As Leis e suas práticas: a diversidade em exercício / História e Diversidade / 2015

As produções no campo da História e da Educação têm se debruçado sobre a formação de professores em níveis e enfoques diferentes, conferindo importância a esse debate em âmbito nacional, e repercutindo na conformação de processos legislativos referentes à educação brasileira. Não se trata, porém, de relação de “mão única”, pois da mesma forma que a produção acadêmica impacta os processos legislativos, esses últimos repercutem na reflexão especializada. Dai ter havido, nos últimos anos, uma significativa ampliação da produção relativa aos aspectos abordados pela legislação. Marcadamente, nos referimos aos temas da Diversidade e da Inclusão.

Neste dossiê, “As leis e suas práticas: a diversidade em exercício”, problematizou-se coletivamente a relação havida entre as instituições de ensino e os marcos regulatórios, com ênfase na discussão sobre as questões correntes nos processos de ajustamento da formação ofertada às normatizações estabelecidas pelas instâncias regulatórias. O dossiê reúne artigos de pesquisadoras e pesquisadores de todas as Regiões do Brasil, os quais propõem reflexões sobre a legislação referente aos processos de inclusão e de afirmação da diversidade e, ainda, os processos que impactam a formação, tanto na Educação Básica quanto no Ensino Superior, especialmente na interlocução entre essas instâncias.

Deste modo, as contribuições aqui reunidas compõem, de certa forma, um panorama dos debates que envolvem a implantação e implementação das Leis no 10.639 / 2003 e 11.645 / 2008 e os suportes metodológicos que lhe são correlatos. Eles incorporam ainda, discussões acerca dos desafios interportos para a concretização de uma educação inclusiva e antirracista. Não deixam de dar conta, também, de experiências de formação em cursos de Pós-graduação, experiências de formação inicial e continuada, na confluência entre História e Educação.

As leis nº. 10.639 / 2003 nº 11.645 / 2008 demarcam uma mudança substantiva na Educação brasileira e, por conseguinte, nos currículos de todos os níveis de ensino. Tratase da proposição da construção de novos paradigmas educacionais, sobretudo nos processos formativos. Aqueles paradigmas engendraram a adoção de políticas de ação afirmativa, dentre as quais se contam as leis supracitadas. Neste sentido, discutir sobre Diversidade e Inclusão, considerando um dos sentidos das políticas de Ação Afirmativa, é discutir processos de ampliação e consolidação dos fundamentos democráticos que sustentam nossa sociedade. Da mesma forma, discuti-las implica em considerarmos os processos necessários à implementação de uma educação que, efetivamente, se volte para a formação do cidadão, combatendo a discriminação e o preconceito em todos os níveis.

O artigo “A diversidade na História ensinada nos livros didáticos: mudanças e permanências nas narrativas sobre a formação da nação” que abre este Dossiê discute a incorporação, pela literatura didática, das críticas ao “mito da democracia racial” nas abordagens sobre a formação nacional. A partir da análise de obras didáticas utilizadas nas décadas de 1980, 1990 e 2000, os autores realizam análise sobre as formas pelas quais um dos dispositivos daquele “mito”, a ideologia da mestiçagem, é problematizado e conformado em saber histórico escolar. Argumentam, ainda, que a crítica àquela ideologia tornou-se mais presente na literatura didática, no entanto, ela não significou o abandono de alguns de seus pressupostos.

O segundo artigo “Relações Étnico-Raciais no PNBE 2008 para a Educação Infantil” analisa as estratégias ideológicas presentes no acervo de 2008 do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) destinada à Educação Infantil. Os autores refletem sobre os editais do PNBE (2003-2012) além de um acervo com vinte obras de literatura infantojuvenil distribuídas em 2008. Utilizou-se do método da Hermenêutica da Profundidade (HP), sistema interpretativo que permite identificar a presença de relações assimétricas de poder. Constatam, ainda, que em baixa frequência, representações positivas de alguns personagens negros. Contudo, os personagens brancos, além de continuarem mais frequentes, foram também mais detalhados. Além disso, enfatizam como o branco consta como norma social e pressupondo, inclusive, que os leitores presumidos sejam também brancos.

