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Filosofia no Brasil: legados e perspectivas. Ensaios metafilosóficos – DOMINGUES (K)
DOMINGUES, I. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas. Ensaios metafilosóficos. São Paulo: Unesp, 2017. 561p. Resenha de: GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Kriterion vol.59 no.140 Belo Horizonte May/Aug. 2018.
Em Ivan Domingues um impecável ethos acadêmico transpõe-se também na esfera de sua atuação pública, intervindo no debate político e cultural, no exercício de cargos de representação, nos quais foi responsável por iniciativas decisivas, nos âmbitos do ensino, da pesquisa, da inovação e da extensão. Um protagonismo que levou à criação do Núcleo de Estudos do Pensamento Contemporâneo, grupo interdisciplinar da Universidade Federal Minas Gerais que consolidou rica expertise em biotecnologias e regulações éticas, jurídicas e políticas; mas que também marcou as gestões de Ivan Domingues, que fizeram história, como coordenador de área do conhecimento em instituições como a CAPES e no CNPq. Justifico a recordação desses dados biográficos como necessidade para resgatar o pano de fundo biográfico, intelectual e institucional, de onde emerge a obra ora publicada – um sólido background essencialmente marcado pela epistemologia.
“Filosofia no Brasil” é uma obra em estrita afinação com a trajetória filosófica do autor, e Ivan Domingues não seria o epistemólogo que é, pioneiro entre nós no campo das relações entre filosofia e ciências humanas, se permanecesse num registro unicamente historiográfico. Em vez disso, fiel à sua formação acadêmica, Domingues sintetiza também nessa obra diferentes perspectivas interdisciplinares, consciente de que o problema da filosofia no Brasil se inicia pela problematização de sua própria existência e natureza, assim como por suspeições concernentes à sua relevância.
Em consonância com tais coordenadas, “Filosofia no Brasil” constitui-se num conjunto de ensaios reunindo legados e perspectivas a respeito de um objeto que o próprio livro ajuda a conformar: a filosofia tal como esta se atualizou no Brasil ao longo de uma história distendida do período colonial aos nossos dias. Trata-se de uma obra que se constrói a partir de um vértice metafilosófico, e que, portanto, de modo algum deve ser confundida com um livro de história da filosofia. Nele Ivan Domingues faz uso independente, criativo e teoricamente fecundo do recurso aos tipos ideais, cunhados na Sociologia por Max Weber, para caracterizar as diferentes modalidades nas quais e pelas quais uma racionalidade de tipo propriamente filosófico realizou-se diferencialmente no Brasil, sob a influência de condicionantes socioeconômicas, políticas e culturais que vincam a realidade brasileira.
Firmada nas bases teóricas e metodológicas que dão sustentação à sua “Filosofia no Brasil”, o ducto argumentativo de Ivan Domingues deixa atrás de si os trilhos desgastados que até então determinaram os rumos nos quais o problema da existência de uma autêntica filosofia no Brasil foi (mal)entendido ao longo de décadas. Além e aquém da alternativa supostamente incontornável que opõe uma filosofia brasileira ou do Brasil a uma filosofia feita no Brasil – evitando a cilada consistente em assumir como ponto de partida da argumentação uma determinada concepção hegemônica de Filosofia, para então descartar a possibilidade de que haja ou tenha havido uma experiência filosófica genuinamente brasileira -, Domingues se esforça por reconstituir as distintas figuras de racionalidade filosófica que se tornaram historicamente efetivas entre nós, seja no quadro de uma sociedade com uma economia de tipo agrário-rural, seja na passagem desse tipo de organização socioeconômica para o modelo urbano-industrial de configuração. Tais mudanças deixam suas marcas nas modalidades diversas em que tem se realizado entre nós a experiência filosófica, e que Ivan Domingues reconstitui com um instrumentário metodológico que leva em conta a natureza da obra, bem como os vínculos que a ligam tanto com a dimensão de sua autoria, como a instância que a produz, assim como com o público ao qual é destinada.
Desse modo, cada um dos ensaios que compõem o livro é consagrado a um dos momentos marcantes da experiência sócio-histórico-econômica brasileira, no interior de cujos marcos culturais vem a configurar-se uma racionalidade filosófica específica – tipicamente brasileira -, que se expressa num ethos filosófico tipificador, a que Ivan Domingues faz corresponder também um tipo de ratio particular. Estes são os legados e perspectivas, reunidos, organizados e interpretados sob uma ótica metafilosófica, que apreende o que neles há de racionalidade filosófica, ao mesmo tempo idiossincrática, tipicamente brasileira, mas como modalização da universalidade própria da filosofia.
