Os trabalhadores: experiência, cotidiano e identidades / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2011

Os estudos sobre o trabalho e os trabalhadores vem sendo, por décadas, uma espécie de indicador sensível das transformações pelas quais passou e passa a história em suas relações com as ciências sociais em geral. Temas de pesquisa, fontes, conceitos e categorias analíticas, modelos interpretativos, enquadramentos teóricos: nenhum dos grandes parâmetros fortes da disciplina passou intacto pelos muitos desafios intelectuais que deram forma ao campo historiográfico contemporâneo.

Mesmo uma análise breve e resumida do panorama dos estudos sobre o trabalho nas seis últimas décadas demonstra esse argumento eloquentemente: tomando como um ponto de partida qualquer (ainda que não inteiramente arbitrário), como os estudos dos historiadores marxistas britânicos que, desde os anos 1950, redefiniram a história da Inglaterra a partir do protagonismo dos trabalhadores, podemos identificar o impulso forte, que marca os desenvolvimentos mais importantes da história social, de integrar à história os instrumentos e perguntas das ciências sociais e da antropologia. Basta lembrar a originalidade do trabalho de alguém como Eric Hobsbawm, por exemplo, que em Rebeldes primitivos (1959) estudou as formas de resistência popular, mostrando como era possível ler a “política” dos grupos subalternos em suas atitudes de desafio da lei e da ordem, como no “banditismo social” do Cangaço. Não faz falta mencionar também outro originalíssimo Englishman, que foi Edward Palmer Thompson, cujos trabalhos sobre o “fazer-se” da classe operária inglesa, sobre as revoltas camponesas pré-industriais ou sobre as relações entre lei, costume e conflito social, foram fundamentais para colocar no centro da história social o tema da experiência e do protagonismo dos atores sociais, bem como mostrar a importância da interrogação sobre a “cultura” entendida em um sentido marcadamente antropológico. Desenvolvimentos e críticas posteriores, como o chamado “cultural turn” e os estudos de gênero, também se dedicaram a repensar categorias identitárias, colocando em causa a própria ideia do “trabalhador”, chamando a atenção para sujeitos e experiências sociais que foram por muito tempo negligenciados pelos estudos mais “convencionais” sobre o trabalho, tradicionalmente centrados nos trabalhadores da indústria (frequentemente do sexo masculino e sindicalizados) ajudando a formular a crítica a uma história do movimento operário que dava destaque unicamente às associações formais dos trabalhadores, bem como às ideias políticas dos seus membros mais destacados, dando como favas contadas a “identidade de classe” e o seu significado.

Foi também o campo amplo dos estudos sobre o trabalho que descobriu e redescobriu outros atores que por muito tempo ficaram à margem da narrativa mestra da história social: não apenas as mulheres (descobrindo, por exemplo, que a “classe operária tem dois sexos” [1]), mas também os escravos e trabalhadores livres pobres na cidade e no campo, os marginalizados, o mundo do trabalho “informal” e precário, o mundo colonial e pós-colonial, em suas dimensões sociais e culturais.

A despeito das inflexões e reviravoltas, das transformações teóricas e conceituais, o leque amplo de estudos a que estamos nos referindo não deixou jamais de reconhecer a centralidade do “trabalho” na experiência social contemporânea.

No Brasil, esse entrelaçamento entre os estudos sobre o trabalho no âmbito das ciências sociais e da história tem uma trajetória igualmente rica, marcada pelas trocas recíprocas e pela atenção constante sobre as transformações do campo político contemporâneo. Aqui, mais uma vez, é nesse horizonte intelectual e político que o influxo entre a história e ciências sociais aparece com mais força e consistência, como atestam os estudos seminais, produzidos já nos primeiros anos da década de1980 (não por acaso, em resposta ao momento político da democratização e do fortalecimento do movimento operário que contribuiu com a dissolução do suporte político da ditadura militar na década anterior), exemplificados por estudos como os de Emir Sader, Maria Célia Paoli ou José Sérgio Leite Lopes – entre outros –, que aliavam a pesquisa sociológica e etnográfica a um olhar profundamente informado pela reflexão histórica.[2] Um princípio inspirador que se manteve forte e que continua a mover os debates e a renovação dos estudos sócio-históricos ainda hoje.

