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Literatura nos Arquivos / História Social / 2012
O conhecimento histórico contemporâneo continua a purgar o pecado da ingenuidade narrativa nele predominante até o passado recente. O cuidado agora devido às dimensões retóricas da disciplina produz amiúde certa instabilidade no que tange a seus modos realistas tradicionais. Ademais, a crítica a concepções ditas “historicistas” do ofício leva a reconfigurações significativas de noções tais como temporalidade, agência, determinação e outras concernentes à prática dos historiadores. Much ado about nothing , quem sabe, ou assim me parece, pois a história pode, ou deve, ser em igual medida arte narrativa e discurso de demonstração e prova, como Carlo Ginzburg tem argumentado incansavelmente, às vezes com alguma dose de impaciência, faz tempo.
Digamos que boa parte da culpa caiba a Hayden White, ou quiçá que muito do mérito seja dele, a depender do ponto de vista. White expulsou os historiadores do paraíso da suposta abstenção retórica em nome do idioma empírico pertinente à disciplina. Ao fazê-lo, contudo, enamorou-se da própria escultura, esgarçou o argumento ao ponto de professar a descrença na possibilidade do discurso referencial em história. A hipótese idealista da redução do mundo a redes de textos, tornando impossível qualquer teoria do conhecimento baseada em pressupostos referenciais, permanece indemonstrável, opção que conduz ao colapso de texto e contexto no mesmo abismo reducionista da experiência exclusivamente estética da historiografia, da literatura, da cultura. Em assuntos que tais, melhor evitar alternativas falsas, “o texto ou o autor”, pois “nenhum método exclusivo é suficiente” (Compagnon, 2010, p.94).
História e literatura. Ao dizer literatura pode-se pensar em obras de ficção propriamente ditas; ou na disciplina dedicada a interpretá-las, a crítica literária. No primeiro caso, literatura igual a obras de ficção, a questão é refletir sobre metodologias de abordagem delas a partir de uma perspectiva histórica. No segundo caso, literatura igual a crítica literária, o que interessa é comparar epistemologias ou modos de saber – jeitos de construir objetos de pesquisa, de conceber a perspectiva do sujeito do conhecimento, de constituir o legado do conhecimento, suas tradições e assim por diante. Em suma, comparar história e crítica literária no que concerne à maneira como lidam com o seu mistério central: isto é, como se chega a saber, em cada disciplina, aquilo que seus praticantes alegam saber.
Apresso-me, pois, em definir “literatura”no sentido de obra de ficção, para evitar discussões intermináveis em torno de palavra sobre a qual não há muito acordo sobre o que significa, mas também porque chegar a uma tal definição permite passar logo em seguida ao labor de qualificá-la ou relativizá-la, o que ajuda a pensar. Ao que parece, não obstante a diversidade de visada entre eles, críticos literários comumente concebem obra de ficção como texto narrativo não-referencial (Candido, Cohn, Gallagher). Ademais, tendem a adotar como parâmetro um acontecimento histórico específico, a saber, a emergência do romance e o modo de ser dele no Oitocentos ocidental. “Não-referencial” no sentido de que esse tipo de texto se emancipa de qualquer base de dados específica, cria o mundo ao qual se refere ao se referir (sic) às personagens e acontecimentos que o constituem. Textos que não operam por meio da oposição entre verdade e mentira, verdadeiro e falso, eles pressupõem um leitor que aceite o jogo no terreno da verossimilhança, que adote a atitude de suspender o juízo realista para adentrar outro nível de discurso, inteiramente inventado no detalhe, constituído por enquadramentos imaginários, não-referenciais, ainda que jamais independente da circunstância histórica na qual vem a ser. Textos de ficção são narrativos porque neles as vozes são instáveis, podem ser dissociadas de sua origem autoral, daí decorrendo que muito da tradição da crítica literária se constitua em torno da interpretação de narradores e seu significado na fatura das histórias contadas. Autores supostos ou narradores imaginários produzem situações nas quais dão a ver, por assim dizer, o que há nas mentes das personagens do mundo que criam.
Desnecessário dizer que nesses procedimentos de escrita não há nada que se assemelhe ao que fazem os historiadores, cuja retórica leva outro barro. O melhor então é mudar de roupa sem trocar de pele, observar de novo que as linhas gerais desse jeito de definir ficção remetem a um processo histórico específico, isto é, à maneira de ser de muito da literatura ocidental no século XIX, a era de ouro do romance. Ao dizer história e literatura, nós, historiadores, ou ao menos este historiador, quer refletir sobre procedimentos de interrogação de uma série específica de, a saber, a ficção ocidental oitocentista, em especial o romance, mas não só ele.
