid.org / 0000-0002-2064-8301
Gabriela de Lima Grecco – Doctora en Historia Contemporánea en la Universidad Autónoma de Madrid (UAM). Actualmente es docente e investigadora (contrato Atracción de Talento Investigador- Comunidad de Madrid) en el Departamento de Historia Contemporánea UAM. Es Investigadora Principal del Proyecto Las relaciones de las dictaduras europeas y latinoamericanas en clave transnacional: entendimiento, rivalidades y conexiones con los Estados democráticos -1930´s 1980´s (Referencia SI1 / PJI / 2019- 00257). Es autora de la obra Literary Censorship in Francisco Franco’s Spain and Getulio Vargas’ Brazil, 1936–1945: Burning Books, Awarding Writers (Sussex Academic Press, 2020). E-mail: gabriela.lima@uam.es https: / / orcid.org / 0000-0002-7137-5251
GUTIÉRREZ, Sara Martín; GRECCO, Gabriela de Lima. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.26, n.1, 2020. Acessar publicação original [DR]
130 Anos de República no Brasil: entre avanços e retrocessos / Locus – Revista de História / 2019
Estamos encerrando a segunda década do século XXI, um século que, em seu início, parecia marcar uma nova fase na História do Brasil. O crescimento econômico, a diminuição da miséria, o papel externo do país e tantas outras coisas, nos levou a um otimismo que agora percebemos equivocado. Parecia que finalmente o Brasil teria se encontrado consigo mesmo, deixado de ser um desterrado em sua própria terra, nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda. Quase vinte anos depois, nossa realidade se mostra bem diferente do que projetávamos no início do século. Uma crise econômica que não é superada, uma alternativa autoritária e reacionária que chega ao poder pela via democrática, crise e instabilidade políticas constantes, retorno dos militares ao governo e à arena política, ameaças explícitas à democracia, graves e amplos retrocessos sociais, culturais e educacionais.
Nesse cenário, pode parecer difícil fazer um balanço historiográfico sem cair no mais profundo pessimismo. No entanto, ao ler os artigos deste dossiê, o sentimento é exatamente outro. Os artigos demonstram a qualidade da produção historiográfica brasileira atual. Estamos produzindo muito e bem! Temos uma produção ampla e de qualidade, que reflete sobre o passado e contribui de forma efetiva para o desenvolvimento científico, educacional e cultural do país. Talvez por isso, para alguns setores autoritários seja necessário calar nossa voz e impedir nosso trabalho.
Lembrando Marc Bloch, “a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado”, diante dos movimentos de negação e deturpação do passado em voga nos dias de hoje, nada mais atual. Porém o historiador francês continua dizendo que “talvez não seja mais útil esforçarmo-nos por compreender o passado, se nada sabemos do presente”. Nossas referências, nossos problemas e nossos projetos estão aqui no nosso tempo, com todos os seus problemas e desafios. É a partir deles que nossos olhos se voltam para o passado, é partir deste presente que formulamos nossos questionamentos.
No decorrer dessa experiência republicana de 130 anos, a historiografia brasileira produziu importantes obras de análise e reflexão sobre esse sistema político. Especialmente a partir da segunda metade do século XX, algumas coleções começaram a ser elaboradas para dar conta de como tem sido traçada essa trajetória. Nos anos 1960, Leôncio Basbaum publicou a História Sincera da República (Alfa-Ômega, entre 1962 e 1968) em quatro volumes que percorreram um caminho desde antes do final do Império até o enrijecimento do regime militar [1]. Brasil em Perspectiva (Difusão Europeia) organizado por Carlos Guilherme Mota e publicado em 1968 traz sete de seus doze artigos sobre o período republicano até 1964 [2]. Hélio Silva e Maria Cecília Ribas Carneiro produziram 21 volumes da coleção História da República Brasileira (Civilização Brasileira, 1975-1979) expandindo um pouco mais o recorte temporal [3]. Entre 1975 e 1984 Boris Fausto foi o responsável por organizar a parte republicana da História Geral da Civilização Brasileira (Bertrand Brasil, 1982), o Tomo III tem quatro volumes, dos quais dois abordam a Primeira República e dois o período entre 1930 e 1964 [4] . Essas quatro pioneiras coleções marcaram profundamente a produção historiográfica no Brasil. Cada uma a seu modo e com suas particularidades, foram inserções de fôlego de autores dedicados a vasculhar arquivos republicanos apresentando uma especialidade, eram contemporâneos de boa parte da República brasileira.
Mais recentemente, pelo menos outras duas coleções merecem destaque pela riqueza de conteúdo em elaborações abrangentes do período republicano com aspecto distinto daquelas pioneiras. Jorge Ferreira e Lucília de Almeida Neves Delgado organizaram O Brasil Republicano (Civilização Brasileira, 2003), uma coleção composta de cinco volumes e com textos de importantes pesquisadores e pesquisadoras especialistas nos mais diversos aspectos da República [5]. A coletânea fixou-se como importante referência de estudos sobre o tema e, não por menos, chegou a sua décima edição em 2018, atualizando análises que se estendem até o golpe de 2016.
A outra coleção é especialmente nova, publicada em função da efeméride de 2019 por Lilia Schwarcz e Heloísa Starling. O Dicionário da República (Companhia das Letras, 2019) contém 51 textos de diversos pesquisadores que promovem um resgate crítico desde raízes na antiguidade, passando por diferentes matrizes do republicanismo até seus grandes princípios integradores, bem como refletindo sobre movimentos republicanos, Constituições e temas bastante atuais como gênero, globalização, religião e mundo digital [6]. Mesmo publicada há muito pouco tempo, é notório o potencial de repercussão da obra. E, pensando nisso, Heloísa Starling é uma das entrevistadas nesta edição da revista Locus.
Entre os periódicos destacamos dois dossiês publicados em anos de efemérides da República no Brasil: Quando dos 100 anos, em 1989, a revista Estudos Históricos publicou o dossiê “República”, reunindo artigos de pesquisadores renomados de universidades do Rio de Janeiro [7]. Em 2009, nos 120 anos, a Revista Brasileira de História dedicou um número sobre as “Repúblicas”, com a contribuição de pesquisadores de diversas universidades do país [8]. Ambos os números abriram espaço para a produção historiográfica sobre a instauração do regime republicano no Brasil e seus desdobramentos.
As clássicas coleções da segunda metade do século XX e as mais recentes coletâneas de textos do século XXI, bem como os dossiês e os inúmeros trabalhos de pesquisa produzidos em programas de pós-graduação espalhados pelo Brasil, demonstram a riqueza crítica de analistas da nossa história republicana. De uma forma geral, esses 130 anos foram segmentados em cinco diferentes fases: a Primeira República, a Era Vargas, a Terceira República, a Ditadura Civil-Militar e a Nova República.
Em 15 de novembro de 1889, Deodoro da Fonseca consumou o golpe que já vinha sendo tramado há tempos contra a monarquia brasileira. Programado para acontecer alguns dias mais tarde, os militares anteciparam a ação que acabaria com o poder de Dom Pedro II e da família real no governo do Brasil. Chegava ao fim o primeiro regime político do Brasil independente, após 67 anos de governo dos Bragança.
A República chegou em 1889 como sistema de governo no Brasil para ficar. Como o último grande país do continente americano a se tornar republicano, é bem verdade que a construção dessa experiência não se deu de forma pacífica ou consensual. Nesses 130 anos de República que se completam em 2019, o Brasil viveu entre experiências democráticas e autoritárias que segmentaram a nossa história republicana.
A outrora chamada “República Velha” ainda é a experiência republicana mais longeva do país (1889-1930). Nesses quase 41 anos de duração, o Brasil conviveu com uma frágil democracia marcada pela disputa entre as oligarquias regionais, pelas fraudes eleitorais e pelo arbítrio marcante do estado de sítio. Nesse contexto, as oligarquias rurais se valeram da República para assegurar seus interesses e a manutenção de um status quo dominante. Apesar de contar com uma Constituição democrática, a grande maioria da população estava excluída dos direitos políticos, bem como os trabalhadores muito afastados de direitos trabalhistas. Iniciada por um golpe, a “República Velha” acabou em decorrência de outro, em 1930, que promoveria a ascensão de Getúlio Vargas. Essa experiência republicana pioneira no Brasil já foi e continua sendo amplamente estudada. Muitos de seus aspectos foram revisados e atualizados, como a maneira de a tratar, por exemplo, preferencialmente referida como “Primeira República”. Fundamental para a história brasileira, esse período guarda muitas explicações para o funcionamento da República brasileira que ainda carecem de investigação. Muito embora seja o mais distante momento republicano do regime atual, é, contudo, o momento fundante que estabelece raízes que se espalhariam pelo restante dos anos.
Na década de 1930, por sua vez, a Primeira República liberal e oligárquica recebeu críticas do novo regime e alcunhas pejorativas. A Era Vargas (1930-1945) flertou abertamente com o autoritarismo em voga do entreguerras e, em que pese um pequeno período com pretensões democráticas (1934-1937), o que resultou dessa fase foi a primeira ditadura institucionalizada do Brasil republicano. Entre 1937 e 1945, o país esteve sob os mandos ditatoriais de Getúlio Vargas, no qual se verificou a consolidação de importantes direitos trabalhistas e o desenvolvimento industrial na economia, mas foi também um momento de severa repressão e violência política. Até a metade do século XX, a República no Brasil já havia passado por notórias mudanças, todavia um elemento demonstrou-se recorrente, o golpe. Vargas o promoveu por duas vezes, sendo, na segunda oportunidade, em 1937, para edificar o seu Estado Novo ditatorial.
A primeira experiência democrática efetivamente mais ampla do país ocorreria a partir de 1945. Mulheres já haviam assegurado seus direitos políticos, trabalhadores consolidado importantes conquistas, eleições e campanhas passaram a considerar o elemento povo como participante da arena política, a economia se dinamizou e diversificou, a industrialização e a urbanização abriram novas perspectivas, a cultura ganhou amplitude de consumo e movimentou um país que respirava novos ares de um mundo pós-Segunda Guerra Mundial. A República democrática que durou até 1964, contudo, foi contemporânea de uma disputa ideológica internacional entre capitalismo e socialismo na Guerra Fria e foi vítima dela. A ascensão de movimentos sociais e da contracultura, as revoltas e revoluções no mundo e a paranoia da constante disputa ideológica acabaram envolvendo o Brasil profundamente na Guerra Fria e colocando um fim nessa que, até então, era a fase democrática mais ampla da história brasileira. Um novo golpe, mais uma vez com o pressuposto de salvar o Brasil do comunismo, tal como fizera Vargas em 1937, retirou o Presidente João Goulart de seu posto e instaurou no país a mais longeva fase ditatorial da República.
Entre 1964 e 1985, o Brasil foi governado por militares que se revezaram no poder. O novo regime aumentou gradualmente a violência de sua repressão por meio dos temidos Atos Institucionais (AI’s) que retiravam direitos e institucionalizavam a violência do Estado por meio da censura, por exemplo. Ainda que tenha havido um período de grande crescimento econômico do país, o “Milagre Econômico” (1968-1973), não se pode esquecer ou negar que esses 21 anos foram demasiadamente pesados, com inúmeras prisões, torturas, mortes e desaparecimentos. No século XXI, por sinal, houve um esforço significativo em se investigar os crimes do Estado brasileiro durante o regime militar, dentre outras coisas, com a criação da Comissão Nacional da Verdade. Para além disso, são diversas as pesquisas de profissionais que revelam, a cada dia, mais e mais dados assustadores sobre o período. No entanto, ainda assim, a República brasileira não soube lidar com seus erros históricos, tampouco os reparar de alguma forma. Diferentemente dos vizinhos sul-americanos, o Brasil não puniu agentes do Estado que praticaram crimes que não remetem apenas à República, mas crimes contra a humanidade. Em função disso, o que se nota ainda são apropriações do passado para satisfação de determinados grupos políticos, negando fatos e a história.
A República brasileira democrática, ampla, plural e cidadã ainda é muito recente, começou a ser edificada em 1985. E, por isso, apresenta muitas falhas em seu percurso. Desde a Constituição de 1988, o Brasil teve que lidar com uma descontrolada inflação que motivou trocas na moeda nacional até a estabilização do Real, foram cinco Presidentes eleitos pelo voto popular dos quais dois deles sofreram processos de impeachment e escândalos de corrupção, por exemplo. A Nova República, como costuma ser tratada na historiografia, de fato é nova em muitos sentidos e chega a 2019 após um acúmulo de alternâncias entre democracia e autoritarismo, deixando latente que a tradição republicana brasileira mantém raízes autoritárias fincadas ainda na Primeira República e das quais nunca conseguiu se libertar.
Nesse sentido, o dossiê sobre esses 130 anos de República no Brasil contempla todos esses marcos tradicionais do regime no país. Da Primeira República à atualidade, os textos apresentados exploram diversos aspectos que contribuem para a compreensão de como se moldou e como se molda nossa vida republicana.
Abrindo o dossiê, Cláudia Viscardi e Vitor Figueiredo revisitam as eleições na Primeira República para analisar a participação popular nos pleitos presidenciais. Apresentando uma nova abordagem na historiografia a respeito do assunto, os autores buscam elucidar o motivo pelo qual os cidadãos abdicavam de participar do processo eleitoral, já que o voto não era obrigatório. Logo, colocava-se um desafio a mais aos candidatos, que precisavam atrair seus eleitores ao pleito e, nem sempre, isso era feito sob coação.
Surama Pinto e Tatiana Castro abordam o Poder Judiciário na Primeira República analisando uma série de habeas corpus protocolados no Supremo Tribunal Federal na década de 1920 relativizando a supervalorização do órgão máximo do Judiciário no exercício da cidadania no país. O artigo questiona a produção historiográfica brasileira oriunda da década de 1980 que concebia um importante papel do STF na construção da democracia brasileira e na ampliação da cidadania.
Andrea Maia e Luciene Carris problematizam as leituras sobre a Revolução Russa de 1917 nas revistas brasileiras. A partir de representações em imagens e textos que circulavam na capital do Brasil, a ascensão ao poder dos bolcheviques foi dotada de diferentes interpretações. Diante disso, as autoras procuram responder questões que avaliam como esse notável evento do século XX repercutiu no país.
Karla Carloni avalia como ambientes de danças sociais no Rio de Janeiro da década de 1920 se transformaram em espaços de transgressão feminina, considerando que as mulheres se apropriaram do jazz para o desenvolvimento de um novo léxico corporal questionador de padrões.
E, encerrando o quadro interpretativo da Primeira República, Maria Izilda Matos e Oswaldo Truzzi rastreiam a presença dos imigrantes portugueses no interior de São Paulo num período republicano que abarca o final do século XIX e o início do século XX. Particularmente, dedicam-se às experiências do setor comercial, averiguando a atividade de caixeiros e padeiros no mundo do trabalho da época.
Em seguida, os anos 1930 são explorados, inicialmente, a partir de uma análise transnacional desenvolvida por Toni Ariño que promove uma aproximação entre os fascismos brasileiro e espanhol. Trata-se de uma análise comparativa pioneira entre integralistas brasileiros e falangistas espanhóis no período entreguerras. Muito especificamente, o texto de Ariño se destaca ainda pelo estudo de gênero que avalia a atuação feminina nos movimentos fascistas dos dois países.
Aprofundando nas questões fascistas brasileiras, Pedro Tanagino investiga o pensamento de Miguel Reale, um dos três principais líderes da Ação Integralista Brasileira (AIB). A partir de suas obras e de documentos do integralismo, Tanagino perscruta a crítica ao federalismo oligárquico da Primeira República e a construção de um projeto autoritário na produção intelectual do autor.
Fábio Koifman, especialista na temática de controle da entrada de imigrantes no Brasil durante a Era Vargas, investiga os eventos ocorridos no vapor Cuyabá revelando as condições de viagem dos estrangeiros da terceira classe que imigravam para o Brasil, em 1937.
No contexto do período democrático entre 1945 e 1964, Laurindo Pereira discute a atuação do parlamentar mineiro Oscar Dias Corrêa analisando sua trajetória política e seu arraigado udenismo. Combatente incansável de Juscelino Kubitscheck, Corrêa foi voz ativa da União Democrática Brasileira (UDN) no discurso contra a corrupção.
Ainda acerca da corrupção, Michelle Macedo problematiza o importante papel da imprensa brasileira nas denúncias de casos de corrupção nas instituições públicas. Diante disso, a autora avalia os interesses políticos, econômicos e ideológicos relacionados aos problemas enfrentados pelos indígenas no regime militar. Por sinal, tal regime político incentivou amplamente a prática de delações e de denúncia de indivíduos. Temática que é explorada por Janaína Cordeiro para compreender como cidadãos passaram a recorrer ao Estado e suas instituições para delatar outras pessoas e quais as suas motivações.
No pesado contexto da ditadura, Wallace Guedes se vale da comparação de obras cinematográficas para discutir comportamentos políticos em regimes autoritários. Assim, as sociedades brasileira e polonesa da década de 1980 são aproximadas e distanciadas em uma análise transnacional do cinema político. Ao passo que Charles Monteiro analisa o ensaio fotográfico de Pedro Vasquez, publicado em 1976, que criticava as estruturas de poder e de dominação do corpo na sociedade de consumo.
Analisando um período mais recente da República no Brasil, o artigo de Gilberto Vasconcellos aprofunda na teoria política de Darcy Ribeiro para compreender a estruturação social em paralelo com a dinâmica política do país. Enquanto Pedro Fagundes aborda as disputas de narrativa a respeito da Lei da Anistia (1979) na Nova República. Uma análise urgente e necessária para se compreender como a sociedade brasileira lida com as marcas e os traumas da Ditadura Militar. E, por fim, Francisco Carlos da Silva examina o conceito de novilíngua, de Victor Klemperer, nos grupos de Ultradireita no Brasil recente. Abordando movimentos sociais, partidos e atores políticos de extrema-direita, o autor analisa os discursos de ódio, a apropriação do passado e a recusa da democracia representativa e das instituições republicanas. Uma análise atual sobre os rumos mais recentes da Nova República.
Além dos artigos que integram o dossiê, a presente edição também conta com duas resenhas vinculadas aos 130 anos de República no Brasil. O texto de Heitor Loureiro analisa a obra de Rubens Ricupero que aborda uma longa construção da diplomacia no Brasil (1750-2016) e, por sua vez, Rafael Rezende comenta sobre o livro de Ariel Goldstein a respeito do fenômeno Bolsonaro e dos perigos para a democracia brasileira.
Encerrando a edição, apresentamos uma instigante entrevista com Heloísa Starling, coautora de Brasil: uma biografia (Companhia das Letras, 2016) e Dicionário da República (Companhia das Letras, 2019). Professora Titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Starling conta sobre sua formação profissional em tempos autoritários, reflete sobre as expectativas de historiadores no passado e no presente, o Brasil republicano e o processo produtivo de grandes obras historiográficas.
Por fim, a edição se encerra com uma entrevista especial com todos os coordenadores do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), que, em 2019, completa 15 anos de existência.
Em seu conjunto, os textos reunidos nesta coletânea nos ajudam a questionar a democracia e a participação popular; o Poder Judiciário; as ideologias políticas à esquerda (o comunismo) e à direita (o fascismo e o udenismo); a relação entre corrupção, imprensa e ditadura; o cotidiano, o cinema e os intelectuais na ditadura; a Lei da Anistia e, por fim, a linguagem utilizada pela ultradireita no Brasil atual. Entre autoritarismos e democracia, devemos nos perguntar que sociedade temos após 130 anos de regime republicano no Brasil? Qual os caminhos percorremos para chegar até aqui? Essas e outras questões devem e precisam ser colocadas aos historiadores de hoje.
Notas
1. BASBAUM, Leôncio. História Sincera da República. 4 volumes. São Paulo: Alfa-Ômega, 1968.
2. MOTA, Carlos G. Brasil em Perspectiva. Rio de Janeiro: Difusão Europeia, 1968.
3. SILVA, Hélio & CARNEIRO, Maria Cecília Ribas. História da República Brasileira. 21 volumes. São Paulo: Civilização Brasileira, 1975-1979.
4. FAUSTO, Bóris. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo III, 4 volumes. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1982.
5. FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de A. N. O Brasil Republicano. 5 volumes. São Paulo: Civilização Brasileira, 2003.
6. SCHWARCZ, Lilia M. & STARLING, Heloísa M. Dicionário da República: 51 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
7. ESTUDOS HISTÓRICOS. Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, junho-dezembro de 1989.
8. REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA. São Paulo, v. 29, n. 58, dezembro de 2009.
Antonio Gasparetto Júnior – Professor substituto no Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF Sudeste MG – campus Juiz de Fora) e Professor Formador na Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós- doutorando em História pela Universidade de São Paulo (USP) e Doutor em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), com estágio de doutoramento na Université Paris IV – Sorbonne. Autor de Atmósfera de Plomo (Tirant lo Blanch, 2019), História Constitucional Brasileira (Multifoco, 2017) e Direitos Sociais em Perspectiva (Fino Traço, 2014). Desenvolve pesquisas na área de História do Brasil Republicano, com ênfase nos seguintes temas: História do Direito, Democracia e Cultura Política, Autoritarismo, Direitos e Administração Pública. Conquistou o segundo lugar no Premio de Investigación Doctoral en Historia del Derecho en América Latina (Valência / ESP, 2019). E-mail: antonio.gasparetto@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0001-7844-0055
Wagner Teixeira – Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Possui graduação e mestrado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp / Franca) e doutorado pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Tem artigos e capítulos de livros publicados sobre educação no período republicano. Desenvolve pesquisas na área de História do Brasil Republicano, com ênfase nos seguintes temas: Educação e Política, Esquerdas, Movimentos Sociais, Democracia e Cultura Política. Desenvolve projetos de extensão universitária nas áreas de Cinema e Ensino de História. Foi presidente da ANPUH / MG na gestão 2014-2016. E-mail: wsthistoria@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0001-5087-672X
GASPARETTO JÚNIOR, Antonio; TEIXEIRA, Wagner. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.25, n.2, 2019. Acessar publicação original [DR]
Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime / Locus – Revista de História / 2018
É com muita satisfação que apresentamos ao leitor o Dossiê Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime. Nossa principal intenção foi criar um espaço para a apresentação, divulgação e debate de resultados de pesquisas que versem a respeito da administração das justiças nos impérios ibéricos durante o Antigo Regime.
