Filosofar com Gadamer e Platão: hermenêutica filosófica a partir da Carta Sétima – ROHDEN (RA)

ROHDEN, L. Filosofar com Gadamer e Platão: hermenêutica filosófica a partir da Carta Sétima. São Paulo: Annablume, 2018. Resenha de: KUSSLER, Leonardo Marques. Revista Archai, Brasília, n.28, p 1-5, 2020.

O  livro  recém-chegado  das  prensas  às  livrarias  brasileiras concentra um esforço de pesquisa de anos e organiza, de forma densa, coesa e didática, os melhores estudos sobre a Carta VII, de Platão, realizados pelo Prof. Luiz Rohden nos últimos anos. Em termos de estrutura, de forma coincidentemente consciente, o livro se divide em sete capítulos, como alusão à numerologia epistolar platônica, que apesar de contar com treze cartas, tem, na sétima, seu conteúdo filosoficamente mais relevante e apurado. Lembremos que é na Carta VII que Platão aborda o lamento da morte de seu amigo, Díon – que havia tentado ensinar filosofia ao tirano de Siracusa, pagando o preço de questionar alguém totalitário –, e explora sua própria tentativa de ensinar filosofia ao tirano, Dionísio II, supondo a possibilidade de convertê-lo moral, política e filosoficamente, aliando discurso à atitude filosófica.

E é tendo em conta o excursus filosófico da Carta VII – presente nos  trechos 342a-344 d,  em  que  o  próprio  Platão  explicita  as mediações para conhecer as coisas, que se resumem a nome, discurso, imagem e  o conhecimento,  que nem  mesmo  juntas compreendem a coisa em si – que Luiz Rohden retoma uma das reflexões platônicas mais maduras e profundas acerca de sua visão imbricada de metafísica, ética e política. Para tanto, a interpretação do autor considera e explicita o processo dialético apresentado no excursus platônico,  que,  na  esteira  de  Gadamer,  entrelaça sistematicamente os aspectos fenomenológico e hermenêutico do projeto filosófico de Rohden, que expressa uma relação reflexiva e dialógica, de jogo, de movimento de vaivém, de espelhamento de si no/para/com outro(s).

Ao longo da obra, os focos se dividem entre a) abordar seis aspectos diferentes da Carta Sétima platônica, b) os aspectos práticos da applicatio da proposta platônica enquanto um exercício filosófico, c) esmiuçar e explicitar a metafísica dialética de Platão, d) aprofundar e publicizar o estudo gadameriano da obra platônica – tema ainda incipiente nas pesquisas hermenêuticas brasileiras –, expondo a relação  nevrálgica  da  hermenêutica  gadameriana  e  a  filosofia dialética platônica. Assim, além de realizar uma leitura apurada e cuidadosa de uma epístola, que versa de forma diferente dos habituais diálogos platônicos, aponta e dedica-se a explorar conexões e estreitar laços dialético-dialógicos com a hermenêutica filosófica gadameriana, sempre de forma original e inovadora, como pede o preceito  de  uma  leitura  fenomenológica,  enquanto  exercício hermenêutico  que  se  propõe  a  revisitar com  um  novo  olhar, consciente da tradição e das pressuposições de leitura.

De forma pormenorizada, os capítulos se organizam de acordo com a ordem cronológica de publicação anterior dos textos, em forma de artigos, em diversos e prestigiados periódicos brasileiros da área. No primeiro deles, Rohden argumenta que a tarefa do filosofar constitui-se de forma fenomenológica, com intuito de ler o real de modo mais integral, tendo em vista que uma visão distorcida do real envolve um discurso que o desfavorece. Em continuidade, no segundo capítulo, a reflexão gira em torno do que seja propriamente hermenêutica filosófica, tal como sua aplicação na tarefa de boa interpretação textual, relacionando-a com o que seria a verdadeira filosofia, que responde aos fatos e textos transparecendo a posição do autor acerca da filosofia atual.

