Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary – DAS (CP)

DAS, Veena. Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary. Berkeley, University of California Press, 2007, 281p.  Resenha de: PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Violência, gênero e cotidiano: o trabalho de Veena Das. Cadernos Pagu, Campinas, n. 35, Dez. 2010.

A antropologia e a teoria feminista têm como espaço privilegiado de reflexão a intersecção gênero, violência e subjetividade. Algumas abordagens nessa intersecção acabam por pensar violência como algo apenas eventual, olvidando-se frequentemente de assinalar suas íntimas conexões com o cotidiano. É comum também, e consubstancial a essa visão de violência como extra-ordinário, pensar o campo que envolve a violência em oposições rígidas, tais como: vítima e agressor, agência e opressão – existindo mesmo uma habitual associação entre agência e transgressão, como se a voz das vítimas só pudesse se manifestar transgredindo e enfrentado a Lei. Dessa maneira, como algo esporádico e fortuito, que se irrompe aqui ou acolá, a violência não desce ao cotidiano, e o trabalho diário na lida contra a violência é obnubilado em favor de certo tipo de violência acidental e de certo tipo heróico de resistência. É à busca de pensar as relações entre gênero, violência e subjetividade para além da oposição ordinário e extra-ordinário, evitando as ciladas dessa oposição, que a antropóloga indiana Veena Das vem se dedicando na última década e, como fruto dessa inquietação, publicou o livro Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary.

Veena Das iniciou suas investigações em Gujarat, um Estado da Índia que faz fronteira com o Paquistão. Encontrou ali famílias que haviam imigrado à Índia refugiadas de diversas regiões do Punyab – famílias que por décadas compartilharam com a antropóloga suas memórias e seus testemunhos da violência da Partição (divisão territorial efetuada pela Índia e Paquistão em 1947, pouco tempo após suas independências político-administrativas do império britânico). Esse “evento crítico” caracterizou-se pela violência entre mulçumanos, hindus, sikh e diversos grupos étnicos e religiosos que acabou por desalojar 14 milhões de pessoas e vitimar pelo menos um milhão. Uma das histórias recorrentes na Partição foi o rapto e a violação das mulheres. Das efetuou uma paciente aproximação etnográfica, na qual os relatos de violação, as reestruturações familiares, os testemunhos de violência se encontravam também com uma memória que, simultaneamente, se silenciava sobre o acontecido e se manifestava nas relações sociais, transformando as relações de parentesco. Uma década após, em 1984, Das se deparou com a violência contra os Sikh em Delhi, quando do assassinato de Indira Gandhi, então Primeira-Ministra da Índia. Às memórias dos eventos violentos de 1947, presentes mesmo que sob forma de um “conhecimento venenoso”, somavam-se violências súbitas, dirigidas contra os Sikh, organizadas com a conivência do Estado, mas praticada por grupos ilegais, geralmente em forma de motins.

Das vem pesquisando esse contexto desde o início da década de setenta – como se pode acompanhar pelos seus trabalhos (1990, 2003, 2005), alguns já resenhados e relativamente conhecidos no Brasil (Das, 1995; Peirano, 1997). A busca geral da antropóloga é verificar como se estabelecem as relações sociais nesses eventos críticos (1995), de que forma o gênero é acionado como uma gramática que autoriza a violência (2007), qual o papel desempenhado pelo Estado (Das e Poole, 2004), qual o status das vítimas e sua capacidade de resistência, em que condições ocorrem os testemunhos e o que podem revelar (1995; 2007), entre outros. Life and Words persiste nessas indagações, propondo, no entanto, um novo e importante foco: averiguar como a violência desce ao cotidiano.