Já se vão algumas décadas desde que Stuart Schwartz publicou, em 1973 (traduzida para o português em 1979), Burocracia e sociedade no Brasil colonial. O autor pretendeu esmiuçar as instâncias da administração da justiça no Brasil colonial a partir do estudo do Tribunal da Relação da Bahia e de suas relações quânticas com as representações do poder local. A obra é hoje referência pioneira para o estudo da magistratura portuguesa de Antigo Regime.[1]
Em 1996 foi publicado O desembargo do Paço (1750-1833), de José Manuel Subtil. Aqui encontramos mais uma referência importante para os estudos sobre a administração da justiça no Império Português. A obra é fruto de sua dissertação de mestrado, defendida em 1994 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e realiza um estudo minucioso sobre as estruturas do tribunal português responsável pela gestão da justiça no reino e por todo império, o Desembargo do Paço. O período estudado também se apresenta revelador, pois José Subtil se debruça sobre o ministério pombalino e o liberalismo vintista das primeiras três décadas do século XIX português.[2]
Mais de quarenta anos se passaram, desde a publicação dessas obras. No entanto, foi somente na última década que o tema adquiriu relevância acadêmica na área de História Moderna e vem substanciando cada vez mais investigações nos programas de pós-graduação. No Brasil, as discussões acerca do tema estão sendo ampliadas. Pesquisadores vêm estabelecendo relações entre a administração das justiças e suas imbricações com a prática dos governos à distância, em todas as suas dimensões e possibilidades, nos âmbitos civil e eclesiástico das monarquias ibéricas de Antigo Regime. Nesse contexto, o Grupo de Pesquisa Justiças e Impérios Ibéricos foi criado em 2016. Reunindo pesquisadores brasileiros e portugueses, o GP busca matizar os interesses em torno do tema e contribuir para o alargamento dos debates e das possibilidades de pesquisa. Esse dossiê é parte dessa empreitada.
Em “Os conflitos de jurisdição entre os cargos do poder local ou a difícil tarefa de levar justiça aos domínios d’El-Rey”, Thiago Enes propõe um estudo sobre os conflitos de jurisdição que demarcavam a atuação dos ofícios municipais da justiça pelo império português. O autor estabelece relações entre o reino e o ultramar, ressaltando as instabilidades resultantes do estabelecimento do direito positivo e a permanência da tradição consuetudinária.
A seguir, Mônica Ribeiro nos apresenta uma análise da administração da justiça a partir da racionalização administrativa e da prática de uma razão de Estado no setecentos em “Manutenção da justiça e racionalidade política no Império luso, século XVIII: a gestão de Gomes Freire de Andrada, Rio de Janeiro e centro-sul da América portuguesa”. O estudo aborda a época da governação de Gomes Freire de Andrade no centro sul da América portuguesa, conforme indica o título.
O terceiro artigo, intitulado “De Portugal para os sertões do Siará Grande: caminhos de um português em meados do século XVIII”, de Adson Rodrigo Silva Pinheiro trata do trânsito nos sertões do Siará Grande nos idos setecentistas a partir da trajetória de Antônio Mendes da Cunha e suas implicações no Tribunal do Santo Ofício. O autor faz uso de fontes judiciais, além das inquisitoriais, para apresentar o estudo de caso em questão.
José Inaldo Chaves Júnior é autor do quarto artigo, “Reforma dos territórios e das jurisdições nas capitanias do Norte do Estado do Brasil: as atuações do capitão-general Luís Diogo Lobo da Silva e do juiz de fora Miguel Carlos de Pina Castelo Branco na aplicação do Diretório dos Índios (1757-1764)”. A aplicação do Diretório dos Índios nas capitanias do norte do Estado do Brasil é o tema central desse estudo que contempla um dos períodos mais conturbados para a administração da justiça durante o Império português, a época pombalina. O estudo nos revela as complexas relações entre os diversos agentes da governança frente à política de restrição das autonomias locais e de extensão das jurisdições régias sobre a região.
Marcello José Gomes Loureiro encerra nosso dossiê discutindo o poder de arbítrio e justiça representado pelo Conselho Ultramarino, durante os primeiros anos da Restauração. Em “Como poderemos restaurar depois de perdido, senão fazendo Justiça?” O Conselho Ultramarino e o diálogo com as conquistas em tempos de incerteza (1640-1656) nos será possível analisar, junto com o autor, as estratégias buscadas pelo tribunal para mediar a justiça e garantir a harmonia em um período de instabilidade política e administrativa para os domínios ultramarinos.
Por fim, nos resta desejar boa leitura. Esperamos também que o dossiê “Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime” possa contribuir de forma significativa para os avanços dos estudos sobre a administração da justiça durante o Antigo Regime.
Claudia C. Azeredo Atallah
José Subtil
Organizadores do dossiê
Notas
1. SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
2. SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. O desembargo do Paço (1750-1833). Lisboa: Editora da Universidade Nova de Lisboa, 1996. José Subtil possui uma vasta obra sobre o governo da justiça em Portugal e em seus domínios de Antigo Regime. Sobre as reformas pombalinas e suas conexões com o vintismo ver SUBTIL, José. O terremoto político (1755-1759). Memória e poder. Universidade Autónoma de Lisboa: Lisboa, s / d; SUBTIL, José. Portugal y la Guerra Peninsular. El maldito año 1808. In: Cuadernos de Historia Moderna; Anejo VII: Crisis política y deslegitimación de monarquias, 2008 e SUBTIL, José. Pombal e o Rei: valimento ou governamentalização? In: Ler História, n. 60, 2011.
Claudia C. Azeredo Atallah
José Subtil
Organizadores do dossiê
ATALLAH, Claudia C. Azeredo; SUBTIL, José. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.24, n.1, 2018. Acessar publicação original [DR]
Ensino de História / Locus – Revista de História / 2016
A proposta daorganização do dossiê temático “O ensino de História como campo de pesquisa” surgiu de recentes diálogos travados entre um grupo de professores formadoresda Universidade Federal de Juiz de Fora que, a partir de seus respectivos lugares de atuação profissional (o Departamento de História e o Departamento de Educação), tem buscado refletir e delinear ações conjuntas voltadas para a formação dos futuros professores de História. Tais diálogos refletem o desejo de superação das barreiras físicas e institucionais ainda presentes quando se trata da desafiante e imprescindível tarefa de formar professores.
A aproximação entre esse grupo de professores não tem se dado por acaso, mas a partir de uma sensibilidade partilhada que busca responder a uma demanda crescente da formação para o magistério, como sinalizam pesquisas que situam a formação de professores de História no Brasil [1]. A assunção da tarefa de formar professores de História como projeto institucional coletivo tem possibilitado avanços, na medida em que potencializam um movimento, senão de ruptura, ao menos de questionamento de concepções de formação há muito arraigadas nos cursos de licenciatura em História no Brasil.
Destacamos, em particular, a necessária superação de uma perspectiva de formação de professores historicamente dominada pela hierarquização entre os saberes históricos e os saberes pedagógicos, na qualo domínio daqueles saberes, advindos da ciência de referência, tem sido vislumbrado como eixo estruturante da profissionalização do professor. Por seu turno, os saberes pedagógicos têm assumido posição marginal, que se observa tanto no reduzido espaço atribuído às denominadas disciplinas pedagógicas nos currículos dos cursos de licenciatura quanto nas concepções circulantes em torno de tais saberes, os quais são alçados à condição de fazeres técnicos e acessórios, desprovidos de uma dimensão epistemológica. Dessa concepção de formação resultam compreensões um tanto simplistas acerca do ensino de História, o qual é compreendido enquanto ação pragmática e alicerçada exclusivamente no domínio de conteúdos disciplinares pelos professores.
A apostaque fazemos caminha no sentido oposto a talprojeto de formação. Nessa direção, partilhamos da perspectiva segundo a qual ensinar História pressupõe uma atitude investigativa, ancorada em saberes de natureza epistemológica própria, que configuram o domínio da Didática da História. Acreditamos que o ensino de História – campo de pesquisa cuja trajetória de institucionalização esteve intrinsecamente vinculada à reflexão acerca dos saberes que servem de base à formação do professor – seja o terreno capaz de fornecer ferramentas conceituais e analíticas para a compreensão da complexa tarefa de ensinar História. Enquanto espaço-tempo de produção de conhecimento que se constitui na fronteira entre a História e a Educação [2], o campo do ensino de História tem nos possibilitado olhar para o fenômeno educativo em suas dimensões complexas e plurais, posto que compreende os processos de escolarização como construção demarcada por interações entre múltiplos atores e saberes, que não se esgotam no domínio do saber disciplinar. A compreensão dessas interações, que traduzem a dinâmica de ensino e aprendizagem em História, constitui o objeto nuclear de investigação do campo do ensino de História.
O presente dossiê traz a público um recorte de produções que, situadas no domínio das problemáticas próprias do ensino de História, apresentam investigações relacionadas aos processos envolvidos no ensino e na aprendizagem em História. Orientados por abordagens, recortes e enfoques diversificados, tais artigos refletem o estágio de amadurecimento do campo, que tem se caracterizado pela densidade teórica, pela abertura temática e pela diversidade de objetos de investigação [3]. Do universo de artigos que compõe o dossiê, é possível observar investigações centradas desde os contextos escolares e suas interações cotidianas, àquelas focadas no próprio campo de produção de conhecimento histórico. No que tange às abordagens metodológicas, o leitor irá encontrar desde pesquisas colaborativas a análises de cunho etnográfico. Por fim, mas não menos importante, os artigos se caracterizam pela diversidade de atores investigados, como professores e alunos, ressaltando-se as pesquisas em torno da cultura juvenil.
É neste sentido de provocar o discurso educacional de formação de professores de História que se inserem os desafios propostos pelos diversos artigos apresentados neste número da revista Locus. Mas também se trata de um convite a ensaiar a produção de formas curriculares e de práticas de ensino que envolvam cultura digital, cinema, juventude, religiões, enfim, ações que estabeleçam relações entre o ensino de História e a produção de novas subjetividades no mundo contemporâneo.
Os dois primeiros artigos trazem para discussão aspectos ligados às problematizações do ensino e aprendizagem da História envolvendo juventude e suas questões. No artigo que abre este dossiê – “Investigar la enseñanza y el aprendizaje de la historia en la cultura digital” – Graciela Funes e Miguel A. Jara discutem a importância do ensino de História na cultura digital. Para isso destacam o aspecto sempre inacabado da formação inicial e continuada no desafio de olhar e reconhecer as questões e / ou problemas da atualidade que afetam as salas de aula. Os autores insistem no fato de que neste cenário atual se torna necessário observar atentamente os processos de aprendizagem da História, os modos como se constróem e reconstróem os entendimentos de ensino e aprendizagem de História em meio à cultura digital.
No artigo subsequente, “Afirmações e resistências: cultura escolar e juventude”, os pesquisadores Alessandra Nicodemos Oliveira Silva, Ana Carolina Oliveira Alves e Henrique Dias Sobral Silva buscam identificar e analisar processos de afirmação e resistência presentes na cultura escolar e que são vivenciados por alunos de uma escola estadual do Rio de Janeiro. O encontro desses autores se dá a partir das suas experiências com o estágio, oportunizando o encontro entre formação e sala de aula. A escola é trazida para discussão como lugar de negociação e de encontros entre as diferenças, colocando em funcionamento processos de afirmação e de resistências. O foco das análises é uma turma marcada por divergências e segregações, reconhecendo os fenômenos educacionais como esferas a serem investigadas em suas complexidades na escola e seus desdobramentos no mundo do trabalho.
Numa linha de condução mais preocupada com as questões que afetam a formação de professores, temos o artigo de Rafael Gonçalves Borges – “Didática da História e a ciência da Educação: problematizações para a formação de professores” – em que o autor concentra suas análises na história do ensino de História no Brasil, buscando problematizar o que ele chama de “afastamento” entre a Didática da História e a ciência da Educação. Um artigo que situa as mudanças percebidas nos últimos anos a partir do fortalecimento de debates e pesquisas influenciadas pela Didática da História alemã, aventando as possíveis implicações desse processo na formação do professor de História e emsua identidade.
Em seguida, temos dois artigos que tomam os filmes e o cinema para pensar suas relações com a História e o ensino de História. No primeiro artigo, intitulado “Cinema, estudos urbanos e ensino de História como campo de pesquisas: o caso da produção de curtas-metragens na cidade de São José do Rio Preto / SP”, os autores Rodrigo R. Paziani e Humberto P. Neto trabalham com a produção de curtas que trazem a discussão das cidades e o ensino de História. Mais do que isso, estão preocupados em estabelecer, a partir dessas produções, as relações de produção de conhecimento histórico acadêmico e o histórico escolar. O segundo artigo também mantém a discussão em torno do cinema e ensino de História. Concentrando a análise nas relações entre os filmes históricos e o ensino, Vitória Azevedo da Fonseca tem como argumento central a utilização dos filmes para além do seu entendimento como documento. Por meio de seu artigo, com o título de “Filmes históricos e o ensino de História: diálogos e controvérsias”, a autora analisa cinco itens para pensar os desafios e potencialidades do uso dos filmes no contexto da sala de aula.
Os dois últimos artigos envolvem as questões ligadas à história oral, narrativas e memórias. Elaine Lourenço e Juliano C. Sobrinho retomam a discussão entre encontros do saber acadêmico e o saber escolar em seu artigo, com o sugestivo título “Para além da história da Princesa: o saber histórico escolar e as disputas de memórias”, por meio do qual os autores problematizam o uso do livro didático, as escolhas curriculares, a história oral e as memórias que estão na sala de aula. Para isso, tomam uma experiência docente para propor outras abordagens do conteúdo. Por último, apresentamos o artigo de Frederico A. Mota, no qual aparece uma problemática atual para a realidade brasileira, as religiões afro-brasileiras e sua presença na educação. “As religiões afro-brasileiras: uma possibilidade de abordagem na educação formal”, último artigo do dossiê, propõe a discussão desse tema, baseado numa pesquisa realizada com estudantes do ensino fundamental a respeito das relações que estabelecem com as questões afro-brasileira, especialmente as religiões. Questões que nos chamam para pensar o ensino de História e a formação dos estudantes.
Finalizamos nossa breve apresentação ressaltando que a publicação deste número temático reflete o reconhecimento do necessário posicionamento institucional do Ensino de História enquanto campo de produção de conhecimento, cuja reflexão acumulada tem muito a contribuir não apenas para o redimensionamento de nossas práticas orientadas para a formação dos futuros professores de História, como também para a abertura de novas perspectivas de pesquisa em Ensino de História.
Nota
1. FONSECA, Selva Guimarães. A formação do professor de história no Brasil: novas diretrizes, velhos problemas. In: REUNIÃO DA ANPED, 24., 2001, Caxambu. Disponível em: . Acesso em: 2 out. 2016. FONSECA, Selva Guimarães; COUTO, Regina Célia do. A formação de professores de História no Brasil: perspectivas desafiadoras do nosso tempo. In: FONSECA, Selva; ZAMBONI, Ernesta. Espaços de formação do professor de História. Campinas, SP: Papirus, 2008. p. 101-130.
2. MONTEIRO, Ana Maria; PENNA, Fernando. Ensino de História: saberes em lugar de fronteira. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 36, ano 1, p. 191-211, jan. / abr. 2011.
3. ZAMBONI, Ernesta. Panorama das pesquisas no ensino de História. Saeculum –Revista de História, n. 6 / 7, jan. / dez. 2000 / 2001.
Anderson Ferrari
Yara Cristina Alvim
FERRARI, Anderson; ALVIM, Yara Cristina. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.22, n.2, 2016. Acessar publicação original [DR]
Poder e Governança na Idade Média / Locus – Revista de História / 2016
A governança tem ocupado lugar de destaque nos debates sobre a Idade Média. Faz já algum tempo que historiadores de diferentes regiões do Brasil tem se debruçado sobre a intricada teia das relações de poder, seja abordando os poderes locais, laicos e eclesiásticos, seja investigando o poder dos monarcas medievais, ou ainda – talvez principalmente – os diálogos, negociações, intrigas e disputas que permeavam as relações entre os diferentes poderes que constituíam o organismo social.
Os diferentes artigos deste dossiê partem da premissa que a governança não é um atributo exclusivo do Estado e que, portanto, não está centrada numa pessoa ou instituição. Tal nos permite tornar público o resultado de pesquisas que ressaltam a dimensão plural do poder sem, contudo, cair na tentação de uma arraigada atomização, ou de um poder descerebrado. Volta-se, assim, para os mecanismos que tornam possível uma sociedade corporificada, na qual as relações e imbricamentos entre as diferentes partes possibilitam a existência do todo.
Nesse eixo de debate, há uma compreensão do poder e do Estado que não se alheia da dimensão social. As instituições sociais, sejam elas jurídicas ou administrativas, sejam elas práticas costumeiras, são vistas segundo uma lógica que, desde Michel Foucault, compreende o Estado e a sociedade como campo de disputas. Não se trata, desse modo, de separar em dualidades complementares ou oposições – tal como o faz Roger Chartier ao enfatizar uma história que se produz entre as práticas e as representações –, mas sim, lidar com a história e a vida social em suas dinâmicas, em seus jogos de encontros e disputas, sendo as formas elementos plenos de sentido e, portanto, partes da vida e da existência.
Muito embora haja esse encontro, os textos aqui apresentados alargam a compreensão da Idade Média, enfrentando as compreensões mais simplistas e as leituras fáceis. Daí uma conversa em comum que se articula em diferentes pontos de vista e que busca apresentar novas possibilidades para lidar com a ideia do poder no mundo medieval.
Wesley Corrêa, problematizando o conceito de feudalismo bastardo, analisa as formas com as quais os homens viviam os conflitos e representavam suas ações na Inglaterra da segunda metade do século XV. O papel da cultura política e sua relação com as práticas são, neste artigo, fundamentais para compreender a noção de governo presente na documentação do parlamento e na representação particular de Fortescue. Já André Pereira Rocha se volta para os conceitos latinos de auctoritas e potestas, pertencentes ao mundo político romano, no intuito de analisar o discurso legitimador do poder papal num período de aumento dos conflitos entre a monarquia francesa e o papado. Debruçando-se sobre documentação pontifícia de Bonifácio VIII (1235-1303) e Clemente V (1264-1314), o autor analisa as tentativas de reforçar a posição hierocrática difundida pela Igreja. Em ambos os casos, a dimensão conceitual é pensada a partir de relações de poder que nos permitem vislumbrar possibilidades de experiências concretas da dinâmica social. Abre-se aí uma possibilidade de pensar, em continuidade com as análises de Marc Bloch, Ernst Robert Curtius, Ernst Kantorowicz e Jacques Le Goff – para citar apenas alguns dos pensadores clássicos que renovaram a compreensão da temporalidade medieval – a amplitude da ressonância das instituições sociais dessa “longa Idade Média”.
Lukas Gabriel Grzybowski, ao dar especial atenção à fortitudo, analisa as virtudes e seu papel na fundamentação e significação da translatio imperii dos romanos aos povos germânicos tomando como base os textos do bispo Otto de Freising. Segundo sua análise, as reflexões sobre as redes de poder privilegiam o estudo dos diferentes agentes, perpassando o poder central figurado no monarca, a administração senhorial laica e a prática governativa vivenciada pelos variados representantes e governantes da Igreja. Nesta perspectiva, no artigo “Fundamentos do poder imperial em meados do século XII”, são destacados os povos germânicos e seu contato com a cultura romana no período de desintegração da hegemonia latina sobre a região do Mediterrâneo a fim de apreender a contribuição dos povos germânicos no desenvolvimento do imperium medieval na primeira metade do século XII.
No que se refere às relações estabelecidas entre os poderes régio e senhoriais, Fabiano Fernandes analisa a Inglaterra na segunda metade do século XV a partir do conceito de poliarquia, ou seja, de um governo partilhado do reino. Tal aspecto da governança implicava na tentativa, por parte da nobreza, de limitar a jurisdição do rei em terras nobiliárquicas, o que por sua vez fomentava aquilo que era tratado nas fontes régias como violação da paz real, implicando em crime de lesa-majestade. É nesta perspectiva que o autor analisa a importância do discurso da violação da jurisdição régia na construção do Estado de consenso, que delimitava quais seriam os deveres dos súditos para com a realeza e quais os limites do que seria considerado como um atentado à majestade real.
Maria Filomena Coelho ao abordar o fortalecimento da aristocracia cristã em Portugal enfatiza o entrelaçamento dos mosteiros cistercienses à monarquia e à nobreza, no período que se estende da segunda metade do século XII à primeira metade do XIII. A autora estuda o poder monárquico e nobiliárquico acrescentando outro agente, os mosteiros cistercienses, que na época tinha grande protagonismo. Problematizando os conceitos de jurisdição e de instituição, a partir do modelo político corporativo, pretende-se entender a construção das instituições em sociedade e em estreita relação com as redes políticas que constituem a aristocracia cristã.