Trata-se, então, de ensaios tendo por eixo o cruzamento entre a metafilosofia e a história intelectual, a história da filosofia e a exegese filosófica como fonte, meio e ferramenta, não como tema, problema ou objeto. O verdadeiro objeto, ou o problema do livro, encontra-se situado na confluência entre duas vertentes: uma delas é, como já dito, a vertente metafilosófica, em grande parte lastreada nos embasamentos históricos da filosofia nacional, com recurso às obras de João Cruz Costa, Paulo Eduardo Arantes, Henrique Cláudio de Lima Vaz, Silvio Romero, Tobias Barreto e vários outros. A outra é a vertente da história intelectual, história de formação da intelligentia brasileira -dilatada ao longo do livro rumo à história social e cultural, acarretando a incorporação dos chamados pensadores do Brasil, e aqui os interlocutores privilegiados são Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido, sem excluir a presença significativa de outras fontes científicas. Trata-se, portanto, de um cruzamento de perspectivas interdisciplinares, articuladas pelo labor rigoroso e metódico do epistemólogo experimentado.
O trabalho propriamente hermenêutico realizado no livro é estruturado com base numa hipótese axial: ela consiste em procurar a experiência filosófica e da intelectualidade lá onde tais experiências normalmente podem ser achadas, mais precisamente, onde elas se encontram objetificadas: a saber, nas instituições, nas revistas e nos livros, largamente evidenciada (a hipótese) no caso do intelectual orgânico da Igreja e do sistema de ensino dos jesuítas, assim como no caso do Scholar e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, além daquela extração enorme saída do Sistema Nacional de Pós-Graduação da CAPES e espalhada hoje por todo o país. Tudo isso, no entanto, sem preocupação de exclusividade, mas consciente da necessidade de manter-se aberto a outras possibilidades e variações, com a consequente exigência de introdução de complementos, contrapontos e hipóteses auxiliares ad hoc.
Com lastro nessas premissas, o recurso metodológico aos tipos ideais de Max Weber torna-se particularmente produtivo, ao permitir o delineamento meticuloso das figuras que constituem o âmago do livro, nas quais se combina tipificação abstrata e periodização histórica: [1] O clérigo colonial, ou o apostolado jesuítico, pautado pela ratio studiorum da Companhia de Jesus. Ao ethos da pedagogia jesuítica para o ensino da filosofia corresponde uma forma de ratio que é a do intelectual orgânico e da Colônia. [2] O intelectual estrangeirado do Império e da República Velha, cujo modelo é o diletante oriundo do universo do direito, e cuja ratio é marcada pelo estilo bacharelesco do intelectual oriundo das então denominadas ‘ciências jurídicas e sociais’, ou seja, do âmbito do Direito. [3] O intelectual do Brasil moderno, cujo modelo é o Scholar, e cuja ratio é haurida no estudo verticalizado e sistemático das obras dos pensadores matriciais da história da filosofia, tal como praticado no trabalho da Missão Francesa na Universidade de São Paulo, desde a fundação do Departamento de Filosofia da USP. A ratio assim constituída é instanciada, hoje, no Homo Qualis, bem como no Homo Lattes. [4] O filósofo profissional e público contemporâneo – fusão do erudito e do intelectual investido de uma missão política, cujas figuras mais emblemáticas na filosofia brasileira são José Arthur Giannotti, Marilena Chauí e Henrique Cláudio de Lima Vaz – o padre Vaz, tal como é mais conhecido. [5] Enfim, o filósofo cosmopolita globalizado, o polímata (de πολυµαθής – que aprendeu muito), o homo universalis, ou o pensador de largos horizontes – figura especulativa e sondagem do futuro.