No prefácio ao livro, Stanley Cavell (2007:ix-xiv) sustenta que Das dialoga com Wittgenstein ao fazer sua análise girar em torno da dor. De fato, o diálogo existe e Life and Words é uma contribuição significativa aos estudos de violência, sofrimento e dor. Das utiliza o conceito de Wittgenstein de “formas de vida” para averiguar como a violência expõe os limites dos critérios de vida e se apresenta como fracasso da gramática cultural no estabelecimento e interpretação de formas de vida. Mas a importância desse livro – aquilo que a autora avança e acentua se comparado a seus trabalhos anteriores – reside, vale insistir, no lugar privilegiado atribuído ao cotidiano. Opção que enseja diversas indagações: de que forma esses eventos violentos, que se irrompem na vida social, descem ao dia-a-dia? que tipos de personagens atuam nessa descida? como agem? em quais gramáticas atuam e sob quais jogos? como operam os rumores? como as mulheres, que surgem como os principais atores desse processo, reconstroem o cotidiano como forma de resistir à violência?

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O livro é dividido em duas partes. A primeira (capítulos 2 ao 5) aborda a Partição da Índia, em 1947, e os processos pelos quais a violência desse evento crítico é construída no dia-a-dia da Índia contemporânea. Nessa parte, tendo como interlocutores as vítimas da Partição, Das demonstra que os sujeitos enfrentam essa violência não com um acento excessivo numa memória paralisada, mas como forma de reabitar o cotidiano. Na segunda parte (capítulos 7 ao 11), Das reflete sobre a violência coletiva que se seguiu ao assassinato de Indira Gandhi, caracterizada pelos motins anti-Sikh. A abordagem se centra numa política de afetos que se transforma em atos de violência e conforma “comunidades de ressentimento”.

Nas análises sobre a Partição, uma das questões principais abordadas pela autora é o rapto e a violação das mulheres. Durante a Partição, os Estados da Índia e do Paquistão adotaram normas que vinculavam a castidade da mulher à dignidade da nação. O corpo da mulher se transformou, então, num signo de comunicação entre homens, uma violenta linguagem da masculinidade. As mulheres violadas pelos raptores eram ora assassinadas, ora se suicidavam como condição de reentrar “honradas” na imaginação da nação; as sobreviventes eram marginalizadas e enfrentavam contínuas e árduas dificuldades para refazerem suas vidas. Segundo a autora, as mulheres raptadas circulavam nos debates políticos e permitiam ao Estado estabelecer um estado de exceção que sinalizava uma alteração do fluxo na troca de mulheres. Esse acontecimento permitiu um “contrato social” entre homens, fundamentado num “contrato sexual”, que reivindicava os direitos dos homens sobre as mulheres. A violência infligida às mulheres não se referia apenas ao silenciamento de suas vozes, mas à transformação das mulheres em testemunhas da violência brutal, testemunhas silenciadas, mas que tinham em seus corpos os signos da violência – corpos apropriados numa disputa pela soberania que operava por uma gramática violenta de gênero.

Essas mulheres, cujos corpos são signos dessa gramática violenta de gênero, expressavam-se numa zona de silêncio. Das utiliza a metáfora de “conhecimento venenoso” para falar como as mulheres atuam sobre o sofrimento a elas infligindo. Quando conversava com as mulheres raptadas e violadas durante a Partição, indagando sobre suas experiências, Das percebeu uma zona de silêncio, principalmente sobre os fatos mais brutais. Surgia ali uma linguagem metafórica que se valia de figuras de linguagem para escapar de narrar diretamente a violação. As mulheres utilizavam a metáfora de uma mulher que bebia veneno e o mantinha dentro de si. Esse conhecimento manifestava-se no cotidiano e nas formas de perceber a vida, construindo um mapa das relações sociais, permitindo-lhes operar as experiências violentas no cotidiano, na reconstrução do dia-a-dia. Testemunhas silenciosas atuam – valendo-se do “trabalho do tempo” – sobre os relacionamentos familiares, num processo contínuo de reescrita. As mulheres parecem se valer de um tipo específico de compreensão: o tempo também possui agência, e trabalha. Saber lidar com o tempo significa atuar diretamente na reconstrução das relações e permite reabitar o mundo. O trabalho do tempo possibilita colocar essas mulheres na condição de sujeitos, no processo de reconstrução de suas relações familiares.