Sem abandonar a ideia de uma secularidade do poder monárquico, incontestável do ponto de vista funcional, Stéphane Boissellier questiona as teses que “secularizam” exageradamente a monarquia portuguesa tardomedieval, confundindo laicidade e sagrado não religioso. Há, nas monarquias medievais cristãs, elementos de um sagrado não religioso – como as virtudes naturais dos monarcas, por exemplo – que não podem ser reduzidos a esquemas clericais. De acordo com o autor, nos discursos e nas imagens de justificação do poder, a monarquia faz uso de símbolos religiosos para utilizá-los em objetivos tendencialmente profanos. Assim, competências de utilidade social são eminentemente suscetíveis de sacralização, tal como pode ser observado na maior parte dos rituais políticos reais (investiduras vassálicas, prestações de juramento, recepções de embaixadas), na função régia do exercício da justiça, da polícia e da proteção do reino contra os inimigos.
Inúmeras vezes analisado como elemento de uma metáfora política de grande difusão e em analogia com o poder, o corpo é tratado no artigo de Marcella Lopes Guimarães como uma realidade material e corruptível, que merece cuidados específicos. Cuidados estes que não escaparam aos olhos de D. Duarte, que adverte os súditos da moderação, autodisciplina e temperança. Além do cultivo das virtudes, a preocupação do governante com a matéria corruptível de seus súditos pode ser vista na coleção de numerosas mezinhas e na afirmação de que o bem-estar deveria ser permeado por uma série de cuidados com o corpo, que incluíam o consumo de vinho e água, entre outros elementos que evidenciam a preocupação do monarca com a morada terrena e efêmera das almas.
No artigo sobre barregania em Portugal, Denise da Silva Menezes do Nascimento analisa as relações ilícitas entre mulheres e leigos casados. Segundo a autora, tal como Cristo perdoou o apóstolo Pedro e reiterou seu lugar na comunidade dos fiéis, também o monarca devia perdoar as mulheres que se desviaram do modelo de casamento estabelecido e que, arrependidas, desejavam se apartar definitivamente do crime de barregania. Assim, a misericórdia de D. João II possibilitava não apenas a salvação da vida do acusado mas também a remissão do erro cometido, posto que aos pecadores foi concedida a possibilidade de se adequar às regras do matrimônio estabelecidas pela Igreja a fim de que a moral e a salvação fossem preservadas.
Já o artigo de Leandro Rust analisa o uso da força afastando-se do senso comum que concebe a clerezia completamente alijada da guerra e a Idade Média submersa na violência e na desordem. Estudando casos de uso da espada por bispos entre os séculos IX e XI, o autor evidencia que no Medievo vivenciar a paz não significava renunciar a agressão, tal como a violência não era sinônimo de uso da força. Para pensar a violência, parte integrante do cotidiano e da ordem, é preciso analisar cuidadosamente os desvios à norma, a perturbação da res publica, a ação ilegítima. Guerra, portanto, não pode ser substituída aleatoriamente por violência, assim como a Paz não pode ser traduzida pela ausência de conflito.
Essa pluralidade de temas e de questões dão ao dossiê “Poder e governança na Idade Média” um aspecto amplo, o que justifica, por fim, a publicação da tradução de um texto de Odo Marquard. De um lado, o texto desse filósofo alemão, por si só, merece leitura, uma vez que se trata de um autor realmente importante no cenário intelectual do pós-Guerra. De outro, ele coloca em debate um conjunto de questões que visam ao enfrentamento da própria ideia de homem, conforme ela foi sendo engendrada pela sociedade e pensamentos ocidentais. Assim, não se pode ler seu texto senão a partir das dimensões mais amplas das questões que ele mobiliza: a ideia de homem e de Deus, a história como teodiceia, a sinceridade da confissão, a crise da culpa e a possibilidade do perdão e da desculpa diante de um tribunal que julga os homens. Mesmo que Marquard se volte mais diretamente para o século XVIII, trata-se de um século XVIII que arrasta em si a tradição e estende-se também a nosso mundo. Há de se considerar também as ironias de suas datações, em semelhança como fazia Marc Bloch ao dizer não ser um medievalista ou quando Jacques Le Goff e Georges Duby, imbuídos de análise requintada, encontravam em mapas e sobrevoos da França, no século XX, os pontos de percepção da sociedade medieval. Por fim, como afirma Marquard, sua palestra convertida em texto é operação de um dublê e, ao mesmo tempo, um texto-dublê.
Para não nos delongarmos mais, restaria apenas enfatizar que é a partir da capacidade de instigar novas questões que a história vem se renovando e, nesse começo do século XXI, esperamos que essa contribuição da Locus produza frutos por despertar possibilidades de debate. Assim, menos engajados em uma história repleta de certeza, novamente apostamos aqui na herança da dúvida e do encontro da pluralidade da dúvida que leva à investigação.
Denise da Silva Menezes do Nascimento – Organizadora do dossiê
NASCIMENTO, Denise da Silva Menezes do. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.22, n.1, 2016. Acessar publicação original [DR]
Religião e Religiosidades / Locus – Revista de História / 2015
O presente dossiê da Revista Locus reúne contribuições de dez diferentes especialistas no estudo das práticas e representações religiosas elaboradas no mundo católico, com ênfase nas regiões de colonização ibérica, entre os séculos XVI e XIX. A organização do número constitui um desdobramento das atividades do Grupo de Pesquisa Ecclesia que tem se debruçado sobre uma variedade temática, que pode ser encontrada, a título de exemplo, nos seguintes campos de investigação historiográfica: as manifestações sagradas dos fiéis e do clero, em consonância ou em tensão com as normas institucionais; as formas de ação coletiva dos fiéis no campo religioso, especialmente a partir das irmandades e ordens terceiras; as marcas deixadas pela sociedade escravista e de Antigo Regime na formação do clero e nas vivências devocionais; os mecanismos de imposição da disciplina social católica aos fiéis, por meio da ação do episcopado e do padroado; e as representações acerca da morte e da santidade.
Muitos dos referidos campos de investigação têm sido renovados por contribuições recentes da historiografia. No que diz respeito, por exemplo, à ação dos bispos e do clero secular, José Pedro Paiva, em particular, mostrou a variedade de papéis assumidos pelos bispos diocesanos, que ocupavam um papel chave na supervisão das práticas religiosas dos fiéis e do clero, complementando e auxiliando as atividades do Santo Ofício da Inquisição. Além disso, o episcopado se encontrava muito próximo da órbita do poder monárquico, que escolhia criteriosamente os candidatos às vagas nas dioceses. Nas áreas de colonização, onde a manutenção do culto e a escolha de sacerdotes e bispos se encontravam sob a jurisdição dos padroados ibéricos, identificou-se com clareza a ação complementar das autoridades régias e dos bispos. Quanto ao clero diocesano, a historiografia se abriu a uma pluralidade de investigações, que faz ressaltar o papel central ocupado pelo pároco em uma sociedade do Antigo Regime que tinha o catolicismo como religião oficial: os estudos e a formação; as atividades rituais e de instrução religiosa; a análise do meio familiar e das origens étnicas; o envolvimento do clero em práticas morais ilícitas e em crenças heterodoxas.
As devoções, as sensibilidades religiosas e as correntes de espiritualidade de fiéis e de membros do clero têm sido também contempladas e renovadas pela historiografia. O culto à Paixão de Cristo, à Sagrada Família e ao Menino Jesus, derivado da devotio moderna, difundiu-se enormemente ao longo do período, estimulado pelo clero e contando com a participação ativa de fiéis reunidos em irmandades e ordens terceiras. A devoção ao Santíssimo Sacramento e às Almas do Purgatório recebeu igualmente grande incremento. Os vínculos entre os fiéis e os santos de proteção continuaram sólidos, em uma aliança sustentada pela prática da promessa e pela realização dos milagres. Sob o impulso do Concílio de Trento, a Igreja passou a interferir mais de perto na referida relação, procurando fazer do santo um modelo de conduta para o fiel, apoiando-se para isso na ação do clero nos sermões e na difusão da literatura devocional. Um sinal da ação controladora do clero, particularmente do Santo Ofício, foi o crescimento das acusações de “falsa santidade” dirigidas a leigos.
A partir de alguns campos de investigação expostos acima, é possível identificar maiores afinidades entre os autores. Deve-se chamar inicialmente a atenção para os estudos dedicados à temática da morte, analisada sob diferentes perspectivas, reunidos neste dossiê. Obedecendo a uma sequência cronológica, situa-se em primeiro lugar o artigo de Adalgisa Arantes Campos, intitulado “A iconografia das Almas e do Purgatório: uma releitura bibliográfica e alguns exemplos (séculos XV ao XVIII)”. Em diálogo com as obras de Jacques Le Goff, Michell Vovelle e Flávio Gonçalves, entre outros autores, Campos escolhe três fontes iconográficas para trabalhar as representações das Almas do Purgatório: a Coroação da Virgem pela Santíssima Trindade de Engerand Quarton (século XV); o Julgamento das Almas atribuído a Gregório Lopes (século XVI); e a portada dedicada a São Miguel e Almas da Capela do Senhor Bom Jesus, em Ouro Preto (século XVIII). A partir de uma análise comparativa, a autora constata o descompasso existente entre a fixação da doutrina do Purgatório no século XIII e a lenta alteração das representações iconográficas, que resistiram em assimilar um terceiro lugar no post-mortem.
Em seguida, encontra-se o texto de Claudia Rodrigues, “Estratégias para a eternidade num contexto de mudanças terrenas: os testadores do Rio de Janeiro e os pedidos de sufrágios no século XVIII”. No artigo em pauta, Rodrigues dialoga com ampla produção especializada a respeito da temática da morte, da qual extraiu elementos para analisar as fontes básicas de sua pesquisa: os registros de óbito, os testamentos e as contas testamentárias correspondentes à Freguesia do Santíssimo Sacramento da Sé do Rio de Janeiro, que se encontram no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Em diálogo com a obra de João Fragoso e de Roberto Guedes, atentos aos efeitos socioeconômicos das doações testamentárias, a autora revela no contexto em foco o “domínio dos mortos sobre os vivos”, característica de uma economia da salvação marcada pelo acúmulo de encomendas de missas, gastos funerários e doações de caridade, em detrimento do benefício de parentes vivos. A situação começa a mudar após as restrições dos gastos pro anima estipulados na legislação pombalina da década de 1760 que procurou favorecer os interesses dos herdeiros vivos dos testadores. Nesta conjuntura, a autora identifica as diferentes respostas contidas nas declarações de últimas vontades, desde as mais conformadas com as limitações impostas pelas Leis Testamentárias até os subterfúgios encontrados pelos testadores para continuarem a privilegiar o objetivo soteriológico do testamento.
Utilizando uma amostra documental mais reduzida, constituída pelas contas testamentárias de irmãos terceiros franciscanos e carmelitas que tiveram suas últimas vontades fiscalizadas pelo Juízo Eclesiástico do Rio de Janeiro, William de Souza Martins chega a conclusões semelhantes às de Cláudia Rodrigues, no que diz respeito ao impacto da legislação pombalina na economia da salvação do período, no artigo intitulado “Os irmãos terceiros franciscanos e carmelitas e a Justiça Eclesiástica do Rio de Janeiro (c. 1720-1820)”. Não obstante, antes e depois das restrições oriundas das medidas de Pombal, o autor identificou testadores que possuíam grandes patrimônios, vinculados ao comércio de grosso trato, cujas doações a favor da salvação das almas ficavam em patamar inferior aos benefícios materiais concedidos à parentela, inclusive a parentes mais afastados. Paralelamente, o autor observou a existência de um forte espírito de corpo entre os irmãos terceiros, que tendiam a favorecer as próprias ordens e os frades carmelitas e franciscanos com diferentes tipos de doações e despesas funerárias.
Deixando o período colonial e adentrando o período da Independência e afirmação do Estado nacional, o artigo de Gabriela Alejandra Caretta, “Y el Cielo se tiñó de rojo… Muerte heroica y Más allá en las Provincias Des-Unidas del Río de la Plata (1820-1852)” analisa as conexões existentes entre os funerais extraordinários de líderes de facções em disputa na região do Rio da Prata e a História Política da região no pós-independência. Neste estudo, em que representações fúnebres assumiam uma função importante na fundação de determinadas memórias e narrativas políticas, a autora verificou, nos quatro estudos de caso que analisa, que houve uma atualização da tradição católica da “boa morte”, que passou a incluir temas não desenvolvidos no período colonial, como o discurso heroico do “enfrentamento da morte”.
Para além da temática da morte, das suas práticas e representações, o dossiê contempla também estudos que analisaram o modo como a difusão de narrativas piedosas contribuiu para moldar as práticas de determinados fiéis, assim como potencializou a veneração e o culto de indivíduos cuja fé era considerada heroica. Seguindo novamente a ordem cronológica, situa-se em primeiro lugar o artigo de Eliane Cristina Deckmann Fleck, intitulado “De Apóstolo do Brasil a santo: a consagração póstuma e a construção de uma memória sobre o padre jesuíta José de Anchieta (1534-1597)”. Partindo da análise de três narrativas de vida do jesuíta Anchieta, elaboradas nos séculos XVI e XVII por diferentes membros da Ordem, a autora constata o esforço crescente dos cronistas da Companhia de Jesus em apresentar testemunhos autênticos da fé e das virtudes heroicas de Anchieta, com vistas a favorecer a causa de beatificação, aberta em 1624. Devido à presença de componentes hagiográficos, tais narrativas não podem ser consideradas propriamente biográficas. A autora analisa também os inúmeros obstáculos ao longo do processo de beatificação de Anchieta, que somente foi concluído em 1980. Por fim, analisando diversos outros escritos sobre o jesuíta, publicados nos séculos XIX e XX, a autora também lança luz sobre diferentes apropriações da trajetória de Anchieta, aproximando-a, por exemplo, do projeto de afirmação da unidade nacional.
Inserido na mesma temporalidade do artigo acima, mas tratando do outro extremo do império português, situa-se o texto de Margareth de Almeida Gonçalves, intitulado “‘Despozorios divinos’ de mulheres em Goa na época moderna: eloquência e exemplaridade no púlpito do mosteiro de Santa Mônica (frei Diogo de Santa Anna, 1627)”. No texto em questão, a autora examina um sermão pregado pelo referido frade agostinho durante a inauguração do Mosteiro do ramo feminino da sua Ordem, na capital da Índia portuguesa. No sermão, frei Diogo de Santana aponta para as características exemplares das mulheres que haviam feito os votos solenes da vida religiosa e se tornado “esposas de Cristo”. A narrativa é construída a partir das convenções da oratória sagrada do período, particularmente de analogias retiradas das escrituras sagradas. Assim, o Mosteiro de Santa Mônica aproxima-se do antigo Templo de Salomão, em Jerusalém.
O texto de Célia Maia Borges, intitulado “Os leigos e a administração do sagrado: o irmão Lourenço de N. Sr.ª e a Irmandade Nossa Senhora Mãe dos Homens – Minas Gerais, século XVIII” apresenta a notável trajetória de um irmão da Ordem Terceira de São Francisco que abraça a vida eremítica, tornando-se um ermitão leigo na Serra do Caraça. Desconstruindo uma visão historiográfica tradicional, segundo a qual o irmão Lourenço era fugitivo das perseguições de Pombal, a autora aprofunda a análise das inclinações religiosas do ermitão, próximas das correntes da Devotio Moderna, representadas exemplarmente naquele contexto pelos missionários apostólicos varatojanos, os quais pretendeu atrair para a Serra do Caraça. Paralelamente, a autora analisa as tensões existentes no campo religioso, em que se opunham o projeto do ermitão e as desconfianças do bispo de Mariana, que acabou autorizando apenas a fundação de uma irmandade leiga na Serra do Caraça. Sem dúvida, o texto da autora contribui para preencher uma importante lacuna nos estudos sobre a atuação dos ermitães na América portuguesa, particularmente no que diz respeito ao envolvimento dos mesmos na gestão de lugares de culto.
Passando a tratar das questões atinentes ao clero secular, deve-se mencionar primeiramente o texto de Anderson José Machado de Oliveira, “A administração do sacramento da ordem aos negros na América portuguesa: entre práticas, normas e políticas episcopais (1702- 1745)”. No artigo em pauta, o autor apresenta novas análises a respeito da temática a qual vem se dedicando há alguns anos, a da habilitação à carreira sacerdotal de descendentes de africanos, a partir da pesquisa de centenas de processos existentes no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. A permissão para que os negros tivessem acesso ao sacramento sacerdotal era rigidamente controlada pela hierarquia eclesiástica, representada pela própria Santa Sé, como também pelos bispos diocesanos, os quais recebiam do papa autorizações temporárias para as dispensas do “defeito da cor”. Conforme assinala o autor, a lógica casuística das dispensas, efetuadas caso a caso, e que levavam em conta as singularidades e qualidades dos ordinandos e das redes de sociabilidade que acionavam, funcionava como um mecanismo de reforço das hierarquias da sociedade escravista e de Antigo Regime. Vale a pena chamar a atenção também para o fato de que a concessão de dispensas variava conforme diferentes políticas episcopais, mais favoráveis a tais concessões no episcopado de D. Francisco de São Jerônimo, e mais raras nos bispados de D. Fr. Antônio de Guadalupe e D. Fr. João da Cruz.
Fundamental para compreender a projeção do poder episcopal sobre o clero secular e os fiéis no Antigo Regime, os juízos eclesiásticos dos bispados têm sido ainda pouco estudados pela historiografia, um hiato que tem sido corrigido pelas pesquisas de Pollyana Gouveia Mendonça Muniz. Em “O Juízo Eclesiástico do Maranhão colonial: crimes e sentenças”, o texto apresentado pela autora para o presente dossiê, Muniz revela a amplitude das esferas de atuação do tribunal diocesano, que incluíam a fiscalização sobre a realização de matrimônios; libelos de divórcio; investigação de delitos de natureza moral, como concubinato e incesto; autos de testamento, conforme foi também analisado nos textos de William de Souza Martins e Claudia Rodrigues, entre outras atividades. A autora mostra como a ação dos juízos eclesiásticos complementou, em cada diocese, o funcionamento do Santo Ofício da Inquisição, atuando como um mecanismo adicional de imposição da disciplina católica às populações do Antigo Regime.
Por fim, dedicando-se ao tema de sua maior especialidade, isto é, a análise das procissões e dos rituais religiosos no Antigo Regime, Beatriz Catão Cruz Santos apresenta o texto “Os ofícios mecânicos e a procissão de Corpus Christi no Arquivo Municipal de Lisboa – séculos XVII e XVIII”. A autora analisa diversos detalhes presentes na organização da procissão, de caráter oficial, do Corpo de Deus, como a convocação do Senado da Câmara de Lisboa e da Irmandade de São Jorge. Na medida em que revelava a aquisição de prestígio social, a participação de diferentes agentes era regulada na procissão por meio de um sistema de precedências, o que não impedia a existência regular de conflitos, cuja ocorrência era por vezes provocada pela manutenção de antigos costumes locais em oposição às normas escritas, conforme se mostrou na contenda entre os oficiais de ourives e o Cabido de Lisboa.
Acreditamos que a reunião destes artigos contribui significativamente para a compreensão das dimensões do catolicismo na América ibérica, entre os séculos XIV e XIX, ao trazer abordagens de questões ainda pouco investigadas, de arquivos e fontes ainda por explorar, demonstrando as potencialidades que a temática das práticas e representações católicas possui na historiografia ibero-americana.
William de Souza Martins
Claudia Rodrigues
Anderson Machado de Oliveira
Célia Maia Borges
MARTINS, William de Souza; RODRIGUES, Claudia; OLIVEIRA, Anderson Machado de; BORGUES, Célia Maia. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.21, n.2, 2015. Acessar publicação original [DR]
O Crédito e o Descrédito. Ensaios sobre as relações sociais envolvidas em empréstimos nas Américas (séculos XVIII ao XIX) / Locus – Revista de História / 2014
Este dossiê traz as contribuições de onze pesquisadores de História social e de Economia sobre o problema do crédito na História. Esses pesquisadores são formados por diferentes escolas, baseiam-se em diferentes princípios teóricos e empregam diferentes métodos. Tamanha diversidade justifica-se pela complexidade dos fenômenos sociais envolvidos nas práticas de emprestar, dever, penhorar e cobrar.
Os temas abordados nos artigos têm um ponto em comum, que é a importância da informação, fundamento das relações de crédito. Saber mais sobre a quem se empresta e conhecer o uso que o emprestador faz do empréstimo são fundamentais para o credor, que assume o risco de não reaver o recurso empenhado. Pelo lado de quem faz a dívida, apresentar-se como confiável e, portanto, digno de crédito, é decisivo para convencer o credor a ceder-lhe recursos. O descrédito, ou a perda de confiança, também envolve produzir informações sobre o estado patrimonial do devedor, a fim de avaliar as chances de reaver o que se emprestou. Os ensaios aqui apresentados revelam que o controle sobre a conduta econômica do devedor pode ser feito pela comunidade dos mercadores, ou pela Justiça, a depender do período histórico.
Parte-se da suposição de que a convivência entre credores e devedores pode ser cercada de atritos. Uns buscando vasculhar os negócios de outros; outros buscando omitir bens e esconder os erros de decisão. Essa trama social que fundamenta as relações de crédito examinadas nos artigos ocorre em dois tempos e lugares: o mundo das trocas mercantis do Oceano Atlântico no período moderno e nas relações de crédito que têm lugar no setor mais dinâmico da economia brasileira do século XIX, a economia do café.