Se, ao longo de seu percurso, “Filosofia no Brasil. Legados e Perspectivas” vai construindo sua identidade diferencial em relação a um mero exercício de historiografia, nem por isso, no entanto, o livro deixa de lançar luzes sobre a história das perspectivas e legados de natureza filosófica que integram a história da intelectualidade brasileira. Por causa disso, o livro guarda um registro de suas parcerias e interlocuções, tanto expressas como tácitas, com segmentos próximos e distantes, como é particularmente o caso da “História da Filosofia do Brasil”, de Paulo Margutti. Por causa disso, Domingues também, de certo modo, coloca-se a questão da filosofia no e do Brasil, ou da filosofia brasileira. E esta, como sabemos, foi, nas últimas décadas, uma vexata quaestio, fortemente marcada por uma atmosfera intelectual de intensa hostilidade e aberto conflito – quase nunca bem formulado, jamais adequadamente compreendido em seus verdadeiros elementos.
Ora, justamente nessa seara, este último livro de Ivan Domingues é, a meu ver, a mais completa e meritória contribuição e o mais bem-sucedido resultado do esforço para formular o pensamento desse conflito, entendendo-se a palavra etimologicamente, como probállō, o ato de lançar ou colocar diante de si o que se tem como questão, assunto ou dificuldade, como condição para descobrir algumas vias de solução. Nesse sentido, “Filosofia no Brasil” marca um momento de enorme importância para a comunidade filosófica brasileira, e isso porque a obra inaugura um novo patamar sobre o qual pode situar-se o debate sobre a filosofia no Brasil, e coloca sólidos alicerces para uma autêntica autocompreensão dos avatares da racionalidade filosófica histórica, tal como realizada ao longo da história do Brasil, incluindo a adequada compreensão de seu presente, bem como com perspectivas abertas sobre o futuro.
Numa apresentação de seu próprio livro, Ivan Domingues comparou a literatura e a filosofia no Brasil, e, nessa comparação, formulou a questão: “a pergunta que fica, portanto, é se um dia teremos o nosso Machado, o nosso Rosa e o nosso Kant em filosofia. E por que não? – bem poderia ser a resposta, na forma interrogativa, num misto de dúvida, de esperança e de desafio”. Vale a pena refletir sobre essa pergunta à luz de uma outra contribuição notável de Ivan Domingues para a filosofia feita no Brasil. Com isso, chamo a atenção do leitor para a continuidade que existe entre este último livro de Domingues e o anterior: “O Continente e a Ilha”.
Com efeito, também em “O Continente e a Ilha” a operação teórica e metodológica de base consistia em sintetizar perspectivas interdisciplinares, com vigoroso lastro empírico, com o objetivo de encontrar, nessa síntese, um poderoso elemento auxiliar para a contextualização dos fatores determinantes da formação de tradições filosóficas, com seus respectivos estilos intelectuais. Tratava-se então, lá como aqui, de reconstituir um horizonte histórico que se oferecesse como lastro, como âmbito de emergência e matriz para certos tipos de racionalidade filosófica, num gesto que desativa preconceitos arraigados, que alimentam generalidades vagas e reforçam a exterioridade de polarizações irrefletidas, gerando fatores que tanto impedem a situação de verdadeiros problemas, quanto o controle das argumentações.
É assim que “O Continente e a Ilha” mapeia as trilhas da filosofia contemporânea, descobrindo os pontos de aproximação e contato, bem como os de afastamento e confrontação, entre as tradições insulares e continentais. Penso que “Filosofia no Brasil” se vale, e muito, do aprendizado haurido das experiências que conduziram ao livro anterior. Em “O Continente e a Ilha”, a conclusão apontava para a alternativa da “experiência existencial”, para evitar as reduções tanto do logicismo (da tradição analítica) quanto o historicismo (reconstruções contextuais) da hermenêutica continental. Em diálogo com Geroges Canguilhem, Ivan Domingues indicava o “espaço da reflexão” como o terreno próprio da filosofia. Por espaço da reflexão, o autor entende um espaço que é, ao mesmo tempo, existencial, real e virtual, e consiste em quadros abstratos e conceitualizáveis, que organizam ‘as coisas mesmas’, e que remetem sempre à experiência, sendo comparáveis, e, por causa disso, abertos ao diálogo e suscetíveis de discussão. Em “O Continente e a Ilha”, assim como em “Filosofia no Brasil”, avultam tanto os ensaios quanto a importância de remissões a Montaigne – para destacar a potência da imaginação e as virtudes do gênero filosófico-literário dos ensaios. Poderíamos adivinhar aqui uma aproximação entre dois epistemólogos que refletem sobre a tarefa da filosofia num momento particularmente crítico de sua história. Talvez essas duas obras de Domingues pudessem ser lidas como ensaios nascidos dessa condição atual de crise da filosofia.
