Gênero, sexualidade e redes sociais: a desigualdade social “curtida” e “compartilhada” | Rafael Morato

Genero
Gênero, sexualidade e redes sociais | Detalhe de capa

O livro aqui resenhado foi publicado em 2019, mas as questões que ele nos traz fazem pensar que estamos séculos atrás. Como é possível ainda nos depararmos com o fato de que a nossa sociedade vive para criticar e aprovar a sexualidade e os comportamentos do outro? Estamos na chamada era digital, em que as redes sociais atuam com força e protagonismo nas interações humanas, cada curtida ou compartilhamento feito nesses meios digitais carrega consigo uma carga ideológica muito grande, julgando comportamentos e influenciando opiniões.

Nesse universo de possibilidades que a vida, o corpo humano e as relações sociais nos apresentam, há inúmeras formas de ser e de viver os gêneros e a sexualidade. No entanto, o que se percebe através de redes sociais como o Facebook, por exemplo, é que continuamos nos apegando a críticas pautadas na dualidade, que giram em torno de um modelo de homem e de mulher socialmente construídos, e de uma sexualidade baseada na heteronormatividade, invisibilizando – e muitas vezes condenando – outras formas possíveis de ser e de se relacionar emocional e sexualmente. Leia Mais

A negação da liberdade: direito e escravização ilegal no Brasil oitocentista (1835-1874) | Gabriela Barreto de Sá

A relação entre os afrodescendentes e o direito na América Latina é bastante complexa: enraizado na violência da escravidão, o direito assumiu papel importante no desgaste do regime escravista; mesmo assim, ainda hoje ele contribui para perpetuar desigualdades sociais.1 Leia Mais

Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça / Reni Eddo-Lodge

Em uma conversa em um grupo de WhatsApp, diante de uma tirinha que ridicularizava a questão da representatividade, uma colega de profissão, negra e mãe de uma filha de três anos, também negra, comentou como a interpretação da tirinha a incomodava, porque era rasa. Recebeu como resposta de um colega de área, professor universitário, que “o incômodo faz parte da vida. É assim mesmo.”

Reni Eddo-Lodge, autora do livro Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça, escreve que desde os quatro anos ela entende viver em um mundo de privilégio branco (Eddo-Lodge, 2019, p. 81), ao reconhecer na televisão a divisão entre mocinhos e vilões representados por pessoas brancas x negras. Aparentemente, muitos de nós, brancos e brancas, ainda não nos entendemos privilegiados e esse é o motivo pelo qual a jornalista se viu motivada a escrever esse livro. Estava cansada de ouvir os mesmos argumentos contestando esse tal de privilégio branco vindos de pessoas próximas e decidiu publicar sua resposta em livro para se livrar desse fardo (o que, evidentemente, como a própria afirma, não aconteceu). Gabi de Pretas, que faz a apresentação do livro e que é criadora do canal de YouTube DePretas, recomenda o livro a pessoas brancas que se perguntam sobre seu papel na luta antirracista, àquelas que nunca se perguntaram sobre sua branquitude e a seus colegas negros e negras que já não aguentam mais esses debates.

Diante de uma conversa como a que mencionei no começo deste texto, é compreensível o cansaço que parte de nossos colegas negros, indígenas ou mulheres sentem ao se deparar repetidas vezes com a necessidade de confrontar parentes, amigos e colegas de profissão, em ambientes que deveriam ser seguros, sobre temas como esses, e ainda sair como as “encrenqueiras”, “intolerantes”, “imaturas” ou qualquer versão eufemística que nossos colegas encontram para não usar o já condenado “racismo reverso”. Eddo-Lodge faz o serviço de mostrar que a discussão do privilégio branco é ainda mais urgente. É muito mais simples contestar extremistas e supremacistas brancos, uma vez que seu posicionamento já é muito claro. Mas a insídia do racismo está em justamente passar despercebido pelas nossas relações mais íntimas e cotidianas. Como a própria Eddo-Loge afirma: “Parece haver uma crença entre alguns brancos de que ser acusado de racismo é muito pior do que o próprio racismo” (Eddo-Lodge, 2019, p. 116). E é em espaços como grupos de WhatsApp, festas familiares, ambientes de trabalho em que muitas vezes ele adquire maior perniciosidade psicológica, uma vez que são exigidas classe e elegância aos nossos colegas pretos e pretas ao retorquir seus colegas brancos.