Diversidade temática e regional, diálogo interdisciplinar e centralidade do trabalho são elementos que se entrelaçam no dossiê da Revista Brasileira de História & Ciências Sociais (RBHCS) que aqui se apresenta e que é dedicado aos estudos sobre os “Trabalhadores: experiências, cotidiano e identidades”. Nele encontramos de saída dois estudos etnográficos sobre o mundo do trabalho: O primeiro é um trabalho comparativo realizado por Marta Cioccari sobre um setor central da história operária – os mineiros – que foram protagonistas de algumas das mais significativas transformações ao longo do último século. Temas como “honra”, “orgulho do trabalho”, bem como os vários pertencimentos dos trabalhadores são investigados em duas comunidades mineiras distintas: Minas do Leão (RS) e em Creutzwald, na Lorena francesa. Flávio Ferreira, por outro lado, foca as relações entre o “tempo do trabalho” e o “tempo da festa”, também explorando o entrelaçamento e porosidade entre a esfera do trabalho e do “não-trabalho” em sua relação com a organização do tempo na Serra da Gameleira (RN). Na sequência, Jairo Falcão apresenta seu estudo sobre as memórias dos portuários de Porto Alegre, mostrando mais uma vez a importância da história oral para a reconstrução de dimensões difíceis de capturar em outros documentos, como as relações entre o trabalho, a memória e o corpo. Finalmente, um grupo de pesquisadoras na área de saúde em Santa Catarina apresentam seu diagnóstico de vida e saúde sobre um bairro de trabalhadores de Criciúma, focando elementos da violência urbana através dos registros da Delegacia da Mulher daquela cidade.

Como se pode ver, trata-se de um conjunto sugestivo de temas e de abordagens que marcam os artigos aqui apresentados, entrelaçando o interesse pelas permanências e tradições dos trabalhadores com dimensões absolutamente contemporâneas da sua experiência. Motivos mais do que suficientes para indicar fortemente a sua leitura.

Notas

1. A referência é do livro de Elisabeth Souza-Lobo, A classe operária tem dois sexos. Trabalho, dominação e resistência. 2a edição, São Paulo: Perseu Abramo, 2011 (1a edição de 1991).

2. Paoli, Maria Célia; Sader, Eder & Telles, Vera Silva. “Pensando a classe operária: os trabalhadores sujeitos ao imaginário acadêmico”. Revista Brasileira de História, Vol. 3, no. 6, 1983, pp. 1291-49. Sader, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo (1970-1980). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. Lopes, José Sérgio. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés. São Paulo / Brasília: Marco Zero / CNPq, 1988.

Henrique Espada Lima – Professor Adjunto do Departamento de História da UFSC. Bolsista de Produtividade do CNPq.


LIMA, Henrique Espada. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.3, n. 6, jul. / dez., 2011. Acessar publicação original [DR]

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Carlo Ginzburg | ArtCultura | 2007

Os trinta anos recém-completados da publicação original de O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição, bem como os vinte anos de sua tradução brasileira, parecem uma data oportuna para refletir sobre a trajetória intelectual do seu autor nas últimas décadas. Aquele livro, como se sabe, foi responsável por projetar Carlo Ginzburg como um dos mais inovadores historiadores de sua geração e — traduzido em vinte e dois idiomas além do italiano — tornou-se uma espécie de marco da renovação dos estudos de história da cultura popular, tanto quanto de um modo de fazer história que aliava a análise atenta das minúcias, o interesse pelo protagonismo individual (ou o ponto de contato entre as estruturas de larga duração e o cotidiano mais banal de um personagem sem importância, cuja vida dificilmente poderia ser considerada como estatisticamente representativa) e tudo aquilo que muito freqüentemente se tem considerado como características centrais de uma perspectiva micro-histórica. Somava-se a isso, ainda, a atenção sobre a exposição e a narração, o flerte entre a história e a literatura.

Todos esses aspectos, imediatamente reconhecidos pela crítica histórica, converteram o livro num clássico, e não apenas na Itália. O exemplo próximo e mais eloqüente é aquele dado pelo público brasileiro, que garantiu não somente as reedições sucessivas da história de Menocchio (incluindo aí mais recentemente uma edição de bolso com grande tiragem), como também a tradução quase imediata da maior parte da produção intelectual desse autor nos últimos vinte anos.1 Leia Mais