Refiro-me aqui a um diálogo latente entre Ivan Domingues e Michel Foucault, já que ambos estão de pleno acordo quanto à importância do ensaio na presente atualidade da Filosofia. Tanto é assim que, a respeito do ensaio como gênero filosófico, Michel Foucault escreveu, no segundo volume da “História da Sexualidade 2: o Uso dos Prazeres” (p. 13), o seguinte:
Mas o que é filosofar hoje em dia – quero dizer, a atividade filosófica – senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe? Existe sempre algo de irrisório no discurso filosófico quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a sua verdade e de que maneira encontrá-la, ou quando pretende demonstrar-se por positividade ingênua; mas é seu direito explorar o que pode ser mudado, no seu próprio pensamento, através do exercício de um saber que lhe é estranho. O ‘ensaio’ – que é necessário entender com a experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não com a apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação – é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma ‘ascese’, um exercido de si, no pensamento.1
Ora, sabemos que o ensaio como o corpo vivo da filosofia constitui, em Foucault, um legado que é caudatário, com toda certeza, de Montaigne, mas também remete a seu nietzscheanismo visceral. E o que acontece do lado de Ivan Domingues? Alguma coisa mudou, nesse sentido, do “Continente e a Ilha” para “Filosofia no Brasil. Legados e Perspectivas. Ensaios Metafilosóficos” em relação ao presente e ao futuro da filosofia? Seria esse um vislumbre de resposta para a pergunta: será que um “dia teremos o nosso Machado, o nosso Rosa e o nosso Kant em filosofia. E por que não? – bem poderia ser a resposta, na forma interrogativa, num misto de dúvida, de esperança e de desafio”. Seria esta uma pista que nos remete a um contorno um pouco menos esmaecido desse horizonte por onde deverá transitar, no Brasil, o intelectual cosmopolita?
Referências
FOUCAULT, M. “História da Sexualidade 2: O uso dos Prazeres”. Trad. M. T. C. Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1984. [ Links ]
Oswaldo Giacoia Junior – Universidade Estadual de Campinas. Campinas – SP – Brasil.
Die Idee des Sozialismus: Versuch einer Aktualisierung – HONNETH (K)
HONNETH, A. Die Idee des Sozialismus: Versuch einer Aktualisierung. Berlim: Suhrkamp, 2015. 168 p. Resenha de: CAUX, Luiz Philipe de. Kriterion vol.58 no.137 Belo Horizonte Mayo/Aug. 2017
Referindo-se à sua tentativa de renovação da teoria crítica da sociedade a partir de uma teoria do reconhecimento, os mais precipitados críticos de Axel Honneth costumam caricaturá-lo como um teórico que, em face do sempre crescente enrijecimento das relações sociais de dominação no mundo contemporâneo e da imensa dificuldade de retomar de maneira promissora a sua crítica, prescreve tão somente que deveríamos “nos reconhecer mais”. Ocorre que cada nova obra de Honneth parece jogar mais água no moinho de tais críticos e tornar essa caricatura cada vez mais realista.
Em outubro de 2015, foi publicado pela Suhrkamp seu mais recente opúsculo, “Die Idee des Sozialismus”, uma tentativa, como reza o subtítulo, de atualização da ideia de socialismo, ideia envelhecida, para Honneth, desde o momento em que perdeu o amparo histórico que encontrava nas sociedades ocidentais de economia industrial do século XIX. Honneth esforça-se por mostrar que a ideia é velha, por certo, mas não caduca. Para isso, no entanto, precisa retraçar seus contornos com tal inventividade que, ao cabo, não lhe assusta que poucos dos “partidários” do socialismo estariam prontos para reconhecê-lo em sua nova imagem (p. 163). Mas Honneth não acredita estar desfigurando, mas apenas depurando de contingências históricas e trazendo a ideia a um nível de abstração mais elevado. A expectativa, por paradoxal que pareça, é que, nessa nova forma altamente abstrata e quiçá irreconhecível, a ideia ganhe força motivacional, alcance novamente a “virulência” que teria perdido (p. 20).