Para falar sobre o “trabalho do tempo”, Das descreve a história de Manjit, uma das mulheres raptadas durante a Partição e resgatada pelo exército indiano. A narrativa acompanha Manjit do arranjo apressado de seu casamento (devido aos tumultos da Partição e seus efeitos nas famílias), à violência rotineira desferida por seu marido contra ela e, posteriormente, contra o primogênito do casal; aproxima-se das complexas negociações do casamento do filho de Manjit e mostra o deslocamento da violência de seu marido para a jovem esposa; assinala como essa violência faz com que se contrariem todas as convenções culturais, forçando o primogênito e sua esposa a se mudarem de casa; e finaliza retratando o esposo de Manjit adoecido e necessitando de cuidados, o filho de Manjit retornando à sua casa, onde a protagonista da narrativa consegue finalmente tranqüilidade para viver ao lado de seus netos. A história, muito mais rica do que pude descrever, conta-nos como o tempo não é algo simplesmente representado, mas um agente que trabalha nas relações, permitindo que sejam reinterpretadas e rescritas no embate dos agentes na construção de suas histórias.

Semelhanças entre essa poderosa história e O vento, filme de Victor Sjöström (1928), poderiam ser traçadas. No filme, uma jovem sulista vai ao Texas para se casar, mas é violentada no trem por um desconhecido. A jovem, entretanto, mata o agressor e enlouquece, em meio à tempestade de areia provocada pelo vento incessante. Embora ambos abordem a violência de gênero, a trama da narrativa é diferente: Manjit não enlouquece como a jovem Letty do filme, e sabe utilizar o trabalho do tempo a seu favor. Contudo, nas duas narrativas temos a forte presença de outros protagonistas: na obra de Sjöström, o vento; no texto de Das, o tempo – ambos são agentes que aparecem como personagens principais da história.

trabalho do tempo também se manifesta nas relações entre a Partição e os eventos que se sucederam após 1984 (a invasão do Templo Dourado de Amritsar, o assassinato de Indira Gandhi por seus guardas Sikh, a violência contra os Sikh). A localização e a atualização da violência contra os Sikh devem ser compreendidas como uma mescla de memórias dos sobreviventes da Partição, de uma gramática de gênero violenta – caracterizada por uma masculinidade que auto-proclama sua superioridade sobre um outro-inferior-feminino ou feminilizado –, de um Estado conivente e, de certa forma, fomentador da violência. As relações do cotidiano processam sentimentos de raiva e ódio e permitem, ao mesmo tempo, um trabalho de reconstrução da sociabilidade, mas também possibilitam o incremento desses sentimentos de ódio que podem ser traduzidos em atos de violência, como o assassinato dos Sikh.

O passado tem um caráter indeterminado. O presente se converte no lugar onde elementos do passado que foram rejeitados podem assediar o mundo. O acontecimento sobrevive em versões diversas dentro da memória social dos diferentes grupos sociais. Das sustenta, então, que o rumor ocupa uma região da linguagem que pode fazer experimentar acontecimentos e, mais do que se apresentar como um ato externo, termina por produzir no mesmo ato em que enuncia. Os processos de tradução e rotação funcionam para atualizar certas regiões do passado e criam um sentido de continuidade entre os acontecimentos, conectando-os entre si. No caso dos acontecimentos pós-assassinato de Indira Gandhi, Das assinala como diversas correntes de rumores se combinaram para criar uma sensação de vulnerabilidade entre os hindus e fazer supor que os Sikh seriam desprovidos de subjetividade humana. O rumor acabou por fazer os hindus se pensarem como uma coletividade instável e em perigo – o que autorizou a violência contra o outro desprovido de subjetividade.