Não encontramos, no livro, referências a teorias ou autorias que construam um arcabouço conceitual, teórico e/ou epistemológico para o racismo. Reni Eddo-Lodge, em linguagem jornalística, direta e sem muitas notas de rodapé, se utiliza principalmente de dados estatísticos, legislação e coberturas jornalísticas referentes à Inglaterra desde a 1ª Guerra Mundial e entrevistas e depoimentos de pessoas brancas e mestiças [1] para provar seu argumento: o da existência de um privilégio branco. Seu raciocínio é apresentado pela generalização de argumentos que ela destrincha capítulo após o outro, e que servem como um material didático para nos educar sobre temas recorrentes em nossas trajetórias como docentes, colegas, parceiros e parceiras: punitivismo e violência policial; cotas, representatividade e tokenismo [2]; racismo e preconceito; queda de estátuas e liberdade de expressão; interseccionalidade; acusações de fragmentação e diversionismo pela própria esquerda. Para ao fim compreendermos que racismo não é algo referente apenas a ações individuais, morais. Racismo é problema estrutural, que organiza todas as nossas relações sociais, cegando a branquitude e permitindo-lhe que chegue ao ponto de responder a uma mãe negra que o incômodo faz parte da vida (“Quando focam em ofensas, ao invés de sua própria cumplicidade em um sistema drasticamente injusto, eles transferem, com sucesso, a responsabilidade de consertar o sistema dos beneficiados por ele para aqueles mais inclinados a perder por causa dele” [Eddo-Lodge, 2019, p. 116-117]). Ironicamente, se há uma coisa para que “Porque não converso mais com pessoas brancas sobre raça” serve é para incomodar. É muito desconfortável, como bem alertou Gabi de Pretas, ler Reni e se perceber como alguém a quem já ocorreram alguns dos argumentos que ela contesta.

A reivindicação não é apenas por igualdade, já que isso presume ainda a manutenção de um sistema que permanece exclusivo, com apenas o revezamento dos indivíduos que ocupam os espaços de poder. A reivindicação de Reni, e de tantas outras, e que incomoda a tantos de nós ao ponto de rechaçá-las, acusando-as de reivindicação de superioridade moral, é de reformulação total do sistema: “O ônus não está em mim para mudar. Ao contrário, está no mundo ao meu redor” (Eddo-Lodge, 2019, p. 155).

Ao final do livro, Eddo-Lodge tem a generosidade de sugerir algumas possibilidades para essa mudança. Que reconstruamos, pois, esse mundo. Nossas crianças não merecem se conformar com a inevitabilidade de seus incômodos.

Notas

1. Esse é o termo utilizado no livro para indicar filhos de casamentos interraciais.

2. No livro, a tradutora Elisa Elwine define tokenismo da seguinte forma: “tokenismo é uma expressão inglesa que se refere à prática de fazer esforço simbólico com o objetivo de ser inclusivo para membros de minorias. Seria uma forma de aparentar igualdade racial ou sexual” (Eddo-Lodge, 2019, p. 72).

Aryana Costa – Professora do Departamento de História / UERN – campus Mossoró, trabalha com ensino de História e historiografia.


EDDO-LODGE, Reni. Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça. Belo Horizonte: Letramento, 2019. 214 p. Tradução de Elisa Elwine. Resenha de: COSTA, Ariana. “Mas nem todo branco…”. Humanas – Pesquisadoras em Rede. 20 jul. 2020. Acessar publicação original. [IF]

 

O que é empoderamento? / Joice Berth*

Parte da coleção Feminismos Plurais, organizada por Djamila Ribeiro e agora editada pela Pólen, O Que é Empoderamento foi escrito pela arquiteta e urbanista Joice Berth e lançado em 2018. No total, a coleção possui sete títulos que abordam conceitos ou temáticas relevantes para a discussão sobre racismo e feminismo no Brasil e no mundo. A proposta é apresentar essas discussões que já devem ter aparecido no mínimo nas nossas redes sociais aos leitores e leitoras brasileiras (mas não só, uma vez que Lugar de Fala de Djamila Ribeiro (2017) já foi traduzido para o francês e publicado).

