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Ensino de História, Livro Didático, Formação de Professores | Escritas do Tempo | 2020
O ensino de história entre lutas, alegrias e esperanças
Em sua última obra publicada em vida, o educador Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia sentencia que para ensinar é necessário que exista uma relação movida pela alegria e esperança. Trata-se da esperança — do verbo esperançar — como uma construção urdida nas relações sociais das lutas cotidianas que concorre como força mobilizadora para o agir no dia a dia. Para ele “a esperança é um condimento indispensável à experiência histórica” (FREIRE, 2019, p. 71), pois sem ela estaríamos limitados a viver o tempo sem problematizá-lo, como se não fosse o tempo uma construção humana de homens e mulheres em seus fazeres ordinários. Por extensão, sem a esperança prevaleceria uma concepção determinista da história onde tudo já estaria dado, definido e, portanto, nada poderia ser feito no presente para projetarmos nossas possibilidades de futuros.
Em nossa experiência de tempo presente, parece importante nos avizinhar das reflexões — tão combatidas — do pensador Paulo Freire. Esperançar-se com a atividade docente, com o ensino de História, continua sendo uma possibilidade potente na luta pela construção de uma sociedade menos desigual. Esperançar-se por um aprender inquietante, prenhe de questionamentos sobre o tempo; esperançar-se por uma aprendizagem que não aceite passados, presentes e futuros determinados, que esteja fecunda de problematizações, se torna necessário e vital nos dias atuais.
Esses sentimentos brotam também porque este dossiê (o segundo na sequência de publicação da Revista Escritas do Tempo que tematiza o Ensino de História) demonstra sinais do crescimento e do fortalecimento das pesquisas em Ensino de História, e não apenas daquelas sobre ensino de História, como defende Carmen Teresa Gabriel (2019). Assim, em alguma medida, este dossiê pode ser apreendido como um vestígio, um sinal da potencialidade que se vem constituindo o campo do Ensino de História.
Este dossiê fecha o ano de publicação de 2020; um ano marcado pelas experiências dolorosas que resultaram em mais de 180 mil vidas ceifadas pela pandemia causada pela Covid-19. Esses dados não levam em consideração as vidas perdidas que não entraram na contagem oficial, nem aquelas cuja causa da morte foi atribuída à síndrome respiratória aguda grave (SARS, do inglês Severe Acute Respiratory Syndrome). Portanto, já é motivo de alegria e esperança o fato de chegarmos ao fim do ano de 2020 vivos — mesmo com a lida relacionada às perdas pessoais e coletivas — e estarmos com saúde, produzindo reflexões sobre o Ensino de História.
Todavia, também experienciamos sentimentos de preocupação, sobretudo com o atual cenário político do Brasil, que mostra a crescente polarização e ascensão de posturas e práticas fascistas no País. As políticas públicas de Educação igualmente despertam preocupação, em especial a política direcionada à formação do professor. Uma formação que se fundamenta na Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) nº 2, de 20 de dezembro de 2019, que estabelece as diretrizes para a formação docente.
Estaremos alertas e atentos para a disputa desses espaços promotores de projetos políticos, em especial daqueles direcionados à formação do professor, ao ensino de História e aos livros didáticos. Nessa luta, nossa arma é o conhecimento. Nosso combate ocorrerá por meio da reflexão, do debate e do uso ético do saber como um elemento de poder. Nesses termos, é fundamental ampliar e socializar o conhecimento especializado para instrumentalizar o profissional e garantir o bom combate. O campo do Ensino de História tem-se tornado fértil, potente e disputado. Sua fertilidade pode ser percebida com a quantidade e a qualidade das pesquisas e publicações que vêm a público em forma de monografias, dissertações, teses, livros, dossiês, seminários, artigos, palestras, lives, blogs e uma infinidade de outros formatos que oferecem diferentes narrativas sobre o ensino de História.
O campo tem ofertado uma ampla e diversificada produção e seria enfadonho elencar, aqui, uma lista. Basta reforçar que, como objeto de estudo, a pluralidade temática também é disputada por diferentes leituras, interpretações, percepções teóricometodológicas e, inclusive, por diferentes projetos políticos de governo, como bem destacou Christian Laville (1999) ao lançar mão do conceito “guerras de narrativas”.