O novo livro é admitidamente motivado pela recepção do livro anterior, “O Direito da Liberdade”, recentemente traduzido para o português.1 Numa resposta aos debatedores de um simpósio sobre o livro realizado em Londres em maio de 2014, Honneth relata seu estranhamento em se ver reconhecido, após “O Direito da Liberdade”, não como um hegeliano de esquerda, como entende a si próprio, mas como “um daqueles hegelianos de direita dos quais eu nunca tive problemas em explicitamente me afastar”.2 O livro de 2011, uma atualização bastante direta das “Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito” para o mundo contemporâneo, que, contra o espírito hegeliano, trata a tripartição de esferas sociais do livro de Hegel como um esquema formal passível de ser aplicado como que do exterior a uma sociedade incomparavelmente mais complexa, foi recebido por parte da crítica como uma virada de orientação de Honneth em direção a uma perspectiva mais conservadora ou não afinada com os objetivos de uma teoria crítica da sociedade.3 Ao partir da premissa de método (em sua assim chamada reconstrução normativa) de que uma teoria crítica da sociedade precisaria ancorar-se apenas nos valores superiores aos quais a integração social remete sempre já como sua condição de possibilidade, Honneth expôs-se à acusação justa de ter se colocado do ponto de vista da mera reprodução do estado de coisas existente. Assim, o novo opúsculo é escrito em parte como um esclarecimento ou uma tentativa de desvincular-se de tal imagem e de filiar-se a um mais progressista revidierter Sozialismus, um “socialismo revisado”. O primeiro passo será a busca da ideia do socialismo no momento mesmo de seu nascimento, para, num procedimento contraditório que vai à origem para negá-la, desembaraçar a ideia não apenas das distorções que teria vindo a sofrer, mas também já de seus Geburtsfehler, de suas, digamos, malformações congênitas.
A ideia de socialismo nasce, para Honneth, como consequência do mal-estar da impossibilidade da efetivação simultânea dos três ideais da Revolução Francesa tão logo ela se completa. Na medida em que a forma individualista de liberdade da recém-instaurada esfera do mercado capitalista se põe no caminho tanto da efetivação da igualdade material e não apenas jurídico-formal quanto da fraternidade ou da solidariedade, levando ao risco da anomia, à efetiva pauperização e aos consequentes sentimentos de aviltamento, vergonha e injustiça da parte dos trabalhadores e suas famílias, surge o socialismo, ou antes, sua ideia, como uma “reação normativa” (p. 27). Como já espera o leitor a ele familiarizado, Honneth quer enfatizar o caráter moral, e não apenas econômico-utilitário do socialismo. Os primeiros socialistas, os denominados socialistas utópicos (alcunha que Honneth evita), teriam todos concebido a futura forma comum, não privada, da propriedade não como um fim em si, mas como um pressuposto para fins morais já estabelecidos – que poderiam, portanto, ser perseguidos por outros meios por um socialismo revisado. Na medida em que, para os primeiros socialistas, o egoísmo privado instaurado no mercado, fundado por sua vez na propriedade privada dos meios de produção, é fonte da incompatibilidade constatada entre os três princípios da Revolução de 1789, cabe superá-lo numa nova concepção de liberdade, não compreendida mais como a limitação recíproca que permite a mera compatibilização externa das vontades individuais, mas como a complementação mútua e internamente vinculada das vontades, em que a realização das finalidades de um indivíduo é vista por todos como condição para a realização de suas respectivas finalidades. Honneth apenas reencontra, em suma, sua noção de liberdade social como já reconstruída em “O Direito da Liberdade”, noção que ali estrutura as esferas de “eticidade democrática” (a dos “relacionamentos pessoais”, a da “ação numa economia mercado” e a da “formação democrática da vontade”).4 A ideia de socialismo, como grafado na contracapa do livro, seria, de fato e propriamente, a ideia de liberdade social. O primeiro dos erros dos socialistas seria tê-la tentado efetivar apenas em uma das três esferas socialmente diferenciadas na modernidade nas quais ela já estaria inscrita, em detrimento das outras duas. Ela seria, todavia, mais ampla do que os primeiros socialistas teriam percebido. Os três ideais da referida revolução burguesa compatibilizar-se-iam na noção de liberdade social; e o socialismo, que não é senão o movimento cujo objetivo é sua realização, seria, assim, uma “crítica imanente” do capitalismo (p. 33), isto é, no sentido de Honneth: uma busca de realização de suas promessas não cumpridas.