Além da diversidade de situações econômicas em que se observam práticas de crédito, o dossiê também busca examinar outro aspecto importante da questão, que é o grau de formalidade em que as relações entre credores e devedores se dão. Examina-se desde a mais absoluta informalidade do crédito mercantil alicerçado unicamente na palavra e na reputação dos contratantes, até as formas paradigmáticas de formalidade e amparo legal, a assegurar os direitos dos credores e constranger os devedores a cumprirem com seus compromissos. O dossiê percorre desde o crédito mercantil, sustentado no estreito conhecimento mútuo das partes, passando pela circulação de crédito entre os pobres, até as operações realizadas sob o amparo de arcabouço jurídico formal e, teoricamente, impessoal, do sistema bancário do mundo liberal.
No primeiro bloco temático, os pesquisadores examinam o papel das relações de poder que azeitam as relações de crédito e punem quem perde a confiança, ou ingressa no descrédito. Nesse bloco temático Fábio Pesavento, historiador econômico, associa-se ao historiador social, Tiago Luís Gil, para rever as elaborações teóricas da Nova Economia Institucional e avaliar a sua pertinência a fim de compreender as tramas sociais observadas nas práticas de crédito dos agentes envolvidos com a atividade tropeira, nas capitanias do sul colonial.
No artigo seguinte, Teresa Cristina de Novaes Marques oferece uma visão alternativa sobre o problema das instituições sociais e o manejo da reputação em uma comunidade mercantil. Marques examina o controle que os próprios comerciantes do Recife exerciam sobre os integrantes do seu grupo apoiando-se em elaborações teóricas da Antropologia do Direito, desenvolvidas pelos historiadores do Direito, Paolo Grossi e Antônio Hespanha.
Os dois artigos seguintes examinam práticas de crédito na economia cafeeira. Rita Almico examina o mercado de empréstimos a produtores rurais da Zona da Mata na segunda metade do século XIX. Os amplos dados examinados pela autora mostram o perfil das transações – os valores médios emprestados, os bens oferecidos em garantia às transações – sugerindo um ativo mercado de crédito na região. A autora mostra como as crises no mercado financeiro da Corte repercutiam na região cafeeira de Juiz de Fora, levando ao aumento das cobranças judiciais de dívidas. O artigo mostra, também, que a informação sobre o estado patrimonial precário dos devedores se espalhava como rastro de pólvora entre os credores que corriam todos aos tribunais para, simultaneamente, tentar reaver parte do seu capital no rateio dos bens do devedor. O artigo apresenta situações nas quais a falta de informação exercia papel importante: muitas vezes, um indivíduo oferecia o mesmo imóvel a diversos credores como garantia, uma vez que estes não se conheciam mutuamente ou não sabiam das outras dívidas do devedor.
Já o artigo de Rogério Faleiros explora questões sobre o crédito em outra região cafeeira, o Oeste paulista, onde se situam os interesses de um grande fazendeiro e devedor. Faleiros analisa as escolhas empresariais do fazendeiro que contribuíram para a sua ruína e perda de credibilidade. Ao discutir as escolhas do fazendeiro, Faleiros levanta aspectos da transição do trabalho escravo para o trabalho livre na região do café paulista.
O segundo bloco temático do dossiê examina mais formas de crédito, desde as transações mais pessoais, envolvendo pequenos valores, a transações formalizadas por contrato entre um tomador e um banco, a atuar como emprestador institucionalizado. Esse bloco também analisa diversos instrumentos de crédito, de empréstimos bancários a hipotecas, buscando examinar o funcionamento de cada um deles, a frequência com que são levantados, o seu uso em projetos de maior vulto, a exemplo de investimentos em indústrias, além das garantias que amparam essas transações.
O artigo de Carlos Vallencia Villa discorre sobre um tema pouco explorado entre historiadores brasileiros, que são as transações de pequeno valor, mas de grande frequência, entre os moradores pobres da cidade do Rio de Janeiro. Além do ineditismo do tema, Vallencia aporta contribuição metodológica ao campo, por conjugar rigor estatístico ao uso de ferramentas de georreferenciamento. Ao fazer isso, o autor situa trama social dos agentes econômicos na cidade onde vivem, oferecendo uma nova dimensão para as relações sociais no meio urbano.
Em contraponto ao trabalho de Villa, o artigo de Luiz Fernando Saraiva e Théo Lobarinhas examina transações de grande monta, que geraram processos de execução. Em diálogo com a historiografia bancária do período formador do mercado capitalista no Brasil, 1821 a 1850, os autores revisitam a documentação sobre cobranças de dívidas e, assim, fornecem uma visão em detalhes sobre a sistemática das cobranças, as garantias das dívidas, a rede de indivíduos envolvidos no mercado bancário no período.
Na linha que investiga a formação do sistema bancário do Império, o dossiê traz a contribuição da historiadora norte-americana Gail Triner sobre a forma de atuação dos bancos ingleses no Brasil. Particularmente, a autora examina a importante questão do mercado de câmbio, elemento que atua como a válvula reguladora da rentabilidade da economia agrário-exportadora.
Em complemento, o artigo de Walter Pereira desce ao plano da economia regional do Norte Fluminense e, a partir do exame de duas instituições bancárias, Pereira revela o alcance da influência econômica da cidade de Campos, que abrangia a província do Espírito Santo. O estudo de Pereira sugere, também, que a compreensão da influência política das elites da região requer o conhecimento das relações de crédito que os poderosos locais mantinham uns com os outros.
Avançando nas primeiras décadas do século XX, Renato Marcondes apresenta um cuidadoso estudo sobre o mercado de empréstimos garantidos por um peculiar instrumento, as hipotecas. Marcondes mostra que a compreensão dos investimentos de maior monta na economia urbana de São Paulo, uma cidade em franca expansão industrial e comercial, requer o exame das transações garantidas por hipotecas e, por consequência, o conhecimento do perfil dos tomadores de crédito com essa garantia e dos fornecedores de recursos.
Concluindo, os artigos reunidos neste dossiê apresentam um amplo leque de situações envolvendo o crédito, mediante diversos fundamentos teóricos, metodológicos e o exame de diferentes estratos sociais e espaciais. Além disso, chama a atenção que muitos artigos enfatizam as relações sociais e seguem os rastros de indivíduos e de famílias, demonstrando a distância que a história econômica vem mantendo das análises socioprofissionais e de grandes grupos abstratos. Seria o caso de refletir sobre até que ponto há aqui uma influência da micro-história italiana e até que ponto os historiadores começam a consumir o vocabulário neoclássico, colocando o indivíduo no centro da atenção. Seria esta uma saída adequada para a compreensão das economias modernas?
Por fim, e não menos importante, os colaboradores prestam homenagem ao autor e professor Théo Lobarinhas Piñeiro, recentemente falecido e que dedicou sua vida acadêmica à história econômica, tendo oferecido especial contribuição aos estudos sobre o crédito e à formação de pesquisadores.
Teresa Cristina de Novaes Marques
Rita de Cássia da Silva Almico
Tiago Luís Gil
Organizadores do dossiê
MARQUES, Teresa Cristina de Novaes; ALMICO, Rita de Cássia da Silva; GIL, Tiago Luís. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.20, n.2, 2014. Acessar publicação original [DR]
Percursos do Olhar – caminhos da pesquisa nas trilhas da visualidade / Locus – Revista de História / 2013
O historiador de arte crê, amiúde, que o único assunto que o compete é o
dos objetos. Em realidade, as relações organizam esses objetos, lhes dão vida
e significação. Georges Didi-Huberman
Com essa afirmação o filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman inicia seu estudo sobre a arte diante do tempo [1]. Ao fazer a arqueologia dos anacronismos, próprios de uma história da arte em busca de renovação, o autor enfatiza que os objetos de arte talvez não possam ser compreendidos sem a análise de suas eleições teóricas, cuja história e crítica solicitam exame. Sob esta perspectiva, não há como cultivar um pensar profundo sobre os estudos da arte, sem pousar os olhos nos caminhos empreendidos por pesquisadores oriundos do campo artístico e do campo historiográfico, em experiências e encontros que, não raro, ocorreram hibridizados em um mesmo escopo de formação profissional.
Há, por outro lado, complementaridades e mesmo embates entre as áreas que lidam com a temática artística. Somadas ou em confronto, história e artes visuais contribuem para a discussão sobre a epistemologia das linguagens e as inquietações oriundas do campo da investigação artística com marcas na historicidade, que aqui compreendemos como visualidade. A necessidade de favorecer a (auto)reflexão dos caminhos de investigação trilhados por pesquisadores da arte e dar a ler suas experiências, foram os elementos que motivaram a organização deste dossiê. São dez artigos produzidos sob a perspectiva dos percursos do olhar, revelando a maneira como cada pesquisador, de forma disciplinar ou fronteiriça, traçou seu plano de pesquisa.
O dossiê tem, portanto, como objetivo apresentar reflexões sobre os percursos adotados por diversos pesquisadores no trato de vários temas. Com abrangência em distintas expressões artísticas (pintura, desenho, gravura, escultura e arquitetura), pretende promover um mapeamento dos caminhos e opções teórico-metodológicas em experiências de pesquisa. Objetiva favorecer, por meio de seus artigos, a (auto) reflexão do pesquisador sobre trilhas de investigação percorridas, e, ao mesmo tempo, estimular discussões e debates que sirvam de inspiração a estudantes e pesquisadores no campo das artes visuais. No limite entre as oportunidades e as impossibilidades de um conhecimento e de um meio absoluto de leitura e análise no campo artístico, o dossiê pretende estimular a reflexão, inspirar novos pesquisadores, dar a conhecer o jogo de significações em torno de seus temas e, em perspectiva temporal, apresentar contextos significativos de pesquisas realizadas sobre pontos referenciais da história da arte no Brasil em suas múltiplas facetas.
O dossiê é composto por pesquisadores experientes, associados, em sua maioria, a linhas de pesquisa que tratam do campo artístico relacionado à história em diversos programas de pós-graduação nacionais. Assim, comparecem ao dossiê, pesquisadores do Centro, Nordeste e Sudeste do país que em seus textos vão nos apresentar reflexões advindas de suas experiências com a arte colonial, com as expressões artísticas do dezenove e reflexões sobre a arte do século XX. Em abordagens sobrevindas de vários campos de conhecimento, cada pesquisador, a seu modo e segundo seu ângulo de visão e inquietação, elaborou reflexões relativas a temas específicos, sobre os quais se debruçou por anos de trabalho e partilhou as opções teórico-metodológicas assumidas, mesmo de maneira provisória e questionadora.
Com essa aspiração organizamos a série de artigos deste dossiê. Embora houvesse a intenção inicial de apresentar os temas em certa ordem cronológica, fomos interpelados por temas mais teóricos e diálogos com diversos tempos em uma mesma análise. Tal aspecto nos recoloca a problemática incessante da arte em seus diálogos com o tempo e com a história. Walter Benjamin trouxe a metáfora da escavação para o conhecimento associado ao passado. O filósofo e historiador da arte Georges Didi- Huberman recupera a tarefa como um ato da espectralidade do tempo e nos remete a uma arqueologia não somente material, mas também antropológica e política. Nesta arqueologia, somos aqueles que manejam os instrumentos, se esforçam por ler as camadas, mas ao mesmo tempo, admitem a árdua tarefa de levantar vestígios e considerar a substância mesma dos solos em que se encontram os sedimentos revoltos por nossas escolhas [2]. Por este princípio a pergunta organizadora deste dossiê se faz necessária: qual o percurso do olhar prescrutador da arte e do tempo? As respostas elaboradas neste dossiê talvez possam nos ajudar a rememorar trilhas e arriscar renovados caminhos.
Notas
1. DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante El Tiempo. Historia del Arte y Anacronismo de las Imagenes. Buenos Aires, Adriana Hidalgo Editora, 2008.
2. DIDI-HUBERMAN, op. cit, p.170.
Heloisa Selma Fernandes Capel – PPGH / UFG
Maraliz de Castro Vieira Christo – PPGH / UFJF
CAPEL, Heloisa Selma Fernandes; CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.19, n.2, 2013. Acessar publicação original [DR]
Federalismo nas Américas / Locus – Revista de História / 2013
No presente número, a Revista Locus publica o dossiê Federalismo nas Américas. A ideia do volume é apresentar um debate sobre as propostas e modelos federalistas nas Américas e as relações e arranjos entre províncias e poderes centrais, contemplando os casos da Argentina, México, Brasil e EUA, de forma a compreender como esses projetos se fizeram representar nos diferentes cenários políticos que surgem após os movimentos de Independência, bem como seus desdobramentos nos debates e na consolidação dos modelos políticos no século XIX e inícios do século XX.
O federalismo moderno surgiu oficialmente, ou seja, como sistema de organização política, na constituição norte-americana de 1787. Desde então, de uma forma ou de outra, vem servindo de inspiração a movimentos das mais variadas origens e tendências até os dias atuais. Mas naquela conjuntura específica, quando a Europa e as Américas enfrentavam as transformações decorrentes dos intensos movimentos sociais e políticos que abalavam as estruturas de poder em ambos os continentes entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do XIX, o federalismo parecia surgir como resposta inevitável a uma velha questão, inerente ao processo de formação e consolidação dos chamados estados nacionais, principalmente aqueles que então começavam a se desenhar no antigo ultramar. Tratava-se das dificuldades em conciliar a existência dos novos centros de poder – materializados no modelo de um Estado impositivo, que se aprimorava desde meados do século XVIII –, com a tradição autonomista das antigas províncias, combinadas a experiências mais ou menos extensas de autogoverno, conforme a região e o período.
Essas dificuldades, já anunciadas no cenário político norte-americano que se seguiu à declaração da independência, tendiam a se reproduzir especialmente no antigo espaço colonial, onde as províncias iriam, de fato, resistir à ameaça de mudança representada pela imposição de um poder centralizado. Assim, o federalismo se tornaria progressivamente interessante às elites políticas na América latina, principalmente por combinar algumas noções às quais surgia associado e que o faziam intensamente moderno: as noções de soberania, autonomia e república. Não por acaso, essas seriam importantes palavras de ordem no eterno ideário liberal, e que então se afirmava: soberania se associava ao direito dos povos de se autogovernarem na ausência de um poder governante legítimo, como rezavam as antigas tradições do pactismo; autonomia lembrava as ideias de liberdade e independência, tão caras às colônias que se livravam do jugo das tradicionais potências europeias; por fim, a república, indelevelmente relacionada à luta contra as antigas e empoeiradas monarquias, que ainda carregariam as marcas da arbitrariedade e do autoritarismo, mesmo ao longo do século XIX.
Entretanto, o sucesso da revolução norte-americana e a intensa propaganda de modernidade que lhe sucedeu pareciam ocultar uma verdade inegável: os recém-criados Estados Unidos da América haviam formulado e adotado um modelo federalista por necessidade, ou melhor, por imposição de sua história colonial. Visto por esse ângulo, toda a modernidade do sistema parecia se deparar com um certo conservadorismo em sua essência: a manutenção, a qualquer custo, da autonomia de cada uma das antigas treze colônias, obtida a despeito de alguns séculos de dominação colonial, e a rejeição de um Estado central moderno, capaz de construir e garantir a unidade. Mas a federação norte-americana era, de fato e de direito, uma novidade, digna de ser reconhecida como tal, inclusive porque o próprio discurso autonomista assumiria, nesse momento, um caráter mais liberal, identificado à noção moderna de soberania, tal como esta seria enunciada nos movimentos da década de 1820. Assim, sua originalidade se baseava na criação de um sistema – e suas sólidas instituições políticas – destinado a preservar essa autonomia e coibir e controlar o avanço dos poderes do governo central; tratava-se de uma solução que, na prática, inventava uma nova forma de unidade e renovava uma bem sucedida independência individual e não-coletiva.
Porém, do ponto de vista dos movimentos autonomistas que se intensificavam nas outras Américas, a pergunta mais importante seria até que ponto o federalismo, tal como então conheciam, poderia responder aos anseios dessas nações. Nesse sentido, as iniciativas voltadas para a formação de federações, tanto na antiga América espanhola quanto no Brasil, estariam destinadas a enfrentar não apenas os diferentes projetos centralizadores, mas ainda as inúmeras resistências regionais, que exporiam toda a diversidade dessas experiências de autogoverno local e colocariam na ordem do dia a capacidade dos atores e instituições envolvidos em negociar (e renegociar constantemente) algum tipo de consenso.
Nem por isso, no entanto, propostas, projetos e variações de modelos federalistas deixaram de ser perseguidos, não apenas nesse contexto, mas ainda ao longo de todo o século XIX, até os dias atuais. Há, naturalmente, que se diferenciar as regiões, até porque, no Brasil, embora o império que se constituíra em 1822 houvesse herdado um vastíssimo território fragmentado, nunca deixou de existir uma referência central, representada pela sombra da monarquia. Entretanto, tanto no Brasil quanto na América espanhola, onde era notória uma maior diversidade étnica, cultural, geográfica etc., havia sérios obstáculos a serem suplantados no sentido da manutenção das autonomias regionais tradicionais.
De qualquer forma, em princípio, parece justo afirmar que os movimentos, experiências e modelos federalistas alcançaram um êxito maior na ausência de referências sólidas e / ou legítimas de poder central, o que possibilitava um ambiente propício ao afloramento de regionalismos de diferentes origens e tendências. Mesmo no Brasil, ao menos no primeiro século de sua existência independente, os momentos em que essas ideias surgiram mais seriamente no debate político corresponderam exatamente à ausência da monarquia, ou seja, ao período regencial (1831- 1840), que se sucedeu à abdicação de D. Pedro I, e à proclamação da república, no contexto em que se discute a elaboração e implementação da constituição de 1891, onde o sistema político do país é oficialmente reconhecido como uma república federativa.
Mas a que se deve o sucesso ou o fracasso dessas primeiras tentativas? Que tipo de federalismo vingou, seja nos EUA ou nas diferentes nações latino-americanas? Como essas primeiras experiências nos ajudam a compreender a recorrência do modelo? Parece simples afirmar que as dificuldades eram muito maiores ao sul do Equador, dados, inclusive, o caráter e o modelo administrativo das monarquias ibéricas, que teriam gerado obstáculos intransponíveis a uma independência de fato, no sentido da autonomia regional e autogoverno. Mas a história não é fácil e, em geral, parece sempre pronta a afrontar a obviedade. Não por acaso, o maior desafio enfrentado pelo federalismo ocorreu na própria nação que lhe deu existência e vigor, nos Estados Unidos, onde, em meados do século XIX, uma longa e sangrenta guerra civil varreu o país de norte a sul, literalmente. Com a reconstituição da União, a partir de 1865, a guerra civil também reinventou o federalismo norte-americano.
De fato, a riqueza do processo político na história consiste exatamente no poder e na capacidade da sociedade não propriamente de recriar ou copiar experiências, mas de as reinventar. São essas constantes releituras que, entendidas como teoria e prática política, condicionadas por diferentes cenários e conjunturas, concedem dinamismo e movimento a todo o processo. Assim, embora o caráter doutrinário da revolução norte-americana tenha despertado corações e mentes, é a experiência prática que atrai os olhares pragmáticos das novas lideranças políticas e das elites que estes, via de regra, representavam. Também nos trópicos, o federalismo seria constantemente reinventado, de forma a enfrentar os dilemas recorrentemente impostos tanto pelos latentes ou explícitos regionalismos quanto por governos centrais autoritários.
Em qualquer que seja o período, em cenários onde há espaço para o debate acerca de valores como autonomia, liberdade e soberania – principalmente em função da fragilidade, transitoriedade ou mesmo inexistência de um poder centralizado –, o federalismo surge, então, como uma promessa de conciliação dos interesses entre centros e regiões, destinado, entretanto, a administrar um pesado fardo, representado por arraigadas experiências de autogoverno herdadas do período colonial, ou por antigas e novas representações identitárias, regionalismos dinâmicos, localismos tradicionais, recorrentes disputas intra e interprovinciais, etc.
Portanto, entender o federalismo americano implica, necessariamente, conhecer seus movimentos, suas propostas e suas experiências. Significa entender o que esses processos têm em comum, quais os princípios e interesses que os motivaram e que forças enfrentaram em sentido contrário, quando se considera o extenso arsenal de recursos a que fizeram uso os governos centrais em busca de legitimidade, imposição da autoridade e manutenção da unidade. Significa, portanto, compreender como os governantes lidaram com essa equação, a que tornava imprescindível costurar o território, preservar a autonomia decisória das províncias e governar toda a nação, agindo em nome da ordem e mantendo o equilíbrio entre as partes que formam o todo.
Portanto, o que se propõe aqui é expor e comparar essas experiências regionais e federalistas no tempo e no espaço, de forma a reabrir as portas a um debate que parece ainda extremamente rico, até porque, dentre os tradicionais temas da política, este é, sem dúvida, aquele que parece sempre o mais atual. Essa deve ser outra verdade irrefutável: no fundo, estamos condenados a discutir eternamente nossos espaços de autonomia dentro de sistemas concebidos para unir diferenças e, de alguma forma, as manter e controlar, sem, contudo, as suprimir.
Esperamos que as reflexões e experiências aqui tão brilhantemente retratadas pelos autores possam, de fato, inspirar e renovar esse importante debate.