História e literatura, conhecimento histórico e crítica literária, quiçá história social e crítica literária. Há entre essas duas disciplinas diferenças importantes na abordagem da literatura. As tradições disciplinares criam matrizes, grades de visão, que não precisam ser excludentes e que parece ridículo conceber em estado de competição entre elas. Gabrielle Spiegel refletiu sobre essas diferentes perspectivas de interpretação. Ao se voltar a um texto literário específico como objeto de estudo, o crítico literário o transforma numa realidade constituída, delimitada em sua essência, por mais que permaneça aberto a leituras diversas, a interpretações conflitantes. A literatura parece especialmente capaz de produzir “objetos” desse tipo, cousas quase mágicas em sua suposta desconexão coma história, com o lugar e tempo de seu vir-a-ser primário. Um volume de Dom Casmurro, qualquer volume, qualquer impressão dele, será sempre Dom Casmurro, parecerá haver nele o sopro de uma alma capaz de se subdividir infinitamente sem deixar de estar inteira em cada novo artefato dela. Esse tipo de perspectiva tende a tornar o intérprete mais sensível ao que há de imaginário na literatura, aos procedimentos artísticos que fazem com que ela funcione enquanto literatura, pois criam eficazmente a fantasia (isto é, uma ilusão resultante do trabalho e da habilidade artísticas) de autonomização do mundo de personagens e acontecimentos que a constituem (Wood, Todorov).
O historiador, por seu turno, estuda contextos e processos históricos que não existem eles próprios, cujos contornos se definem no andamento da pesquisa. O historiador constói o seu objeto, e construí-lo é por sua vez interpretá-lo. Spiegel leva o paralelo entre a história e a crítica literária ao ponto de argumentar que o crítico é um leitor de seus objetos de investigação, enquanto o historiador se torna um escritor dos seus, já que ele mesmo os constitui por meio de procedimentos empíricos e conceituais específicos correntes no ofício. Decerto o contraste é esticado demais. Tanto críticos literários quanto historiadores sabem, por exemplo, que a literatura do século XIX acontecia na imprensa, era indissociável dela. Jornalismo e literatura eram ofícios quase intercambiáveis: as mesmas personagens praticavam regularmente os dois ofícios, e se exercitavam nas variadas formas de texto existentes em cada um deles. O dossiê que ora apresento é prova cabal disso. Ademais, a imprensa do século XIX estava permeada por procedimentos de ficcionalização nos vários tipos de textos que a constituíam (Thérenty), fosse noticiário, correspondência, anúncio, humor, até editorial, além de crônica, conto e romance-folhetim, gêneros os quais se suporia literários, apesar de sobre a crônica ainda pairar um preconceito documentário duro de matar. A separação entre os ofícios de literato e jornalista foi processo longo, doloroso quiçá em especial para os leitores de jornais e revistas, submetidos hoje ao protocolo difícil da escrita neutra, supostamente independente, que expulsa a imaginação para deixar entrar, sem peias, a ideologia.
Não importa o quão limitadas em sua abrangência, as observações de Spiegel permitem abordar outro problema, respeitante aos ruídos comumente havidos quanto a tentativas de teorizar uma perspectiva historicamente informada da literatura. História não é termo estável, passível de estabilizar e ancorar interpretações de alegorias mais ou menos complexas presentes em textos literários. Às vezes fica-se com a impressão, ao ler a crítica, de que ocorre uma estranha combinação entre o entendimento do caráter complexo, fraturado e heterogêneo do texto literário e a postulação de um processo histórico linear e incontroverso, como se o conhecimento histórico consistisse na elaboração de uma narrativa mestra da história nacional, ou ocidental, ou universal, ou o que seja, pois nada disso ele pode ser. A alternativa, pior ainda, é que o entendimento impressionista de que a história não pode ancorar cousa alguma, de que o conhecimento histórico se produz numa arena de luta, num campo de forças em disputa por sentidos e interpretações, resulte na adoção de um ponto de vista decididamente hostil à história, levando o reducionismo estético às fronteiras da insensatez crítica e do casuísmo político. Em suma, para resumir: se as obras literárias permitem deslocamentos discursivos diversos, autorizam interpretações variadas, às vezes divergentes, o mesmo é verdade quanto ao processo histórico; acontecimentos passados não são necessariamente mais lógicos, menos permeados por contradições e intenções não declaradas, do que qualquer texto ou discurso.