O Ensino de História, enquanto campo de produção de conhecimento, não é caracterizado pela prática de consensos. Estamos atuando em um espaço marcado pelo dissenso. São distintas as concepções, abordagens, temáticas, aportes metodológicos, referenciais teóricos e epistêmicos que transitam pela História, Educação, Didática, Psicologia da aprendizagem, Linguagem, para mencionar apenas alguns. Mas talvez, possamos falar que exista algum consenso que a História — como lugar de produção de saber e espaço de formação docente —, precisa ressignificar as matrizes curriculares dos cursos de licenciatura. Esse entendimento não reside porque temos uma nova (e preocupante) resolução que determina a adequação dos projetos políticos pedagógicos dos cursos. Mas — e principalmente — porque há um certo entendimento entre professores que atuam na formação de outros professores de que o modelo de formação estruturado na configuração quadripartite europeia — que ainda prevalece como mostram as pesquisa de Mauro Coelho e Wilma Baia (2018), Flávia Caimi (2013 e 2015), Margarida de Oliveira e Itamar Freitas (2013) e Erinaldo Cavalcanti (2018, 2020a e 2020b) —, já não atende às demandas do chamado tempo presente no que tange à formação do profissional de História. Ou seja, a formação docente, em História, precisa ocupar os proscênios do centro de interesse dessa ciência. As questões que envolvem as diferentes narrativas que disputam a produção de sentido, no cotidiano de homens, mulheres, crianças e adolescentes (o potencial público a ser atendido pelo professor de História) precisam ser objeto de aprendizagem durante a formação inicial desse professor. Da mesma forma, debater e problematizar o universo de práticas constituidoras do livro didático — que ainda continua ocupando importante posição nas tarefas desempenhadas pelos professores da Educação Básica — é algo que precisa ser tematizado durante o período de formação inicial dessa licenciatura.
As reflexões que apresentamos, neste dossiê, se constituem em ricas possibilidades de ampliação do debate que envolve essas questões. Assim, esta publicação está composta por 14 artigos, dos quais, 10 compõem o referido dossiê, 4 fazem parte da sessão Artigos livres, além de contarmos com uma resenha.
Abrindo o dossiê, temos o artigo do professor Almir Félix Batista de Oliveira — Livros didáticos e formação de professores: questões para o ensino de história — no qual amplia-se a reflexão e apresenta-se uma importante problematização acerca do livro didático de História e da formação de docentes, tanto a do profissional de História, responsável pelo ensino da História aos alunos do Ensino Fundamental II e Médio, como a do chamado professor generalista, pontuando a necessidade de se tematizar o livro didático na formação inicial de professores.
À sequência, temos o artigo assinado pela professora Camila Corrêa e Silva de Freitas As representações da catequese jesuítica nos livros do PNLD: abordagens do passado colonial e possibilidades de aprendizagem histórica. Nele, a autora analisa algumas representações a partir de um conjunto de narrativas didáticas sobre o chamado “período colonial brasileiro”. O foco de atenção é direcionado para a atuação da Companhia de Jesus. São tematizados os livros de História dos sétimos anos de três coleções didáticas, a partir dos quais se analisa, também, como essas narrativas podem representar possibilidades de aprendizagem histórica.
No artigo seguinte, intitulado Da construção do estereótipo de selvagem à representação do indígena brasileiro no livro didático de História, a professora Roberta Fernandes Santos amplia a discussão sobre como se construiu o estereótipo de “selvagem”, atribuído aos indígenas. A autora, ainda, destaca a importância da Constituição de 1988 e, posteriormente, da Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, ao ampliar as condições de maior inserção dos indígenas na História ensinada no Brasil, contribuindo para ressignificar o lugar por eles ocupado, ampliar sua cidadania e proteger seu direito à diversidade.
À continuação, no artigo intitulado A Revolução Cubana: representações generificadas em um livro didático de História, a professora Andréa Mazurok Schactae analisa as representações construídas em relação à Revolução Cubana em um livro didático de História do ensino médio, usado no Instituto Federal do Paraná (IFPR), Campus Telêmaco Borba, e publicado em edições de 2013 e 2016. A autora também analisa de que forma a categoria “gênero” constituiu-se como uma estratégia fecunda para entender e problematizar algumas das representações acerca da revolução cubana.
