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Os cristãos e a política no Brasil contemporâneo: laicidade em disputa, Estado em colapso, religião em efervescência / Revista Brasileira de História das Religiões / 2021
O presente dossiê teve contribuição de treze excelentes textos que nos ajudam a contribuir a atuação intercessão entre cristãos e a política brasileira mais recente. Pode-se dizer que política e religião a cada momento, a cada nova configuração governamental se relacionam de forma distintas tal como narram Judith Butler e Gayatri Spivak (2007) sobre a arena dos diferentes estados nacionais. Agora, nos diferentes estados acaba que se tornou em alguns aspectos, caracterizado pelo questionamento da laicidade por seus atravessamentos.
1 A laicidade e o esboço de suas formas
Assim, uma questão da hora que se coloca sobre as desventuras de religião e política é sobre o aparato caraterizado como “laicidade” no âmbito dos Estados, sobretudo, nas questões da abstenção da religião. Esse sentido e grau de abstenção envolve no âmbito da sociedade uma infinidade de “embates de interpretações envolvidos sobretudo nos nichos promotores e suas diferentes apreensões religiosas” (RICOEUR, 1995, p.313). Esse curto-circuito de intensos conflitos foram apontados em linhas gerais em importante entrevista de Paul Ricoeur de 1995 – um dos raros textos que tratou dessa topografia teórico-social.
A definição de laicidade, as conexões de religião e política no âmbito dos Estados, é primeiro uma variável da conjuntura da gestão governamental do estado. Paul Ricoeur (1995) admite sobre isso que a noção de laicidade é diferente no Egito, na França, Portugal, Gabão e Inglaterra, nisso se alinha com teóricos com Nicos Poullantzas (1976), Judith Butler e Gayatri Spivak (2007) que a interpelação nos estados é uma variável local dependente de cada história social da religião oficial e do conjunto de forças hegemônicas. Por exemplo, Poullantzas (1976) indica que a Inglaterra respeita seu processo de laicidade respaldando os conflitos religiosos internos, mesmo assumindo, a partir a figura da rainha como liderança rainha e dirigente anglicanismo. A laicidade inglesa é descrita por Christian Smith (2003) vai designar de aberta para experiencias de fé, mesmo dando a primazia para o cristianismo de Westminster.
De igual forma Smith (2003) escreve sobre a França emergida no ambiente da Revolução Francesa, prorrogou um critério de laicidade, de retirada de símbolos e expressões religiosas dentro dos gabinetes até o ano de 2018. Por isso, Smith (2003) vai chamar o estado francês de “fechado” as discussões, diálogos e embates das expressões de fé. A partir de 2013, com uma série de campanhas e levantes mulçumanos e de migrantes acarretou na revisão da noção francesa de abolição de símbolos religiosos, até porque ocorriam cobranças das populações mulçumanas por conta das rezas diárias que se fazem na direção de Meca. Essa revisão de décadas da laicidade francesa se deu como uma série de acusações das populações emigradas que se referiram “o racionalismo europeu como racista” (PORTIER, 2019).
2 Laicidade no âmbito da sociedade
A noção de laicidade brasileira é ligada a laicidade portuguesa, uma forma mista das operações dos ambientes ingleses e franceses. Por isso Smith (2003) utiliza a expressão laicidades “mistas”, o que se torna mais desafiadora para as análises, pois admite internamente duplicidades de narrativas e aparentes contradições de argumentos.
Só por isso, afirma-se a importância desta edição da Revista Brasileira de Histórias das Religiões/ANPUH, com a discussão sobre cristãos e política em tempos difíceis.