O próximo passo de Honneth é mostrar de que modo o espírito das sociedades industriais do século XIX teria contaminado a ideia central de liberdade social com certas “ficções da ciência” (p. 101), desveladas na era de um dito capitalismo pós-industrial. No entanto, o socialismo cujas características são recusadas por Honneth é, de fato, um “cachorro morto”, para o qual dificilmente se encontrariam defensores, mesmo no mais ortodoxo dos partidos comunistas. Sua refutação não apenas é supérflua, como cumpre na argumentação o papel pouco leal de deixar na penumbra todo o pensamento socialista (ou, mais amplamente, o de inspiração marxiana em geral) que igualmente recusa os pressupostos aduzidos, ou, quando os aceita, oferece justificações razoáveis e não consideradas por Honneth. São três os pressupostos do socialismo na era industrial repelidos por Honneth: a) a centralidade da esfera econômica, a consequente recusa da gramática dos direitos na luta social e o déficit democrático do movimento; b) a vinculação reflexiva da teoria a um portador, o proletariado, cujos interesses objetivos representados são presumidos sem verificação empírica; e c) a concepção determinista de história como um processo regido por leis e para o qual a ação livre humana é indiferente. Não cabe aqui discutir nenhum dos três “descaminhos” do socialismo pintado por Honneth, aliás, correspondente, de fato, a uma concepção outrora existente e que os assumia de modo enfático. O que importa é o que essas três recusas dizem sobre Honneth, pois ele as faz para a cada vez assumir uma posição diametralmente oposta. Em primeiro lugar, ad a) o autor considera absolutamente irrenunciável em quaisquer condições futuras ou imagináveis o recurso ao código do direito, aplicável coercitivamente pelo Estado. Direitos subjetivos são, para Honneth, uma conquista histórica inultrapassável e definitiva, que em nenhuma condição poderá se tornar obsoleta. Em segundo lugar, ad b) Honneth veda-se metodologicamente a imputação de quaisquer interesses objetivos a indivíduos ou grupos sociais; isso significa, por um lado, que apenas devem valer como interesses aqueles verificados empiricamente por declaração do agente e, por outro lado e mais importante, que, por princípio, os agentes não podem estar enganados acerca dos próprios interesses (ou seja, não existem ilusões socialmente necessárias). Por fim, ad c) o processo histórico como pensado por Honneth não é influenciado por tendências materiais, mesmo que fracas; o avanço técnico não condiciona de nenhum modo o desenvolvimento moral. Este último é tomado por um fato, possui autonomia e é impulsionado por sua própria força, uma tendência espontânea interna às próprias relações intersubjetivas pela progressiva eliminação de seus bloqueios e coerções de toda espécie (mesmo que essa tendência histórica afirmada dogmaticamente por Honneth, com ajuda de Dewey (p. 100), carregue um ônus metafísico tanto maior do que aquela que constituiria a crença dos socialistas).
Com isso, chega-se ao terceiro passo, propriamente propositivo, da argumentação do opúsculo. Sublimada de seus acidentes, a ideia de socialismo não seria senão a ideia de liberdade social, que precisa ser atualizada para as condições sociais do século XXI. A palavra socialismo ganha agora um sentido totalmente novo, mas não inesperado para o leitor de Honneth. O socialismo não é agora senão a realização do social, o “tornar-se social da sociedade” (p. 89). A formulação causa espécie caso não se compreenda o sentido do adjetivo em Honneth,5 que aparece plenamente explícito no novo opúsculo. O social é um conceito normativo para Honneth, ou antes, descritivo-normativo, pois designa não um dever-ser externo, mas a normatividade estruturante da sociedade (p. 105). A sociedade é social, “no sentido pleno da palavra” (p. 166), quando as relações de reconhecimento recíproco estão plenamente desenvolvidas, sem bloqueios à comunicação, em todas as esferas de ação por elas estruturadas. Apenas a sociedade socialista de Honneth é uma tal “sociedade social”.