A formação do professor de História é o foco de análise do artigo seguinte. Assinado pela professora Renilda Vicenzi e pelo professor Bruno Antonio Picolli, o artigo Formação de professores de História: implicações a partir da BNCC e da DCNBNC tem o foco central da sua reflexão direcionado à ampliação do debate sobre as implicações da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (DCNBNC) na formação de professores de História. Por meio da pesquisa e da análise realizadas, os autores chegam à conclusão de que as referidas reformas impactam com sérias implicações a formação profissional do professor de História.
A seguir, o professor Leandro Antonio de Almeida também focaliza a formação docente em História, no seu artigo, A formação docente em laboratórios universitários de ensino de história através da produção de materiais didáticos: a experiência do LEHRB-UFRB. Nele, o autor apresenta uma reflexão a partir de suas experiências desenvolvidas no laboratório da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). São tematizadas as atividades voltadas à formação docente inicial por meio de projetos desenvolvidos entre 2009 e 2017, em especial aqueles direcionados à produção de materiais didáticos. As ações relatadas e analisadas mostram a complexidade das experiências costuradas pela prática interdisciplinar, de modo a ampliar a construção dos saberes históricos e pedagógicos dos professores participantes dos projetos e em formação.
Na sequência, temos o artigo Um olhar sobre o ensino de História nos museus de ciência, assinado pelas professoras Déborah Roberta Santiago Chaves Vilela, Zenaide Gregório Alves e Rozeane Porto Diniz. As autoras centram sua atenção nos museus enquanto espaços culturalmente potentes para construir e ampliar suas relações com as práticas educativas. Em sintonia com documentos formais, como a Declaração do Rio de Janeiro de 1958 e outros decretos/leis, como a Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009, e as Diretrizes Curriculares Nacionais (Base Nacional Comum Curricular e Matriz do Exame Nacional do Ensino Médio), as autoras exploram as possibilidades de interação e construção de saberes, como práticas potencialmente ricas para o Ensino de História entre os museus de ciência, a chamada cultura científica e a relação sociedade-História.
O artigo seguinte, Didática da história, consciência e emancipação: uma reflexão sobre os limites materiais do ensino crítico da História, é assinado pelos professores Filipe Boechat e Fernando Viana Costa no qual os autores se propõem a ampliar o debate acerca das categorias “consciência”, “alienação” e “ideologia” situando a reflexão no âmbito do debate da Didática da História, em especial através da problematização de dois dos principais intelectuais alemães que tematizam a questão.
Em continuidade temos o artigo O irreconciliável nos editais do PNLD: eurocentrismo, cidadania e ensino de História. Assinado pela professora Taissa Cordeiro Bichara, o texto problematiza os sentidos atribuídos às categorias eurocentrismo, cidadania e ensino de História, encaminhados pelos editais de convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas e literárias. Esses editais, publicados no Diário Oficial da União pelo Ministério da Educação (MEC), submetidos ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e destinados aos Anos Finais do Ensino Fundamental entre 1996 e 2018. Destaca-se, no artigo, que a construção histórica da civilização europeia continua como o principal referente, que representa outras civilizações como inferiores ou submissas à história ocidental branca e cristã.
Finalizando o dossiê, a professora Luiza Sarraff assina o artigo A narrativa didática sob a ótica da imputação causal singular, a autora estabelece uma reflexão entre história e narrativa em diálogo direto com Paul Ricoeur para problematizar a análise da narrativa de um livro didático, aprovado pelo Programa Nacional do Livro Didático, enfatizando o aspecto da imputação causal singular, na esteira do que defende o filósofo francês.
Temos, ainda, quatro importantes artigos que contribuem com valiosas discussões na sessão Artigos Livres. O primeiro é Panoramas recentes do feminismo na interseccionalidade, de autoria da professora do departamento de sociologia da Universidade de Montreal, Sirma Bilge. Originalmente, o artigo foi redigido em inglês, cujo título é Recent feminist outlooks on intersectionality, e tem como foco a ampliação da discussão, teorizando o conceito “interseccionalidade” a partir da operacionalização de gênero em estudos feministas.