MARTINS, Maria Fernanda. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.19, n.1, 2013. Acessar publicação original [DR]
África – Mobilidades, trajetórias e travessia na história do continente africano / Locus – Revista de História / 2012
É com imensa satisfação que efetivamos a proposta do Conselho Editorial da Revista Locus de dedicar o número 35 ao dossiê “Mobilidades, trajetórias e travessias na história do continente africano” entre os séculos XIX e XX. O recorte escolhido para a abordagem do tema leva em consideração o início do século XIX como ponto de partida. Cabe ressaltar que, em quase vinte anos de existência da Revista, é a primeira vez que autores foram convidados a se debruçar sobre uma problemática específica e de relevância para a compreensão da história do continente africano. Isto testemunha o interesse do Conselho Editorial em oferecer um espaço de debate sobre questões atuais analisadas no âmbito das ciências sociais. Se, no Brasil, assistimos aos esforços para implantar disciplinas de História da África no ensino fundamental, médio e universitário, é igualmente flagrante a carência de publicações em revistas sobre o universo africano. É com o intuito de contribuir para a superação parcial desta lacuna que a Revista Locus realizou este dossiê temático.
A questão focalizada em mobilidades, trajetórias e travessias vincula-se ao entrelaçamento de diferentes espaços e tempos que existem no continente africano há milênios e se reconfiguram em função de novas situações sociais locais, regionais e internacionais. Este assunto remete, também, a fenômenos diversos inerentes às mudanças ocorridas do continente que permanecem conectadas a dinâmicas sociais, a conhecimentos e a ideias. Nesse sentido, as mobilidades não fazem apenas referência a movimentos físicos, mas também a significados polissêmicos associados às noções de deslocamentos de relações sociais, mudanças individuais e coletivas e visões do mundo. As mobilidades, trajetórias e travessias que advêm no decorrer de histórias de diferentes atores sociais em diversos loci nos atrelam à historicidade das narrativas dos indivíduos através das quais aprendemos a entender as subjetividades desses movimentos. Assim, a migração, os percursos e as trajetórias, a circulação de ideias, as viagens, a peregrinação, são alguns desses movimentos que preenchem todo seu significado a partir da compreensão das subjetividades dos atores sociais que são levados a se deslocarem em diferentes tempos e espaços.
Embora as mobilidades sejam inerentes aos séculos de história do continente africano (pensando-se, por exemplo, as migrações de populações de línguas do tronco linguístico bantu ou ainda ao comércio transaariano), não foi possível incluir um recorte histórico tão amplo. Os pesquisadores convidados trabalham com períodos entre o século XIX e XX. Como a história da África exige uma perspectiva interdisciplinar para ser corretamente abordada, convidamos para compor esse dossiê autores africanos, europeus e sul-americanos formados na área de história, antropologia, sociologia e geografia e que, por serem de diversas nacionalidades, escrevem em diferentes línguas.
Neste número inauguramos o projeto de disponibilizar traduções de textos clássicos estrangeiros – até agora inaccessíveis em língua portuguesa – a partir da tradução feita por Fernanda Winter do texto de Ottobah Cugoano intitulado: Thoughts and Sentiments on the Evil of Slavery. Neste texto, o jovem africano Ottobah Cugoano, que foi arrancado da região do atual Gana quando era criança, escreve seu depoimento sobre seu trágico destino e compartilha seus sentimentos e pensamentos sobre o sistema de escravidão. As mobilidades, no caso de Ottobah, física e social são aspectos marcantes do texto já que, uma vez na Inglaterra, o jovem passa a dominar os códigos da sociedade londrina do fim do século XIX ajustando-se aos jogos social e político da época.
Outros personagens importantes circulando em diferentes espaços que nos levam a repensar nossas noções de fronteiras são as mulheres itinerantes, comerciantes ou quitandeiras. Emília Soares do Patrocínio, no final do século XIX, é uma africana que foi durante um tempo de sua vida escrava e que começa a ganhar sua vida independentemente. Sua história no Brasil é contada por Juliana Farias, historiadora. O segundo texto, escrito pelo historiador Adam Mahamat, apresenta as mulheres Ngueli que, envolvidas em atividades comerciais, circulam entre o norte dos Camarões e do Chade, procurando se inserir no mercado e espaços fronteiriços até então essencialmente masculinos. Neste vai e vem, ou no fluxo e refluxo tão caro a Pierre Verger, o Atlântico se torna um espaço dinâmico de circulação das ideias, de mobilidades de pessoas. A trajetória de um membro da família De Medeiros contada por Milton Guran, antropólogo e fotógrafo, nos conduz à costa do atual Benim e nos apresenta a saga dos agudás: sua mobilidade social, política e geográfica nos permitem entender como esse grupo social constrói uma nova identidade superando o estigma da escravidão e redefine fronteiras sociais a partir de suas trajetórias individuais. A questão identitária é também primordial no trabalho da historiadora Anabela Cunha, que acompanha a trajetória dos degredados, principalmente portugueses, levados a Angola entre 1850 e 1932 para cumprirem suas penas e servir de mão de obra. A autora destaca três períodos de degredo em Angola e suas transformações.
Nessas andanças, se debruçando sobre as mobilidades de atores sociais, a historiadora Camille Lefebvre acompanha – através de diversos relatos obtidos por estudiosos sobre assunto, já no século XIX – as travessias e trajetórias de escravos no Sudão Central. A autora analisa as mudanças do status de escravo considerando sua capacidade de mobilidades, e estuda como o risco de ser capturado aparece como elemento determinante no uso de espaços geográficos e como uma limitação ao livre deslocamento das pessoas. Não são apenas as pessoas que se movem por motivos religiosos, econômicos e pessoais, ou devido a processos migratórios forçados; outros elementos entram em consideração na questão da mobilidade. Assim sendo, a cobrança de impostos em um contexto de violência colonial é interpretada por Cisse Chikouna, historiador, como motivo que leva à circulação acentuada de pessoas na região norte da Costa do Marfim entre 1901 e 1902, determinadas a sobreviver às pressões exercitadas pelo regime colonial.
Outro elemento trabalhado é o das condições climáticas, avaliado pelos historiadores Houli Fourissala Robert e Gormo Jean. Os dois autores consideram que a desertificação no Chade provoca o deslocamento de diferentes populações. Os autores sublinham o peso de determinantes geográficos nas escolhas individuais que obrigam as pessoas a migrarem. Por sua vez, Raquel A. Gomes analisa a questão política de posse de terra e a lei Natives Land Act de 1913 no espaço sul-africano. Se a posse ou não de terra influencia diretamente as condições de vida, os espaços sociais e induz as pessoas a migrarem, o interesse da autora é analisar a mobilidade intelectual da chamada “elite letrada” e mais especificamente a obra de Sol Platje. As condições de vida de migrantes etíopes são também avaliadas pelos antropólogos Gunilla Bjeren e Atakilte Beyenee. Nos espaços urbanos da cidade de Shashemene em Etíopia, os autores analisam a questão de genêro no acesso a diferentes possibilidades de susbsistência e as trajetórias das pessoas em mobilidade.
Os dois últimos artigos trazem significados mais abrangentes à noção de mobilidade. A partir de uma perspectiva interdisciplinar, a geógrafa Karine Bennafla averigua o papel do estado contemporâneo africano na circulação transnacional de bens focando no período pós- -colonial através de exemplos das regiões ocidental, central e noroeste da África. Olhando para o cotidiano dos africanos que circulam constantemente e condicionam suas travessias à sua principal atividade de comércio, a pesquisadora observa que o diálogo entre atores estatais e não-estatais e as mobilidades de espaços-tempos e redes acabam ilustrando novas formas especificamente africanas de se viver a globalização. Por fim, o artigo de Simone Ribeiro da Conceição, Mestre em literaturas africanas, fecha o dossiê com uma proposta interdisciplinar seguindo as trajetórias de dois homens africanos que, cada um na sua área, destacaram-se pela contribuição que aportaram aos conhecimentos sobre o continente africano. São eles o renomado historiador burquinês Joseph Ki-Zerbo e o escritor angolano Uanhenga Xitu, ambos destacados atores políticos e sociais de uma experiência africana de reconstrução constante de suas identidades. Deste modo, através do fio condutor da memória, entendemos as mobilidades como noção que nos faz acessar ao mundo de circulação das ideias.
Além desse alentado dossiê, a Revista Locus traz neste número dois artigos de fluxo contínuo. O autor Vinicius Cardoso, no seu artigo “Favorecida do Senhor e acrescentada por Sua Alteza: jesuítas, rei e mercês na fundação e patronímica do Rio de Janeiro” analisa, com base em cartas, o patronímico da cidade de São Sebastião do Rio do ponto de vista jesuítica. No segundo artigo, os autores Nara Azevedo e Luiz Otávio Ferreira refletem sobre o “Sucesso e Fracasso das Faculdades de Filosofia: ciência, cientistas e universidade no Brasil, 1930-1960” e sobre a influência das faculdades de filosofia na institucionalização das ciências no Brasil. Em seguida, Diogo da Silva Roiz propõe uma resenha do livro de José Carlos Reis: “O desafio historiográfico”. Por fim, Vítor Fonseca Figueiredo apresenta o livro de Amilcar Martins Filho “O segredo de Minas: a origem do estilo mineiro de fazer política (1889-1930)”.
Marina Berthet – Organizadora do dossiê.
BERTHET, Marina. Prefácio. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.18, n.2, 2012. Acessar publicação original [DR]
Extremismos Políticos de Direita | Locus | 2012
Este conjunto de artigos da revista Locus, fruto do colóquio Os extremismos políticos de direita: entre a tradição e a renovação realizado nos dias 29 e 30 de novembro de 2011 no ICS-UL, reflecte bem a mudança de perspectivas de análise sobre o fascismo e os movimentos e ideologias políticas de extrema direita de uma nova geração de historiadores. Por um lado, a perspectiva comparada consolida-se com modelo dominante, por outro, a perspectiva cronológica alargou-se o espectro de análise também. O fascismo vai assim sendo integrado com variante do pensamento e da acção política da direita autoritária do século XX.
No primeiro artigo, Fabio Chang compara a nova extrema direita em Portugal e na Argentina, utilizando a perspective conceptual do historiador britânico Roger Griffin, um dos grandes inovadores recentes da historiografia sobre o fascismo.
Segue-se um artigo de Leandro Pereira Gonçalves sobre o impacto na obra e accção de Plinio Salgado, do Integralismo Lusitano, dos católicos portugueses, e do próprio Estado Novo de Salazar. Particularmente importante na sua carreira política após a segunda Guerra mundial, quando regressar ao Brasil, após um breve exílio em Portugal. Este tema da origens e influências ideológicas também está presente no artigo de Paulo Archer sobre o Intergralismo Lusitano, muito marcado pela Action Française, e na contribuição de Nuno Simão Ferreira sobre Alberto de Monsaraz, um dos seus mais marcantes dirigentes.
Nos artigos de Gilberto Callil e de Odilon Caldeira Neto sobre o neointegralismo no Brasil, e de Riccardo Marchi sobre a Extrema Direita portuguesa, estão presentes os grandes dilemas de legitimação e construção da filiação dos grupos de extrema direita contemporânea: como se referenciar em relação ao passado fascista e às suas figuras mais importantes. Após 1945 Plinio Salgado recuperou o conceito de “democracia orgância” e cristã como demarção do “totalitarismo”, o que não deixou de ser um legado complexo para os grupos neointegralistas da transição democráticas. No caso da democracia portuguesa, a natureza de ruptura da transição e o trauma da descolonização foram factores importantes para explicar a fraqueza da extrema direita.
O imperialismo expansionista foi uma das características do Nacional Socialismo alemão e do Fascismo italiano, mas o papel relativo das colónias na ideologia e prática do Salazarismo e do fascismo italiano apresentaram diferenças significativas, como demonstra Piero Tessadori no seu artigo. O mesmo se poderia dizer das relações entre a Igreja Católica e estes dois regimes. No caso do Estado Novo de Salazar, o catolicismo conservador foi uma fonte de inspiração da Ditadura, reforçado pelo catolicismo do Ditador Oliveira Salazar, mas, como salienta Maria Inácia Rezola, no seu artigo, não podemos reduzir o Estado Novo português a um “Nacional Catolicismo”. Na sua longa duração, como bem sublinha Duncan Simpson na sua contribuição, existiram naturalmente algumas tensões, sobretudo a partir dos anos 60, com o desenvolvimento da Guerra colonial.
Entre fascismo histórico e extrema direita contemporânea os temas de polarização ideologica e de construção de novas identidades políticas vão variando e a “questão islâmica” constitui um exemplo desta dinâmica contextual. José Pedro Zúquete, autor de vários trabalhos sobre o populismo e a direita radical europeia, aborda este tema no seu artigo analítico e prospectivo.
Comparação, alargamento da escala diacrónica e contextual marcam assim este conjunto de artigos, representativos de uma inovação historiográfica sobre o tema do fascismo e da extrema direita na época contemporânea.
PINTO, António Costa. Editorial. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.18, n.1, 2012. Acessar publicação original [DR]
História e Gênero / Locus – Revista de História / 2011
Ao longo dos 17 anos da Revista Locus, numerosos artigos foram publicados. A Revista sempre esteve aberta à diversidade temática e metodológica. Nos últimos números, tem aberto espaço a dossiês e este número é dedicado aos estudos de Gênero. Questão que se tem feito presente em História e nas demais áreas de Ciências Humanas e Sociais. O tema deve ser visto em seu contexto histórico.
Desde fins dos anos 60, tornam-se presentes no Ocidente sinais e percepções de desmoronamento. O mundo sobrevivente à Segunda Guerra Mundial, polarizado em Capitalismo X Comunismo, mostrou fissuras em ambos os lados. Negros norte-americanos, em A Marcha para Washington em 1963, tornaram visíveis as contradições da democracia norte-americana. Jovens atletas negros – Panteras Negras – nas Olimpíadas do México, ergueram os punhos em protesto e denúncia às questões raciais norte-americanas.
Em 1967, o Estado de Israel invadiu terras de Gaza e aumentou seu território na Guerra dos Seis Dias. Desconstruiu todo um olhar sobre o sionismo. Em 1968, Dubeck buscou conciliar, na Checoslováquia, a economia planejada com liberdades democráticas. A União Soviética, através do Pacto de Varsóvia, invadiu aquele país e abafou as tentativas de desestalinização. O episódio, que ficou conhecido como Primavera de Praga, aprofundou o descontentamento com o “Socialismo Real”, nas discussões dos marxistas ocidentais.
Ficou conhecida como Maio de 1968 a série de acontecimentos que se iniciaram nas universidades de Nanterre e Paris: protestos estudantis contra o sistema educacional e o estabelecido. Protestos que se estenderam aos trabalhadores e se alastraram pela Europa e Estados Unidos. Caracterizaram-se os protestos e seus desdobramentos pela ampliação dos conceitos de “política” e de “liberdade”. Eros e a civilização, de Herbert Marcuse, é a radiografia identificadora de liberdades que devem ser buscadas: liberdade dos corpos, dos gêneros e convívio com as diferenças. O movimento hippie, Beatles, protestos contra a Guerra do Vietnã e a reivindicação de feministas assinalam aspectos do questionamento ao estabelecido.
Novas questões foram colocadas para o meio acadêmico e a necessidade de propostas metodológicas para estudá-las. O conceito de “Gênero” surgiu na década de 1970, como categoria de análise social, usado por feministas norte-americanas em busca das diferenças baseadas no sexo. A visibilidade do movimento feminista, no período, foi possível pelas questões que assinalamos anteriormente. Em História, ampliou-se o universo a ser estudado, contudo, como assinalou Hobsbawm:
Mas os aspectos sociais ou societais da essência do homem não podem ser separados de outros aspectos do seu ser, exceto à custa da tautologia ou da extrema banalização. Não podem ser separados, mais que por um momento, dos modos pelos quais os homens obtêm seu sustento e seu ambiente material.[1]
As questões de gênero estão imbricadas nos diversos aspectos que envolvem os contextos sociais e nos quais os indivíduos atuam na História. Recebem e constroem visões de mundo em seus momentos e em lugares que ocupam na sociedade. Os estudos sobre a questão têm revelado que, homens e mulheres vivenciam, de maneiras específicas, seus contextos históricos. Neste dossiê, os estudos debruçam-se em tais vivências.
O dossiê é aberto pelo texto de Alex Silva Monteiro: “Despidas de suas vestes. Torturas e intrigas: o cotidiano das cristãs-novas nos cárceres do Santo Ofício da Inquisição de Portugal, século XVII”, no qual o autor discute a questão de gênero no contexto da Inquisição Portuguesa, abordando as rés, especialmente as cristãs novas, diante dos tribunais inquisitoriais. Através dos processos instaurados, o autor mergulha no cotidiano das acusações, buscando resgatar valores e visões sobre a mulher no século XVII português. Ao mesmo tempo, revela as torturas físicas e psicológicas as quais foram submetidas, algumas delas, em tenra idade.
Ainda no campo da religiosidade, William de Souza Martins, em artigo intitulado: “Representações femininas na obra do padre Manuel Bernardes (1644-1710)”, analisa as representações de gênero encontradas em duas obras de autoria de Manuel Bernardes, um padre português que apresentava as mulheres a partir de uma perspectiva misógina, a +m de persuadir os fiéis em relação a seus princípios. Duas obras do padre serviram de base para a percepção de tais representações: Armas de castidade, de 1699 e Nova Floresta, escrita entre 1706 e 1728.
Deyssy de La Luz García, no trabalho “Las mujeres en el pentecostalismo mexicano. Apuntes para la historia (Las pioneras, 1910-1948),” analisa o papel das mulheres pentecostais no México, na primeira metade do século XX. A partir de fontes orais e escritas, a autora destacou a atuação relevante das mulheres no processo de divulgação e aquisição de novos adeptos para a doutrina pentecostal, em que pese sua pouca participação no âmbito das atividades de direção e gestão de igrejas. O artigo leva em conta, igualmente, os valores por elas compartilhados e as condutas consideradas ideais no gênero feminino.
No presente dossiê, não só a relação entre gênero e religião é levada em conta, mas também a perspectiva da “ciência” em relação à mulher. Este é o objeto central do artigo de Marisa Miranda e Maria Bargas, intitulado “Mujer y maternidad: entre el rol sexual y el deber social (Argentina, 1920-1945)”. As autoras se voltam para o estudo das relações entre eugenia e gênero e entre gênero e sexo, segundo as visões predominantes na Argentina, nas primeiras décadas do século XX. Através da leitura, conclui-se que, dentro de um paradigma eugênico-latino, sexo e gênero eram duas faces de uma mesma moeda, ou seja, predominava uma relação mimética entre os dois temas. Dessa forma, a desigualdade entre homens e mulheres, a subordinação feminina e a heterossexualidade tinham caráter natural e imutável. Qualquer alteração desse paradigma era vista como um atentado às leis da natureza.
Segue-se o artigo de Marina Garone Gravier e Albert López, intitulado “Rastros invisíveis sobre o papel: as impressoras antigas na Espanha e México (Séculos XVI ao XIX)”, no qual se propõe resgatar o papel das mulheres no mercado tipográfico. Começando a abordagem nos primórdios da imprensa, até meados do século XIX, os autores buscam destacar o importante papel desempenhado pelas mulheres no trabalho de impressão de numerosos livros e panKetos (broadsides). Muitas herdaram o negócio de seus falecidos pais ou maridos, levando à frente, com maestria, as atividades. A partir da análise específica da trajetória individual de várias tipógrafas ao longo do período, os autores revelam a importância de tais análises para os estudos de gênero no mundo do trabalho.
Em geral, os estudos de gênero são voltados para a análise do papel da mulher em sua relação com a sociedade. A historiadora Maria Izilda de Matos presta contribuição inovadora ao tratar da masculinidade, no artigo: “Cabelo, barba e bigode: masculinidades, corpos e subjetividades.” Tendo como palco a cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX, a autora relaciona os ideais de masculinidade presentes nos discursos médicos e nas propagandas dos jornais. Destaca a preocupação com o combate ao alcoolismo e com a manutenção de um corpo jovem e saudável, através da propagação da importância da higiene masculina, sobretudo manifesta através dos cuidados com o cabelo, a barba e o bigode.
Complementam o presente volume dois artigos e uma resenha, recebidos em fluxo contínuo. O ensaio de Clarice Cassab, intitulado: “Contribuição à construção das categorias jovem e juventude: uma introdução”, volta-se para o estudo dessas duas categorias ao longo da história. Partindo do período romano, passando pelo período medieval e confluindo para a modernidade, a autora vai acompanhando as mudanças de concepção acerca do que significava, em cada período, ser jovem. Ressalta-se a atribuição à juventude de desvios e inconsequências, sobretudo quando associada à pobreza.
O artigo de Fábio Chagas, intitulado: “O nacionalismo revolucionário e a resistência à ditadura nos anos 1960 no Brasil”, aborda a resistência contra a ditadura militar brasileira levada a cabo, sobretudo, por militantes nacionalistas e comunistas gaúchos. Fundamentando-se em consistente base empírica, o autor analisa os vínculos entre os dois grupos, destaca a participação de importantes lideranças no planejamento e organização das ações contragolpistas e analisa as opções feitas pela resistência em cada conjuntura.
Por fim, a revista é fechada com uma resenha de Samuel Silva Rodrigues de Oliveira, que apresenta aos leitores o livro organizado por Márcio Piñon de Oliveira e Nelson Fernandes, que resume conclusões de um evento que tratou dos 150 anos da área suburbana da cidade do Rio de Janeiro.
Esperamos que o leitor encontre neste volume subsídios para pesquisas futuras, não só para o tema “gêneros”, objeto privilegiado por este número, como também para os demais volumes da revista.
