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The medieval invention of travel – LEGASSIE (Ge)
Shayne Aaron Legassie. https://timetoeatthedogs.com/
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LEGASSIE, Shayne Aaron. The medieval invention of travel. [Chicago]: University of Chigago Press, 2017. Resenha de: SANTOS, Guilherme Maximiano Ferreira; PEREIRA, Luiza Souza; SILVA, Tainara do Carmo Lopes da. Revista Geografias, v.28, n.1, 2020.
The Medieval Invention of Travel é o primeiro livro publicado por Shayne Aaron Legassie que não seja em parceria com outro autor e foi lançado em 2017 pela University of Chicago Press. Legassie é professor associado ao Department of English and Comparative Literature na Universidade da Carolina do Norte (UNC). Seus interesses de pesquisa incidem, predominantemente, sobre literatura medieval, a história da Europa na Idade Média, os estudos mediterrâneos e os escritos de viagem. Tal trajetória lhe garante um forte poder comparativo dos diferentes textos literários escritos sobre viagens durante o período entre 1200 e 1500.
O livro se desenrola nesses três séculos de intensa mobilidade humana, cujos deslocamentos cosmopolitas medievais, entre a Europa, a Ásia e a África, cruzam os espaços dessa economia-mundo nascente (BRAUDEL, 1987). A partir do período selecionado, poder-se falar de uma “invenção” (p.8-9) medieval da viagem como etapa provedora de uma literatura idealizadora da subjetividade do viajante a partir do penoso trabalho físico que ele empreende nessas peregrinações.
As viagens medievais desempenharam um papel fundamental nas práticas letradas europeias e na compreensão dessas como elevadoras de status social, pelo trabalho (travail) – viagem (travel). 1 Além disso, originou novos métodos de escrita de romances baseados na investigação geo-etnográfica. É por esses motivos que o título escolhido para o livro busca atribuir um novo sentido ao significado de viagem, com a escolha da palavra “invenção” e mostrando o papel da literatura na formação e racionalização dos novos modos de viagens e subjetividades emergentes.
No decorrer da escrita, o autor aborda as diferentes intenções das viagens medievais, que se caracterizam por motivos religiosos, por razões de relações comerciais e por encontros diplomáticos. Ele também apresenta os escritores de viagens do período, que moldaram os aspectos e os valores inseridos nos relatos das viagens europeias. Por fim, discute as diferentes formas de escrita da viagem utilizadas no gênero de literatura de viagens.
Em sua metodologia, o autor se apoia na literatura comparada, tratando de realizar um esforço de estilo ensaístico a respeito das diferentes obras dos viajantes. No recorte de tempo determinado por Legassie, ocorreram inúmeros processos históricos que dão contornos ao contexto: as cruzadas na Idade Média, as tentativas de expansão dos impérios medievais dominantes, os conflitos religiosos, as peregrinações e o próprio surgimento do capitalismo. Estes processos contribuíram para uma divisão do espaço e do tempo que permite construir uma evolução e diversos estágios da viagem sem que se possa dizer que um estilo supere o outro. No primeiro período da era medieval, há uma primeira aproximação do significado de viagem como sinônimo de dor e sofrimento; no segundo momento, há a construção de um olhar sobre a viagem que a enxerga como oportunidade de ser relatada e vista, como algo a ser enaltecido; por fim, em um terceiro momento, vê-se a possibilidade de transmitir informações entre o lugar de origem do viajante e o resto do mundo.
A partir desse contexto geral, Legassie vai se aprofundar nas relações específicas que estão presentes no decorrer do livro por meio dos diferentes lugares visitados. Ele organiza a estrutura do livro em três partes: viagens ao leste da Ásia (parte I – “Subjectivity, Authority, and the Exotic”), viagens à Terra Santa (parte II – “Pilgrimage as literate work”) e àquelas que estão no caminho entre Europa e Mediterrâneo (parte III – “Discovering the proximate”). Em sua narrativa, ele traz relatos de peregrinos e viajantes diplomáticos da Idade Média, sendo alguns deles Marco Polo, Felix Fabri e Francisco Petrarca2.