À sequência, Marcos Antonio Batista da Silva assina o artigo Discursos étnicoraciais sobre o acesso e a permanência na Pós-graduação, em que analisa trajetórias de estudantes negros no ensino superior/pós-graduação na sociedade brasileira, oferecendo contribuições para as discussões sobre importantes temáticas, como relações étnicoraciais, políticas públicas, família e educação.
Entre datas, festas e compêndios: a História como pedagogia cívica na Amazônia no início do século XX, é o artigo seguinte assinado pelo professor Silvio Ferreira Rodrigues no qual ele analisa um conjunto de relações e estratégias políticas utilizadas por um grupo de intelectuais ligados ao Instituto Histórico e Geográfico do Pará, para refletir como História foi mobilizada como estratégia de construção e consolidação dos laços de pertença ao projeto político de pátria brasileira defendido por aqueles intelectuais.
Finalizando a sessão, está o artigo Biografia, gênero e carnaval: uma rainha nos festejos de momo na Porto Alegre do início do século XX, da professora Caroline Pereira Leal. Nele, a autora focaliza a trajetória da personagem Maria Elvira Werna Coelho Roxo, rainha da Sociedade Carnavalesca Os Venezianos, ampliando as discussões sobre as relações construídas pelas mulheres, que fazem compreender e potencializar a visibilidade sobre elas enquanto sujeitos históricos.
Por fim o professor Marcos Rodrigues assina a resenha A encruzilhada das ações afirmativas do livro Filosofia Africana: ancestralidade e encantamento como inspirações formativas para o ensino das africanidades de Adilbênia Freire Machado na qual o professor analisa as importantes contribuições presentes no livro no que tange à problematização das ações afirmativas.
Desejamos a todos uma boa leitura e aproveitamento do dossiê da revista Escritas do Tempo e suas propostas de reflexão. Que a esperança e a alegria façam muito sentido e promovam muitas inquietações em 2021, a partir do controle da Covid19 e que possamos vislumbrar um horizonte de possíveis mudanças em políticas ameaçadoras à educação, bem como à saúde e vida dos brasileiros e brasileiras.
Referências
CAVALCANTI, Erinaldo. A história encastelada e o ensino encurralado: reflexões sobre a formação docente dos professores de história. Revista Educar em Revista, v. 34, n. 72, 2018.
_______. La formación docente inicial del profesor de Historia en Brasil: temas, reflexiones y desafíos. Revista Ciencias Sociales y Educación, v. 9, n. 18, 2020a.
_______. O que deve aprender o professor de História? Reflexões sobre aprendizagem, ensino e formação docente inicial. Revista Roteiro, v. 45, e21829, 2020b.
CAIMI, Flávia. A licenciatura em História frente às atuais políticas públicas de formação de professores: um olhar sobre as definições curriculares. Revista Latinoamericana de História, v. 2, n. 6, p. 193-209, 2013.
_______. O que precisa saber um professor de história? Revista História & Ensino, v. 21, n. 2, p. 105-124, 2015.
COELHO, Mauro Cezar e COELHO, Wilma Baia de Nazaré. As licenciaturas em História e a Lei 10.639/03 – percursos de formação para o trato com a diferença? Educação em Revista, v. 34, e192224, 2018.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.
GABRIEL, Carmen Teresa. Pesquisa em Ensino de História: desafios contemporâneos de um campo de investigação. In: MONTEIRO, Ana Maria e RAJELO, Adriana (org.). Cartografias da pesquisa em Ensino de História, p. 143-161, Rio de Janeiro: Mauad X, 2019.
LAVILLE, Christian. A guerra das narrativas: debates e ilusões em torno do ensino de História. Revista Brasileira de História, v. 19, n. 38, p. 125-138, 1999.
OLIVEIRA, Margarida Dias de; FREITAS, Itamar. Desafios da formação inicial para a docência em história. Revista História Hoje, v. 2, n. 3, p. 131-147, 2013.