Ao olhar mais o panorama da sociedade, ainda que sobre as sinalizações dos teóricos franceses, Phillip Portier (2011, p.190-195) indica-se que exista “há a laicidade do Estado, que pode ser referida com uma palavra: abstenção, com conotações restritiva e negativa”. O “Estado laico deve assumir papel de neutralidade em relação à religião e, consequentemente, às instituições religiosas” (PORTIER, 2011, p.195). Logo, seus representantes e estatutos não deveriam privilegiar ou posicionar-se de maneira agressiva em relação a nenhuma manifestação religiosa, o que para Paul Ricoeur (1995) esse caminho seria de uma espécie de “agnosticismo estatal”. Nesse sintagma a separação entre Estado e religião não implica simples ignorância de um em relação ao outro, mas, “há o intento de delimitar de maneira adequada o papel de cada um, de maneira que a religião seja reconhecida pelo Estado como entidade, com regimentos, registro e estatuto público, submetida às leis que regem os demais grupos e agremiações sociais” (RICOEUR, 1997, p.81).
Em termos jurídicos as instituições religiosas não têm o poder centralizador, configurando-se como mais uma associação dentre as outras, portanto, a religião não é “todo o estado, mas parte dele” (PORTIER, 2011, p.196). Paul Ricoeur (1995 p. 181), está convencido de que este conceito de laicização se mostra mais normativo do que efetivo, quando diz: “creio que é preciso ter mais sentido histórico e menos ideológico, para abordar os problemas ligados à laicidade”. O que se quer esmiuçar: os diversos Estados-nação, a partir de sua formação histórica peculiar, há mobilizações próprias sobre as religiões e as instituições estatais.
Junto a esse conceito de laicidade existe outro mais dinâmico. Quando se analisa no âmbito da sociedade civil, a laicidade coloca-se como embate de posicionamentos distintos, como pluralidade e diversidade de perspectivas. Esses conflitos de posicionamentos pressupõe uma sociedade marcada pelo pluralismo de concepções de mundo, de crenças, de ideias, de ideologias, de interpretações e de convicções. Em uma sociedade marcada por esta diversidade, a laicidade assume caráter dinâmico em razão do campo de disputas que se instaura. Esse “conflito de interpretações” não tem por objetivo a harmonização, um consenso. Mas, antes, assume-se que, em muitas questões, a impossibilidade de um acordo é patente. O que não é negativo, desde que se preserve as partes em desacordo. O conflito das interpretações, desde que se preserve os atores e seus argumentos, é uma forma de preservação das liberdades e dos conjuntos.
3 Tensões e questões da laicidade em disputa no Brasil
No Brasil atual, em que cada vez mais se aumentam os atravessamentos entre religião e política, deve-se lembrar que os conflitos de interpretações religiosas são inerentes a formação do Estado republicano (1889) que se mantém neutro, ao menos oficialmente, em relação a instituições religiosas, ou então, deveria ser mantido. Com esses dados sobre religião e política no Brasil podemos vislumbrar incursões dos atores religiosos, em especial católicos e evangélicos, na construção de uma patrulha ideológica nos postos do Estado brasileiro e sua ocupação efetiva, e, todos os níveis, local, regional e federal e se espraiando pelos três poderes. Daí a importância desse dossiê, e sobretudo, que a laicidade brasileira não seja um conceito dado, fixo, mas se encontra em disputa.
É o que se pode perceber, quando o atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, afirmou em 2019 no maior evento evangélico do país, a Marcha para Jesus: “O país é laico, mas eu sou cristão”. Está ocorrendo um claro deslocamento da neutralidade do estado, e o se preservando as partes nos conflitos religiosos internos a nossa sociedade (PY, 2020). Por outro lado, isso sempre foi uma ponta de disputa, como por exemplo, com o advento do Estado de 1892, na primeira Carta Constitucional da República, tratou-se sobre a laicidade brasileira, e por conta dela o clero viram a necessidade de tentar “recatolicizar”, e passaram a investir nas novas instituições republicanas, buscando influenciar decisões políticas e sociais por meio da formação de uma elite intelectual católica (SILVEIRA, 2019).