No  capítulo  três,  Rohden  debruça-se  sobre  a  proposta  da efetivação  do  filosofar  com  relação  à  metodologia  dialética apresentada no texto platônico em análise. Na tentativa de equilibrar os m o[vi]mentos dialéticos platônicos à hermenêutica filosófica de Gadamer,  o  autor  justifica  a  dimensão  atual  da  racionalidade metafísica dialética que se firma nos movimentos ascendente e descendente dos princípios. Já no quarto capítulo, Rohden aborda o evento da verdade, enfatizando como esse acontecimento é o objetivo da dialética ascendente, que parte da palavra em direção ao conceito; trata-se da elevação do real ao nível conceitual. Para tanto, o autor aborda o acontecer da verdade enquanto metáfora de uma faísca instantânea,  que  se  materializa  de  forma  dialética,  do  atrito promovido pelas definições, os conceitos e ideias dos entes e das constantes  controvérsias  dialógicas  amistosas,  características peculiares da linguagem filosófica enaltecida por Platão e Gadamer.

No quinto capítulo, Rohden ensaia uma analogia com a ideia de que o quinto momento dialético, que, na Carta VII, se caracteriza como a compreensão da coisa mesma, enfatizando como o sentido desse evento é apreciado pelo ponto de vista da hermenêutica. Desse modo, o autor defende que o movimento dialético ascendente realiza uma síntese e nova proposta do processo hermenêutico como tarefa de instauração de sentidos, dando sequência à discussão do capítulo anterior, que versa sobre o idioma próprio da verdade. No sexto e último capítulo de autoria exclusiva de Rohden, o autor debruça-se sobre a hipótese de que a metafísica dialética enquadra-se enquanto exercício  teórico  e  prático,  especialmente  no  que  tange  à compreensão dos princípios últimos e das coisas mais importantes. O ponto, aqui, é explorar afinidades entre as filosofias gadameriana e platônica enquanto propostas que conjugam dialeticamente, θεωρία e πράξις, não apenas falando de metafísica, mas fazendo metafísica.

A parada final do itinerário filosófico entrega ao leitor uma entrevista com Dennis J. Schmidt, uma das autoridades no que se refere aos estudos de Gadamer atualmente. Não apenas por ter convivido com Gadamer, na Alemanha, mas por ser um dos mais competentes estudiosos e pupilos gadamerianos, cujas reflexões acerca do filosofar hermenêutico enfatizam tessituras da ética com a hermenêutica  filosófica.  Outro  motivo  que  torna  a  entrevista interessante  é  o  fato  de  firmar-se  enquanto  diálogo  de  dois especialistas que se conhecera m, trocaram experiências, e mantêm a linha dialógica, com perguntas e respostas que visam promover, dialeticamente, a arte do verdadeiro diálogo.

Por fim, vale ressaltar que a obra é extremamente atual, e todos  os  textos  anteriormente  publicados  como  artigos  foram repaginados para essa edição em formato de livro, o que traz novidade inclusive para quem é familiarizado com a pesquisa de Rohden. Finalizamos com uma das passagens mais verdadeiras da Carta Sétima, que afirma que em

[…] colóquios amistosos em que perguntas e respostas se formulam sem o menor ressaibo de inveja, é que brilham  sobre  cada  objeto  a  sabedoria  e  o entendimento, com a tensão máxima de que for capaz a inteligência humana. (344b-c)

Desse modo, é no movimento constantemente dialético de perguntas e respostas, de discursos sobre o real e o real mesmo, de constante construção conceitual inacabada e aberta a revisitações sobre as coisas que se funda o verdadeiro filosofar.

Referência

ROHDEN, L. (2018). Filosofar  com  Gadamer  e  Platão: hermenêutica  filosófica  a  partir da Carta Sétima.  São Paulo, Annablume.

