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África, tráfico de escravos e escravidão nas Américas / História – Questões & Debates / 2010
Os textos que compõem o dossiê “África, tráfico de escravos e escravidão nas Américas” foram reunidos pelo fato de tratarem, a partir de abordagens e motivações próprias de cada autor, de uma série de elementos que receberam mais atenção de historiadores durante as últimas décadas no que toca à relação entre as sociedades africanas, o tráfico de escravos e a escravidão nas Américas. Esses relacionamentos pareceram durante muito tempo ter obedecido a padrões singelos. Mas, vasculhados por investigadores recentes, receberam novas interpretações ou foram submetidos a métodos de trabalho renovados, descortinando aspectos novos ou que foram redimensionados. Exemplifico com características mais detalhadas do tipo de demanda exercida por diversos produtos e regiões produtoras; com as relações entre as sociedades africanas entre si, do mesmo modo que com autoridades e traficantes europeus ou americanos; com os trânsitos de escravos e senhores entre colônias e países diversos, já nas Américas; com o aspecto internacional, ou intercolonial, ou ainda interimperial do tráfico africano e com o relacionamento entre movimentos internos e atlânticos dos cativos.
O texto de David Eltis condensa achados de magnitude inigualável obtidos a partir da elaboração de sua muito extensa base de dados a respeito do tráfico de escravos africanos. Tratou, no artigo aqui traduzido, dos africanos livres, indicando o que sua trajetória esclarece a respeito de uma miríade de processos relacionados ao comércio de almas. O autor dá muita atenção, inclusive, àquilo que o estudo dos africanos libertados de navios negreiros ensina a respeito de suas regiões de origem. Isso se deve à grande quantidade de informações passível de ser obtida a seu respeito, em comparação com o que se passava com os africanos que permaneceram em cativeiro. As informações sobre eles esclarecem muito, claro, sobre a dinâmica da repressão ao tráfico de escravos, mas também abrem perspectivas de estudo muito intensivo acerca das regiões onde foram alocados.
O trabalho de José Flávio Motta levanta questões intrigantes, tanto pelos resultados já expostos em seu artigo quanto pelos métodos de trabalho que sugere. Um mercado de escravos velhos é por si só uma surpresa. É verdade que, durante o período estudado, o cativeiro já se encontrava em crise no Brasil e isso se manifestava nessa escolha feita pelos compradores, preponderantemente cafeicultores. Possivelmente, não se esperava que a escravidão durasse muito tempo, de modo que talvez fizesse menos sentido do que antes os senhores calcularem a duração futura da produtividade desses escravos. Paralelamente, a demanda por escravos velhos dá informações preciosas sobre o tamanho da urgência por trabalhadores sentida nos lugares que os compravam, dando muita cor à relação que o café, inclusive o do Oeste paulista, ainda mantinha com a escravidão. Por outro lado, os escravos velhos informam muito sobre o passado desse período durante o qual eram negociados. As transações que os envolviam contêm, portanto, informações preciosas sobre o tráfico de escravos africanos que trouxe muitos deles para a província, já que esse tráfico se encontrara em seu auge durante a primeira metade do século. A questão muito debatida de famílias escravas terem ou não sobrevivido às transações de compra e venda também ganha uma luz especial com esse tipo de encaminhamento.
O artigo de Márcio de Sousa Soares contém informação preciosa sobre Campos dos Goitacazes. Isso é fundamental, pois no longo prazo a relação entre tráfico e escravidão no açúcar foi o ponto mais decisivo de todos na relação entre comércio de almas e escravidão – e a cana no Sudeste brasileiro ainda merece mais estudos. O autor utiliza inventários e registros de batismo para esclarecer o enorme peso numérico, em Campos, dos escravos nascidos no Velho Mundo, além de utilizar informações sobre relações familiares para qualificar aspectos muito importantes das relações entre africanos e nascidos no Brasil.
Leonardo Marques trata em seu artigo da participação norte-americana no tráfico de escravos, ressaltando a peculiaridade de ter-se tratado de tráfico muito voltado para o aprovisionamento de outras colônias ou países. Talvez só tenha havido paralelos a essa ênfase no caso do tráfico holandês e no de um momento particular do português, talvez já luso-brasileiro – o do final do século XVI e primeiros anos do seguinte, de acordo com o trabalho de Rozendo Sampaio Garcia1. O artigo é importante por, além de avaliar as dimensões do fenômeno, historiá-lo, tendo em vista a história das instituições norte-americanas e da legislação a respeito, assim como a demanda das regiões importadoras – especialmente Cuba. Contribui para a análise das conexões entre regiões diversas, e de tradições diferentes, nas Américas escravistas.
A contribuição de Alex Borucki também põe no centro da cena as conexões entre regiões e países diferentes, por referir-se à participação brasileira e de luso-afro-brasileiros de Angola e Moçambique nos arranjos destinados a burlar a pressão inglesa e a legislação nacional de cada país, em favor da preservação do tráfico de escravos. Reúne informações a esse respeito a propósito do até agora mal conhecido caso das crianças africanas conduzidas a Montevidéu na qualidade de “colonos”.
O texto de Marion Brepohl de Magalhães, ao tratar do imperialismo alemão na África (os dois focos são os Camarões e o sudoeste africano), sugere caminhos de investigação tanto no tocante à história europeia, quanto em relação à África. Quanto a esta, é de se lembrar a possível existência de fundos documentais ainda pouco explorados a respeito das partes controladas por alemães no continente africano.
Além do dossiê “África, tráfico de escravos e escravidão nas Américas”, são publicados neste número outros trabalhos: João Miguel Teixeira de Godoy realiza uma excelente retrospectiva sobre os estudos voltados ao mundo da fábrica, sempre revisitados nas pesquisas destinadas a este objeto; Leandro Antônio de Almeida apresenta, a partir do escritor João de Minas, mais um exemplo sobre as múltiplas possibilidades do diálogo entre a História e a Literatura; ainda, como mais um representante da nova geração de pesquisadores brasileiros dedicados ao mundo antigo, o estudo de Claudio Umpierre Carlan versa sobre o poder da imagem à época do Imperador Constantino. Finaliza-se o periódico com duas resenhas, de Fabiano Luis Bueno Lopes e João Fábio Bertonha.
Nota
1. GARCIA, Rozendo Sampaio. Contribuição ao estudo do aprovisionamento de escravos negros na América Espanhola. Separata dos Anais do Museu Paulista. São Paulo, 1962.
Carlos A. M. Lima – Universidade Federal do Paraná
LIMA, Carlos A. M. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.52, n.1, jan. / jun., 2010. Acessar publicação original [DR]