Em texto recente, Susan Buck-Morss apresentou o que talvez seja um exemplo extremo de o quanto a atenção à história pode contribuir para o entendimento mais complexo de obras “geniais”, intemporais ao menos enquanto continuam a ser lidas em determinados nichos do mundo acadêmico. No caso, a filosofia de Hegel, mais precisamente as páginas nela existentes dedicadas à análise dialética das relações entre senhores e escravos, decisivas até há bem pouco tempo nos estudos sobre a escravidão moderna, pois conducentes a interpretações definitivas sobre a reificação da experiência escrava, o arbítrio senhorial, as características específicas da alienação de senhores e escravos pertinentes a esse tipo de formação social. Pois Buck-Morss demonstra que Hegel filosofava a partir da leitura regular que fazia das notícias que lhe chegavam, em jornais e revistas, sobre a revoluçãodo Haiti, na virada dos séculos XVIII ao XIX, que resultou na formação do único país independente nas Américas originário duma insurreição de negros escravos, libertos e livres. A revolução do Haiti permaneceu um episódio inimaginável, às mentes europeias, mesmo enquanto acontecia; ler as mesmas páginas de Hegel com isto em mente as torna outras, quem sabe com repercussões quanto às injunções políticas contemporâneas de nossas opções a respeito do modo de recortar objetos e imaginar métodos de pesquisa.
A leitura dos artigos constantes de mais este dossiê da ousada e duradoura História Social: Revista dos pós-graduandos em História da Unicamp é instrutiva e prazerosa. Uma ou duas palavras sobre cada um deles, à guisa de aperitivo. Jefferson Cano explora os primórdios da presença do romance na imprensa da Corte, em seu jeito folhetim de ser, seriado, mui comentado, central nos debates a respeito de que literatura convinha àquele país por fazer. Daniela Silveira aborda os contos de Machado de Assis publicados no Jornal das Famílias, descobre maneiras de o autor tirar proveito do que aprendia a respeito das expectativas de suas leitoras, suas artimanhas para driblar a aflição masculina em relação ao que se dava para ler às moças. Ana Flávia Ramos analisa as crônicas de Machado de Assis na série Balas de Estalo, descreve as características dessa série coletiva e a maneira de inserção nela de Lélio, a personagem inventada pelo autor para figurar como seu narrador. O texto mostra a densidade política e literária dessas crônicas ao acompanhar as mudanças de percepção e humor de Lélio diante da resistência escravocrata às leis de emancipação escrava. Leonardo Pereira escreve sobre “cousas do sertão” em Coelho Netto. Ao fazê-lo, oferece contribuição importante ao tema candente do pós-emancipação, mostra como o debate a respeito do caráter do sertanejo expõe as incertezas e ambiguidades inerentes ao processo de pensar o mundo sem escravidão e monarquia na ainda tão pouco conhecida década de 1890. Julia O’Donnell tira do esquecimento Benjamin Costallat, provoca reflexão a respeito dos mecanismos de atribuição de relevância pautados pelo mercado e pelos interesses políticos de momento, capazes de alçar uma obra à glória momentânea para reduzi-la em seguida ao silêncio mais cabal. Além disso, há na personagem uma preocupação constante com a referencialidade, o que torna a sua obra um jeito de imaginar em detalhe os cinematógrafos, automóveis, janotas e vaporosas de um outro tempo. Ana Porto nos diz de gente de papel assassinada, esquartejada, carregada em malas, ainda que muita vez o que aparecia nos livros e folhetins fosse recriação de crimes e esquartejamentos tidos e havidos. Conta-se pois uma história da popularização da literatura de crime no país, em diálogo com o que ocorria noutras paragens, sempre fascinante o problema de entender os motivos pelos quais essas histórias seduzem tantos leitores.
Referências
BUCK-MORSS, Susan. Hegel, Haiti, and universal history. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2009.
CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, 2ª. ed.
COHN, Dorrit. The distinction of fiction. Baltimore e Londres: The Johns Hopkins University Press, 1999.
GALLAGHER, Catherine. “The rise of fictionality”. In: MORETTI, Franco. The novel. Volume 1: history, geography and culture. Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2006, pp.336-363.
GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
SPIEGEL, Gabrielle M. The past as text: the theory and practice of medieval historiography. Baltimore e Londres: The John Hopkins University Press, 1997.
THÉRENTY, Marie-Ève. La littérature au quotidien: poétiques journalistiques au XIXe. Siècle. Paris: Éditions du Seuil, 2007.
TODOROV, Tzvetan. A literature em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.
WHITE, Hayden. Como funciona a ficção. São Paulo: Edusp, 1992.
WHITE, Hayden. Meta – História: a imaginação histórica do século XIX. Baltimore e Londres: The Johns Hopkins University Press, 1990 (edição original: 1978).
WOOD, James. Tropics of discourse: essays in cultural criticism. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
Sidney Chalhoub – Professor Titular, Departamento de História, UNICAMP.
CHALHOUB, Sidney. Apresentação. História Social. Campinas, n.22-23, 2012. Acessar publicação original [DR]