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Justiça de Transição, experiências autoritárias e democracia / Estudos Ibero-Americanos / 2019
Ao longo das últimas décadas, o debate sobre Justiça de Transição ganhou novos contornos e direcionamentos. Por se tratar de um campo reflexivo intrinsecamente interdisciplinar, envolvendo, entre outros, pesquisadores vinculados à História, às Ciências Sociais e ao Direito, a justiça de transição tem sido abordada a partir de perspectivas diversas, possibilitando uma compreensão multifacetada sobre a busca de verdade e de justiça em contextos democráticos de países que passaram por experiências de autoritarismo ou guerra.
No Brasil, em particular, a produção bibliográfica orientada pela busca de justiça em relação aos crimes da ditadura militar, ainda que relevante, é reduzida frente à importância do tema. Sob a sombra da Lei de Anistia de 1979, muitos anos transcorreram antes que a agenda da justiça de transição fosse nomeada e ganhasse fôlego no País. O olhar investigativo para o passado padecia – e ainda padece – do estigma do revanchismo. A partir de 2007, com a inflexão que Paulo Abrão imprimiu na Comissão de Anistia, o vocabulário e os enquadramentos da justiça de transição aportaram no Brasil. Temos ali uma primeira leva de estudos dedicados a compreender – em perspectiva comparada ou não – a trajetória transicional brasileira, fortemente ancorada no princípio de reparação. Mais recentemente, em 2012, com a Comissão Nacional da Verdade e a onda de outras comissões da verdade que a sucederam – municipais, estaduais, universitárias, sindicais, entre outras –, novo impulso foi dado às pesquisas sobre justiça de transição. Contudo, há ainda vasto território a ser explorado sobre o assunto.
Este dossiê se insere precisamente nessa agenda de reflexões, buscando preservar a sua vocação plural e interdisciplinar. Ele é composto por uma entrevista e cinco artigos. Na entrevista com Paulo Abrão, o leitor tem um precioso relato sobre a trajetória brasileira de institucionalização das políticas de memória e verdade. Nosso entrevistado foi presidente da Comissão de Anistia (2007-2016) do Ministério da Justiça, Secretário Nacional de Justiça (2011-2016), diretor do Instituto em Políticas Públicas dos Direitos Humanos do Mercosul (2015-2017) e, atualmente, exerce o cargo de Secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2016-2020). Em um impressionante exercício de articulação e síntese, ele percorre um grande arco temporal, partindo da primeira geração de ativistas, que enfrentaram as portas fechadas do Estado, até o evento mais recente das comissões da verdade, quando setores do Estado e da sociedade atuaram em redes de cooperação e conflito. Trata-se de um importante panorama da justiça de transição no País, de interesse para iniciantes e iniciados no assunto.
Quanto à seção de artigos, ela se inicia com texto de Pedro Rolo Benetti, intitulado “Excessos, exceção e ordem: entraves para a construção democrática póstransições”. Nele, o autor aborda de que maneira setores das Forças Armadas no Brasil buscaram construir uma retórica orientada para a legitimação da violência sistemática do Estado durante o período da ditadura militar no País, com ênfase nas noções de excessos, exceção e ordem. Para tanto, o autor se vale de duas fontes principais produzidas em contextos distintos: os debates em torno das Forças Armadas do Estado durante o processo da Constituinte de 1987-1988 e os depoimentos prestados por militares à Comissão Nacional da Verdade.
O segundo artigo do dossiê, de autoria de Maria Inácia Rezola, direciona o olhar para a justiça de transição no contexto português. Em seu texto “Punir ou perdoar? A difícil gestão do passado ditatorial no Portugal democrático – o caso dos seneamentos”, a autora chama a atenção para o fato de que, em Portugal, a conjuntura de transição da ditadura para a democracia abriu uma “janela de oportunidade” para a investigação de crimes cometidos durante o período autoritário. Para discutir esse cenário, Rezola analisa a legislação e a prática dos chamados “saneamentos”, que foram processos de exclusão do serviço público de funcionários considerados como autoritários ou corruptos.
San Romanelli Assumpção é autora do terceiro artigo do dossiê, com o título “Comissões da verdade e justiça de transição: problemas de fundações morais deliberativas para se pensar graves violações de direitos humanos massivamente praticadas”. Em diálogo com as obras de Amy Gutmann e Dennis Thompson, a autora busca refletir sobre as “fundações morais” das comissões da verdade, com o intuito de analisá-las tendo-se em vista a relação entre a normatividade da justiça de transição e as teorias deliberativas da democracia. Ainda que sustente as virtudes e os aspectos positivos dos requisitos e dos processos democráticos deliberativos, para a autora, eles não devem ser priorizados para se pensar normativamente acerca dos períodos de transição de regimes autoritários para democracias.
O quarto artigo do dossiê se intitula “Patrimônio, mudanças e memórias traumáticas: a Arqueologia da Repressão e da Resistência”, de autoria de Pedro Paulo Abreu Funari, Rita Juliana Soares Poloni e Darlan de Mamann Marchi. Ancorados na discussão teórica sobre os Estudos Patrimoniais e a Arqueologia da Repressão e da Resistência, os autores desse texto abordam novas interpretações da questão patrimonial e a sua relação com as memórias traumáticas no Brasil e na América Latina no contexto democrático. Ao colocar em diálogo diferentes campos do conhecimento, como a História, os Estudos Patrimoniais e a Arqueologia, o artigo contribui para uma reflexão ampla sobre as políticas patrimoniais e a justiça de transição em diferentes contextos.
O último artigo do dossiê, de autoria de Wallace Andrioli Guedes, intitulado “A freira, a tortura e a censura: um filme de Ozualdo R. Candeias entre a crítica política e a ofensa moral”, se dedica a analisar o filme A freira e a tortura, do diretor Ozualdo R. Candeias, lançado em 1983, que aborda a repressão sofrida por uma religiosa durante a ditadura militar brasileira. O autor busca refletir sobre a obra, censurada pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) no período final do regime ditatorial, com o objetivo de refletir sobre os processos de censuras moral e política em um contexto de transição do período autoritário para a democracia.
A publicação de um dossiê sobre justiça de transição já se justificaria pela grande relevância do campo, sempre ocupado em depurar os lastros do passado autoritário no presente democrático. Em uma conjuntura marcada pela disseminação de discursos que buscam negar a ditadura ou relativizar os processos de repressão no País, esse dossiê também se propõe como um gesto político e uma afirmação da democracia qualificada pela devida compreensão e enfrentamento do passado autoritário e pela defesa dos direitos humanos.
Cristina Buarque de Hollanda – Doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ); Professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP / UERJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Também é Secretária Executiva da Associação Brasileira de Ciência Política. E-mail: cristinabuarque@iesp.uerj.br https: / / orcid.org / 0000-0002-1600-4044
Fernando Perlatto – Doutorado em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ); Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. E-mail: fperlatto@yahoo.com.br https: / / orcid.org / 0000-0003-4301-0826
HOLLANDA, Cristina Buarque de; PERLATTO, Fernando. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 45, n. 3, set. / dez., 2019. Acessar publicação original [DR]