A primeira parte, denominada de “Subjectivity, Authority, and the Exotic”, aborda as viagens que partem da Europa ao Leste da Ásia. Legassie debate questões geoetnográficas nas experiências dos viajantes, bem como a forma que essas experiências influenciaram na produção de escritos sobre viagens, como as descrições de Marco Polo sobre Ásia e o Império Mongol. Além disso, fala sobre o papel adquirido pela autoridade clerical e pelos escritores dessas viagens como sumos sacerdotes, que, em alguns casos, após realizarem suas viagens, voltavam como “especialistas de longa distância” (p.22) devido ao conhecimento adquirido nos destinos. Grande parte das viagens na Idade Média eram motivadas por necessidades que se relacionavam às intenções religiosas pela libertação dos pecados ou, como é reconhecido na contemporaneidade, por turismo religioso.
Diferentemente da atualidade, porém, a viagem na era medieval era árdua e penosa, com extenso caminho a percorrer e que colocava em risco a própria vida do viajante. Por isso, não era vista como um momento de lazer. Eram viagens tratadas como um trabalho, ou seja, uma negação ao ócio.
No capítulo 1, intitulado “Exoticism as the appropriation of travail”, o autor aborda os relatos de William of Rubruck (1215 – 1295) e Marco Polo (1254 – 1324). O primeiro era um monge franciscano, missionário e responsável por escritos de viagens à Ásia. O segundo era um mercador e viajante italiano que deixou registros sobre sua viagem à China e às outras regiões da Ásia. Legassie demonstra que as experiências contidas nessas obras reforçam uma posição ideológica em relação ao exotismo, que ele define como “um modo de esteticismo politicamente orientado, que na Idade Média foi fundado na apropriação simbólica do trabalho do viajante.”3 (p.13). Além disso, seus estilos revelam uma “economia de prestígio do conhecimento da longa distância” (p.22) pois é relativa ao conhecimento dos lugares distantes como expressão de um maior status ao viajante. Com efeito, essa forma de economia refere-se a um conjunto de práticas materiais e experiências subjetivas que permitiram às pessoas obter vantagens sociais, políticas e econômicas através da sua relação com o estrangeiro. Mesmo que outras abordagens compreendam que esta emergente economia de prestígio esteja posta como uma repetição excessiva (KYNAN-WILSON, 2019), se o autor o faz, é para situar ou qualificar a economia de bens simbólicos do período abordado.
No capítulo 2, nomeado por “Travail and authority in the forgotten age of discovery”, são analisados os escritos de John of Plano Carpini (1180 – 1252), um franciscano e explorador italiano; Odoric of Pordenone (1286 – 1331), um frade franciscano e missionário italiano; e John Mandeville (século XIV), suposto4 autor de uma coleção de histórias de viajantes. Esses escritos recorrem às dificuldades da viagem para reforçar a credibilidade autoral sobre os textos, ou seja, o peso probatório da verdade de seus escritos e de testemunho oficial da Igreja. A leitura desses escritos por outras pessoas está sujeita ao poder persuasivo da veracidade dos relatos através da personalidade impregnada e transmitida pelo autor através do texto. Paralelamente, o autor faz uma refutação da ideia de que o período medieval tem seus contornos fixos e ditados somente por autores da antiguidade, como Aristóteles, Cícero e Agostinho. Ao contrário, o autor aponta as contribuições da Idade Média aos avanços do conhecimento territorial, sendo esse um aspecto importante que deve ser ressaltado pela historiografia e que pode retirar o período do esquecimento.
De modo geral, a segunda parte do livro de Legassie intitulada “Pilgrimage as literate work” aborda o caminho percorrido pelo teólogo e padre Felix Fabri5 (1441 – 1502), que entende a peregrinação como um exercício de memória. Esse trabalho tratou-se de um exercício da memória pois, no ato do deslocamento da viagem, os viajantes que seguiram o modelo de Fabri utilizavam-se de ferramentas6 para fins de registros, que permitiam aos demais peregrinos lembrar posteriormente de suas viagens, tendo em vista que alguns viajantes que não exercitavam isso estavam sujeitos a desaprender o que a viagem os ensinou.