Erinaldo Vicente Cavalcanti – Professor Adjunto da Faculdade de História e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará [Unifesspa], coordenador do laboratório e grupo de pesquisa iTemnpo e editor da Revista Escritas do Tempo. E-mail: ericontadordehistorias@gmail.com
Helenice Aparecida Bastos Rocha – Professora Adjunta na Faculdade de Formação de Professores, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro [UERJ/FFP]. E-mail: helarocha@gmail.com
CAVALCANTI, Erinaldo Vicente; ROCHA, Helenice Aparecida Bastos. Apresentação. Escritas do Tempo, Pará, v.2, n.6, 2020. Acessar publicação original [DR]
Ensino de História, Livro Didático, Formação Docente | Escritas do Tempo | 2020
Disputas pela história, pelo ensino e pela docência: desafios de uma luta permanente
A escrita, como prática cultural, contém em seu “DNA” as marcas do tempo em que é tecida. Toda escrita, ao grafar em palavras as experiências humanas, traz incrustadas as “digitais” do seu tempo; apresenta uma espécie de radiografia das disputas sociais, políticas e culturais tecidas no e pelo tempo. A escrita desse dossiê não foge à regra.
Escrever é um ato de tensão. Diferentes forças estão em diálogo quando desejamos grafar, pela escrita, as distintas experiências vivenciadas no tempo e no espaço. Toda forma de escrita é destinada a alguma prática de leitura, ou seja, a escrita é forjada para ser lida. Nesse sentido, as palavras encenam em um palco onde precisam criar laços de confiança com o leitor. A representação da escrita, portanto, precisa produzir efeitos de verdade para imprimir legitimidade à sua apresentação. Assim, escrita e leitura bailam juntas nas melodias que criam o mundo, mesmo desempenhando papéis distintos. Não se confundem, mas precisam unir-se no palco da representação, pois a escrita deseja imprimir à leitura o passo da confiabilidade.
Em nossa experiência de tempo presente, as práticas que envolveram a gestação da escrita para esse dossiê foram atravessadas pelo reordenamento da vida, provocado pela pandemia da Covid-19. Não obstante, ainda experienciamos o crescimento de posturas políticas anticiência, negacionista e/ou revisionista, com diferentes formas de ataques e tentativas de deslegitimar diversas áreas do conhecimento, em especial aquelas praticadas no campo das humanidades.
O dossiê v. 2, n. 5 da Revista Escritas do Tempo — Ensino de História, livros didáticos e formação docente — é gestado sob o solo de um campo de intensas disputas. Nos tempos atuais, fazer pesquisa é, antes de tudo, uma posição política de resistência. Fazer pesquisa em ciências humanas é uma decisão de luta contra um conjunto de forças, de caráter fascista, que se mobilizam e se fortalecem com o propósito de ameaçar e intimidar os (as) pesquisadores (as)/professores (as) que atuam nesse espaço de enfrentamento. O dossiê nasce, portanto, em um estado de tensão. Nos últimos anos, a História no Brasil — como espaço de produção de conhecimento — tornou-se um dos palcos onde se enfrentam inúmeros atores, incluindo soldados, generais e coronéis. Esses não aparecem aqui apenas como metáforas e, infelizmente, a educação também passou a ser por eles disputada como espaço de atuação.
A História acadêmica e escolar, como lócus de produção de saberes, espaço de socialização e de vivências humanas, virou cenário dos mais diversos tipos de disputas. Disputas não apenas acadêmicas, teóricas ou epistemológicas. A História tornou-se espaço de combate político; tornou-se arena de disputas partidárias, ambientadas em um clima de polarização. Diferentes atores — incluindo sujeitos sociais distintos daqueles que compõem a cultura acadêmica e escolar — passaram a se “autorizar” competentes para interferir nas relações praticadas dentro desse espaço.
As disputas se intensificaram, e precisamos lutar contra inúmeros projetos políticos que desejam determinar, de forma autoritária, o que devemos ensinar em nossas escolas. Essa é uma luta movida por diferentes sujeitos que pretendem definir quais conteúdos devem compor o currículo da Educação Básica, como ficou demonstrado nos embates envolvendo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Da mesma forma, querem determinar quais habilidades e competências (expressões que viraram jargões) devem configurar a formação do professor, de acordo com o estabelecido na Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) nº 2, de 20 de dezembro de 2019, sobre as diretrizes para a formação docente. Por conseguinte, esses sujeitos ainda desejam determinar quais conteúdos devem estar presentes nos livros didáticos de História, como expressou, há menos de um ano, o então ministro de Estado da Educação. Uma batalha travada para definir quais conteúdos, vivências, saberes, aprendizados e experiências devem ser praticados na escola.