O rumor ressalta a dimensão do impessoal na vida social. Os rumores exercem um “campo de força” que atrai as pessoas para agirem de determinada maneira. Trata-se, portanto, de um tipo de violência que nubla as distinções claras entre agressores e vítimas. A impessoalidade e esse campo de forças propiciam atos morais que não seriam executados em condições diferentes, e pessoas comuns são arrastadas para cometer atrocidades (Das, 2010). O rumor, enfim, embaralha e complexifica as categorias convencionais que temos para pensar a violência e se constitui num modelo para complexificarmos as definições de agência. A força perlocucionária do rumor mostra a fragilidade do mundo, e como as imagens de desconfiança, que podem ser apenas virtuais, tomam uma forma volátil, e a ordem social se vê ameaçada por um acontecimento crítico.

A análise do rumor, além de focalizar o poder do impessoal (Das 2010:137), apresenta também a agência de determinados atores que não se encaixam naquilo que geralmente se imagina como “agência”. Por exemplo, noções como paciência e paixão são mais vinculadas à passividade do que à resistência. A descida ao cotidiano, entretanto, abala nossos modelos pré-estabelecidos de resistência ou, pelo menos, apresenta outras possibilidades de pensá-los. Das encontra uma forma de lidar com a violência que se distancia dos modelos de resistência heróica, tal como os percebidos no modelo clássico de Antígona. A antropóloga indiana conta, então, a história de Asha, uma mulher punjab, que vivia com a família de seu esposo na fronteira do Paquistão no período da Partição. Depois do conflito, teve que abandonar sua “família política” por diversos motivos relacionados à sua condição de mulher e de viúva. Ela se casa com um comerciante bem estabelecido. Depois de muito tempo e de uma insistente ação de Asha e de sua cunhada, termina por reatar os laços com sua família política. Das contrasta as ações de Asha às de Antígona. Para a antropóloga, se a figura de Antígona oferecia uma maneira de pensarmos voz e agência, a figura de Asha mostra um sujeito genereficado que possui um “conhecimento venenoso”, mas que constrói um trabalho cotidiano de reparação. Diferentemente de Antígona, a agência não está no heróico e no extra-ordinário, mas na descida ao cotidiano, no preparo diário da alimentação, na arrumação e organização dos afazeres, no cuidado e cultivo persistente das relações familiares. São essas ações cotidianas que possibilitam a criação de um discurso de reparação. Ao justapor o modo “menos dramático” de discurso utilizado por Asha ao discurso de Antígona, Das sugere que mulheres como Asha ocuparam uma zona diferente ao descer ao cotidiano em lugar de ascender a um “plano superior” (Das, 2007; 2010). Se nos dois casos percebemos mulheres como testemunhas – no sentido de se encontrarem no marco dos acontecimentos e de serem por eles afetadas –, Asha fala da zona do cotidiano, ocupando os signos das feridas que a afetaram e estabelecendo uma continuidade no espaço da devastação.

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Estes breves comentários nem de longe dão conta da argúcia dos argumentos, da riqueza das histórias descritas e do impecável estilo de Veena Das. Tentei apenas desenhar em traços largos os movimentos principais da obra. E, para finalizar, com objetivo apenas de ressaltar alguns aspectos, faço algumas considerações mais gerais sobre Life and Words.