O terceiro artigo “Juntando as pontas no ensino de história da África: do chão da escola para a universidade reflete sobre duas experiências que envolvem o ensino de História da África”. De um lado, uma universidade federal nova, criada em uma zona de forte valorização ideológica da cultura do migrante europeu, onde a disciplina de História da África aparece como obrigatória dentro da grade curricular. De outro, a experiência em uma escola estadual de uma zona periférica de Porto Alegre onde, por meio de uma reforma na grade curricular, implantou-se um programa que privilegia a História da África e da cultura afro-brasileira no ensino secundário. Os autores procuraram, por meio de suas práticas, refletir sobre como estas experiências, aparentemente diversas, se relacionam, bem como sobre a importância de estabelecer a necessária ligação entre tais realidades.

O quarto artigo “Diversidade e diferença no espaço escolar: desafios para a educação inclusiva” sopesa conceitos relativos à diversidade e à diferença no contexto da defesa da igualdade. Essa análise fora realizada por intermédio de dados quantitativos e qualitativos, mensuráveis sob diferentes indicadores sociais e educacionais para reflexão daqueles conceitos.

O quinto artigo “O ensino de História e Geografia no DF: percalços e percursos de uma única história chamada Brasília” problematiza situações reveladas nas práticas de ensino das disciplinas citadas, que evidenciam algumas agruras das populações das localidades “não-Brasília”. No bojo da segregação espacial, revelam-se singularidades culturais, sociais e raciais. Com isto, abala-se a história tradicional, a identidade forjada brasiliense, e emergem outras, desconhecidas, recentes, híbridas e em franco processo de reafirmação, legitimidade e originariamente diversas.

O sexto artigo “Descolonizando histórias de África, culturas africanas e da diáspora” problematiza duas imagens com representações de modo de ser e lutar de povos africanos com ênfase nas clivagens entre cosmovisões de povos europeus e povos em diáspora. Os dados compilados e a reflexão realizada permitem atenção crítica a verdades e abstrações de uma história universal.

O sétimo artigo “Povos indígenas, ações afirmativas e universidade: conquistas e dilemas da reserva de vagas na Universidade Federal do Pará” analisa como se materializa o preceito normativo que regulamenta as ações afirmativas de ingresso universitário, com foco específico na reserva de vagas para povos indígenas existentes na Universidade Federal do Pará, a fim de compreender: (1) as dificuldades do processo de inclusão (considerando acesso e permanência na Instituição) dos indígenas estudantes; (2) a preparação ou qualificação continuada do corpo docente e técnico para saber lidar com a diversidade cultural; (3) rediscutir o exercício do direito à diversidade cultural na Universidade, com base nos aportes dos tratados internacionais de direitos humanos e das reivindicações políticas dos movimentos indígenas.

O oitavo artigo “História da África no ensino superior: imagens e representações dos estudantes do curso de licenciatura em história da UFMT, campus Cuiabá” problematiza a experiência da atuação docente na disciplina de História da África e Estágio Supervisionado no Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), no campus de Cuiabá. Os autores realizam uma análise dos planos de aula sobre a história e cultura africana e afro-brasileira desenvolvido pelos estudantes, procurando compreender as imagens e representações forjadas no contexto das atividades pensadas para a Educação Básica.

O nono artigo “Entre estereótipos e saberes: a África e os africanos em um curso de licenciatura em história” discute a institucionalização da Lei no 10.639 / 2003 em um curso de Licenciatura em História a distância, destinado a professores leigos do Nordeste brasileiro. A autora demonstra o impacto que os conteúdos concernentes à Lei tiveram sobre os saberes a ensinar e discute alguns estereótipos e conhecimento sobre a temática, identificados nos depoimentos e postagens online dos docentes envolvidos nessa experiência de formação em serviço.