Esses atores políticos querem dizer como nós, professores e professoras, devemos relatar as lutas de homens e mulheres que nos antecederam. Mas, não nos enganemos. Essa luta não é pelo passado. Ela é travada no e pelo presente. Os indivíduos que estão disputando o espaço da História, da memória, dos livros didáticos e do ensino querem ampliar seu espaço de controle no presente. Eles entendem que — como sujeitos históricos que somos — agimos no presente, influenciados pelas distintas leituras que realizamos sobre o passado. Ou seja, a forma como nos portamos e vivemos, no presente, mantém íntima relação com a maneira como interpretamos nossas experiências passadas, as quais podem, por conseguinte, estabelecer e direcionar projetos de futuros. A guerra, portanto, é no presente.
Esses enfrentamentos incidem, pois, táticas de silenciamentos. Querem, assim, forjar as lentes pelas quais nossas crianças e jovens devem perceber e apreender o mundo. Desejam impor as lentes ofuscadas que fazem enxergar a vida, o ensino e a aprendizagem pela miopia da dualidade. À medida que pretendem determinar o que narrar, tentam silenciar um conjunto de relatos, memórias e narrativas, isto é, de histórias. Relatar, lembrar e narrar são atos políticos que potencializam permanentes disputas nos espaços referentes à História, ao ensino e à formação docente. Tais disputas se constituem em ferramentas políticas, pois a memória tem o poder de “presentificar” — ou não — certas representações do passado. Tornar presente o passado é algo que pode significar a constituição de um campo de força para os enfrentamentos nas relações cotidianas de poder.
Se, atualmente, presenciamos um crescimento dos ataques desferidos à educação, às escolas, aos professores e às professoras, isso ocorre, também, porque nossas ações têm provocado maior tensão nas relações de poder. Nossos questionamentos em sala de aula e nossas reflexões têm instigado nossos alunos e alunas a não aceitarem discursos simplistas ou revestidos por estratégias de dominação contra mulheres, negros, gays e tantos outros segmentos sociais. Os ataques à educação também sinalizam que a História tem contribuído, como força política, na luta em defesa dos princípios por uma sociedade mais justa e democrática.
Este dossiê, ao mesmo tempo em que contém as “digitais” dessa batalha, também (e paradoxalmente) se constitui uma ferramenta de luta e de enfrentamentos e apresenta um conjunto de artigos que abordam experiências de pesquisas sobre ensino de História, livros didáticos e formação docente. Assim, presentifica, por meio da escrita de seus autores e autoras, uma forma de combate às forças obscuras que tentam nos intimidar. Em cada reflexão presente nos artigos, há, também, um grito de resistência. Porque nós, intelectuais, professores e professoras, também fazemos parte da luta para que nossas interpretações sobre os objetos de estudo possam ser ouvidas, lidas, circuladas, debatidas e criticadas. Mas, fazemos isso por meio de uma operação intelectual fundamentada em princípios éticos e democráticos. Não somos criminosos agindo fora da lei. Nosso debate é travado no campo do argumento. Oferecemos nossas reflexões e apresentamos outros ângulos de percepção a partir da problematização de nossos objetos de pesquisa.
Este dossiê é composto por 11 artigos e uma entrevista que sinalizam o crescimento e a consolidação do ensino de História (e as questões que lhe são pertinentes) como objeto de estudo e debate nos segmentos mais amplos da sociedade. Ampliaram-se, sobremaneira, as pesquisas que têm como objeto de investigação o ensino de História. Seminários, congressos, encontros, grupos de pesquisa e publicações em periódicos sinalizam esse crescimento, que concorre como força para a conformação do ensino de História enquanto campo de pesquisa. Portanto, conforme apontam diversas pesquisas, mais do que um objeto de análise, tal conjunto de variáveis mostra a consolidação desse lugar de fronteiras. Esse campo fronteiriço se fortalece, também, pela diversidade temática de seus objetos de investigação. No âmbito da produção especializada do campo, “ensino de História”, “livro didático” e “formação docente” aparecem entre os principais temas abordados. Tais abordagens problematizam esses temas a partir de variadas questões.