Leonardo Marques Kussler – Universidade do Vale do Rio dos Sinos – São Leopoldo – RS – Brasil. E-mail: leonardo.kussler@gmail.com

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De Hitchcock a Greenaway, pela história da filosofia. Novas reflexões sobre cinema e filosofia – CABRERA (FU)

CABRERA, J. De Hitchcock a Greenaway, pela história da filosofia. Novas reflexões sobre cinema e filosofia. São Paulo: Nankin Editorial, 2007. Resenha de: KUSSLER, Leonardo Marques. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.12, n.1, p.87-89, jan./abr., 2011

Nesta segunda obra que aborda a temática de cinema e filosofia, Cabrera retoma alguns pontos de seu livro anterior (Cabrera, 2006) que geraram muitas dúvidas e mal-entendimentos, pressupondo que não se faz necessário demonstrar novamente o cinema em seu enlace com a filosofia, e sim, mostrar as repercussões acerca do que o cinema mostrou da natureza filosófica, diz o autor. Para tanto, Cabrera distingue dois momentos do livro: um primeiro, mais teórico com esclarecimentos e definições mais específicas dos conceitos de seu primeiro livro, e um segundo, que trata de novas reflexões do autor com análises e reflexões sobre novos filmes.

O autor retoma o conceito de páthos e sua presença no âmbito filosófico — sua importância ante os sistemas tradicionais (intelectualistas nas palavras do autor) de filosofia na tentativa de justificar a afetividade como parte de um modo de compreensão — e, especialmente, sua participação no momento filosófico do cinema. A grande crítica refere-se às tradicionais vertentes intelectualistas filosóficas, que entendem a compreensão somente como algo proposicional e apático, conforme Cabrera, totalmente desligada do páthos, da afetividade. A ideia de Cabrera parte do crédito que ele dá à possibilidade de conceber ideias não necessariamente nessa redoma intelectualista, que reduz a capacidade de composições de ideias ao meramente racional, duro, sem a dimensão da afetividade. O autor quer mostrar que, com a afetividade, é possível uma nova raiz de concepções ideáticas composta não só pela razão hard, mas também pela companhia do caráter afetivo, numa logopatia, diz Cabrera, onde esta carga afetiva seria um meio pelo qual seria possível conceber conceitos. Alguns filósofos, segundo ele, arriscaram-se a trazer o elemento pático na formulação de sua filosofia, tais como Hegel, Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger. Tais pensadores levaram a linguagem ao extremo de sua capacidade expressiva, buscando um movimento que fugisse da construção argumentativa linear. Por meio da escrita em aforismos e de poesias, diz Cabrera, tais autores fizeram críticas ao momento de expressão máxima — e também de limite — da linguagem, ao se darem conta que não conseguiam dizer tudo através dos referenciais da linguagem tradicional.