Mas como alcançá-la? Honneth não se preocupa em apontar quais são os obstáculos sistemáticos que se opõem à realização da liberdade social, mas antes delega a tarefa de sua superação a um “experimentalismo histórico”. Em razão de sua ontologia social normativista, Honneth é incapaz de apontar causas materiais para as patologias sociais e desenvolvimentos normativos desviantes que constata. Apesar de contarem de saída com um empuxo transcendental em direção à emancipação, as lutas por reconhecimento não a alcançam, e isso, em Honneth, como que por mero acaso: deveria acontecer, mas não acontece.6 O mundo social de Honneth é frouxamente estruturado: ainda aqui, a concepção marxiana de capitalismo como uma totalidade, na qual certas determinações estão interna e logicamente interligadas, é recusada em prol de uma afirmação vazia e implausível de que o mercado capitalista não é mais do que um agregado de componentes absolutamente díspares e artificialmente conjuntados (pp. 91 e 109-110). Assim, a solução “experimentalista” de Honneth tampouco chega a surpreender. Experimentar novas configurações sociais a fim de romper barreiras e obstáculos à comunicação e à inclusão de novos atores em esferas de liberdade social é algo que está à disposição dos atores para Honneth, que desconsidera o fato de que justamente tais barreiras e obstáculos impedem tal experimentalismo de ter algum sucesso significativo. Em todo caso, apoiado na ideia mecânico-naturalista e ao mesmo tempo especulativa de John Dewey de que, em todos os âmbitos da realidade (do físico-químico ao social, passando pelo biológico e pelo psíquico), o aumento do volume das interações entre os seus elementos (no caso do âmbito social, os indivíduos) leva à efetivação de potenciais ali já existentes (no caso, à efetivação da liberdade social), Honneth considera que apenas o contínuo experimentalismo, isto é, a repetida variação das formas de interação pode progressivamente levar ao socialismo.
Assim, é marcante que Honneth não se pergunte, por exemplo, por que o capitalismo precisa necessária e logicamente engendrar sua crescente financeirização, mas antes proponha impotentemente que experimentemos um mercado não financeirizado; que afirme a incompatibilidade normativa entre, de um lado, as noções de mérito ou de recompensa do desempenho diferencial que estrutura o mercado e, de outro, os ganhos nele obtidos por meio da especulação financeira, sem se perguntar que tipo de processo material leva a que uma tal contradição real possa subsistir (pp. 108-109). O horizonte da crítica de Honneth, seu “end in view” (Dewey) é uma pouco definida noção de “socialismo de mercado”, pelo que não se deve entender, como de costume, algo como o sistema econômico vigente na China contemporânea (de resto, obviamente capitalista), mas simplesmente uma economia estruturada pelo mercado (que conta em qualquer caso como uma esfera de eticidade, i.é., de liberdade social) e que não seja, ao mesmo tempo, capitalista, se é que isso é conceitual e empiricamente possível. Honneth não deseja sequer definir de antemão se seu “socialismo de mercado” deverá se estruturar como um livre mercado (à la Smith), como uma “associação de produtores livres” (Marx) ou como uma espécie de capitalismo de Estado, desde que, em qualquer destas configurações, esteja garantida a realização recíproca e complementar dos fins individuais, como prescreve a liberdade social, na ação econômica (pp. 94-95). Não lhe parece um passo necessário investigar se sua liberdade social é de fato compatível com qualquer destas três formas de organização econômica.
Por fim, a ideia do socialismo revisado determina ainda a efetivação da liberdade social não apenas na esfera econômica, mas nas outras duas esferas de eticidade hegeliana atualizadas por Honneth em “O Direito da Liberdade”. Não apenas no mercado, mas no âmbito das relações pessoais íntimas e no das relações políticas é preciso fazer valer o mesmo princípio de complementação mútua das liberdades. Para Honneth, os primeiros socialistas, localizados num momento de desenvolvimento histórico ainda incipiente, não foram capazes de notar o movimento de diferenciação funcional em esferas de ação distintas na modernidade (embora seja curioso que Honneth apenas replique, em contraposição, uma diferenciação social mínima constatada por Hegel numa Prússia ainda semifeudal). A acusação é obviamente injusta, na medida em que, por exemplo, a elaboração teórica já do jovem Marx tem início justamente a partir de uma reconceituação da diferenciação moderna entre Estado e sociedade civil-burguesa em Hegel. Em todo caso, é porque ou não teriam notado essa diferenciação funcional ou não a teriam apreendido como um objetivo a ser alcançado, isto é, como uma injunção pela busca da efetiva autonomização tanto das relações privadas quanto das relações políticas em relação à sobredeterminação econômica, que os primeiros socialistas teriam apreendido o socialismo apenas como uma forma de governo e não, como quer Honneth, como uma abrangente forma de vida.