Um dos marcos desse início e reação católica foi a promulgação, em 1916, da Carta Pastoral de Dom Sebastião Leme, arcebispo de Olinda e Recife, tornou-se, mais tarde, arcebispo e cardeal do Rio de Janeiro pelas mãos do Papa Pio XI (SILVEIRA, 2019). A Carta Pastoral fazia parte de um momento que se delineava desde a origem da República Brasileira, quando a Igreja Católica reuniu suas forças para consolidar reformas internas, como o recrutamento de novos membros estrangeiros para as ordens religiosas, a criação de novas dioceses e a consolidação de um discurso e de uma ação mais homogêneos (SILVEIRA, 2019). Assim, o dossiê apresentará uma série de reflexões teóricas e de objetos empíricos, construtos de seus autores e autoras, na forma de treze artigos que brindam os leitores e pesquisadores dos temas do Brasil contemporâneo.
4 Os artigos do dossiê
Logo em seguida, o trabalho intitulado “Pela “família tradicional”: campanha de candidatos evangélicos para a ALEP nas eleições de 2018”, escrito pelos pesquisadores Frank Antonio Mezzomo, Lucas Alves da Silva, Cristina Satiê de Oliveira Pátaro, discutem a partir do material de campanha (coletado nas redes sociais e sites) de alguns candidatos a deputados estaduais no estado do Paraná, seus posicionamentos políticos. Os temas centrais encontrados em geral foram: a defesa da escola sem partido, a luta contra a ideologia de gênero, e debates sobre a reprodução da vida. A preocupação destes candidatos é em geral com temas religiosos e morais.
A pesquisadora-docente Dora Deise Stephan Moreira contribui com o artigo denominado “A trajetória de Marcelo Crivella: de cantor gospel a prefeito da segunda maior cidade brasileira em 2016”. O texto discute as ações adotadas pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), para eleger inicialmente para o cargo de senador o bispo licenciado Marcelo Crivella, e depois, ao cargo a prefeitura do Rio de Janeiro que foi eleito em 2012. A dança entre a imagem religiosa e a imagem política se complexifica e é utilizada por Crivella de forma instrumental, ao sabor das circunstâncias políticas-eleitorais. Em todas as campanhas disputadas por Marcelo Crivella houve a vinculação da sua imagem com o projeto Nordeste. Projeto este desenvolvido pela IURD para fins sociais. Percebeu-se a associação do referido político com a questão midiática, assistencial, religiosa e moralista.
O próximo texto a ser apresentado e de autoria do docente da Universidade do Estado do Pará Saulo Baptista. O título do seu trabalho é “Os Evangélicos e o Processo Republicano Brasileiro”. No início do seu trabalho, o autor faz uma recapitulação histórica da chegada dos protestantes em terras brasileiras e sua presença pública em contraponto a hegemonia católica. Logo em seguida, contextualiza o surgimento e o desenvolvimento dos pentecostais e dos neopentecostais na política brasileira. O texto termina com uma eximia reflexão a respeito da presença dos evangélicos na atual conjuntura política nacional.
O docente Aldimar Jacinto Duarte e Seabra Vinicius contribuem com este número com o texto chamado “O campo político e o campo religioso a partir dos jovens ligados a International Fellowship of Evangelical Students (IFES) na América Latina”. Muito interessante a reflexão desenvolvida a respeito da postura, aparentemente, apolítica do grupo do IFES. Para chegar a esta conclusão foram aplicados questionário via Google-Forms em vinte países da América Latina, obtendo 228 respostas. A análise dos dados foi feita a partir dos conceitos da teoria de Pierre Bourdieu. Tal grupo é majoritariamente formado por jovens universitários.
Os pesquisadores Ricardo Ramos Shiota e Michelli de Souza Possmozer escreveram o texto denominado “O Brasil cristão da Frente Parlamentar Evangélica: luta pela hegemonia e revolução passiva”, que discute a partir das informações contidas no Facebook da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), criada em abril de 2019. Sabemos que a FPE é entusiasta apoiadora do governo Jair Bolsonaro (sem partido), sobretudo pelo alinhamento ideológico na defesa das pautas de costume ou morais, fundamentalismo religioso e defesa de postura vinculadas aos expecto ideológico de extrema direita. Foram analisadas 209 publicações, entre 01 de abril e 31 de outubro de 2019. A teoria escolhida para analisar os dados foram os conceitos desenvolvidos por Gramsci.
