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Justiça, Cidadania e Direito na História do Espírito Santo | Revista do Arquivo Público do Estado do Espirito Santo | 2020
Justiça, Cidadania e Direito são temas de longa tradição no campo da História que contemplam fenômenos jurídicos e políticos numa perspectiva ampla e interdisciplinar. Recentes estudos e abordagens têm evidenciado o papel relevante das culturas jurídicas e políticas para a compreensão das ideias, instituições, comportamentos e relações de poder nos mais variados contextos históricos. Em consonância com as tendências historiográficas dos últimos decênios, que indagam as interpretações generalizantes e, por vezes, reducionistas, o dossiê objetivou congregar estudos que se dedicam ao exame das práticas e do pensamento no âmbito político-jurídico e suas transformações ao longo da História. Abre-se, assim, uma série de problemas ligados às práticas judiciárias e políticas, construção da cidadania, garantia de direitos, acesso à justiça e à informação. Para essa edição da Revista do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, o dossiê procurou incorporar pesquisas que tratam a temática no âmbito do Espírito Santo, perpassando os diversos regimes políticos e jurídicos, desde o processo de independência do Brasil até a República e suas diversas temporalidades. Leia Mais
Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime / Locus – Revista de História / 2018
É com muita satisfação que apresentamos ao leitor o Dossiê Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime. Nossa principal intenção foi criar um espaço para a apresentação, divulgação e debate de resultados de pesquisas que versem a respeito da administração das justiças nos impérios ibéricos durante o Antigo Regime.
Já se vão algumas décadas desde que Stuart Schwartz publicou, em 1973 (traduzida para o português em 1979), Burocracia e sociedade no Brasil colonial. O autor pretendeu esmiuçar as instâncias da administração da justiça no Brasil colonial a partir do estudo do Tribunal da Relação da Bahia e de suas relações quânticas com as representações do poder local. A obra é hoje referência pioneira para o estudo da magistratura portuguesa de Antigo Regime.[1]
Em 1996 foi publicado O desembargo do Paço (1750-1833), de José Manuel Subtil. Aqui encontramos mais uma referência importante para os estudos sobre a administração da justiça no Império Português. A obra é fruto de sua dissertação de mestrado, defendida em 1994 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e realiza um estudo minucioso sobre as estruturas do tribunal português responsável pela gestão da justiça no reino e por todo império, o Desembargo do Paço. O período estudado também se apresenta revelador, pois José Subtil se debruça sobre o ministério pombalino e o liberalismo vintista das primeiras três décadas do século XIX português.[2]
Mais de quarenta anos se passaram, desde a publicação dessas obras. No entanto, foi somente na última década que o tema adquiriu relevância acadêmica na área de História Moderna e vem substanciando cada vez mais investigações nos programas de pós-graduação. No Brasil, as discussões acerca do tema estão sendo ampliadas. Pesquisadores vêm estabelecendo relações entre a administração das justiças e suas imbricações com a prática dos governos à distância, em todas as suas dimensões e possibilidades, nos âmbitos civil e eclesiástico das monarquias ibéricas de Antigo Regime. Nesse contexto, o Grupo de Pesquisa Justiças e Impérios Ibéricos foi criado em 2016. Reunindo pesquisadores brasileiros e portugueses, o GP busca matizar os interesses em torno do tema e contribuir para o alargamento dos debates e das possibilidades de pesquisa. Esse dossiê é parte dessa empreitada.
Em “Os conflitos de jurisdição entre os cargos do poder local ou a difícil tarefa de levar justiça aos domínios d’El-Rey”, Thiago Enes propõe um estudo sobre os conflitos de jurisdição que demarcavam a atuação dos ofícios municipais da justiça pelo império português. O autor estabelece relações entre o reino e o ultramar, ressaltando as instabilidades resultantes do estabelecimento do direito positivo e a permanência da tradição consuetudinária.
A seguir, Mônica Ribeiro nos apresenta uma análise da administração da justiça a partir da racionalização administrativa e da prática de uma razão de Estado no setecentos em “Manutenção da justiça e racionalidade política no Império luso, século XVIII: a gestão de Gomes Freire de Andrada, Rio de Janeiro e centro-sul da América portuguesa”. O estudo aborda a época da governação de Gomes Freire de Andrade no centro sul da América portuguesa, conforme indica o título.
O terceiro artigo, intitulado “De Portugal para os sertões do Siará Grande: caminhos de um português em meados do século XVIII”, de Adson Rodrigo Silva Pinheiro trata do trânsito nos sertões do Siará Grande nos idos setecentistas a partir da trajetória de Antônio Mendes da Cunha e suas implicações no Tribunal do Santo Ofício. O autor faz uso de fontes judiciais, além das inquisitoriais, para apresentar o estudo de caso em questão.