Na mesma réplica aos debatedores do supracitado simpósio de Londres sobre “O Direito da Liberdade”, Honneth oferece uma surpreendente releitura da tese de Hegel sobre o fim da história. Questionado por Jörg Schaub acerca da impossibilidade por parte do método da reconstrução normativa de dar conta de revoluções normativas, isto é, de abalos fundamentais na própria estrutura normativa da sociedade,7 Honneth recorre à abominada tese hegeliana, a fim de aceitar a objeção e insistir sobriamente em sua posição.
E se Hegel não quisesse realmente avançar a estranha e certamente falsa ideia de que, com o começo da era da subjetividade institucionalizada, as lutas sociais teriam chegado a um fim, mas antes estivesse avançando o argumento distinto e mais fraco de que somos completamente incapazes de imaginar um futuro no qual o princípio da subjetividade livre é substituído por um princípio superior, mais elevado? A fala sobre o ‘fim da história’ significaria então que temos uma boa razão para eliminar a possibilidade de uma ‘revolução’ na estrutura normativa da sociedade; e que, na medida em que as lutas e os amargos conflitos ao redor da implementação correta de nossos princípios modernos fundamentais possam continuar, eles não excederão o horizonte normativo da sociedade moderna.8
Mais do que seu mestre Habermas, que defende até razoavelmente que ainda nos movemos no horizonte da modernidade,9 Honneth acredita que nunca o iremos ultrapassar, mas apenas realizar progressivamente os seus potenciais. Se é verdade, com e contra Honneth, que os movimentos socialistas de toda espécie visaram e ainda visam uma superação do capitalismo não apenas como estrutura de distribuição material, mas sobretudo como horizonte ético-normativo (basta pensar n’ “A Questão Judaica” ou na “Crítica ao Programa de Gotha”), então o socialismo de Honneth, como mal consegue disfarçar, não passa, em qualquer de suas versões, de um derrotismo resignado. Se, segundo um de seus historiadores, o traço teórico marcante da assim chamada Escola de Frankfurt foi a sua impressionante capacidade de “imaginação dialética”, a falta, ou antes, a renúncia à imaginação por parte de seu atual representante oficial, que termina até na adesão à tese da inultrapassabilidade da estrutura normativa da modernidade, justifica o seu crescente reconhecimento não como representante desta tradição, mas, malgré lui, como legítimo herdeiro dos velhos hegelianos.
Notas
1HONNETH, A. “O direito da liberdade”. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
2HONNETH, A. “Rejoinder”. Critical Horizons, Vol. 16, Nr. 2, p. 205, 2015.
3Para citar alguns exemplos: HEINS, V. “Zwischen Habermas und Burke: Axel Honneths Kritikstil in Das Recht der Freiheit”. In: ROMERO, J. (ed.). Immanente Kritik heute: Grundlagen und Aktualität eines sozialphilosophischen Begriffs. Bielefeld: transcript, 2014, pp. 143-156; MOHAN, R. “Normative Reconstruktion und Kritik: Die Subsumtion der Gesellschaftsanalyse unter die Gerechtigkeitstheorie bei Axel Honneth”. Zeitschrift für kritische Sozialtheorie und Philosophie, Vol. 2, Nr. 1, pp. 34-66, 2015; SCHAUB, J. “Misdevelopments, pathologies, and normative revolutions: Normative reconstruction as method of critical theory”. Critical Horizons, Vol. 16, Nr. 2, pp. 107-130, 2015; WILDING, A. “The problem with normative reconstruction”. In: 6th International Critical Theory Conference. Comunicação, Roma, Itália, maio de 2013. Disponível em: https://www.academia.edu/5115504/The_Problem_With_Normative_Reconstruction. Acesso em 3 de agosto de 2016.
4HONNETH, A. “O direito da liberdade”, op. cit.
5Cf. DE CAUX, L. Ph. “Contorno e limites do conceito do social em Axel Honneth”. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Vol. 3, Nr. 1, pp. 28-48, 2015.
6DE CAUX, L. Ph. “Um mundo que, por acaso, não é como deveria ser: crítica e explicação em Axel Honneth”. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 2017 (no prelo).
7SCHAUBE, J. “Misdevelopments, pathologies, and normative revolutions”, op. cit.
8HONNETH, A. “Rejoinder”, op. cit., p. 209.
9HABERMAS, J. “O discurso filosófico da modernidade: doze lições”. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Luiz Philipe de Caux – UFMG. luizphilipedecaux@gmail.com