Os autores Cézar de Alencar Arnaut de Toledo e William Robson Cazavechia adotaram como título do texto, “As Formas de Adaptabilidade do Neopentecostalismo Brasileiro à Mídia” e discutem a presença do conservadorismo religioso neopentecostal na mídia brasileira. Historicamente os evangélicos tiveram concessão de rádio, tv, criaram páginas de internet, e o uso das redes sociais com o intuito de posicionarem a respeito dos mais variados temas nacionais na perspectiva do fundamentalismo cristão. O texto é instigante e nos mostra como a mídia é bem trabalhada por este grupo religioso no Brasil.
O texto publicado foi de autoria dos autores Fabio Lanza, Luiz Ernesto Guimarães, José Neves Jr. e Raíssa Rodrigues, cujo título é “Engajamento político e Renovação Carismática Católica em Londrina-PR (2014-2016)”. O texto discute os posicionamentos políticos dos grupos católicos carismáticos (RCC) na cidade de Londrina inteiro de São Paulo. A partir de visitas de campo e entrevistas semiestruturadas, os autores conseguiram perceber a visão de mundo das lideranças deste universo religioso sobre o atual momento político brasileiro, Em geral, os representantes ou postulantes da RCC a cargo para o poder legislativa ou executivo, defendem pautas conservadoras, são fundamentalistas religiosos e benefícios institucionais para organismos de inspiração carismática católica e outros segmentos da Igreja Católica no Brasil.
Ao discutir o governo Bolsonaro na relação religião e política, a união entre católicos e evangélicos tem evidenciado de forma rotineira. O texto “Entre a articulação e a desproporcionalidade: relações do Governo Bolsonaro com as forças conservadoras católicas e evangélicas” escrito por Marcelo Ayres Camurça Lima e Paulo Victor Zaquieu-Higino tenta compreender se esta aproximação pode ser caracterizada como uma ação ecumênica de extrema-direita, num contramovimento do que no passado caracterizou as tentativas de aproximação entre os diferentes grupos cristãos em torno, por exemplo, da Teologia da Libertação e das lutas sociais na América Latina. Uma forte indagação é feita e discutida ao longo do texto: nessa trama religioso-política de extrema-direita, o catolicismo estaria sendo “eclipsado” e o pentecostalismo destacado? Não tenha dúvida que o atual governo aciona a religião para fundamentar suas ações e visões de mundo na política.
O próximo trabalho a ser apresentado traz como título “Guerras culturais e a relação entre religião e política no Brasil contemporâneo” escrito pelos pesquisadores Roberto Dutra e Karine Pessôa. O texto versa da presença da moralidade na política, provocada pela religião nas eleições de 2018. Os autores recorrem as categorias da sociologia política sistêmica de Niklas Luhmann para analisar o fenômeno religião e política na eleição referida.
O artigo chamado “A ‘governabilidade’ petista” escrito pela pesquisadora Amanda Mendonça é bem interessante e supre lacuna na literatura a cerca religião e política, que versa sobre a relação do Partido dos Trabalhadores (PT) com os pentecostais e os católicos, no período que esteve à frente da presidência do Brasil. A autora mostra que evangélicos e católicos uniram-se em torno da defesa de pautas conservadoras e, ainda que dando alguma sustentação político-partidária, causaram conflitos com a gestão petistas por entenderem que a “essência” do governo era contrária ao seu ideário religioso. Por outro lado, os governos petistas ofereceram alianças, cargos e apoio direto e indireto – subvenção de comunidades terapêuticas religiosas para o tratamento de drogadições, concessões de rádio e TV por exemplo – aos grupos cristãos em nome da governabilidade, essa geringonça feita de modos heteróclitos e que em 2018 entrou em um novo patamar de crise.