Nota
1. HOBSBAWM, Eric. “Da História Social à história das sociedades”. In: Sobre História. São Paulo.
Vanda Arantes do Valle – Doutora. Professora do Departamento de História da UFJF Organizadora do Dossiê
VALLE, Vanda Arantes do. Editorial. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.17, n.2, 2011. Acessar publicação original [DR]
História e Literatura – um diálogo em andamento / Locus – Revista de História / 2011
Os artigos agrupados neste dossiê corroboram o alerta de Hayden White de que não deveria haver embaraço entre a historiografia narrativa, a literatura e o mito, uma vez que tratam- se de sistemas de produção de significados destilados da experiência de um povo, de um grupo, de uma cultura. Ou, como dizia Richard Morse, as obras literárias são riquíssimos instrumentos para desvendar processos históricos mais ou menos complexos. De formas bastante variadas, tanto em termos de temática como de abordagens teóricas – bem como pela mistura de autores provenientes da literatura, história ou das ciências sociais -, os diversos ensaios que o leitor tem em mãos permitem uma viagem, seja ao universo mental de novelistas ou ensaístas que escreveram sobre mundos mais ou menos conhecidos, ou àquele de historiadores que se valeram de narrativas literárias – ficcionais ou de viagem – para suas interpretações de processos históricos. Aliás, este é precisamente o espírito que buscamos nesta coletânea: abordar a atual, instigante e problemática relação entre história e literatura tentando, tanto quanto possível, contrabalançar a presença de historiadores com a de críticos literários.
Optamos por organizar os ensaios em uma sequência que inicia-se com a discussão de algumas questões teóricas envolvendo história e literatura, e prossegue com ensaios mais específicos sobre movimentos autores e / ou obras: o romantismo brasileiro na figura de José de Alencar, o modernismo português (Fernando Pessoa), o ensaísmo brasileiro dos anos 1930 (Afonso Arino de Melo Franco) e a literatura brasileira dos anos 1950 (Guimarães Rosa). No bloco seguinte estão os estudos de narrativas literárias que, de uma forma ou outra, tratam de encontros interculturais: jesuítas no Brasil, franciscanos na Índia, Lamartine no Oriente ou os dilemas da libertação de Angola através da obra de Pepetela. Ou seja, o dossiê agrupa textos de cunho estritamente teórico com diversas abordagens de autores, obras ou narrativas de viagens (religiosas ou leigas), sempre por meio de um diálogo entre a literatura e a história.
Também gostaríamos de chamar a atenção para a presença de ensaios sobre temas mais conhecidos do público brasileiro como o romantismo e o modernismo e encontros entre europeus e nativos da América do que, por exemplo, a obra do moçambicano Pepetela ou os escritos de Jacinto de Deus e Lamartine sobre o Oriente. Isto é bastante enriquecedor na medida em que proporciona o aprofundamento, pelo leitor, de temas mais ou menos familiares e amplia os horizontes ao apresentar novos autores ou objetos.
As reflexões de cunho “estritamente teórico” sobre o diálogo entre história e literatura ficam aqui por conta dos críticos literários. Mas são bastante pertinentes para os historiadores. A socióloga e também crítica literária Silvana Seabra oferece uma visão histórico-panorâmica das idas e vindas, aproximações e afastamentos entre história e literatura, desde o século XVII até a atualidade, que pode ser um bom guia para leitor se localizar na problemática. Especialmente porque ela se detém não apenas em dois autores que, nos anos 1960 e 1970, escreveram textos polêmicos sobre as proximidades entre história e literatura. Ela se propõe a explicar o porquê da forte reação à Metahistória de Hayden White (1991) em contraste com os textos do também polêmico Roland Barthes que, em 1967, apontara para uma compreensão da história enquanto narrativa e, portanto, muito próxima da literatura.
Paulo César Oliveira analisa, do ponto de vista da literatura, as viagens reais e imaginárias da história e da ficção na literatura contemporânea através de uma análise comparativa entre o romance Nove noites (2002), de Bernardo Carvalho, autor brasileiro de reconhecida representatividade no cenário ficcional contemporâneo, com a obra do autor inglês Bruce Chatwin, falecido em 1989, com destaque para In Patagonia (2005), Th e Viceroy of Ouidah (1990) e Anatomy of restlessness (1996). Oliveira se propõe a demonstrar que a análise comparada das obras de Chartwin e Carvalho desafiam a teoria literária hodierna ao dar “respostas” às “provocações” das narrativas ficcionais através de uma interseção com a história. Considerando que a literatura comparada parece ser o campo mais atuante no panorama atual da teoria literária, ele compara autores que, em cenários bem diferentes, têm em comum o fato de flertarem mais com a etnografia pela via de deslocamentos espaciais, territoriais, geográficos e históricos com a elaboração de sua matéria literária.
O romantismo brasileiro é abordado na figura emblemática de José de Alencar pelo historiador Valdeci Borges e pelo crítico literário André Monteiro, que enfocam aspectos muito distintos da obra do autor. Valdeci nos mostra como Alencar, além de romancista, foi um teórico e polemista sobre as inovações necessárias na língua, linguagem e estilo americano de seu tempo, para dar conta de novas realidades. O texto detalha o debate entre ele e dois portugueses contrários a quaisquer “brasileirismos”, ou seja, alterações no idioma pátrio. O interessante é perceber a acuidade e familiaridade de Alencar com as discussões de seu tempo ao contrapor a estes críticos o mesmo autor tido por eles como exemplar da não corrupção da língua inglesa em território norte-americano: Fernimore Cooper. Conforme então assinalado por Alencar, e hoje plenamente reconhecido, a novela de Cooper, O último dos Moicanos, se tornou um clássico da fundação dos Estados Unidos exatamente por ter reproduzido na escrita a forma como o inglês era falado na colônia. O mesmo aconteceu com o espanhol nas colônias hispano-americanos, conforme também reconhecido por Alencar e utilizado por ele como reforço ao seu próprio projeto para o Brasil.
Já o crítico literário André Monteiro aborda um outro José de Alencar, ou melhor, ao invés de centrar-se no autor, opta pela personagem Iracema, mito de formação nacional. Mas, muito além disto, está interessado em demonstrar – talvez na linha sugerida por Ian Watts -, como o personagem se independizou de seu autor e conheceu significados e ressignificações desde o século XIX até o XXI [1]. Segundo Monteiro, Iracema é prova viva da “morte do autor”. Ela não pertence mais aos direitos autorais do Senhor José de Alencar. Dentre as demonstrações deste fato, ele opta por discutir Iracema em uma versão cinematográfica. Produzido em 1974, “Iracema, uma transa amazônica”, de Jorge Bodansky e Orlando Senna, nos oferece, segundo Monteiro, “de muitos modos, grandes possibilidades de realizar uma fricção com o mito alencarino.” A riqueza do filme está exatamente em não se constituir em uma adaptação direta do poema-romance para o cinema. Pelo contrário, vale-se do mito de Iracema para uma profunda crítica ao regime militar exemplificado na construção da Transamazônica. Ilustra bem as ponderações de Robert Stam sobre as amplas possibilidades de diálogo e interação entre literatura, cinema e história que, longe de supor que as versões cinematográficas constituam-se, via de regra, em deformações e / ou traições da novela em que se basearam, podem e devem ser vistas como outra linguagem, igualmente poética e instigante [2].
Embora não represente uma ruptura absoluta com o propósito romântico de descobrir ou redescobrir o Brasil, ou mesmo de buscar uma “língua nacional”, o modernismo opta por outra vertente. A presença do índio, por exemplo, e o apelo à noção de “primitivo”, tema caro ao romantismo, também foi uma bandeira levantada pelo modernismo. A ênfase, porém, não era mais no índio filho de Catarina de Médici, conforme nos lembra Oswald de Andrade no Manifesto Modernista de 1928, mas no índio antropófago, devorador, que sobreviveu ao choque com os brancos. O ensaísmo e as novelas brasileiras dos anos 1930 dão prosseguimento a alguns destes insights, conferindo-lhes contornos mais nítidos e atingem, nos anos 1950 caracterísiticas mais gerais e universalizantes.[3] A propriedade desta “tese” pode ser percebida nas análises da historiadora Libertad Bittencourt e dos críticos literários Franco Daniel Faria e Bruno Flávio Lontra Fagundes.
Franco Faria, através do “sensorismo” do poeta modernista português Fernando Pessoa, ilustra a importância dos insights, da crítica ao racionalismo e da valorização “freudiana e nietzschiana” contrárias à leitura de obras literárias como se fossem meros documentos. Através das “viagens” de Caeiro, ilustra como estes documentos deveriam ser relativizados inspirando-se na tese de Gumbrecht, que afirma que os códigos organizadores das experiências sociais de tempo e espaço no mundo moderno entraram em colapso no século XX. Centro e Periferia, Transcendência e Imanência, entre outros, teriam se fundido, mesclado, interpenetrado. Assim, o espaço, até então, ordenado no mundo ocidental de acordo com paradigmas estáveis, teria se estilhaçado. Se, por exemplo, um viajante europeu romântico que fosse em direção à América do Sul pudesse acreditar que partia do centro da civilização para a sua periferia. Mas isto não mais se aplicava aos anos 1920, tanto que tais distinções tenderiam a se confundir, conforme também explicitado pelos nossos modernistas.
A valorização da originalidade americana, na linha iniciada pelos modernistas dos anos 1920 recebe contornos mais definidos em obras como o pouco conhecido ensaio de Afonso Arino de Melo Franco, O índio brasileiro: da teoria da bondade natural à denegação, de 1937, analisado aqui por Livertad Bittencourt. Seu texto ilustra, através de Afonso Arinos, a importância do próprio estilo ensaístico enquanto uma forma privilegiada de interpretação da história e da cultura. No caso do índio, permite ao autor dar contornos mais nítidos ao desejo de identidade vindo do século XIX, que não havia conseguido definir o que fazer com a herança indígena. Conforme nos mostra Bittencourt, esta interpretação inovadora sobre o índio brasileiro, no sentido de este ter sido inspiração, ao longo de dois séculos, na consolidação da teoria da bondade natural, alimentando o ideário que levou à Revolução Francesa, foi retomada quando nos debates por ocasião das comemorações dos 200 anos da Revolução Francesa a partir de fins de 1979, bem como para repensar a questão do índio durante as comemorações do bicentenário das independências latino-americanas.
Já Bruno Flávio Lontra Fagundes compara as concepções de instrução, educação e sentimento nacionais nos Brasis imaginados de José Veríssimo e de Guimarães Rosa. Tratam-se não só de dois períodos históricos bastante distintos, mas de autores com formação diferenciada. O sociólogo José Veríssimo publicou A educação nacional em 1890, enquanto Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, data de 1956. O ensaio chama atenção para temáticas em comum, apesar da diferença temporal e de formação dos autores, demonstrando a riqueza da abordagem comparativa também nestes casos. Mesmo levando-se em conta que, no caso em questão, Rosa havia lido e anotado a obra de Veríssimo, o foco de Fagundes é na permanência, apesar das diferenças, da temática da instrução e da educação (diferentes para ambos) em sua relação com a criação de uma comunidade imaginada, de um Brasil. Em Grande Sertão, o velho Riobaldo conversa com um “doutor” da cidade que talvez venha a fazer algum sentido em sua história. Na conversa, fica claro o diálogo de Rosa com uma significativa parte do pensamento social brasileiro. Veríssimo, por sua vez, considera a literatura como a expressão mais geral e segura do sentimento de um povo. Ou seja, não existe pura ficção, assim como não existe pura “realidade”.
A relação da literatura com uma “nação imaginada” ou idealizada é também o tema central do ensaio do crítico literário Dernival Ramos. O autor mostra como a narrativa literária pode dar vazão a projetos de modificação do mundo real. Os romances do angolano Pepetela – considerado um dos mais importantes escritores contemporâneos angolanos e da língua portuguesa -, são excelentes exemplares da importância das narrativas literárias no processo de construção das nações. O historiador e crítico literário Dernival Ramos nos mostra isto no caso de Angola através da análise de três romances de Pepetela: Mayombe (2004), Lueji: o nascimento de um Império (1997) e A geração da utopia (2000). Eles abordam o complexo processo de construção da identidade nacional no contexto da descolonização da África onde constituíram, após a independência, “Estados sem nações”. Segundo ele, os principais obstáculos seriam os tribalismos e a visão limitada das elites. A leitura da análise que ele faz dos romances e do contexto da independência angolana lembram problemas enfrentados pelos estados latino-americanos mais ou menos 130 anos antes.
Em “A imagética jesuítica em zona de contato” do historiador Leandro G. Pinho trata dos textos jesuíticos escritos quando das primeiras viagens ao Brasil no século XVI, chamando atenção para a forte presença de referências a aspectos naturais tais como fauna e flora, mas também para o estilo literário de suas cartas. Nestes primeiros encontros com homens e natureza são diferentes, teriam emergido situações similares ao que Mary L. Pratt denominou como / a / uma “zona de contato”, ou seja, locais de encontro / choque entre culturas diferentes. Leandro explora, inspirado em Chartier, a teia existente nos textos jesuíticos entre a “real” impressão do Novo Mundo e a tradição literária na qual foi formada, mostrando a necessidade de adaptações, ou seja, de releitura do referencial europeu em função da nova realidade circundante.
O artigo da historiadora Patrícia Souza de Faria sobre literatura espiritual e história dos franciscanos no Oriente lida, como o de Leandro Pinho, com uma literatura religiosa que se propunha a ser documental, ou seja, a retratar, da forma mais fiel possível, as realidades vistas e vivenciadas e, claro, os progressos (avanços) proselitistas alcançados. A autora atenua a tese de que no encontro com outros mundos, os jesuítas foram os monopolizadores da evangelização. Na Índia, por exemplo, os franciscanos foram os primeiros a chegar e tiveram forte atuação, da qual resultou uma importante produção literária. Mas, embora o número de jesuítas e franciscanos no Oriente fosse próximo, demorou bem mais para que as obras dos capuchinos fossem publicadas do que as dos jesuítas. Dentre esta literatura franciscana, ela destaca os escritos de frei Jacinto de Deus (1612-1681) que, na qualidade de representante da coroa portuguesa no Oriente, escreveu também sobre o que se convencionou chamar literatura de aconselhamento a príncipes, na qual se destacou, na mesma época, o jesuíta português Antonio Vieira.
Ainda falando de Oriente e do encontro com outros mundos, o ensaio da historiadora Vera Chacham nos faz pensar no quanto o exotismo do Levante, para nós ocidentais, pode e deve ser contextualizado. Ela nos introduz na visão de Alphonse de Lamartine que, no início da década de 1830, ilustra como se modificou o olhar exótico do europeu sobre a narrativa de viagens do começo do século XIX, vista como uma forma de expressão da cultura histórica do período, pois os valores – pictóricos e estéticos, mas também éticos – atribuídos ao Oriente muçulmano começam a ser vistos como aqueles que teriam sido perdidos pelo Ocidente. Na Idade Média, esclarece ela, o ódio ao muçulmano não era acompanhado por tal curiosidade por sua cultura. O texto de Lamartine pode então ser analisado como um novo tipo de narrativa de viagem que se vale muito mais do que as anteriores, especialmente a iluminista, do recurso à literatura. Ilustra uma forma de aproximação entre as duas formas de escrita na primeira metade do século XIX.
Uma instigante sugestão para os interessados pela abordagem histórica que se ampara na literatura é o recém lançado Matar para não morrer: a morte de Euclides da Cunha e a noite sem fim de Dilermando de Assis (2009), de Mary Del Priori, no qual a historiadora reconstitui não somente a biografia de Euclides da Cunha, mas a da família Cunha, envolvendo várias passagens de traições e rearranjos matrimoniais. O resenhista Francisco das Chagas Silva Souza enfatiza o quão bem a autora consegue integrar a história das famílias de Euclides e de Dilermando com o tempo em que se passa, bem como dialogando intensamente com a literatura, especialmente com a literatura de gênero. Mas, no caso em questão, para chamar atenção para um aspecto polêmico e pouco tratado: o sofrimento que o machismo causa também nos homens, e não somente nas mulheres.
Entre os artigos de fluxo contínuo, o leitor encontra o da historiadora Fernanda Aparecida Domingos Pinheiro, que analisa o funcionamento da justiça colonial em Mariana nas contendas em torno da obtenção e do usufruto da liberdade, comparando dois períodos históricos: de 1750 a 1769 e de 1850 a 1869. Por fim, novamente um texto que aborda colônias africanas, mas no caso, o historiador Reinaldo Guilherme Bechler propõe-se a demonstrar, baseado em fontes primárias inéditas, como o III Reich alemão lidou com a epidemia de lepra que se alastrou pela região em fins do século XIX e início do XX.
Notas
1. watt, ian. mitos do individualismo moderno. fausto, don quixote, dom juan, robinson crusoe. rio de janeiro: zahar, 1997.
2. stam, robert. “teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade” in: ilha do desterro. florianópolis, n.51, pp. 19-53, junho-julho de 2006.
3. morse, richard m. “th e multiverse of latin america identity (1920-1970)” in: bethel, leslie. ideas and ideologies in twentieth century latin america. cambridge: cambridge university press, 1996.
Beatriz Helena Domingues – Professora do Departamento de História da UFJF e organizadora deste dossiê.
DOMINGUES, Beatriz Helena. Editorial. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.17, n.1, 2011. Acessar publicação original [DR]
Patrimônio Histórico e Cultural / Locus – Revista de História / 2010
O presente número da Revista Locus apresenta um dossiê sobre o patrimônio cultural e a sua preservação, tema extremamente caro à nossa época, na qual situações que vão se consolidando historicamente, como aquelas referentes à globalização e ao desenvolvimento econômico, encontram-se cada vez mais interpeladas por novas situações a elas impostas pelas redes sociais e por questões / movimentos referentes às identidades / diversidades, à democracia participativa e, mesmo, à sustentabilidade, redimensionada a partir dessas outras questões explicitadas.
A importância do citado tema pode ser exemplificada pelo intenso afluxo de contribuições que chegaram à revista, que antecipam a necessidade / possibilidade de estendermos o mesmo tema por outro(s) número(s) da publicação. Dentre os artigos enviados, optamos por escolher, primeiramente, aqueles que traziam novas abordagens sobre uma dimensão mais usual deste patrimônio cultural: a edificada, vista aqui em sua abrangência urbana.
O dossiê é iniciado com o denso e instigante artigo do arquiteto espanhol Joaquin Ibáñez Montoya, professor da Escuela Técnica Superior de Arquitectura da Universidad Politécnica de Madrid que, desde 1979, exerce o cargo de “arquiteto-conservador” da Catedral de Cuenca, Patrimônio Cultural da Humanidade. Em seu texto, Montoya demonstra a complexidade necessária na preservação deste importante monumento, preservação na qual se torna fundamental o diálogo entre “Matéria, Memória e Método” e onde outros dois conceitos assumem papel fundamental: História e Paisagem. História da própria constituição / construção do monumento em si, como também das diversas intervenções pelas quais passou; “paisagem memorável” urbana e cultural, por sua vez, cuja construção histórica tem, no citado monumento, o seu eixo gerador.
O artigo seguinte, de Eugenia Maria Azevedo Salomão, nos dá um painel informativo e crítico sobre as políticas de preservação instituídas no México desde os fins do século XIX e, mais especificamente, aquelas do centro histórico de Morelia – que, desde 1991, foi designado como Patrimônio Mundial pela UNESCO – problematizando as ações públicas voltadas para uma usual solução de sustentabilidade econômica com a necessária participação popular.
O próximo texto, de Flávio de Lemos Carsalade, aponta a importância dos centros históricos urbanos – entendidos aqui em sua integralidade física, social e simbólica – como fundamentais naquilo que o autor denomina “mudanças de paradigma” do planejamento urbano que vem acontecendo nas últimas décadas, citando, como exemplo dessas mudanças, o caso de Belo Horizonte.
Leonardo Barci Castriota e equipe apresentam, inicialmente, uma contextualização histórica e teórica da noção de conservação integrada, enfocando aquilo que ela traz de contribuição para a preservação do patrimônio urbano ao associá-la efetivamente ao planejamento territorial e ao desenvolvimento econômico e social. A seguir, demonstram a sua aplicabilidade nas políticas públicas em solo brasileiro, consolidada com o Programa Monumenta e com o seu sucessor, o PAC Cidades Históricas, concentrando-se na elaboração deste último no município mineiro de Sabará.
Depois de nos determos especificamente em questões referentes à preservação do patrimônio cultural urbano, vamos com Célia Borges tentar entender como se dá a própria formação de boa parte daquilo que hoje é reconhecido como patrimônio cultural religioso brasileiro, a partir da identificação dos espaços e das construções dos lugares sacros no período colonial, lugares estes nascidos da própria necessidade de manutenção de uma identidade religiosa por parte dos colonizadores e que vão servir, inclusive, de eixos geradores dos próprios espaços urbanos.
Concluindo o dossiê, Ana Maria Mauad nos leva ao norte do Brasil, discorrendo, a partir da produção fotográfica daquela região, sobre a importância da própria identificação e preservação deste patrimônio fotográfico como “suporte da memória” fundamental para o próprio entendimento da dinâmica histórica e social da região.
A revista é complementada por dois artigos e duas resenhas. O primeiro destes artigos, de Marcos Lobato Martins, embora não pertencente ao citado dossiê, de alguma forma o tangencia, pois ao discorrer sobre “o comércio de abastecimento na cidade de Diamantina”, apresenta como eixo de sua análise a história do Mercado Municipal daquela cidade, edifício que, como o próprio autor destaca, é um dos seus principais monumentos.