O Dossiê finaliza-se com o artigo “Por uma educação antirracista e intercultural: as contribuições do núcleo de estudos afro-brasileiros” evidencia as ações desenvolvidas pelo Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal da Grande Dourados. Os autores constatam que a atuação do NEAB é fundamental para a articulação de ações construção de uma educação inclusiva que vislumbre um diálogo intercultural, no qual os saberes das crianças negras e indígenas possam ser legitimados e, desse modo, possam romper com a visão homogeneizadora e hegemônica do currículo colonizado.

Por fim, este dossiê foi concebido como uma interlocução possível entre a produção de conhecimento e os problemas concretos da escola. Assim, ele não buscou hierarquizar saberes ou distinguir pesquisadores.

Agradecemos a todas e todos!

Boa leitura!

Mauro Cezar Coelho

Wilma de Nazaré Baía Coelho


COELHO, Mauro Cezar; COELHO, Wilma de Nazaré Baía. Apresentação. História e Diversidade. Cáceres, v.6, n.1, 2015. Acessar publicação original [DR]

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As Leis e suas práticas: a diversidade em exercício / História e Diversidade / 2015

As produções no campo da História e da Educação têm se debruçado sobre a formação de professores em níveis e enfoques diferentes, conferindo importância a esse debate em âmbito nacional, e repercutindo na conformação de processos legislativos referentes à educação brasileira. Não se trata, porém, de relação de “mão única”, pois da mesma forma que a produção acadêmica impacta os processos legislativos, esses últimos repercutem na reflexão especializada. Dai ter havido, nos últimos anos, uma significativa ampliação da produção relativa aos aspectos abordados pela legislação. Marcadamente, nos referimos aos temas da Diversidade e da Inclusão.

Neste dossiê, “As leis e suas práticas: a diversidade em exercício”, problematizou-se coletivamente a relação havida entre as instituições de ensino e os marcos regulatórios, com ênfase na discussão sobre as questões correntes nos processos de ajustamento da formação ofertada às normatizações estabelecidas pelas instâncias regulatórias. O dossiê reúne artigos de pesquisadoras e pesquisadores de todas as Regiões do Brasil, os quais propõem reflexões sobre a legislação referente aos processos de inclusão e de afirmação da diversidade e, ainda, os processos que impactam a formação, tanto na Educação Básica quanto no Ensino Superior, especialmente na interlocução entre essas instâncias.

Deste modo, as contribuições aqui reunidas compõem, de certa forma, um panorama dos debates que envolvem a implantação e implementação das Leis no 10.639/2003 e 11.645/2008 e os suportes metodológicos que lhe são correlatos. Eles incorporam ainda, discussões acerca dos desafios interportos para a concretização de uma educação inclusiva e antirracista. Não deixam de dar conta, também, de experiências de formação em cursos de Pós-graduação, experiências de formação inicial e continuada, na confluência entre História e Educação.

As leis nº. 10.639/2003 nº 11.645/2008 demarcam uma mudança substantiva na Educação brasileira e, por conseguinte, nos currículos de todos os níveis de ensino. Tratase da proposição da construção de novos paradigmas educacionais, sobretudo nos processos formativos. Aqueles paradigmas engendraram a adoção de políticas de ação afirmativa, dentre as quais se contam as leis supracitadas. Neste sentido, discutir sobre Diversidade e Inclusão, considerando um dos sentidos das políticas de Ação Afirmativa, é discutir processos de ampliação e consolidação dos fundamentos democráticos que sustentam nossa sociedade. Da mesma forma, discuti-las implica em considerarmos os processos necessários à implementação de uma educação que, efetivamente, se volte para a formação do cidadão, combatendo a discriminação e o preconceito em todos os níveis.