Em O que é Empoderamento, Berth cumpre bem a função de apresentar a discussão sobre o conceito Empoderamento. São quatro capítulos: “O Que É Empoderamento?, Opressões Estruturais e Empoderamento: um ajuste necessário; Ressignificação pelo Feminismo Negro; Estética e Afetividade: noções de empoderamento; Considerações Finais.” Neles, Berth faz um apanhado sobre o uso do termo empoderamento, que remontaria aos trabalhos da assistente social estadunidense Barbara Solomon na década de 1970. O uso do termo, ou ao menos seu propósito, também é remetido às obras do nosso conhecido Paulo Freire, que propunha que não existe ação crítica que não seja oriunda do próprio sujeito e seu domínio sobre sua realidade.

Esse pode ser considerado o mote para a explicação que a autora faz no capítulo seguinte para esclarecer os usos que têm sido feitos do termo, especialmente em tempos de redes sociais, memes, viralizações e hashtags. Alertando para a apropriação desse termo por governos e corporações que na verdade não transpõe o limite do indivíduo, Berth insiste que empoderamento não pode ser pensando se não for para a emancipação dos indivíduos e indivíduas em coletividade. Para isso, ela usa exemplos de projetos de políticas públicas que tanto contribuem para isso quanto de projetos que usam o termo apenas como um chamariz. Não se trata apenas de afirmar nossa autoaceitação, mas de trabalhar para que as ferramentas de emancipação e autoaceitação estejam disponíveis para todos e todas.

E essa é uma das principais contribuições que o feminismo negro deu ao uso do termo. Lembrando que “se uma mulher negra se levanta, toda a estrutura se levanta com ela” [1], o feminismo negro veio para nos lembrar exatamente que não adianta apenas as mulheres se libertarem das imagens de controle que a sociedade patriarcal lhes impõe, o que muitas vezes implica em mulheres postando fotos de autoaceitação de seus corpos em redes sociais, por exemplo. Isso precisa vir acompanhado de políticas que efetivamente promovam a emancipação financeira e psicológica de todas as mulheres. Representatividade importa, mas ela precisa vir acompanhada de real inclusão de grupos. Não adianta apenas a Maju Coutinho na bancada do Jornal Hoje – isso não evitou as mortes de Ágata Félix, de João Pedro e João Vitor em ações de agentes de “segurança pública” em comunidades. E é disso que se trata empoderamento. De que comunidades, grupos de minorias sociais possam 1. Se amar; 2. Construir políticas que sejam genuinamente representativas de si; 3. Reivindicar que as oportunidades sejam para todos e todas, e não apenas para alguns poucos que consigam furar a bolha.

A edição que li foi a ainda publicada pela “Ed. Letramento” em 2018 e possui alguns erros de revisão. Não sei se nos relançamentos essas questões foram corrigidas. Todavia, isso de forma alguma diminui o mérito da obra, que serve como introdução ao debate, assim como realiza um importante levantamento bibliográfico para quem quiser continuar. Além de nos ajudar a nos organizarmos para ações efetivas nesse 2020 tão desgovernado.

Notas

1. Essa afirmação é recorrente na obra e entrevistas da filósofa Angela Davis e tornou-se premissa básica não só no feminismo negro, mas também naqueles movimentos que optam por reconhecer uma necessária interseccionalidade para combater opressões contemporâneas.

(*) Texto originalmente publicado na página Feminismos em Debate, projeto desenvolvido no Instagram pelas professoras Aryana Costa, Lívia Barbosa e Maiara Juliana Gonçalves da Silva.

Aryana Costa – Professora no DHI / UERN, campus Mossoró, trabalha com ensino de História e História da Historiografia.


BERTH, Joice. O que é empoderamento? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018. O que é empoderamento? São Paulo: Pólen, 2019. Resenha de: COSTA, Aryana. O que é o empoderamento? Humanas – Pesquisadoras em Rede. 18 jun. 2020. Acessar publicação original [IF].