O artigo de Flávio H. Dias Saldanha, por sua vez, trata do Apresentação recrutamento militar para a Guerra do Paraguai, enfocando com prioridade a província de Minas Gerais, o que assegura originalidade ao texto, principalmente ao tratar do papel da Guarda Nacional no processo, temas sobre os quais a historiografia pouco visita.
Completam a revista duas resenhas, uma escrita por Diogo da Silva Roiz, que trata da construção de identidades elaboradas pelos gregos da Antiguidade, no livro de François Hartog, “Memória de Ulisses”. E a segunda por Vantuil Pereira, que discute a obra E o Vale era o escravo, de Ricardo Salles, que analisa a ordem escravista na região de Vassouras (RJ) no contexto do Império.
Não poderia concluir a apresentação sem agradecer o enorme empenho da editora-chefe desta publicação, a professora Cláudia Viscardi, que com o seu esforço cotidiano contribuiu decisivamente para a feliz conclusão do presente número.
Marcos Olender – Professor Adjunto do PPGHIS da Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA. E-mail: olender@terra.com
OLENDER, Marcos. Editorial. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.16, n.2, 2010. Acessar publicação original [DR]
Ideias e Experiências Autoritárias no Brasil / Locus – Revista de História / 2010
Este é um número especial para a Locus, Revista de História. A Revista está completando 15 anos em 2010. Tal marca não se adquire facilmente. Resulta do trabalho e do comprometimento daqueles que estiveram à frente de sua edição; do apoio institucional recebido; das agências de fomento que garantiram o financiamento parcial de muitas edições; da ação de nossos Conselhos (editorial e consultivo), que sempre trabalharam com competência na condição de “guardiões” da qualidade de nossa Revista; daqueles pesquisadores que confiaram no veículo e divulgaram nele valiosos resultados de suas pesquisas; e, sobretudo, dos leitores que sempre nos acompanharam nesta trajetória, sem os quais a Revista não teria sentido. A todos, que fizeram parte desta jornada, aproveitamos a oportunidade para agradecer.
Ao longo desses quinze anos completaremos a edição ininterrupta de trinta exemplares de nosso periódico. Nesta data, que para nós é motivo de muita comemoração, apresentamos aos leitores que nos acompanham duas importantes modificações. A primeira delas está relacionada à adaptação da Revista aos novos instrumentos midiáticos que têm marcado a veiculação de informações no Brasil e no mundo. A Revista terá a sua edição em papel limitada a poucos exemplares, os quais serão destinados às bibliotecas e arquivos, aos autores dos artigos, aos membros de nossos Conselhos e ao corpo de assinantes. Aos demais leitores a Revista será disponibilizada exclusivamente on line no sítio do SEER-Ibict, instrumento valioso de divulgação de periódicos eletrônicos no Brasil. A segunda mudança consiste na ampliação dos meios de interatividade entre os leitores e a Revista, através da presença do veículo nas mais populares redes sociais virtuais no Brasil, tais como o twitter (http: / / twitter.com / locusufj f), o orkut e o facebook, além da já consolidada página na rede (www.ufj f.br / locus), de visual recentemente modificado. Os interessados poderão nos acompanhar, recebendo informes sobre a Locus.
Este é mais um número especial de nossa Revista. Não só pelas mudanças que inaugura, mas pelo conteúdo que disponibilizamos aos leitores. Trata-se de uma reflexão em torno das ideias e das experiências autoritárias, realizada ao longo de dois eventos conjuntamente realizados entre os dias 10 e 13 de maio, de 2010, na Universidade Federal de Juiz de Fora: o IV Encontro Nacional de Pesquisadores do Integralismo e o III Simpósio do Laboratório de História Política e Social (LAHPS), equipamento de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em História da UFJF. Ao longo desses breves dias foram apresentadas cento e quatorze comunicações (a maior parte delas publicadas eletronicamente no sítio do Laboratório (www.ufj f.br / lahps), realizadas sete conferências, ministrados seis mini- cursos e lançados dez livros e revistas, o que demonstrou um grande vigor da produção científica na área. As atividades foram direcionadas a um público superior a quatrocentos participantes, o que atestou igualmente forte interesse pelos temas abordados ao longo do evento.
Dadas as dimensões apresentadas, a Locus abre espaço para a publicação das conferências e mini- cursos apresentados no referido evento, como um meio de tornar pública a valiosa discussão empreendida por especialistas renomados da área. O dossiê “Ideias e Experiências Autoritárias no Brasil” encontra-se dividido em três modalidades de publicação: conferências transcritas, conferências em formato de artigos e resenhas de obras sobre o tema. Na primeira modalidade enquadram-se os textos do Prof. Gilberto Vasconcellos, cuja obra “Ideologia Curupira”, editada há trinta anos, recebe uma releitura do próprio autor. No texto os leitores podem acompanhar o relato de um pesquisador maduro sobre sua obra de juventude, suas principais influências, diálogos estabelecidos, relatos de acontecimentos de época, entre outras considerações que compõem um texto além de estimulante, muito divertido de ser lido. O que seu autor não ressaltou, por modéstia natural, foi o impacto que a obra teve sobre os pesquisadores do tema, até hoje reconhecida como uma das mais importantes referências para o estudo do fenômeno Integralista no Brasil. Ainda na primeira modalidade foi incluída a conferência do Prof. Rodrigo Patto S. Motta, conhecido especialista da temática anticomunista. Em sua conferência, o autor enfocou com prioridade o anticomunismo sob o olhar da polícia política e dos demais órgãos de inteligência e informação do regime militar brasileiro. No texto o autor fez igualmente uma reflexão sobre o contexto de produção de seu primeiro trabalho sobre o anticomunismo (Em guarda contra o perigo vermelho), tese de doutorado concluída em 2000 e publicada dois anos mais tarde, refletindo sobre as pesquisas que envolveram o pensamento e a ação dos grupos de direita no país. Suas experiências pessoais, desde a escolha do tema até as opções teóricas construídas, constituem-se em importante reflexão para pesquisadores mais jovens, interessados pelo campo.
Em seguida apresentamos aos leitores seis artigos que espelham pesquisas sobre o tema do autoritarismo no Brasil, abarcando um período que vai desde o final do Império até os dias de hoje. Os professores Diogo T. Souza e Fernando Perlatto abrem esta segunda modalidade de artigos com um texto que discute a produção intelectual brasileira, divulgada ao longo das últimas décadas do Império, com o fim de analisar seu potencial normativo, formador de opinião e modelador de uma nova sociedade. Ressalta-se a vinculação dessas ideias à formação do pensamento autoritário e conservador no Brasil. O segundo texto é o do Prof. Alexandre Pinheiro Ramos, no qual o autor faz uma análise original do Integralismo, a partir das fotografias publicadas na Revista Anauê, no que tange a seus aspectos sociais e culturais. O terceiro artigo, de autoria do Prof. Gilberto Calil, trata especificamente das ambíguas relações estabelecidas entre os integralistas e o governo Vargas, que envolviam a oposição e o colaboracionismo. Em seguida apresentamos ao leitor o quarto artigo, de autoria da Profa. Gizele Zanotto. Nele a autora faz importante reflexão sobre uma das organizações mais destacadas na defesa dos valores conservadores no Brasil, a TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade). Aborda as culturas políticas compartilhadas por seus militantes, seus métodos e suas relações com a sociedade contemporânea. O quinto artigo conta com a autoria de três pesquisadores, os professores Vera Lúcia Vieira, Nilo Dias de Oliveira e Jussaramar Silva. Dedicado à análise do funcionamento da complexa rede de segurança nacional montada nas últimas décadas do século XX, o artigo se fundamenta em rica documentação reunida nos acervos do Dops. Por fim, o sexto artigo, de autoria da Profa. Márcia Regina da S. R. Carneiro, faz uma análise dos movimentos e organizações reunidos em torno da doutrina do sigma que existem atualmente no Brasil, mapeando seus núcleos e refletindo sobre a dinâmica de suas atuações.
A terceira modalidade que encerra este dossiê é composta por duas resenhas de obras recentemente publicadas acerca da temática autoritária no Brasil. O Prof. Leandro Gonçalves apresenta ao leitor a obra de João Fábio Bertonha, Bibliografia Orientativa sobre o Integralismo (1932-2007) e o Prof. Mateus Almeida nos apresenta obra conjunta, organizada por Giselda Brito Silva e outros autores, intitulada História das Políticas Autoritárias: Integralismos, Nacional-Sindicalismo, Nazismo e Fascismos.
Para além do dossiê a Revista apresenta aos leitores dois outros artigos. O primeiro, de autoria do Prof. Dorval do Nascimento, nos conduz a uma viagem pelo interior de Santa Catarina, através dos cartões postais que retrataram Criciúma ao longo de boa parte do século XX. Através de uma análise sensível das imagens, somos levados a conhecer o processo de construção das identidades urbanas da região. O segundo artigo, de Daniela Magalhães da Silveira, busca estabelecer uma interessante relação entre os intelectuais e os cientistas com as questões de gênero, sobretudo em relação ao papel da mulher na família, em contos de Machado de Assis publicados no Jornal das Famílias, no Rio de Janeiro.
Acreditamos que este dossiê traga relevante contribuição para os pesquisadores de temas relacionados ao conservadorismo e aos grupos normalmente categorizados como “de direita”, objeto nem sempre muito caro aos historiadores mais maduros, mas que desperta progressivo interesse das gerações mais jovens. Esperamos nós que tal interesse esteja se dando com o objetivo de conhecerem melhor as experiências autoritárias para que valores como os da democracia, liberdade, tolerância e da igualdade sejam cada vez mais compartilhados e consolidados na sociedade brasileira.
Cláudia Maria R. Viscardi – Editora-Chefe
VISCARDI, Cláudia Maria R. Editorial. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.16, n.1, 2010. Acessar publicação original [DR]
Saúde, Profissões, ciências e políticas públicas / Locus – Revista de História / 2009
Mundos do Trabalho e Identidades / Locus – Revista de História / 2009
O Programa de Pós-Graduação em História e o Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora apresentam com satisfação a 28ª edição da Locus, correspondente ao Volume 15, Número 1 da revista. O temário escolhido para o dossiê presente neste número é Mundos do Trabalho e Identidades.
Os dois primeiros artigos do dossiê focalizam diferentes dimensões da legislação trabalhista e social brasileira. Em 1937: o Brasil, apesar do Fascismo: a legislação do Estado Novo e a do Fascismo italiano sobre o trabalho, o contrato coletivo e o salário, Mário Cleber Martins Lanna Junior põe em questão uma relação firmada na literatura sobre a legislação trabalhista, qual seja a suposta identidade com a Carta del Laboro fascista. O autor aponta as diferenças contextuais que envolvem o aparecimento das duas legislações, relacionadas ao estágio de desenvolvimento das duas sociedades, bem como as dessemelhanças dos próprios dispositivos legais, particularmente referidas às características do ordenamento corporativo aos quais se associam e ao caráter mais acentuadamente protetivo da CLT brasileira.
Em “Quem tem ofício tem Benefício”: Legislação protetiva na ótica sindical sob a República trabalhista, Valéria Lobo analisa a presença, na agenda sindical relativa à legislação social, durante a década de 1950 no Brasil, de formulações dirigidas aos excluídos do mercado formal de trabalho, inclusive os desempregados. Seu artigo observa que embora com pequena incidência, consoante com o predomínio dos mecanismos da cidadania regulada, que circunscrevia o acesso aos benefícios e serviços da política social brasileira no período, tais formulações dispõem de incidência crescente, revelando a elevação das preocupações do movimento sindical com os processos de exclusão que acompanham a trajetória capitalista brasileira.
Os três artigos que se seguem abordam dilemas associados à formação da identidade de trabalhadores ao final do século XIX, e início do século XX, com foco na imprensa operária e na composição étnica de contingentes diversos de trabalhadores.
Irmãos de arte: trabalho, identidade e imprensa em São Paulo no século XIX de Jefferson Cano, analisa o discurso de um jornal paulistano do século XIX, publicado por um grupo de tipógrafos. O artigo observa que o objetivo de construção de uma identidade operária, buscado pelo jornal, fracassa em função dos significados sociais do conceito de classe com o qual opera.
André Rosemberg apresenta-nos uma análise do Corpo Policial Permanente de São Paulo no final do Império. O artigo Para quando o calo aperta – os trabalhadores-policiais do Corpo Policial Permanente de São Paulo no final do Império salienta de que forma, ao final do século XIX, concomitante à ampliação da presença de imigrantes em território paulista, o corpo policial apresenta-se como uma alternativa de ocupação para uma importante parcela da população pobre, formada principalmente de homens, brasileiros e não-brancos.
Oswaldo Mário Serra Truzzi e Rogério da Palma realizam um levantamento do perfil étnico-racial e ocupacional das famílias que compunham a mão-de-obra dos latifúndios cafeeiros de São Carlos durante o início do século XX. O artigo Identidades e mercado de trabalho: uma análise do perfil étnico-racial e ocupacional dos latifúndios cafeeiros de São Carlos (1907) vale-se do recenseamento municipal realizado no ano de 1907 no município de São Carlos, São Paulo, para sugerir determinadas relações entre a conformação do mercado de trabalho e a (re)construção de identidades e de padrões de sociabilidade nesse contexto específico.
Mais três artigos discorrem sobre diferentes experiências de lutas e de sociabilidade entre trabalhadores de diversas regiões, períodos e categorias profissionais, no Brasil após 1930, considerando o impacto que produzem na formação de suas identidades.
Paula Garcia Schneider analisa os movimentos grevistas dos trabalhadores de Porto Alegre em 1945, reagindo à carestia que atingia a sociedade brasileira desde 1942. Seu artigo, Trabajadores, carestía de vida y huelga general. El caso de Porto Alegre en 1945, sugere que os dois processos têm peso importante na formação da classe trabalhadora gaúcha no período.
Juçara da Silva Barbosa de Mello analisa como o compartilhamento de valores solidários e certas experiências comuns participam na constituição da identidade dos trabalhadores têxteis numa pequena localidade no Rio de Janeiro entre 1930 e 1960. Seu artigo, Identidades operárias: hierarquias sócio- profissionais e valores solidários firmados a partir da centralidade do trabalho fabril, sustenta que os aspectos indicados acima não anulam, mas sobrepõem-se, à diversidade de posições ocupadas pelos trabalhadores no universo fabril e em seu cotidiano.
Memória(s) e Identidade(s) nos trilhos: História de Ferroviários brasileiros em tempos de neoliberalismo, de Andréa Casa Nova Maia, analisa como os ferroviários da Rede Ferroviária Federal S.A., entre os anos de 1957 e 1996, até os dias de hoje, em Minas Gerais, presenciam as mudanças e os novos desafios do capitalismo no século XXI. A partir das formulações de E.P. Thompson, discute, então, a luta por direitos e as formas de organização dos ferroviários mineiros no período indicado.
O dossiê proposto nesta revista completa-se com mais dois artigos que, embora não abordem temas diretamente vinculados aos mundos do trabalho, focalizam dilemas associados à formação de identidades entre imigrantes em duas situações diversas.
Em La Contruccíon de la Italianidad en Argentina (Luján, Provincia de Buenos Aires, 1870-1920), Dedier Norberto Marquiegui analisa os processos de formação de identidades entre os italianos na província argentina de Luján, num período de intenso fluxo imigrantista. O artigo focaliza a inserção social dos imigrantes, bem como o papel desempenhado pelas associações e elites italianas em tais processos.
Endrica Geraldo analisa a política repressiva contra os trabalhadores estrangeiros no Brasil durante o Estado Novo. Em O combate contra os “quistos étnicos”: identidade, assimilação e política imigratória no Estado Novo, observa que, no contexto da Segunda Guerra Mundial, os debates sobre assimilação e miscigenação seriam influenciados também pela classificação dos trabalhadores imigrantes como uma ameaça militar.
O presente volume conta, ainda, com o artigo Território da doença e da saúde: o Vale do Rio Doce frente ao panorama sanitário de Minas Gerais (1910-1950), de Jean Luiz Neves Abreu e Maria Terezinha Bretas Vilarino, que aborda a presença do Vale do Rio Doce no panorama sanitário de Minas Gerais entre as décadas de 1910 e 1950. A partir da análise da atuação do poder público na área da saúde em Minas Gerais, o artigo salienta como a região do Rio Doce se inseriu tardiamente no projeto do saneamento do Estado.
Esta edição da Locus encerra-se com a resenha de Claúdia Maria Ribeiro Viscardi sobre o livro de Allan Kidd initulado Society and the Poor in XIX Century. Em que pese ser uma publicação editada há mais de 10 anos, trata-se de uma obra virtualmente desconhecida do público brasileiro, que tem, portanto, uma oportunidade de estabelecer com ela um primeiro contato.
Ignacio José Godinho Delgado – Editor
DELGADO, Ignacio José Godinho. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.15, n.1, 2009. Acessar publicação original [DR]
Imigração Italiana / Locus – Revista de História / 2008
De 26 a 28 de outubro de 2007, o Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora, em parceria com a Oscip PERMEAR (Programa de Estudos e Revitalização da Memória Arquitetônica e Artística) e com a Associação Ponte Entre Culturas – MG, realizou o III Seminário Sobre Imigração Italiana em Minas Gerais, dando continuidade ao projeto iniciado por esta última entidade, de realização anual de um encontro que levantasse e discutisse os aspectos e as questões concernentes à citada imigração naquele estado brasileiro.
Este Seminário especificamente, sob a minha coordenação acadêmica secundada pela professora Valéria Ferenzini Leão, tentava dar um novo rumo ao evento, estruturando-o em eixos temáticos (patrimônio e identidade cultural; organização e análise de acervos e fontes; dimensão política e econômica da imigração italiana; relações bilaterais entre Brasil e Itália hoje), bem como articulando as experiências locais de imigração com recortes mais abrangentes (regionais e nacionais) e com as discussões teóricas mais atuais, procurando integrar o universo institucional (acadêmico e cultural) com aquele vivenciado por gerações de descendentes destes mesmos imigrantes.
Para a viabilização e o sucesso do evento, foi fundamental o apoio da FAPEMIG, do Consulado da Itália em Belo Horizonte e da sua Agência Consular em Juiz de Fora, bem como de outras instituições representativas dos imigrantes e de seus descendentes [1], da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA) de Juiz de Fora e do Museu de Arte Moderna Murilo Mendes da UFJF.
A presente publicação apresenta algumas das intervenções realizadas neste Seminário, acrescidas por outros textos que contribuem, significativamente, para os estudos da imigração italiana na América Latina e, mais especificamente, no nosso país.
Divide-se em três partes. Abre a primeira, na qual são abordados diversos temas referentes à imigração italiana, representando os quatro eixos temáticos citados acima, o texto referente à própria conferência inaugural do evento, proferida pelo historiador genovês Federico Croci. Nele, intitulado de “O Chamado das Cartas”, somos apresentados à correspondência trocada entre os imigrantes e seus familiares (mais especificamente as ”cartas de chamada” e ás diversas questões e temas (como das características e dos intercâmbios lingüísticos e culturais e sua dimensão social) dos quais estas cartas se constituem em fundamentais testemunhas e, mesmo, sujeitos históricos.
A seguir, o professor Luigi Biondi realiza um estudo comparativo entre as características políticas da imigração italiana em Minas Gerais e em São Paulo, enfatizando não só as características que as assemelham e as diferenciam mas, também, o papel destes militantes na própria construção de uma identidade de classe, nos primórdios da República em nosso país, bem como daquilo que denomina de “identidade transnacional”.
Os sociólogos italianos Paola Cappellin e Gian Mario Giuliani questionam a própria influência assumida pelas origens italianas de parte do empresariado brasileiro (da sua “italianidade”) nas suas condutas sócio- culturais e econômicas. E fechando esta sessão, Júlia Wagner Pereira e José Mauro Matheus Loureiro demonstram como que, historicamente, foi se ampliando o universo de abrangência das ações do órgão responsável pela salvaguarda daquele patrimônio cultural identificado como de importância nacional (o IPHAN), permitindo que fossem contemplados, bem recentemente, os patrimônios culturais dos imigrantes e, mais especificamente, daqueles provenientes da “península itálica”.
A segunda parte destaca um tema presente em boa parte dos estudos do fenômeno do deslocamento massivo dos italianos para o Brasil e, principalmente, da sua acomodação em nosso solo e das relações mantidas com o seu país de origem: o do fascismo e da sua repercussão fora da Itália. Esta parte se inicia com o artigo, gentilmente cedido para esta revista, do historiador italiano Angelo Trento, um dos principais estudiosos deste fenômeno, e aborda a visão expressa nos relatos dos viajantes italianos à América Latina durante o período fascista, visão esta estruturada pela ideologia do citado regime. Para ilustrar e aprofundar a demarcação desta presença política e ideológica entre os imigrantes, segue-se um estudo de caso, apresentado no III Seminário, sobre a Casa d’Itália de Juiz de Fora, distribuído nos textos da historiadora Valéria Ferenzini Leão e do arquiteto e historiador Marcos Olender. Enquanto Valéria preocupa-se mais em descrever a dimensão político-social assumida pela identificação, desde a sua construção, na cidade de Juiz de Fora, Marcos Olender aprofunda o estudo da expressão arquitetônica desta presença, relacionando-a com a sua matriz estética-ideológica. Conclui a seção o artigo de Rosane Siqueira Teixeira, mapeando esta presença fascista e as suas imbricações no município de Araraquara.