O artigo “A diversidade na História ensinada nos livros didáticos: mudanças e permanências nas narrativas sobre a formação da nação” que abre este Dossiê discute a incorporação, pela literatura didática, das críticas ao “mito da democracia racial” nas abordagens sobre a formação nacional. A partir da análise de obras didáticas utilizadas nas décadas de 1980, 1990 e 2000, os autores realizam análise sobre as formas pelas quais um dos dispositivos daquele “mito”, a ideologia da mestiçagem, é problematizado e conformado em saber histórico escolar. Argumentam, ainda, que a crítica àquela ideologia tornou-se mais presente na literatura didática, no entanto, ela não significou o abandono de alguns de seus pressupostos.

O segundo artigo “Relações Étnico-Raciais no PNBE 2008 para a Educação Infantil” analisa as estratégias ideológicas presentes no acervo de 2008 do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) destinada à Educação Infantil. Os autores refletem sobre os editais do PNBE (2003-2012) além de um acervo com vinte obras de literatura infantojuvenil distribuídas em 2008. Utilizou-se do método da Hermenêutica da Profundidade (HP), sistema interpretativo que permite identificar a presença de relações assimétricas de poder. Constatam, ainda, que em baixa frequência, representações positivas de alguns personagens negros. Contudo, os personagens brancos, além de continuarem mais frequentes, foram também mais detalhados. Além disso, enfatizam como o branco consta como norma social e pressupondo, inclusive, que os leitores presumidos sejam também brancos.

O terceiro artigo “Juntando as pontas no ensino de história da África: do chão da escola para a universidade reflete sobre duas experiências que envolvem o ensino de História da África”. De um lado, uma universidade federal nova, criada em uma zona de forte valorização ideológica da cultura do migrante europeu, onde a disciplina de História da África aparece como obrigatória dentro da grade curricular. De outro, a experiência em uma escola estadual de uma zona periférica de Porto Alegre onde, por meio de uma reforma na grade curricular, implantou-se um programa que privilegia a História da África e da cultura afro-brasileira no ensino secundário. Os autores procuraram, por meio de suas práticas, refletir sobre como estas experiências, aparentemente diversas, se relacionam, bem como sobre a importância de estabelecer a necessária ligação entre tais realidades.

O quarto artigo “Diversidade e diferença no espaço escolar: desafios para a educação inclusiva” sopesa conceitos relativos à diversidade e à diferença no contexto da defesa da igualdade. Essa análise fora realizada por intermédio de dados quantitativos e qualitativos, mensuráveis sob diferentes indicadores sociais e educacionais para reflexão daqueles conceitos.

O quinto artigo “O ensino de História e Geografia no DF: percalços e percursos de uma única história chamada Brasília” problematiza situações reveladas nas práticas de ensino das disciplinas citadas, que evidenciam algumas agruras das populações das localidades “não-Brasília”. No bojo da segregação espacial, revelam-se singularidades culturais, sociais e raciais. Com isto, abala-se a história tradicional, a identidade forjada brasiliense, e emergem outras, desconhecidas, recentes, híbridas e em franco processo de reafirmação, legitimidade e originariamente diversas.

O sexto artigo “Descolonizando histórias de África, culturas africanas e da diáspora” problematiza duas imagens com representações de modo de ser e lutar de povos africanos com ênfase nas clivagens entre cosmovisões de povos europeus e povos em diáspora. Os dados compilados e a reflexão realizada permitem atenção crítica a verdades e abstrações de uma história universal.

O sétimo artigo “Povos indígenas, ações afirmativas e universidade: conquistas e dilemas da reserva de vagas na Universidade Federal do Pará” analisa como se materializa o preceito normativo que regulamenta as ações afirmativas de ingresso universitário, com foco específico na reserva de vagas para povos indígenas existentes na Universidade Federal do Pará, a fim de compreender: (1) as dificuldades do processo de inclusão (considerando acesso e permanência na Instituição) dos indígenas estudantes; (2) a preparação ou qualificação continuada do corpo docente e técnico para saber lidar com a diversidade cultural; (3) rediscutir o exercício do direito à diversidade cultural na Universidade, com base nos aportes dos tratados internacionais de direitos humanos e das reivindicações políticas dos movimentos indígenas.