Os pesquisadores do campo das relações internacionais Anna Carletti e Fábio Nobre com o texto intitulado “A Religião Global no contexto da pandemia de Covid-19 e as implicações político-religiosas no Brasil”, nos mostra como líderes religiosos no Brasil e no mundo reagiram a pandemia Covid-19. Os pesquisadores André Ricardo de Souza e Breno Minelli Batista contribuem com o trabalho intitulado “Os efeitos políticos no Brasil dos sete anos iniciais do Papa Francisco”, tentando compreender as relações políticas e religiosas do Papa Francisco com o governo Jair Bolsonaro (sem partido). Sabemos que o Papa Francisco assume o papado em 2013, logo após, a renúncia do atual Papa Emérito Papa Bento XVI.
E por fim, o docente Graham McGeoch com o trabalho “Field Notes from Brazil: We don’t believe in Democracy”, faz uma interessante reflexão da presença dos elementos religiosos na atual conjuntura política brasileira, elegendo a eleição e o governo Bolsonaro como tema de análise. Daí, extraímos algumas perguntas: Que tipo de democracia é esta que temos e o porquê ela se enredou em uma trama político-religiosa de extrema-direita? É possível acreditar nesse tipo de democracia? E, por fim, que outra democracia podemos sonhar para sairmos uma relação disfuncional, inflamada e perversa entre cristianismo reacionário e política estatal (um estado de sítio) que a democracia liberal-representativa permitiu vir à luz.
Referências
BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri. Who sings the Nation-State? Language, Politics, Belonging. New York: Seagull. 2007
POULANTZAS, Nicos (Org.), La Crise de l’État. Paris : Presses Universitaires de France, 1979.
PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020.
RICOEUR, Paul. Phenomenology and the social sciences. In: KOREBAUM, M. (Org.). Annals of Phenomenological Sociology, Ohio: Wright State University, 1977.
RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações. Ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978.
RICOEUR, P. Leituras 1. Em torno ao Político. São Paulo: Edições Loyola, 1995.
SMITH, Christian. The secular revolution: power, interests, and conflict in the secularization of American public life. Berkeley: University of California Press, 2003.
SILVEIRA, Emerson. J. S. Padres conservadores em armas: o discurso público da guerra cultural entre católicos. Reflexão, PUCCAMPINAS, v. 43, 2019, p. 289-309.
Fábio Py – Professor do Programa de Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Riveiro. E-mail: pymurta@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7634-8615.
Emerson Sena da Silveira – Doutor em Ciência da Religião, antropólogo, professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG. E-mail: emerson.pesquisa@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5407-596X.
Marcos Vinicius Reis Freitas – Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Docente do Curso de Pós-Graduação em História Social pela UNIFAP, Docente do Curso de Pós-Graduação em Ensino de História (PROFHISTORIA). (CEPRES-UNIFAP/CNPq). E-mail para contato: marcosvinicius5@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0380-3007.
PY, Fábio; SILVEIRA, Emerson Sena da; FREITAS, Marcos Reis. Apresentação – Os cristãos e a política no Brasil contemporâneo: laicidade em disputa, Estado em colapso, religião em efervescência. Revista Brasileira de História das Religiões. Marigá, v.13, n.39, p.5-12, jan. / abr. 2021. Acessar publicação original [IF].
Intolerância Religiosa, Laicidade e Política / Projeto História / 2020
O presente dossiê, intitulado “Intolerância Religiosa, Laicidade e Política”, traz um assunto muito atual no mundo político e na sociedade brasileira, o aumento das mais variadas formas de intolerância religiosa, racismo religioso, fundamentalismo religioso e questionamento da frágil laicidade do nosso país.
Com o findar da Ditadura Civil-Militar, novos atores religiosos entraram no cenário político brasileiro, impondo uma lógica concorrencial à Igreja Católica no campo político e social. O número de evangélicos cresceu exponencialmente e, também, os intitulados “sem religião”, enquanto o catolicismo perdeu fiéis. O Brasil passou de uma “hegemonia católica” para uma maioria de católicos. O campo religioso brasileiro pluralizou-se, inclusive com a ampliação de propostas religiosas não cristãs.