Bronislaw Malinowski (1935) revelou em suas “confissões de ignorância e falha”, no apêndice de Coral Gardens and Their Magic, que uma fonte geral da inadequação de seu material consiste no fato ter sido seduzido pelo dramático e excepcional e ter negligenciado o dia-a-dia (ver Martin, 2007). Porém, acompanhar o dia-a-dia de nossos interlocutores demanda tempo e uma pesquisa de campo prolongada (nem sempre possível, se pensarmos, por exemplo, na realidade brasileira). Sem uma interação cuidadosa, por anos a fio, muito do cotidiano se perde e o antropólogo acaba seduzido pelo “dramático e excepcional”. Se isso vale mesmo para antropólogos que tiveram a oportunidade de ficar por muito tempo em campo, como Malinowski, há que se conjecturar as dificuldades de, em períodos curtos, se conseguir uma aproximação razoável às práticas cotidianas. Life and Words é interessante para refletirmos sobre o assunto. Ao analisar o trabalho de restabelecimento da sociabilidade após experiências de ruptura proporcionadas pela violência, assinala Das a persistência de zonas de silêncio nas quais a emergência da voz feminina se dava nem sempre pelo dizer, mas pelo mostrar. O mostrar não é algo que surge apenas de narrativas ou de reivindicações, mas no fabrico diário de modos de viver. Donde a necessidade de uma laboriosa prática etnográfica que se volte para o dia-a-dia. Das parece sugerir que somente um trabalho de campo que saiba manejar o “trabalho do tempo” conseguirá ouvir o que se tem a dizer, perceber os dizeres do silêncio e compreender o que os interlocutores desejam mostrar. Afinal, é a intensidade e persistência na investigação que possibilitam um vínculo com os interlocutores.

Todavia, não é estranha à história da antropologia a figura do “nativo” convertido simplesmente num vetor de informações (o informante), destituído de nome e sem traços que o singularize. A despeito desse movimento, e justamente pela intensidade do empreendimento etnográfico que, em maior ou menor grau, propicia vínculos com os interlocutores, alguns nomes ficaram marcados: Ahuia de Malinowski, Tuhami de Crapanzano, Ogotemmeli de Griaule, Muchona de Victor Turner, Pa Fenuatara de Raymond Firth, Adamu Jenitongo de Stoller. Das nos apresenta outros personagens. No decorrer do livro, a antropóloga se envolve e é interpelada pelos seus interlocutores, enredando-se no drama de suas vidas, estabelecendo vínculos que, em alguns casos, perduram por décadas. Certamente as mulheres desses eventos críticos narrados por Das, como Manjit e Asha, ficarão na história da disciplina. Ademais, a antropóloga lhes confere um lugar privilegiado, reivindicando uma equiparação às heroínas das tragédias gregas: Asha é igualada à não menos que Antígona.

Em Life and Words, as protagonistas são os interlocutoras da antropóloga, que não apenas narram suas histórias, mas formulam sofisticadas teorias sobre tempo, dor, sofrimento, adoecer; teorias sobre formas de relação. A antropóloga procura alçar a teoria de seus interlocutores ou, para falar em termos mais filosóficos, alçar suas práticas de conhecimento. O que não significa um abandono das discussões teóricas e dos conceitos antropológicos; antes, trata-se de intensificar as conexões entre os saberes. Daí, por exemplo, o intenso diálogo estabelecido com Wittgenstein (cf. Das, 1998) – diálogo ancorado numa longa experiência etnográfica, e numa lida cuidadosa com as teorias, sejam elas de mulheres punjab ou de filósofos austríacos. Apesar desse cuidado, teço duas pequenas observações.