O livro didático, conforme aponta a literatura especializada, é a principal ferramenta de trabalho de uma significativa parcela de professores e professoras que atua na Educação Básica. Por outro lado, as pesquisas também sinalizam que grande parte dos (as) docentes que atua no ensino fundamental e no médio não participa das discussões especializadas que envolvem o livro didático. Nessa dimensão, o presente dossiê convida a comunidade de professores (as)/pesquisadores (as) à reflexão a partir da leitura dos artigos que discutem aspectos sobre o ensino de História, o livro didático e a formação docente.
A abertura do dossiê fica por conta do artigo Passado, presente e futuro dos livros didáticos de história frente a uma BNCC sem futuro assinado por Sonia Regina Miranda e Fabiana Rodrigues de Almeida. No texto, problematizam as conexões entre a política para os livros didáticos de História e as proposições curriculares constituídas na esteira das formulações da BNCC, e argumentam que esses espaços são regidos por relações de disputas políticas e batalhas narrativas.
Na sequência, temos o texto Por que as narrativas nacionais permanecem? Revisão de literatura sobre novas perspectivas na pesquisa dos livros didáticos de história. No artigo, as autoras Maria Grever e Tina van der Vlies apresentam um rico panorama de um conjunto de pesquisas, em diversos países, que tematizam os livros didáticos, mostrando a permanência das narrativas nacionais e sua relação com a formação dos estados nacionais e o ensino de História. Além disso, destacam a potência investigativa dessas temáticas de estudo.
À continuação, temos o artigo Narrativas sobre o nazismo e o fascismo nas coleções didáticas de história: saber escolar e demandas do tempo presente, das professoras Maria Aparecida da Silva Cabral e Marilu de Freitas Faricelli. As autoras centram sua atenção nas articulações produzidas pelos autores dos materiais analisados (no que se refere às demandas do tempo presente), e dão foco à intercessão entre os saberes históricos escolares, os percursos construídos pelos autores dos livros didáticos, as prescrições curriculares e os projetos historiográficos.
O Ensino de História no Brasil e seus pesquisadores: breves notas sobre uma herança de tensões e proposições, é o texto seguinte assinado por Letícia Mistura e Flávia Caimi. Nele, as autoras apresentam uma reflexão sobre as heranças construídas no percurso processual do campo do ensino de História, percorrendo desde o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e o Colégio Pedro II até a apresentação de uma síntese sobre as temáticas investigativas que compõem o campo de pesquisa do ensino de História no Brasil. Na sequência, temos o texto Livros didáticos: autoria em questão, de Adriana Soares Ralejo e Ana Maria Monteiro. As autoras se debruçam na reflexão sobre o lugar de autoria nos livros didáticos, mostrando um conjunto diverso de relações que envolvem a produção dos livros didáticos e as condições e possibilidades que configuram esse lugar complexo ocupado pelo sujeito que recebe as credenciais de autor ou autora. O artigo seguinte é assinado por Andressa da Silva Gonçalves e Mauro Coelho tem por título As narrativas didáticas sobre o bandeirante: entre a mitologia bandeirante e a crítica histórica. Nesse texto, os autores analisam como História e memória adentram a literatura didática, focando sua análise nas “entradas e bandeiras” para mostrar a complexidade das relações entre o saber e a chamada memória histórica.
Em seguida, temos o artigo A abordagem da temática indígena e da história da África nos livros didáticos: exemplos de oficinas na formação docente, da professora Ingrid Silva de Oliveira Leite. O artigo centra a atenção na análise sobre as representações dessas temáticas em livros didáticos, tomando como pontos focais de problematização as oficinas e a elaboração de aulas em cursos de licenciatura em História no Rio de Janeiro e em Minas Gerais.