Nesta nova radiografia do perfil religioso brasileiro, novos formatos de intolerância surgiram. No campo político partidário, as bancadas evangélicas e católicas trabalham em conjunto na defesa de projetos de “escola sem partido” para impedir o debate das questões de gênero nas escolas, defendendo um ensino religioso confessional e a perseguição aos aspectos religiosos e culturais das religiões de matriz africana. Ou seja, há uma atuação política que impede que a laicidade do Brasil seja vivenciada conforme aponta a Constituição de 1988.
A laicidade consiste na não perseguição a qualquer forma de religião ou religiosidade, pelo contrário, é o direito do indivíduo, em seu aspecto particular, escolher ter ou não uma religião. O Estado precisa ser neutro em matéria de confessionalidade. Não cabe às autoridades beneficiar instituições religiosas autorizando o funcionamento de feriados religiosos, partidos confessionais, bancadas religiosas, concessão de rádio e TV para grupos religiosos, investimento de dinheiro público em empreendimentos de instituições confessionais, dentre outras atividades. O Brasil precisa de um projeto de governo que lute pelos direitos humanos e a laicidade é um dos pontos principais que precisa de uma revisão.
A capa1 que escolhemos, tomando os devidos cuidados com as associações, dialoga no sentido figurativo com o atual momento do Brasil. A cada dia muitas pessoas são mortas, presas, violentadas, estigmatizadas, recriminadas, ou ridicularizadas pela sua opção religiosa ou por não ter religião. Quanto mais o exercício da fé se afastar dos valores judaicocristãos, mais o fiel sofrerá intolerância religiosa.
Dito tudo isso, o presente dossiê apresenta textos de alta qualidade que discutem essa relação entre laicidade, política e intolerância religiosa, nos mais plurais temais atuais e ao longo da História do Brasil. São nove artigos do dossiê, três artigos da sessão livre, duas resenhas, uma entrevista e uma notícia sobre as pesquisas em andamento no Programa de História da PUC SP.
Abrimos o dossiê com o texto intitulado “A falsificação do jornal católico O São Paulo: Uma análise da reação midiática à edição Mea Culpa (1982)”, escrito pelos pesquisadores Fábio Lanza, José Wilson Assis Neves Júnior e Raíssa Regina Brugiato Rodrigues, todos estudiosos ligados à Universidade Estadual de Londrina. Este artigo analisa o processo de falsificação de uma edição do jornal católico O São Paulo (1982). Usando instrumentos teóricos e metodológicos das ciências sociais, os referidos autores utilizam a análise do discurso para entenderem como foram desenvolvidas as falsificações dos artigos do jornal analisado, e como e de que forma a intolerância religiosa aparece nos conteúdos.
Em seguida, temos o artigo ““A milícia dos remidos marcha impoluta”: Campanha de evangélicos assembleianos ao legislativo paranaense em 2018”, no qual foram analisadas dezenas de candidaturas, coletando informações nas redes sociais dos candidatos. A Assembleia de Deus é a maior instituição evangélica do Brasil. De forma descentralizada e plural, está presente em todos os territórios do país. Em termos políticos, é a instituição religiosa que consegue eleger o maior número de representantes dos poderes executivos e legislativos. Os autores nos mostram como este fenômeno da presença da AD na política ocorreu no ano de 2018 no processo eleitoral.
O artigo nomeado “A “Modernização” Política da Igreja Católica no Brasil (1850-1930): Uma aproximação a partir da teoria crítica de Jürgen Habermas”, discute de forma profunda as questões relacionadas à Igreja Católica e o Estado Brasileiro entre 1850-1930, período muito conturbado na história política do Brasil. Neste período, nosso país muda de regime político, passando da monarquia para o regime republicano, e ainda ocorreu a subida de Getúlio Vargas à presidência do Brasil. Independente dos episódios históricos, a Igreja Católica participou ativamente nas questões políticas, ora se aproximando como parceira do Estado, ora se posicionando contrária a algumas medidas.