A peregrinação a Jerusalém era uma forma dos devotos provarem sua fé através do deslocamento. Entretanto, não bastava exercer o ato de deslocar-se para a Terra Santa, era preciso aguçar a mente com exercícios de memória e a utilização de técnicas para o registro do que os viajantes viram e sentiram. Com isso, no capítulo 3, “Memory of work and the labor of writing”, e no capitulo 4, “The Pilgrim as a investigator”, encontramos os relatos desses processos ocorridos na peregrinação. O terceiro capítulo abrange uma discussão sobre a tradição sintética, que se baseava, na época, em produzir um escrito sintético sobre as viagens realizadas, havendo a possibilidade de não deslocar-se para vivenciar a viagem, tratando-se de uma espécie de viagem em imaginação (alguns indivíduos tinham repulsa por vivenciar todos os males do deslocamento). Os escritores da tradição sintética foram responsáveis pela produção e pela formação pictórica dos locais por onde passavam os viajantes em campo. Dessa forma, seus escritos eram admirados na terra natal.
Com isso, os peregrinos, a partir da virada do século XIII, iniciam uma escrita descritiva das memórias para fins de leitura meditativa. Já no capítulo seguinte, o autor mostra como essas produções tornavam-se escritas reformuladas, uma visão crítica e um instrumento de investigação.
A terceira parte, intitulada “Discovering the proximate”, reúne os autores encarregados em viagens pela Europa e pelo Mediterrâneo, destacando-se o poeta italiano Francisco Petrarca (1304-1374) e o cavaleiro de Castela Pero Tafur (ca. 1410-ca. 1487).
Nessa sequência, ganham forma mais contundente os argumentos apresentados no prefácio do livro nos capítulos 5 e 6, questionando a posição de Joan-Pau Rubiés que sustentou a hipótese, em obra anterior7, quanto à uma relativa estagnação dos escritos de viagem no período contido entre 1350 e 1492. Ao contrário, Legassie assegura que, após 1350, surgem muitos novos relatos que são frutos de viagens de curta distância. Assim, antecedem as posteriores conquistas do “Novo Mundo” (p.167), e, ao contrário de serem desprovidas de importância, exerceram grande influência na vida intelectual e cultural para a emergência do mundo moderno europeu em formação.
Ainda nessa parte do livro, Legassie pontua as precisas descrições de Petrarca e Tafur em que eles elevam ao público europeu a condição de seus países de origem. Os largos projetos autobibliográficos e protonacionalistas dos viajantes estreitam a aproximação de territórios europeus a partir das missões políticas empreendidas por eles. Para o autor, os questionamentos levantados por Petrarca acerca dos benefícios e das dificuldades da viagem assemelhavam-se à tradição sintética. A viagem, no caso do poeta italiano, correspondia a um trabalho de construção pessoal identitária e ética8 e a um comprometimento com a descoberta geo-etnográfica. Igualmente, o sentido da viagem para Tafur era visto como uma vantagem política que ele possuía por conhecer os costumes de reinos distantes. Para Legassie, a postura desses autores foi compreensivelmente comparada aos valores inerentes ao Grand Tour9.
Os relatos recolhidos pelo autor, permitem demonstrar a visão europeia de mundo e os mecanismos pelos quais a Europa começa a compor e apropriar-se intelectualmente de um novo mundo que nascia das entranhas do feudalismo e da Idade Média através das viagens, com a ascensão de uma nova ordem econômica – o capitalismo.
Vale lembrar que Fernand Braudel e Immanuel Wallerstein juntos situam o nascimento do capitalismo no século XIV (BRAUDEL, 1987; WALLERSTEIN, 1979).