O cinema, na visão de Cabrera, seria um novo meio de se passar conceitos através de imagens. Tais conceitos não seriam simples imagens, visto que fariam tremer o espectador justamente por portarem o elemento afetivo. Da imagem “[…] não interessa somente sua eventual função de ‘auxiliares’ das ideias, mas a capacidade de interagir com elas modificando seu sentido, intensificando sua compreensão” (Cabrera, 2007, p.16). As imagens do cinema, ou cinematográficas, não se compõem pela simples representação gráfica em movimento, mas também por tudo que não aparece, ou seja, pelos sons, pelos ruídos, por todos os efeitos de câmera que em conjunto com as ideias podem representar ou descrever a realidade de uma forma mais rica. Na visão apática, própria dos filósofos intelectualistas, é omitida a dimensão afetiva, impactante da imagem, bem como sua carga de referência potencial, diz o autor. O cinema tem esta capacidade de moldar a imagem e potencializá-la no momento de impacto. O filme pode apresentar asserções de verdade, ou pretensões de verdade ou falsidade, pois, ao se pôr na função de provedor de conceitos, obviamente pode ter algum tipo de assertividade, embora não no sentido proposicional, mas situacional. Os conceitos-imagem, por meio de outros dispositivos, ligam-se a uma assertividade de tipo situacional que, no cinema, são “[…] algo semelhante às proposições para a filosofia escrita: um lugar onde os conceitos interagem e se desdobram” (Cabrera, 2007, p.19). O cinema, à medida que mostra alguns elementos, oculta outros, sendo por isso “[…] tão bipolar quanto a proposição, arriscando-se à falsidade e à inadequação” (Cabrera, 2007, p.21). O autor defende que a imagem não é facilmente saturada, pelo contrário, sua riqueza consiste em uma inquietante incompletude, um lado de sombra que deixa de mostrar. O cinema tem sua própria capacidade de comunicar-se de acordo com sua linguagem particular, “ele é uma linguagem porque dispõe de recursos para fazer afirmações, ou seja, para predicar algo acerca de algo” (Cabrera, 2007, p.22). O autor ainda ressalta que a assertividade das imagens não exclui o fictício, o fantástico, pois, os conceitos-imagem, ao contrário dos conceitos-ideia, não temem trazer sua própria verdade por intermédio do extraordinário, do implausível. Os impactos emocionais que os filmes causam nos espectadores fazem-nos perceber mais claramente a temática que o filme apresenta. Ao observar os conceitos-imagem de um filme, podemos compará-los com os de um outro filme que trata do mesmo assunto e filtrar de acordo com a melhor compreensão e gosto pessoal. Podemos simplesmente gostar do conteúdo do filme e rejeitar a tese imagética que ele carrega consigo. “Existem realidades às quais temos melhor acesso pelo auxílio de algum impacto emocional, mas uma vez que se teve o acesso e se compreende do que se trata, pode perfeitamente rejeitar-se” (Cabrera, 2007, p.27). O interessante a ressaltar nesta última parte descrita é o caráter filosófico do não enterrar a ideia refutada, pois, tal como na filosofia não se pode enterrar uma ideia refutada, o mesmo se dá no âmbito cinematográfico, pois parece atrelado à análise de conceitos, que são reformuláveis, como na filosofia. Uma nota de Cabrera explica que não necessariamente temos que explicar filosoficamente as coisas de um modo duro, apático, senão por um caráter mais aberto que leve de volta à essência reflexiva e inconclusiva filosófica, diz o autor, pois dispomos de inúmeros tipos de linguagens que expõem conceitos.

A segunda parte do livro apresenta alguns exercícios filosóficos e analíticos de filmes, tal como no primeiro livro, carregando títulos no mínimo provocativos, como por exemplo: “Kant na lista de Schindler?”, ou “Schelling, Amadeus e o pior diretor de cinema de todos os tempos”, ou então “Schopenhauer e Roberto Benigni. A vida é bela: análise de uma frase absurda e de um filme deplorável”. Aqui, Cabrera tenta colocar em prática suas teses desenvolvidas anteriormente e demonstrar a importância do caráter filosófico, de fato, nos filmes, no momento em que as problemáticas do cinema se tocam com as da filosofia — não necessariamente confluindo-se.

Por último, o autor destaca, de forma bem-humorada, o problema da tradução de títulos do cinema para a língua portuguesa, dividindo os tipos de tradução e comparando o nível de alteração do original para o traduzido. É importante ressaltar a defesa do autor ante os ataques críticos que recebeu em seu primeiro livro, o que mostra que sua pretensão se dá pela simples exposição de suas concepções, sem “pontos finais”, mas como alternativas somente. Enfim, sem dúvida, apesar das críticas, trata-se de um ótimo livro, que traz questões antigas sob uma nova perspectiva de pensar, com caráter transdisciplinar e contemporâneo.

Referências

CABRERA, J. 2006. O cinema pensa. Rio de Janeiro, Rocco, 399 p.

