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Les Lacustres. Archéologie et mythe national | Marc-Antoine Kaeser
A coleção “Le savoir suisse” (www.lesavoirsuisse.ch ) conta atualmente 34 títulos dedicados a tornar acessíveis ao grande público as pesquisas universitárias da área francófona suíça, com temas históricos e questões pertinentes à identidade nacional da Confederação Helvética – mas, por estranho que pareça, não há ainda um volume dedicado aos helvécios. A presente obra, n. 14 da coleção, tem por objetivo refazer e criticar o mito da origem dessa mesma identidade nacional: os povos lacustres, os habitantes pré-históricos cujas características peculiares teriam marcado o ponto de partida da cultura alpina nessa região de montanhas e lagos que hoje se conhece pelo nome de Suiça.
Marc-Antoine Kaeser tem um perfil que o assinala como um cientista que há tempos vem se debruçando sobre o tema: entre suas publicações estão as que versam sobre a ideologia do suposto pacifismo lacustre (1997), a busca de antepassados operacionais (1998), o mito do fantasma lacustre (2000), as representações coletivas e construção da identidade nacional (2002) – temas que se destacam nos títulos que já publicou, e que mostram uma intenção clara de corrigir o discurso e a mentalidade políticas alimentadas por teorias científicas mais idealistas do que realistas. A frase com que abre este volume é bem explícita: “Há um século e meio a aldeia lacustre ocupa um lugar privilegiado na representação coletiva do passado pré-histórico da Suíça” (p. 9). E, contudo, hoje em dia os suíços se perguntam: esse povo lacustre existiu mesmo, dessa maneira como nos descrevem os historiadores? E eles são de fato os nossos antepassados? A resposta vem logo (ib.) radical: “A arqueologia contemporânea responde simplesmente com uma negação categórica – porém circunstanciada”. De fato ao longo do livro M.A. Kaeser tempera bastante essa negação: os povos pré-históricos alpinos não viviam em aldeias lacustres de palafitas, mas as povoações construídas nas margens dos lagos tinham algumas casas edificadas sobre postes dentro de água. Não existiram aquelas grandes plataformas que avançavam lago adentro, suportadas por colunas de madeira, e por sua vez suportando toda a aldeia. No sentido tradicional do termo não houve povo lacustre nem civilização lacustre entre as montanhas alpinas, mas houve uma população dispersa e variada, subsistindo com diversos tipos de economia além da pesca no lago, que construiu aldeias junto aos lagos – não sobre eles.
O autor passa a descrever a origem e evolução da “mitologia nacionalista”, começando pela grande seca de 1853/54 que, tendo posto a descoberto extensos trechos nas margens dos lagos, permitiu aos estudiosos identificar e reconstituir as populações ditas lacustres; e coube ao Presidente da Associação dos Antiquários de Zurique, Ferdinand Keller, iniciar uma série de publicações que constituíram o início da construção desse mito da origem nacional suíça. Numa época em que, após os tumultos das invasões francesas, a consciência nacional se afirmava por toda a Europa, a descoberta de que a Suíça também tinha um passado pré-romano, e que esse passado era digno de memória, dava aos suíços antepassados dos quais podiam se orgulhar. Daí até à representação gráfica idealizada das aldeias lacustres foi um passo. Kaeser ilustra a sua obra com muitos desenhos desse período, quando os “proto-helvécios” apareciam como vivendo em paz e harmonia com a natureza. Inspirados em Rousseau os historiadores suíços discípulos de Ferdinand Keller repassaram para esses ancestrais imaginários as virtudes que os suíços contemporâneos se atribuem: austeridade, pureza, não contaminação pelos males da civilização, cultivo da paz; o povo lacustre teria ainda sido o criador da linguagem, e, portanto, seria a sociedade humana mais antiga – um oásis de tranqüilidade no meio do mundo agitado (p. 62), um paraíso perdido para os demais, mas preservado para os suíços.
O autor vai descrevendo a construção popular dessa identidade nacional, mostrando o papel político da arqueologia. Contudo na década de 1920 os arqueólogos alemães, na seqüência dos trabalhos de Hans Reinerth, iniciaram o combate à “ideologia lacustre suíça”, negando a originalidade dessa sociedade e até sua existência; os suíços viram na destruição da representação dos lacustres uma agressão não só à pré-história nacional, mas à própria identidade nacional suíça, e, portanto, um atentado perpetrado pelo imperialismo alemão, secundado pelas ambições nazistas. A reação nacionalista não se fez esperar, mas a retomada das pesquisas arqueológicas sob outras perspectivas acabou dando razão, parcial, às críticas. Concluiu-se que os povos pré-históricos que ocuparam o atual território da Suíça viviam em diversos tipos de meios físicos (não só nos lagos), portanto em culturas diferenciadas (não homogêneas), e apenas alguns deles construíram algumas casas sobre plataformas de palafitas. As pesquisas arqueológicas de Emil Vogt na década de 1950 estabeleceram novos parâmetros de investigação que foram se afirmando até hoje, e que o autor vai apresentando numa narrativa acessível mesmo para quem não conhece arqueologia nem está a par dos embates doutrinários do nacionalismo suíço; mapas, gráficos, uma breve cronologia (desde o fim da glaciação de Würm até à submissão dos helvécios em 58 a.C.) além de uma bibliografia sucinta ajudam o leitor a acompanhar a argumentação de Marc-Antoine Kaeser.
A obra termina com algumas considerações e retrospectivas: por um lado o “mito da civilização lacustre” persiste, mas, menos ingênuo e menos “crença” adaptou-se eficazmente a idéias recentes incarnando o ideal de uma Suíça “harmoniosa, pacífica, igualitária e solidária”: mais ainda, a aldeia lacustre passou a ser uma referência para a doutrina ecológica (p. 132). Por outro lado, a arqueologia tomou suas distâncias com respeito a essa representação coletiva: “a arqueologia deve reconhecer e assumir o fato de que a interpretação do passado comporta quase inevitavelmente uma dimensão ideológica”; porém onde essas representações incluem visões errôneas e imaginações fictícias o arqueólogo tem obrigação de intervir e desmenti-las. Deve fazê-lo, contudo, de maneira pontual, e não atacar o mito como um todo, pois este é um saber que dá significado ao presente. O arqueólogo, ao contrário, deve abster-se do presente e dos saberes não científicos “para interrogar e compreender o passado” (p. 133).
João Lupi – Departamento de Filosofia UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
KAESER, Marc-Antoine. Les Lacustres. Archéologie et mythe national. Lausanne: Presses polytechniques; Universitaires romandes, 2004. Resenha de: LUPI, João. Povos lacustres: arqueologia, história ou mito? Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.1, p. 55-56, 2006. Acessar publicação original [DR]