O oitavo artigo “História da África no ensino superior: imagens e representações dos estudantes do curso de licenciatura em história da UFMT, campus Cuiabá” problematiza a experiência da atuação docente na disciplina de História da África e Estágio Supervisionado no Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), no campus de Cuiabá. Os autores realizam uma análise dos planos de aula sobre a história e cultura africana e afro-brasileira desenvolvido pelos estudantes, procurando compreender as imagens e representações forjadas no contexto das atividades pensadas para a Educação Básica.

O nono artigo “Entre estereótipos e saberes: a África e os africanos em um curso de licenciatura em história” discute a institucionalização da Lei no 10.639/2003 em um curso de Licenciatura em História a distância, destinado a professores leigos do Nordeste brasileiro. A autora demonstra o impacto que os conteúdos concernentes à Lei tiveram sobre os saberes a ensinar e discute alguns estereótipos e conhecimento sobre a temática, identificados nos depoimentos e postagens online dos docentes envolvidos nessa experiência de formação em serviço.

O Dossiê finaliza-se com o artigo “Por uma educação antirracista e intercultural: as contribuições do núcleo de estudos afro-brasileiros” evidencia as ações desenvolvidas pelo Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal da Grande Dourados. Os autores constatam que a atuação do NEAB é fundamental para a articulação de ações construção de uma educação inclusiva que vislumbre um diálogo intercultural, no qual os saberes das crianças negras e indígenas possam ser legitimados e, desse modo, possam romper com a visão homogeneizadora e hegemônica do currículo colonizado.

Por fim, este dossiê foi concebido como uma interlocução possível entre a produção de conhecimento e os problemas concretos da escola. Assim, ele não buscou hierarquizar saberes ou distinguir pesquisadores.

Agradecemos a todas e todos!

Boa leitura!

Mauro Cezar Coelho

Wilma de Nazaré Baía Coelho

 

COELHO, Mauro Cezar; COELHO, Wilma de Nazaré Baía. Apresentação. História e Diversidade, Cáceres – MT, v.6, n.1, 2015. Acessar publicação original [DR]

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O universo normativo e relações de poder na Idade Média: doutrinas, regras, leis e resoluções de conflitos entre os séculos V e XV / Anos 90 / 2013

O universo normativo e relações de poder na Idade Média: doutrinas, regras, leis e resoluções de conflitos entre os séculos V e XV. No final do ano de 2001, a revista Anos 90 publicou o número intitulado Estudos sobre Idade Média Peninsular. O trabalho de seleção dos textos ali reunidos foi organizado pelo Professor Dr. José Rivair Macedo. Esse número foi a coroação de uma série de ações realizadas na UFRGS sobre história medieval na década de 1990. Sendo assim, foram publicados textos de professores e, então, alunos de pós-graduação e graduação, além de professores de outras instituições. O tema daquele número também refletia a concentração de estudos, na historiografia brasileira sobre Idade Média, que privilegiavam a Península Ibérica nos séculos finais daquele período.

Doze anos depois, podemos afirmar que o presente dossiê sobre normas e relações de poder entre os séculos V e XV é reflexo de uma série de mudanças: desde as relacionadas à avaliação e classificação das revistas acadêmicas, que estimulam a inserção dos Programas de Pós-Graduação em nível nacional e internacional e evitam também a publicação de textos de autores da casa, às abordagens sobre tempos e espaços diversos. Sendo assim, os autores que publicam no presente dossiê, em geral, tem como característica geral, a presença mais constante e sistemática de períodos e projetos de colaboração internacional de pesquisa. Dessa forma, o presente número oferece ao público uma reunião de textos que tem origem em pesquisas realizadas (concluídas ou em andamento) em nove Universidades diferentes e que tratam de tempos e espaços heterogêneos.