Leonardo Marques Kussler – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: leonardo.kussler@gmail.com

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[DR]

 

O percurso do reconhecimento – RICOEUR (FU)

RICOEUR Paul. O percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006. Resenha de: KUSSLER, Leonardo Marques. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.2, p.223-225, mai./ago., 2009.

Em um mundo de diversas discussões, de inúmeras teorias filosóficas, de conceitos, Ricoeur destaca a importância que há em discutir a temática do reconhecimento tal como se discute a do conhecimento. Este foi o impulso final para que Ricoeur compusesse esta belíssima obra: O percurso do reconhecimento. O livro se constitui em um compêndio de conferências proferidas pelo autor, em Viena e em Friburgo, as quais foram cuidadosamente trabalhadas posteriormente. A proposta inicial do autor surge provocando surpresa e perplexidade por não se ter visto um livro filosófico que tratasse diretamente do assunto reconhecimento, como tratam, em inúmeros livros, as muitas teorias e discussões do tema conhecimento. Contudo, a obra lançada anteriormente, A memória, a história, o esquecimento (Ricoeur, 2007), já tratava do tema do reconhecimento de um modo mais abrangente, na última parte do livro ao abordar o tema do o perdão.

O percurso do reconhecimento divide-se em três grandes estudos, para seguir a lógica do autor adotada em suas obras. Primeiramente, o estudo parte de uma análise linguística e lexicográfica da palavra reconhecimento, com base em dois grandes dicionários franceses – o Dictionaire de la langue française, de 1859, e o Grand Robert de la langue française, de 1985 (in Ricoeur, 2006 p. 15 e ss.). Esse primeiro estudo elucida a ideia de reconhecimento enquanto identificação, contando com análises de Descartes e Kant. Em instância primária, o verbo reconhecer comporta o eu que reconhece, enquanto está ativo. Tal identificação parte do identificar-se algo em geral para, posteriormente, chegar a identificar-se alguém. No segundo grande estudo, surge o agente (agency, diz Ricoeur) que revela a capacidade do homem enquanto ser capaz da ação de reconhecer. Nesse ponto, o autor liga essa capacidade à noção de narratividade daquele que pode reconhecer, à qual liga também as noções de memória e de promessa – mais bem explicitadas na obra A memória, a história, o esquecimento. Ricoeur fala do agir e do agente no mundo grego, aos quais relaciona o reconhecimento de si por outra pessoa que não o si mesmo. Nesta ocasião, existe uma bela, porém pequena, análise do reconhecimento de Ulisses na grande obra Odisséia, de Homero (in Ricoeur, 2006, p.90-91), nos dois momentos: o primeiro, em que Ulisses é reconhecido, e o segundo, o momento em que se faz reconhecer. Ricoeur também analisa as distinções de Aristóteles, no início da obra Ética a Nicômaco (in Ricoeur, 2006, p.97). A narrativa é trabalhada nesse segundo estudo com mais clareza, em que se marca o poder dizer, atrelando-o ao poder fazer e ao poder narrar-se – e também o poder ouvir-se, pois sempre se pressupõe o ser ouvido ao narrar-se. Estes temas são ligados à noção jurídica de memória enquanto promessa – a visão do falar de testemunhas, por exemplo, ou simplesmente a da promessa de um indivíduo ao outro, um simples pacto. Posteriormente, ainda no segundo estudo, é levantada pelo autor a ideia de esquecimento dos dados memoriais, da lembrança – a famosa anamnésis grega –, temas desenvolvidos mormente em sua obra, a qual trata diretamente do esquecimento.