O ensino de História e suas relações com o patrimônio é um tema que aparece na sequência, e é o foco do artigo assinado por Margarida Dias de Oliveira e Itamar Freitas, sob o título Patrimônio e ensino de história: cinco decisões do professor. Nesse texto, os autores apresentam importantes reflexões sobre as preocupações de peritos e professores de História em torno dos objetos que são considerados “patrimônio”. Por meio dessas análises, é possível refletir as relações entre “patrimônio e identidade” e “patrimônios nacionais e patrimônios da humanidade”, além de questões como “virtualidade”, “fisicalidade” e “preservação”. Qual história geral deve fomentar e se fazer presente no ensino de História na atualidade? A partir dessa indagação, Ivo Mattozzi apresenta seu artigo Uma nova história geral didática para compreender o mundo e agir como cidadãos globais. O autor defende a necessidade de alterar o modelo de história geral a ser ensinada, argumentando que a História, como disciplina escolar, corre o risco de se tornar irrelevante frente às mudanças que estamos presenciando como sujeitos ativos. De tal modo, defende que a História ensinada precisa ser redirecionada para um conhecimento diferente daquele transmitido, tradicionalmente, pelos sistemas escolares.
Victor Amado Salto e Alicia Graciela Funes, no texto Materiais didáticos para o ensino da história na formação de professores, focam a análise na problematização que envolve a construção dos materiais didáticos para o ensino de História na relação com o conhecimento histórico frente a um cenário desafiador, heterogêneo, diverso e múltiplo. Para os autores, essas variáveis são condições para refletir as práticas de pesquisa e o treinamento que os professores desenvolvem no campo do ensino e do conhecimento histórico. Na sequência, Miguel Jara, no seu artigo Los materiales didácticos en la enseñanza de la historia y de las ciencias sociales en argentina. Percepciones del profesorado, apresenta uma análise a partir da interpretação de um conjunto de professores de três cidades argentinas (Cipolletti, Bahía Blanca e Mar del Plata) no âmbito da formação de pós-graduação. O texto problematiza algumas questões que envolvem os materiais e recursos didáticos comumente usados nas aulas, e reflete sobre a avaliação que os professores fazem dos referidos materiais.
Por fim, temos a entrevista com a professora Marieta de Moraes, que recupera as memórias de seu percurso formativo e das discussões históricas e historiográficas nos diversos momentos de sua trajetória, e narra os bastidores de relações e debates sobre a construção do projeto do mestrado profissional em História, o ProfHistória.
Erinaldo Vicente Cavalcanti – Professor Adjunto da Faculdade de História e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará [Unifesspa], coordenador do laboratório e grupo de pesquisa iTemnpo e editor da Revista Escritas do Tempo. E-mail: ericontadordehistorias@gmail.com
Helenice Aparecida Bastos Rocha – Professora Adjunta na Faculdade de Formação de Professores, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro [UERJ/FFP]. E-mail: helarocha@gmail.com
CAVALCANTI, Erinaldo Vicente; ROCHA, Helenice Aparecida Bastos. Apresentação. Escritas do Tempo, Pará, v.2, n.5, 2020. Acessar publicação original [DR]
O livro didático no Rio Grande do Sul / Revista do IHGRS / 2012
A Revista constitui a mais relevante publicação do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Como diversos estudos já comprovaram, a RIHGRGS foi durante muito tempo a mais importante referência para os estudos históricos e geográficos regionais, muitos anos antes do advento dos primeiros cursos universitários de História e Geografia estabelecidos no nosso estado. A partir do número 144, a Revista entrou em uma etapa renovada, com um layout de capa que homenageia o visual dos números publicados nos inícios da década de 1940, quando era dirigida por Dante de Laytano.
No número 146, a Revista apresenta suas tradicionais seções, iniciando com uma série de artigos redigidos por membros efetivos e correspondentes do Instituto e colaboradores. Nesta edição publicamos também um dossiê sobre o livro didático no Rio Grande do Sul, além de discursos e conferências. Na seção de Documentação, damos continuidade à publicação da correspondência ativa do governador José Marcelino de Figueiredo, referente ao ano de 1775, que já fora iniciada nos números anteriores.
Por fim, gostaríamos de agradecer ao apoio fundamental da CORAG (Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas), na pessoa do sua Diretora-Presidente, Dra. Vera Oliveira, cuja disponibilidade viabilizou a publicação de mais este número da Revista.
Esperamos que todos tenham uma boa leitura.
Fábio Kühn – Coordenador de Comunicação
KÜHN, Fábio. Apresentação. Revista do IHGRS. Porto Alegre, n.146, 2012. Acessar publicação original [DR]