O texto “Entre o Trono e o Altar: A questão religiosa em Portugal e no Brasil, notas para uma laicidade à brasileira” é fruto de uma pesquisa de pós-doutoramento pensando a questão da secularização e da laicidade em Portugal e no Brasil. O interessante deste texto é a apresentação de uma relação bem diferente estabelecida no Brasil, no tocante à intercessão entre religião e política no espaço público ocorrida em Portugal. A pesquisa, de certa forma, mostra aspectos próximos e distantes da construção histórica entre Igreja e Estado no Brasil e em Portugal.
O debate sobre a identidade do componente “ensino religioso” nas escolas públicas e como os grupos religiosos e não religiosos desenvolvem estratégias, negociam, discursam e articulam a defesa da sua visão sobre a existência ou não do ensino religioso na década de 1930, consiste a discussão do seguinte artigo, denominado “Laicidade e educação: O Pe. Leonel Franca S.J. e o debate sobre o decreto do Ensino Religioso na escola pública brasileira (1931)”. Com o advento da presidência do Getúlio Vargas, a Igreja Católica retoma o status de instituição religiosa mais beneficiada pelas autoridades brasileiras.
O artigo “O ensino religioso e a escola José Bonifácio: um estudo de caso da prática pedagógica desenvolvida no quilombo do Cria-ú no Amapá” discute a proposta didático-pedagógica da escola José Bonifácio, que se localiza no maior Quilombo do Estado do Amapá. O texto alerta para a necessidade de quebrar a resistência do corpo docente da escola e da direção em trabalhar os aspectos religiosos e culturais do quilombo. Há parteiras, benzedeiros, festas populares, rezas, ladainhas, missas, e outros aspectos da cultura afro-ameríndia que fazem parte do cotidiano do quilombo e não são pensadas pela escola como forma de ensino às crianças.
O texto intitulado “O ultraje a religião tradicional da família paraense: A separação Igreja-Estado no Brasil República e a prisão de Justus Nelson em Belém do Pará. (1889-1925)”, desvela como foi este rompimento e suas consequências na sociedade paraense, além de problematizar a prisão de Justus Nelson.
O historiador Ipojucan Dias Campos, ligado à Universidade Federal do Amapá, com o artigo “Políticas laico-religiosas: Casamento, família e divórcio na fabricação do Código Civil Brasileiro (Belém-PA, 1915)” discute as características do casamento, concepção de família e divórcio na sociedade paraense no início do século XX. A problematização se dá a partir do Código Civil Brasileiro aprovado na República Velha.
O artigo “Religiões, Laicidade e Ensino de História: Diálogos culturais para o trabalho em sala de aula”, discute aspectos fundamentais da necessidade da História das Religiões estar presente nas aulas de ensino de História, tendo como contribuição os aspectos teóricos e metodológicos da História Cultural. Com a pluralidade do campo religioso brasileiro, professores e pesquisadores precisam desenvolver estratégicas de transposição do conhecimento para que os alunos entendam, nos mais variados tempos históricos, a influência das religiões e religiosidades nas sociedades.
Iniciando a sessão de artigos livres, o artigo intitulado “Dilemas da propaganda socialista em Manaus no alvorecer do século XX”, escrito pelo pesquisador Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro, apresenta como a propaganda socialista foi feita em Manaus no século XX. De acordo com o autor, houve periódicos que se posicionaram a respeito da falta de leis trabalhistas e da exploração que os empregados eram sujeitos em seus postos de trabalho.
Os historiadores argentinos Laura Cucchi e Leornardo Hirsc assinam juntos o artigo “Conflicto político, diseños electorales y el problema de las minorías en la Argentina de fines del siglo XIX”, no qual dissertam a respeito dos conflitos políticos entre as minorias e as autoridades públicas na Argentina no início do século XIX. Os autores mostram as limitações da legislação vigente no período da participação política de grupos minoritários no contexto argentino.