Complementando o dossiê, abre-se o espaço para estudos sobre outras imigrações, abordando desde “A presença britânica na Corte Imperial”, como explicita o próprio título do artigo da historiadora Sylvia Ewel Lenz até as identificações políticas assumidas pelos imigrantes judeus no Brasil, estudo desenvolvido por Sydenham Lourenço Neto.
Este número da Locus completa-se com a resenha de Luciana Verônica sobre o livro Revolução e Democracia (1964…), organizado por Daniel Aarão Reis e Jorge Ferreira.
Concluindo, gostaria de agradecer ao professor Luigi Biondi, que realizou o contato com o professor Angelo Trento e nos possibilitou contar com a sua significativa contribuição. Agradecimentos também muito especiais à historiadora Heliane Casarin, entusiasta da história da imigração italiana e que sempre mostrou-se disponível a nos auxiliar e que, junto com Valéria Ferenzini (a quem estendo, obviamente, a gratidão) foram responsáveis pela exposição que abriu o evento; à arquiteta Mônica Cristina H. Leite Olender, não só pelo auxílio na revisão de alguns textos, como pela sua participação efetiva na Coordenação Geral do III Seminário, principalmente durante a sua realização, permitindo o seu bom desenvolvimento e sucesso e, por motivos afins, ao professor Cássio Fernandes, que do alto da generosidade que o caracteriza, ajudou decisivamente na viabilização deste evento e, mesmo, da publicação que, agora, disponibilizamos a todos.
Boa leitura!
Nota
1. Como o COMITES (Comitato degli Italiani all ‘Estero), a ACIBRA-MG (Associação Cultural Ítalo-Brasileira de Minas Gerais), a AER / MG (Associazone dellÉmilia Romagna, a Associação Cultural Emilia Romagna da Zona da Mata, Minas Gerais e o jornal eletrônico oriundi.net.
Marcos Olender
Organizador do dossiê
OLENDER, Marcos. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.14, n.2, 2008. Acessar publicação original [DR]
História Quantitativa e Serial / Locus – Revista de História / 2008
No ano de 2000, articulou-se no âmbito da Associação Nacional de História (ANPUH) a constituição do Grupo de Trabalho de História Quantitativa e Serial. O GT tinha por objetivo promover a discussão sobre o uso de metodologias quantitativas na História em seus diferentes campos de investigação, como a História Econômica, História Demográfica História Social e História Política. Buscava-se, naquele momento, intensificar os contatos interdisciplinares da História, especialmente junto à Estatística, à Demografia, à Economia, à Ciência Política e à Sociologia. Exatamente com o intuito de iniciar as atividades do GT, realizou-se, entre os dias 30 de novembro e 1º de dezembro de 2000, nas dependências do Grande Hotel de Ouro Preto, o I Seminário de História Quantitativa e Serial. O Seminário viabilizou-se graças à parceria entre a Rede-IPEA, a ANPUH – Núcleo Regional de Minas Gerais, a Universidade Federal de Ouro Preto e a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. O objetivo do evento foi o de apresentar, em quatro sessões temáticas, pesquisas que estivessem empregando ou metodologias quantitativas ou fontes seriadas. O formato proposto pretendeu tornar visível a produção mais recente em cada um dos temas selecionados, mostrando suas articulações com a produção bibliográfica e com os avanços metodológicos da área. Paralelamente, objetivou-se colocar em contato pesquisadores com formações distintas e em diferentes estágios de formação profissional, a fim de permitir o surgimento de parcerias que pudessem tornar-se fecundas. O resultado deste primeiro encontro foi o livro História Quantitativa e Serial no Brasil: um balanço (Goiânia: ANPUH-MG, 2001).
Em 2003 foi levada a efeito a segunda edição do Seminário, com o mesmo formato, em Belo Horizonte, na PUC-MG.
A edição dos textos neste dossiê temático tem origem numa perspectiva e formato algo diferente: considera-se propício o momento para iniciar um balanço da produção histórica mais diretamente vinculada às metodologias quantitativas. Advirta-se, porém, que não se trata de uma reunião para se proceder apenas a um balanço historiográfico, mas sim, passar em revista o emprego mesmo das metodologias quantitativas e / ou fontes seriadas, e, neste particular, com certa ênfase nos abusos.
Este formato foi em grande medida uma resposta a uma demanda crescente de alunos de graduação e de pós-graduação interessados em desenvolver pesquisas e dispor de referências teóricas para os avanços mais recentes neste campo. Talvez a resposta mais contundente a esta demanda seja o fato de conseguirmos reunir um grupo de pesquisadores de diferentes instituições do país e do exterior que há algum já vinham se debruçando exatamente sobre o tema central da edição ora proposta.
Esperamos estar com isto contribuindo para a difusão da História Quantitativa e Serial entre nós e, em conseqüência, para a construção de bases consistentes para um debate em torno dos usos – e melhor, talvez – dos abusos que dela se podem fazer.
Abre o dossiê o texto de Iraci del Nero da Costa, em que expõe sua opinião sobre algumas das feições e funções assumidas pela ciência da História no correr do tempo: de simples registro de feitos relevantes passou a desenvolver sua atribuição “revolucionária” na medida em que operou de sorte a revelar à humanidade suas potencialidades em termos de construção consciente de seu futuro.
Richard Graham dá um excelente testemunho de sua experiência com as cifras. O autor salienta o dilema enfrentado por aqueles que, diante da escassez de dados numéricos, tem como objeto de estudo épocas em que a quantificação não era tão comum como hoje: deve-se procurar dados para responder a uma questão, ou seria melhor descobrir primeiro as fontes quantitativas e, então, considerar a que questão os dados poderiam responder? O autor examina as duas alternativas, usando como exemplos, num caso, aspectos da história da família escrava, e noutro, a necessidade de avaliar valores nos inventários post mortem através de várias décadas de inflação.
Já Heitor Pinto de Moura Filho discute os elementos de análise trazidos à tona pela informação quantitativa na História identifica, assim como seus contextos, e chamando à discussão certas dificuldades na interpretação às vezes esquecidas pelos historiadores quando procedem a suas análises a partir de números.
Luiz Paulo Ferreira Nogueról faz uma incursão no campo da História Econômica Institucional e da Cliometria, escolas que propiciaram os principais caminhos para pensar a História Econômica nas academias. O autor apresenta alguns dos fundamentos teóricos de ambas, bem como suas origens e limitações.
Em seu artigo, Carlos de Almeida Prado Bacellar aponta para a necessidade de uma crítica cuidadosa das listas nominativas de habitantes, que geralmente têm sido tratadas com um certo descuido metodológico. Embora constituam um conjunto documental inestimável, principalmente para a capitania de São Paulo, tais fontes devem ser entendidas dentro do contexto da administração portuguesa da época, que impunha recortes explícitos e implícitos no processo de elaboração dessas extensas listagens, com resultados instigantes e de qualidade bastante heterogênea.
Afonso Alencastro Graça, Fábio Carlos Vieira Pinto e Carlos de Oliveira Malaquias discutem os resultados a partir do uso de fontes quantitativas e seriais para os estudos acerca das famílias escravas, mas chamando a atenção para as vantagens do uso da análise comparativa entre as informações contidas em fundos documentais diversos, tais como os inventários post-mortem, listas censitárias e registros paroquiais de batismos e casamentos.
A análise da desigualdade social no Brasil do século XIX com base nas listas nominativas de habitantes da década de 1830 é o tema do artigo de Tarcísio Botelho. O autor emprega o sistema de codificação de ocupações denominado HISCO e aplica uma proposta de classificação a partir da declaração de ocupações.
Por fim, Angelo Alves Carrara sistematiza algumas questões de método relativas à construção de séries de preços, com especial atenção para as possibilidades de estabelecimento de um fator de conversão tanto algumas moedas estrangeiras do período.
Completam este número mais três artigos. Em Complexo Cafeeiro e Estrutura Financeira: Uma Observação sobre a Economia da Zona da Mata de Minas Gerais (1889 / 1930), Anderson Pires busca demonstrar a existência de uma estrutura financeira própria na economia agroexportadora que se desenvolveu na Zona da Mata de Minas a partir de meados do século XIX, destacando o potencial de internalização dos recursos financeiros associados ao funcionamento do mercado nos núcleos urbanos da economia da região. Já Marco Antônio Lopes, em Contra o Direito Divino, focaliza o olhar voltairiano sobre a figura do rei e o espaço de sua atuação na esfera política, de modo a demonstrar que um conjunto significativo da obra literária do autor de Candide esclarece mais sobre as questões relacionadas à história e à política que muitos dos textos que ele escreveu no espírito de historiador. Diogo da Silva Roiz e Jonas Rafael dos Santos analisam algumas das características contidas nos resumos apresentados nas reuniões anuais da SBPC, em A História e a pesquisa histórica na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A revista encerra-se com a resenha de Flávia Franchini, O Araguaia pelos Militares: Imaginários e Barbáries, sobre o livro A Lei da Selva: Estratégias, Imaginário e Discurso dos Militares Sobre a Guerrilha do Araguaia, de Hugo Studart.
Boa leitura
Angelo Alves Carrara
Ignacio Godinho Delgado
Organizadores do volume
CARRARA, Angelo Alves; DELGADO, Ignacio Godinho. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.14, n.1, 2008. Acessar publicação original [DR]
Estado Novo / Locus – Revista de História / 2007
Dimensões da política na História – Estado, Nação, Império / Locus – Revista de História / 2007
Neste número, Locus – Revista de História dá continuidade à publicação de dossiês temáticos e abre espaço para a publicação dos textos apresentados no I Seminário Dimensões da Política na História: Estado, Nação, Império, realizado na UFJF entre 22 e 24 de maio de 2007. Com origem numa iniciativa do programa de pós-graduação desta universidade, em conjunto com seu Núcleo de Estudos em História Social da Política, os trabalhos resultantes deste seminário e aqui publicados retratam um pouco da renovação e da diversidade de um campo de discussões que vem se consolidando e se ampliando nos últimos anos.
O trabalho de Gladys Sabina Ribeiro, proferido como conferência de abertura do evento, focaliza os processos de construção da cidadania e da identidade nacional dialogando com contribuições historiográficas de diferentes linhagens, as quais convergem, em seu texto, para uma abordagem profundamente enraizada na tradição da história social, que substitui a imagem de um Estado demiurgo atuando na formação da nação por uma pluralidade de sujeitos sociais, com necessidades específicas, a partir das quais vão ganhando sentido os conceitos políticos em circulação.
Nesse mesmo sentido, a maneira como as estruturas políticas vão se definindo em consonância com a necessidade de lidar com demandas sociais é o que encontramos nos textos de Andréa Slemian e de Silvana Mota Barbosa. No primeiro, o período compreendido entre a Independência e o Ato Adicional é analisado sob o prisma da institucionalização dos canais de representação política, num processo que conduziria à hegemonia da moderação e ao fechamento das vias legais ao radicalismo. No segundo, a clássica interpretação de Ilmar Rohloff de Mattos sobre a construção do Estado imperial é o ponto de partida para uma reflexão a respeito do caráter assumido pelo parlamentarismo brasileiro no século XIX, demonstrando que, muito além do que possa ser visto como uma instituição lacunar ou imperfeita, encontra-se a relação hierarquizada entre os grupos políticos em disputa.
Da definição da política em seu nível institucional passamos às suas práticas sociais com os trabalhos de Jefferson Cano e Maria Fernanda Vieira Martins. Esta última investiga a trajetória política de um indivíduo reconstruindo as redes sociais em que ele se inseria e mostrando como essas redes podiam definir interesses que, em última análise, se sobrepunham a outras formas de identificação política, como os campos partidários. Já o artigo de Jefferson Cano se detém sobre a construção das identidades políticas, e dos próprios campos partidários, como um processo que ocorre na interação de grupos sociais em torno de questões cujos significados extrapolam os projetos que disputam espaço nas instâncias políticas institucionalizadas.
Por fim, a maneira como se dá a politização de diferentes espaços da sociedade por diferentes sujeitos é o problema que surge nos textos de Elciene Azevedo, Ronaldo Pereira de Jesus e Marco Antonio Cabral dos Santos. No artigo de Elciene Azevedo, esse problema é tratado a partir da atuação do abolicionista Antonio Bento como magistrado, que, ao mover-se nas margens das normas legais, transformava os tribunais numa arena dentro da qual desenrolavam-se os embates em que se testavam as estratégias de construção da liberdade por dentro do direito escravista. Ronaldo Pereira de Jesus enfoca a problemática do associativismo numa abordagem que busca cruzar a experiência dos trabalhadores livres do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX com a crise das políticas de dominação paternalista que marcaram as últimas duas décadas da história da escravidão. O estudo de Marco Antonio Cabral dos Santos sobre a polícia paulistana do início do século XX mostra como um projeto modernizador, no qual se inseria o controle de uma crescente população trabalhadora por parte do aparato policial, via-se condicionado pelos limites que seus próprios agentes lhe impunham, buscando garantir o cumprimento da lei por meio de práticas muitas vezes arbitrárias, e decisivas para a definição de cidadania naqueles primeiros momentos de vida republicana.
Dessa maneira, delineia-se, em meio a diferentes recortes temáticos e temporais, por meio de diferentes procedimentos metodológicos e diálogos historiográficos, o eixo de uma problemática comum que estrutura as discussões realizadas nesse seminário, e que busca perceber os múltiplos sujeitos sociais que atuam junto aos diversos espaços institucionais da vida pública.
Sirva este dossiê como um convite para futuras reflexões, e que a diversidade e a renovação constantes continuem ditando os caminhos da ampliação dessa área de estudos.
O presente número da Locus inclui, ainda, mais dois artigos, além dos que compõem o dossiê Dimensões da Política na História. Em Ode a Salvador Dalí e O mel é mais doce que o sangue, Ângela Brandão analisa um período específico da produção poética de Federico García Lorca e da obra pictórica de Salvador Dalí, por meio da interseção das duas biografias, com ênfase em um poema de Lorca: Ode a Salvador Dalí, e um quadro: O mel é mais doce que o sangue. A partir daí, desvenda alguns dos tantos elementos simbólicos já presentes nas origens do surrealismo nas obras do pintor e do poeta.
José D’Assunção Barros busca elaborar uma visão panorâmica sobre a História das Idéias, apresentada em suas relações dialógicas com a História Cultural, a História Política e outras modalidades historiográficas, em História das Idéias – em torno de um domínio historiográfico. São discutidos alguns conceitos envolvidos na perspectiva da História Cultural e da História das Idéias, a partir de uma produção historiográfica diversificada que se desenvolveu ao longo do século XX.
Por fim, Lucilha de Oliveira Magalhães resenha a obra Introdução ao pensamento de Bakhtin, de José Luiz de Fiorin.
Boa leitura!
Alexandre Mansur Barata
Ignacio Godinho Delgado
Jefferson Cano
Silvana Mota Barbosa
Organizadores do volume.
BARATA, Alexandre Mansur; DELGADO, Ignacio Godinho; CANO, Jefferson; BARBOSA, Silvana Mota. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.13, n.1, 2007. Acessar publicação original [DR]
Escravidão e Sociedade Colonial / Locus – Revista de História / 2006
A Locus – Revista de História dá continuidade à ordenação temática de suas edições, retomada no número anterior. Quatro artigos abordam aspectos diversos da escravidão e da sociedade colonial no Brasil. Os demais artigos lidam com temas da Hispano-americana, do Brasil Contemporâneo e da História Antiga, num painel diversificado de contribuições para o estudo da História.
O artigo que abre a revista, O comércio das almas e a obtenção de prestígio social: traficantes de escravos na Bahia ao longo do século XVIII, de Alexandre Vieira Ribeiro, focaliza os comerciantes nativos e vindos de além-mar que, no período considerado, desempenharam papel preponderante na vida colonial baiana ao longo do século XVIII e início do XIX. A partir de dados quantitativos e bibliografia específica busca estabelecer o perfil dos comerciantes de escravos estabelecidos na Bahia.
Em Notas iniciais acerca da prática da alforria no Termo de Vila do Carmo, 1711 – 1720, Carlos Leonardo Kelmer Mathias, analisa as escrituras de alforria e liberdade presentes nos livros de nota do 1º Ofício do Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, com o intento de estabelecer o perfil das alforrias relativas à comarca de Vila Rica.
Marcia Amantino, através do estudo de anúncios veiculados no Jornal “O Universal”, entre 1825 e 1832, analisa as causas das fugas e o perfil dos escravos em Ouro Preto. Seu artigo, Os escravos fugitivos em Minas Gerais e os anúncios do Jornal “O Universal”- 1825 a 1832, objetiva, ainda, examinar o cotidiano da vida em cativeiro em Minas Gerais do século XIX.
Por fim, encerra o dossiê organizado neste volume, o artigo Recursos e estratégias dos oficiais de Ordenanças: reflexões acerca de sua busca por autoridade e mando nas conquistas, de Ana Paula Pereira Costa, que focaliza as estratégias traçadas e os recursos disponíveis pelos oficiais de mais alta patente das Companhias de Ordenanças, na Vila Rica do século XVIII, para que fossem vistos e permanecessem como homens de “qualidade” e, portanto, detentores de mando.
Peter Blasenheim em Revisiting Richard Morse’s Theory of Spanish American Government for Classroom (Revisitando a Teoria do Governo Hispano-americano de Richard Morse na sala de aula) descreve sua experiência na estruturação do Curso de História da América Latina, no Colorado College, a partir de um dos primeiros escritos de Richard Morse, “Por uma teoria do governo hispano-americano”, publicado em 1954.
Beatriz Helena Domingues analisa os escritos de Javier Clavijero para avaliar a importância da Geração Mexicana de 1750, exilada na Itália em função da expulsão da Companhia de Jesus da Nova Espanha em 1767. O artigo Clavijero’s Perception of the America and American’s from the exile perspective procura evidenciar a abertura deste grupo em relação às idéias modernas e ilustradas, que combinaram com a tradição escolástica.
Estado, e Sindicatos e Direito do Trabalho no Brasil, de Valéria Lobo, argumenta que a forte componente estatal impressa na origem da legislação sindical e trabalhista brasileiras, ao lado da influência dos trabalhadores nesse processo, consolidou uma tradição que tende a inibir a realização de mudanças mais profundas no direito coletivo e individual do trabalho no país. Tal resistência adviria não só dos aspectos materiais decorrentes da legislação trabalhista, mas também dos aspectos simbólicos que envolvem as relações entre Estado e a estrutura organizativa dos trabalhadores.
Márcio Delgado analisa a ascensão e protagonismo de Carlos Lacerda, jornalista, como líder da UDN a e da oposição à herança de Vargas sob a Experiência Democrática de 1946 a 1964. Salienta, em Lacerdismo: A mídia como veículo de oposição na experiência democrática (1946-1964), que o discurso inflamado e contundente de Lacerda soube valer-se de amplo acesso aos diversos meios de comunicação de massas existentes naquele período no Brasil.
A repressão desencadeada, pelo regime militar instaurado em 1964, contra os próprios militares é o objeto de A política repressiva contra militares no Brasil após o golpe de 1964, artigo de Cláudio Beserra de Vasconcelos. Seu propósito é identificar a correspondência desse processo como o contexto político mais global de disputa político-ideológica pelo controle do Estado brasileiro.
O último artigo desta edição focaliza os Aspectos simbólicos da cultura jurídica na antiga Mesopotâmia. Nele, Marcelo Rede assinala que as práticas e representações jurídicas na Mesopotâmia não constituíram uma esfera autônoma, revelando relação estreita com o universo religioso e mágico.
O presente volume, inclui, ainda a resenha de Fernanda Fioravante, relativa ao livro O central e o local: a vereação do Porto de D. Manuel a D. João III, de Maria de Fátima Machado.
Agradecemos à colaboração da Pro- Reitoria de Pesquisa, ao Instituto de Ciências Humanas, ao Departamento de História e ao Programa de Pós-Graduação em História, da UFJF, que criaram condições para a viabilização deste número da Locus – Revista de História.
Conselho editorial. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.12, n.2, 2006. Acessar publicação original [DR]
História da Historiografia e Teoria da História / Locus – Revista de História / 2006
FERNANDES, Cássio da Silva. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.12, n.1, 2006. Acesso apenas pelo link original [DR]
Identidades e Política / Locus – Revista de História / 2001
Conselho editorial. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.7, n.2, 2001. OBS: O PDF dá acesso a apresentação de outro número [DR]
Imagens e Discursos / Locus – Revista de História / 2001
Conselho editorial. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.7, n.1, 2001. Acesso apenas pelo link original [DR]
História e Leituras / Locus – Revista de História / 2000
Conselho editorial. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.6, n.2, 2000. Acesso apenas pelo link original [DR]
Locus | UFJF | 1995
A Locus – Revista de História (Juiz de Fora, 1995-) é um periódico [do Departamento e do PPG em História da UFJF] com publicação semestral, baseada nos princípios do livre acesso. O foco primário da revista é área de História, estando aberta também para contribuições relevantes de outras áreas das Ciências Humanas. A revista publica artigos inéditos, contando com ampla abrangência cronológica. Textos focados em questões teóricas e/ou metodológicas também têm espaço no periódico.
A revista tem a missão de promover o enriquecimento do debate acadêmico, além de servir como meio de divulgação a um público mais amplo. Pauta-se pela avaliação anônima e criteriosa para atingir tal objetivo, garantindo a maior neutralidade possível dos pareceres e a seleção de textos de qualidade sobre a temática. Dessa forma, não restringe teórica ou metodologicamente as propostas, garantindo isonomia nas apreciações.
Periodicidade Semestral.
Acesso livre
ISSN 1413-3024 (Impresso)
ISSN 2594-8296 (Online)
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