Dividimos o dossiê O universo normativo e relações de poder na Idade Média: doutrinas, regras, leis e resoluções de conflitos entre os séculos V e XV em três blocos, não necessariamente fechados em si. O primeiro inclui textos sobre o período inicial da Idade Média que analisam aspectos das relações de poder na região da atual França; o segundo concentra textos sobre a chamada Idade Média Central, mas também abarca os textos sobre Península Ibérica entre os séculos XI e XV; o terceiro reúne textos sobre a Península Itálica, especificamente entre os séculos XIII e XV. O leitor pode perceber, então, que há uma orientação cronológica (da Alta à Baixa Idade Média) e geográfica (França, Portugal, Espanha e Itália), porém, o que fica evidente no conjunto dos textos é a pluralidade de possibilidades: textos que defendem a atuação de um possível Estado e ideias de governo, textos sobre a constituição de normas específicas, como regras de Ordens Religiosas ou processos jurídicos, textos sobre concílios e moralização clerical, além de textos sobre resolução de conflitos.

O primeiro artigo é de autoria de Rossana Pinheiro, da UNIFESP. A autora aborda algumas características do poder episcopal na Gália do século V, com especial destaque para a não separação entre monges e bispos ou, como defende a autora, para a atuação de “monges-bispos” na expansão do cristianismo naquela região. O texto seguinte, de autoria de Marcelo Cândido da Silva (USP), trata de crises de escassez de alimentos e fome entre os séculos VIII e IX, entre os carolíngios. O autor analisa, além de anais, crônicas e inventários, a atuação de combate à fome adotada por governantes, como: Pepino, o Breve († 768), Carlos Magno (†814), Luís, o Piedoso († 840), Carlos, o Calvo (†877) e Carlomano II (†884). Para Cândido da Silva, os indícios encontrados sobre a fome na documentação analisada não necessariamente permitem associar as crises às dificuldades técnicas. Sendo assim, o autor fornece um olhar mais voltado para a história política do que para a história econômica para discutir o assunto.

O segundo bloco de textos inicia-se com a reflexão proposta por Cláudia Regina Bovo, professora de história medieval na Universidade Federal do Triângulo Mineiro. A autora expõe seu problema de pesquisa no título do artigo: O combate à simonia na correspondência de Pedro Damiano: uma retórica reformadora do século XI?. O objetivo é discutir se se pode afirmar a existência de um “programa reformador” no século XI. Em outras palavras, a autora propõe uma revisão sobre a chamada “reforma gregoriana” a partir de uma análise de caso: a simonia. Ao final do texto, ela conclui que não é possível afirmar a existência de uma noção ampla de “reforma”. O texto de Andreia Cristina Lopes Frazão da Silva (UFRJ) sobre o concílio de Coyanza (século XI) apresenta as características que fazem dessa reunião uma das mais importantes ocorridas na Península Ibérica durante o medievo e, principalmente, como se deu a construção historiográfica sobre essa importância. De acordo com a autora, as duas redações diferentes das atas daquele concílio revelam os interesses políticos que estavam em cena nas disputas no reino de Castela-Leão. O terceiro texto que compõe esse eixo é de autoria de Maria Filomena Coelho (UNB). A autora analisa, a partir do tema da clausura feminina, o processo de instituição e consolidação do braço feminino da Ordem Cisterciense na Península Ibérica, bem como relaciona esse processo às tensões políticas em Castela-Leão no século XIII. Para Coelho, como a clausura era um elemento básico e importantíssimo para a legitimação da vida monacal das mulheres, o tema deve ser analisado a partir da cultura política, entendida como “valores em que se assentam e pelos quais se justifica o poder de exigir a observância da clausura, bem como o de permitir as exceções”. Sendo assim, ao final do texto, a autora defende a necessidade de entender a clausura feminina como um elemento de legitimação institucional de um modelo, no qual as disputas concernentes a essa questão devem ser entendidas no contexto social e político de cada região. Finalizando o segundo bloco, o texto de Beatris dos Santos Gonçalves (UCAM-RJ) aborda a importância da concessão do perdão régio no processo penal português para a afirmação de um reino centralizado e fortalecido no século XV. A autora privilegia a análise das Ordenações do Reino e conclui que o “acesso à benevolência da remissão régia” funcionou como elemento de propagação do argumento que “só o rei poderia garantir a justiça”.