1) Das lembra que a relação da formação do sujeito e a experiência de subjugação foi compreendida por Foucault, em sua análise da disciplina do corpo, por intermédio da metáfora da prisão: “a alma é a prisão do corpo”. Entretanto, ressalta a antropóloga, ao tentar compreender as complexas conexões existentes entre violência e relações de parentesco, percebeu que os modelos de poder-resistência ou a metáfora da prisão são excessivamente grosseiros como ferramentas para entender o “delicado trabalho de criação do sujeito” (2007:78). Pelo contrário, continua a autora, ao explorar a profundidade temporal propiciada pelos momentos originários de violência, e o caráter fundamental da vida cotidiana, em vez de utilizarmos metáforas de prisão para significar as relações entre critérios externos e estados internos (corpo e alma), devemos pensar que eles se recobrem um ao outro, compreendidos sempre em união. A ressalva que faço – reconhecendo, evidentemente, a importância do achado etnográfico de Das – é que o autor de Vigiar e Punir é também autor de História da Sexualidade, e as exegeses da obra de Foucault vêm revelando em sua trajetória uma complexificação crescente do enfoque sobre a formação do sujeito e da subjetivação (ver Goldman, 1999). Qualquer análise que se concentre apenas na abordagem de Vigiar e Punir será necessariamente parcial, não alcançado a complexidade da abordagem de Foucault. Judith Butler (1997), por exemplo, em sua obra sobre a vida psíquica do poder (ou seja, sobre as relações entre “sujeição” e “tornar-se sujeito”), revela um Foucault atento às sutilezas daquilo que Das denominou de “delicado trabalho de criação do sujeito”. A busca de compreender as práticas de conhecimento de nossos interlocutores não nos autoriza a simplificar as teorias que manejamos, quaisquer que sejam, e mesmo sob a justificativa de priorizar o conhecimento nativo. Ainda que se argumente que a utilização de Foucault em Das foi pontual, há que se indagar sobre o porquê de tal uso, já que o autor poderia atuar positivamente no desenvolvimento da autora e não apenas como algo tosco (“crude”) a ser evitado.

2) Outra questão que me intriga na composição geral de Life and Words é que a autora, talvez pela inércia constitutiva da linguagem, parece demasiadamente colada aos significantes “homem” e “mulher” na sua concepção de gênero. Das está refletindo sobre um quadro em que a gramática de gênero parece girar quase exclusivamente em torno da heterossexualidade. Mas, ainda assim, sinto a falta de uma maior problematização sobre a concepção de gênero e da violência da própria gramática cultural heteronormativa. Quando Butler (1990) redefiniu gênero como performance, interrogou-se sobre a produção e reprodução do sistema sexo/gênero normativo e binário, concluindo que, da mesma maneira que sexo e sexualidade não são a expressão de si ou de uma identidade, mas o efeito do discurso sobre o sexo – um dispositivo disciplinar, portanto –, o gênero também não é uma expressão do sexo. Se a feminilidade não deve ser necessária e naturalmente a construção cultural de um corpo feminino; se a masculinidade não deve ser necessária e naturalmente a construção cultural do corpo masculino; se a masculinidade não é colada aos homens e se não é privilégio dos homens biologicamente definidos; é porque o sexo não limita o gênero, e o gênero pode exceder os limites do binarismo sexo feminino/sexo masculino. Todo gênero é uma performance de gênero, ou seja, uma paródia sem original. Sem querer me estender nessa questão, cabe aqui uma indagação sobre a pressuposição de gênero nos marcos estritamente heterossexuais ou numa gramática em torno de significantes hetero e também de uma possível homogeneização das mulheres que acabaria por criar um universalismo mascarado. Sobre esse último ponto, quem sabe não seja mais interessante perceber as mulheres não como um grupo explorado, mas uma coalizão política a construir, e que não se define unicamente pelo gênero ou pela opressão de gênero – posição esta, inclusive, que se aproxima ao próprio movimento teórico empreendido por Das. Essa questão precisa ser mais bem observada. De qualquer forma, um diálogo mais intenso com teóricas como Judith Butler, Teresa de Lauretis e Marilyn Strathern numa discussão conceitual da categoria gênero, poderá ser frutífero para futuros trabalhos de Veena Das.

Independentemente dessas observações, Life and Words consegue, de forma convincente, abordar a intersecção gênero, violência e subjetividade, demonstrando que a vida cotidiana é, para repetir Stanley Cavell, ao mesmo tempo, uma busca e uma pesquisa [a quest and an inquest]. Veena Das destaca, com persistência e delicadeza, os ensinamentos do poeta Rainer Maria Rilke ao aprendiz Franz Kappus, em famosa missiva que acabou por ser publicada em Cartas a um jovem poeta: “Se o cotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas”.

Referências

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Pedro Paulo Gomes Pereira – Antropólogo, Professor Adjunto da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. E-mail: pedropaulopereira@hotmail.com.

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