No terceiro grande estudo, o autor procura mostrar a relação do eu que reconhece ou se faz reconhecer com o tema do reconhecimento mútuo. Nele são discutidas as teorias de Hobbes, por exemplo, em sua temática da organização social que, indiretamente, parece relacionar-se com o reconhecimento de si, pois se trata, como explica Ricoeur, no estado de natureza, de todos contra todos, de uma busca de reconhecimento de cada indivíduo pelo outro. Nesse estudo, também é reservado um grande espaço para as análises de Hegel sobre o reconhecimento. Existe uma boa relação, nos escritos hegelianos da época do livro Fenomenologia do espírito (in Ricoeur, 2006, p.178), por exemplo, entre servo e senhor, que, explica, na mesma linha, paralela ao reconhecimento de cada indivíduo em Hobbes, de forma diferente, a relação dialógica, por assim dizer, do servo com o senhor – também assinalada por Ricoeur como a luta de classes sociais e econômicas, embasadas em Thévonot e Boltanski (in Ricoeur, 2006, p.237-238). Vale ressaltar que, nessa relação, como se sabe, um deles se faz reconhecer, e o outro se submete a sua posição por não ter se arriscado tanto quanto o outro; oprimido, portanto, e tem seu reconhecimento comprometido. Partindo desse reconhecimento em Hegel, no período de Iena, Ricoeur relaciona o reconhecimento com o sentimento de amor, por exemplo, nessa temática de reconhecimento mútuo, em que se busca a reciprocidade, a alteridade nesse reconhecer. Nesse terceiro estudo, trabalha-se, junto à temática do amor propriamente dita, o conceito de agápe na tentativa de reconciliação, de mutualização desse reconhecimento. Também se discute o tema da relação de equidade ou equivalência no plano jurídico que, de certa forma, trata de uma igualdade, de uma mutualidade, de uma respeitabilidade. Nessa tentativa de se mutualizar o reconhecimento é importante ressaltar o papel da discussão do desconhecimento, caro à Ricoeur, pois mostra a dificuldade de se reconhecerem mutuamente os indivíduos, sem que ninguém seja desconhecido, esquecido, transpassado. A parte final do livro reserva a temática de dom, entendido como a possibilidade de se reconhecer alguém e trocar dons. Com isso, surge a ideia de gratidão, trabalhada de acordo com a tendência de retribuir o reconhecimento que se recebe, reconhecendo de volta o outro indivíduo. Essa mutualidade, equidade, respeitabilidade, alteridade são possíveis em um dito estado de paz, diz Ricoeur. Para o pensador francês, é somente esse estado de paz que pode, de fato, possibilitar essa troca de reconhecimentos enquanto dons, que têm sua expressão mais forte na troca sem compromisso, ou seja, no doar-se sem esperar o reconhecimento de gratidão de volta – algo um tanto cristão, como bem aponta o autor. Ricoeur também desenvolve, em parte, as teses de Lévinas (in Ricoeur, 2006, p.74 e ss.) sobre o reconhecimento do outro, que retratam a dissimetria entre o eu e o outro para um reconhecimento recíproco, de uma ética primordial que assegure esse tratamento mútuo.

Por fim, é de suma importância ressaltar que, por se tratar de um livro recente, e uma das últimas obras de Ricoeur, alguns temas estão aí indexados com pressuposições de leituras anteriores, algo mais refinado, por assim dizer, posto que o livro traz temas de algumas de suas obras anteriores. A obra apresenta-se, portanto, como uma síntese de determinadas teses, compactadas nesse belo volume. Entretanto, isso não reduz a importância, a novidade e o compromisso do autor ao trabalhar um tema de especulação constante como é o reconhecimento que, como ele mesmo diz em sua análise, não foi tomado com a devida seriedade até o presente momento. A leitura do livro é altamente válida, uma vez que se mostra como uma tendência forte na atualidade e, por ser um livro composto sistematicamente por Paul Ricoeur, prima pela qualidade das análises desenvolvidas, resultando em um ótimo referencial teórico nesse âmbito pouco discutido.

Referências

RICOEUR, Paul. 2007. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, Editora da UNICAMP, 535p.

Leonardo Marques Kussler – Unisinos, São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: leonardo.kussler@gmail.com

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