A historiadora Flávia da Cruz Santos contribui para este número com o título “O conceito de divertimento na cidade de São Paulo (1828- 1867)”, no qual ela problematiza o conceito de divertimento na cidade de São Paulo no século XIX. As fontes utilizadas foram os jornais: A Phenix, Correio Paulistano, Diário de S. Paulo, Ensaios Literários, O Acayaba, O Farol Paulistano, e O Novo Farol Paulistano, além da literatura produzida por viajantes estrangeiros.
Passada a sessão temática e a sessão de artigos livres, o presente número publica duas resenhas. A primeira intitulada “Memórias da juventude na Rua Maria Antônia”, escrita pelo autor Gustavo Hatagima, sobre a obra “ABDALA JUNIOR, Benjamin. (org.) Um mundo coberto de jovens. São Paulo: Com-Arte, 2016”, e a outra resenha denominada “Religiosidade em trânsito. Práticas cotidianas do sagrado no Brasil da Primeira República, escrita pela autora Elena Pajaro Peres, sobre a obra “WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Práticas Religiosas, Errância e Vida Cotidiana no Brasil (Finais do Século XIX e Inícios do XX), São Paulo: Intermeios; USP-Programa Pós-Graduação História Social, 2018”. Ambas as resenhas trazem excelentes análises das obras supracitadas.
Na presente edição trazemos ainda a “Entrevista com Durval Muniz de Albuquerque Júnior: As Veredas Subjetivas de um Historiador”, feita pela historiadora Valéria Barbosa de Magalhães Daisy Perelmutter. A entrevista explora aspectos da sua vida particular, sua visão sobre diversos temas da historiografia, dentre outros assuntos.
E para findar esta edição, trazemos a notícia da pesquisa de doutoramento da estudante Adriana Bastos Kronemberger com o título “Vozes da militância – Nova Iguaçu nas décadas de 1970 e 1980”. A estudiosa objetiva compreender as particularidades das lutas do povo da cidade de Nova Iguaçu nas décadas de 1970 e 1980 ao lado de seu bispo, Dom Adriano Hypólito.
Boa leitura,
Nota
1Sobre a capa, o autor Claudinei Cássio de Rezende, explica que “A tela representa o momento exato em que a Santa Engrácia de Saragoça, mártir da Igreja Católica, é morta no ano 303 d.C. Antes de ser executada padeceu de castigos violentos da tortura. A ordem de sua execução partiu de Diocleciano (244 – 311 d.C), então imperador romano que promoveu a maior perseguição aos cristãos. Esta situação foi bem tratada historiograficamente por Edward Gibbon em sua obra escrita entre 1776 e 1778, “Declínio e queda do Império Romano”, em seu sexto capítulo. No que se refere à questão iconográfica, a escolha da pintura se alinha à temática da intolerância religiosa e da política. Bertolomé Bermejo (c. 1440 – 1500) foi um dos mais importantes artistas pré-renascentistas espanhóis, cujo estilo foi profundamente influenciado pela pintura flamenga quatrocentista. Seu retábulo tríptico “A Virgem de MontSerrat”, de 1485, guarda uma marca indubitável do estilo dos irmãos Van Eyck e de Rogier van der Weyden, o que atesta a informação biográfica de suas viagens para Flandres para conhecer a técnica do óleo – que viria a chegar no renascimento italiano por Antonello da Mesina e Hugo van der Goes nesta mesma época. Podemos dizer que o patrimônio pictórico barcelonês deve muito à obra de Bertolomé Bermejo, para quem ora prestamos a homenagem desta capa num tema tão importante quanto este, da tolerância e da misericórdia religiosa.”
Luiz Antonio Dias – Professor do Departamento de História da PUC / SP Orcid: http: / / orcid.org / 0000-0001-8834-442X
Marcos Vinicius de Freitas Reis – Professor da Universidade Federal do Amapá. Líder do Centro de Estudos Políticos, Religião e Sociedade – CEPRES.
DIAS, Luiz Antonio; REIS, Marcos Vinicius de Freitas. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.67, 2020. Acessar publicação original [DR]