O presente dossiê é finalizado por uma sequência de três textos que tratam de ideias de governo, normas, regras e conflitos na Península Itálica. André Luís Pereira Miatello (UFMG) aborda os usos e significados das ideias de bem comum e utilidade comum nas cidades comunais italianas, como Florença, Siena, Bolonha e Pádua. O autor analisa dois escritos retóricos de Brunetto Latini (1220- c.1294): Rettorica (ca. 1260), e Li Livres dou Tresor (ca.1260-1267). Miatello conclui que é possível afirmar a existência de uma “esfera pública” construída nas cidades italianas a partir da noção de bem comum. No texto de Carolina Coelho Fortes (UFF), sobre a formação da Ordem dos Irmãos Pregadores (dominicanos) no início do século XIII, o leitor encontra alguns aspectos da tese de doutorado da autora, defendida em 2011. Seu principal interesse está em discutir o papel dos estudos na constituição de uma identidade institucional dos frades pregadores. A autora analisa documentos como o Liber Consuetudinum e as atas dos capítulos gerais realizados pela Ordem entre 1220-1260. Fortes conclui que, ao identificar na documentação constantes referências à regulamentação sobre a saída dos frades para atuar como mestres, inclusive, em casas de outras ordens, é possível afirmar que os dominicanos, no século XIII, podem ser associados a uma societas studii, ou “sociedade de estudos”. O texto que encerra o dossiê é de autoria de Didier Lett (Paris VII). O autor apresenta uma microanálise sobre qual consciência homens e mulheres poderiam ter dos estatutos nas cidades italianas da região das Marcas de Ancona. Para isso, apresenta e analisa um processo movido pelo pai de uma criança, em 1458, após um jogo de batalha de pedras em São Severino. No processo, a acusação é de um tipo de traumatismo craniano provocado por Benincasa di Beneamato Corradi em Andrea di Nicola. O pai de Andrea recorre à justiça e o pai de Benincasa é convocado a defender o filho. O que estava em causa: a inimputabilidade penal de Benincasa. Em outras palavras, a defesa foi estruturada a partir do argumento de que o acusado teria menos de dez anos quando do ocorrido e, por isso, não deveria ser aplicada pena. Na movimentação dos dois pais a partir do acionamento e recurso à justiça para a resolução do conflito, Didier Lett desvenda um universo que compreende desde as práticas cotidianas de divertimento de crianças e jovens de uma determinada região, a consciência que os habitantes poderiam ter das leis (pois o pai da vítima reclamou na justiça o direito de indenização) e, também, a atuação de diferentes autoridades no processo de formação e a relação entre práticas e representações nas comunas italianas no final da Idade Média.

Os nove textos aqui reunidos, dessa forma, oferecem ao leitor um espectro diversificado sobre o universo político e social, em diferentes regiões, entre os séculos V e XV. Além desses artigos, apresentamos também uma resenha, de Néri de Almeida Sousa (UNICAMP), do recente livro Guerra Santa, de Jean Flori, publicado em português em outubro de 2013. Sendo assim, o leitor tem acesso a um bom número de reflexões recentemente concluídas e / ou de pesquisas em andamento que já produziram resultados consistentes. Resta aos organizadores o convite à leitura e o estímulo ao debate. Agradecemos aos colaboradores da Anos 90: a comissão editorial 2010-2012, que aceitou a proposta do dossiê, aos pareceristas que colaboraram com a qualidade dos textos aqui publicados e aos autores que privilegiaram a proposta ao enviar seus textos para avaliação.

Boa leitura!

Igor Salomão Teixeira

Cybele Crossetti de Almeida

(Organizadores)


TEIXEIRA, Igor Salomão; ALMEIDA, Cybele Crossetti de. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 38, dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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