Ainda que este seja um processo que se desenrola em seus primórdios, é também por meio da escrita que começa a se estabelecer uma relação de mercado entre as nações e entre os diversos impérios dominantes, revelando o que possivelmente seriam os bastidores dos longos deslocamentos feitos em períodos posteriores e que passaram a incluir o Atlântico (BRAUDEL, 1987). O autor é consistente em afirmar, a partir dos relatos dos viajantes, que a dor e o trabalho árduo dessas práticas estavam relacionados a processos mais amplos e, além disso, elucida as diversas outras significações que essas viagens encarnavam, como heroísmo, superação do trabalho físico ou autodisciplina intelectual.
Ainda assim, apesar de reforçar que esse período contribuiu para formação da identidade do período pós-medieval, não nos revela com clareza os pontos impactados na posterioridade. Em algumas passagens, o autor deixa a desejar no que toca à alusão a alguns acontecimentos históricos que seriam fundamentais para melhor compreensão do leitor.
Porém, pelos seus amplos benefícios percebidos em sua abordagem, a leitura da obra do estadunidense não deve restringir-se aos especialistas da literatura e da história medieval, mas também é interessante para as áreas da Geografia e, sobretudo, para o Turismo, possibilitando o estudo da evolução e das práticas denominadas de viagem.
Agradecimentos À Pró-reitoria de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais pela oportunidade de realizar este trabalho através do Programa de Iniciação Científica Voluntária.
Referências BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. 94 p.
TOWNER, John. The Grand Tour: a key phase in the history of tourism. Annals Of Tourism Research, London, v. 12, n. 3, p.297-333, abr. 1985.
WALLERSTEIN, Immanuel. El Moderno Sistema Mundial I: la agricultura capitalista y los orígenes de la economía-mundo europea en el siglo XVI. Siglo Veintiuno Editores, México, 1979.
KYAN-WILSON, William. Book Review: The Medieval Invention of Travel. TRAFO – Blog for Transregional Research, 14 fev. 2019. Disponível em: <https://trafo.hypotheses.org/17922>. Acesso em: 16 jul. 2020.
Notas 1 Legassie aponta que a viagem era vista como um trabalho árduo “travail” (p. 2). A palavra similar em latim é expressada como uma conotação relativa ao trabalho. O autor faz um trocadilho com a palavra “travail” e “travel” (p.2) devido às suas semelhanças ortográficas.
2 Em geral, as partes possuem proximidade em suas grandezas; a parte I contém 76 páginas, a parte II contém 70 páginas e a parte III contém 62 páginas.
3 Tradução dos autores. Original: “a politically oriented mode of aestheticism that — in the Middle Ages — was founded on the symbolic appropriation of the traveler’s travail.” (p. 13).
4 No prefácio de seu escrito As Viagens de Sir John Mandeville se intitulou cavaleiro e assumiu este nome, mas há uma incerteza sobre a sua verdadeira identidade devido à falta de registros comprobatórios.
5 Após umas das suas duas viagens sobre as regiões da Europa, Fabri ficou particularmente preocupado com “sua incapacidade de responder perguntas básicas sobre a disposição e as orientações relativas dos lugares que ele havia visitado” (p. 167, tradução nossa).
6 Legassie afirma que era utilizada Tábuas de Cera para o registro. As folhas de pergaminho chegam posteriormente com o intenso comércio desse produto na Itália.
7 RUBIÉS, Joan-Pau. Travel and ethnology in the Renaissance: South India through European eyes, 1250- 1625. Cambridge University Press, 2002.
8 “Petrarca coloca em primeiro plano a questão ética do tempo e do trabalho envolvidos na descoberta geográfica.” (p.178, tradução nossa). Para Petrarca e Tafur, as viagens perigosas e de longa distância devem ser deixadas para os que não as fazem por valores morais, como por exemplo, os comerciantes e armadores que as empreendem em busca duvidosa de novidade e lucro.
9 Jornada empreendida no século XVIII, “(…) that circuit of western Europe undertaken by a wealthy social elite for culture, education, and pleasure” (TOWNER, 1985, p.289).
Guilherme Maximiano Ferreira Santos – Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. E-mail: guilhermemax@icloud.com.
Luiza Souza Pereira – Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. E-mail: luizasouper@ufmg.br.
Tainara do Carmo Lopes da Silva – Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. E-mail: tainarac@ufmg.br.
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