José Inaldo Chaves Júnior é autor do quarto artigo, “Reforma dos territórios e das jurisdições nas capitanias do Norte do Estado do Brasil: as atuações do capitão-general Luís Diogo Lobo da Silva e do juiz de fora Miguel Carlos de Pina Castelo Branco na aplicação do Diretório dos Índios (1757-1764)”. A aplicação do Diretório dos Índios nas capitanias do norte do Estado do Brasil é o tema central desse estudo que contempla um dos períodos mais conturbados para a administração da justiça durante o Império português, a época pombalina. O estudo nos revela as complexas relações entre os diversos agentes da governança frente à política de restrição das autonomias locais e de extensão das jurisdições régias sobre a região.
Marcello José Gomes Loureiro encerra nosso dossiê discutindo o poder de arbítrio e justiça representado pelo Conselho Ultramarino, durante os primeiros anos da Restauração. Em “Como poderemos restaurar depois de perdido, senão fazendo Justiça?” O Conselho Ultramarino e o diálogo com as conquistas em tempos de incerteza (1640-1656) nos será possível analisar, junto com o autor, as estratégias buscadas pelo tribunal para mediar a justiça e garantir a harmonia em um período de instabilidade política e administrativa para os domínios ultramarinos.
Por fim, nos resta desejar boa leitura. Esperamos também que o dossiê “Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime” possa contribuir de forma significativa para os avanços dos estudos sobre a administração da justiça durante o Antigo Regime.
Claudia C. Azeredo Atallah
José Subtil
Organizadores do dossiê
Notas
1. SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
2. SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. O desembargo do Paço (1750-1833). Lisboa: Editora da Universidade Nova de Lisboa, 1996. José Subtil possui uma vasta obra sobre o governo da justiça em Portugal e em seus domínios de Antigo Regime. Sobre as reformas pombalinas e suas conexões com o vintismo ver SUBTIL, José. O terremoto político (1755-1759). Memória e poder. Universidade Autónoma de Lisboa: Lisboa, s / d; SUBTIL, José. Portugal y la Guerra Peninsular. El maldito año 1808. In: Cuadernos de Historia Moderna; Anejo VII: Crisis política y deslegitimación de monarquias, 2008 e SUBTIL, José. Pombal e o Rei: valimento ou governamentalização? In: Ler História, n. 60, 2011.
Claudia C. Azeredo Atallah
José Subtil
Organizadores do dossiê
ATALLAH, Claudia C. Azeredo; SUBTIL, José. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.24, n.1, 2018. Acessar publicação original [DR]
História, direito e justiça / História (São Paulo) / 2009
O presente número da Revista História apresenta um Dossiê “História, Direito e Justiça” no qual o fenômeno jurídico enquanto objeto historiográfico é abordado de forma ampla e multidimensional, reafirmando suas relações sociais, políticas, econômicas, religiosas e culturais.
Em um conjunto de dezoito artigos as questões historiográficas e jurídicas são apresentadas como referência significativa nos campos das relações internacionais, da teoria política, das questões de etnicidade e identidade, da religião, da filosofia, da economia, da retórica, da criminalidade, do escravismo, do sistema prisional, da infância, da reforma agrária, das ideologias, do legalismo, entre outros temas que atestam a riqueza e a diversidade de um campo de pesquisa em constituição.
Os artigos livres reúnem onze contribuições que discutem diferentes enfoques temáticos e cronológicos, como a história romana, relatos de viagem, identidade cultural, iconografia, lazer, militarismo, burocracia, intelectuais, entre outros.
Finalmente, as cinco resenhas abordam, em análise crítica, publicações sobre educação, gênero e artes plásticas, fascismo, religião e filosofia.
Essa reunião de artigos temáticos, livres e resenhas reflete um esforço de abordagem rica e diversificada da história e da historiografia, que entendemos ser necessária para a transmissão do conhecimento e a manutenção dos méritos acadêmicos.
Como último número sob a responsabilidade da atual gestão editorial da Revista História foram mantidas as diretrizes de excelência dos autores, a diversidade de suas instituições de origem, a internacionalização de algumas contribuições e a avaliação por pares.
Esperamos que a leitura de tais textos se traduza em um convite à reflexão e permita a descoberta e redescoberta de certezas, incertezas e encantamentos.
Wilton C. L. Silva
Margarida Maria de Carvalho
Editores da Revista História / São Paulo.
SILVA, Wilton C. L.; CARVALHO, Margarida Maria de. Apresentação. História (São Paulo), Franca, v.28, n.2, 2009. Acessar publicação original [DR]
Justiça do Antigo Regime / Textos de História / 2003
Enquanto na Europa é crescente o interesse pela História do Direito, no Brasil esta vertente da produção histonográfica encontra-se ainda em fase rudimentar. Especialmente para o período moderno, no qual o Brasil se insere em seu momento colonial, as pesquisas são ainda escassas.
Embora seja digna de destaque a recente obra de Amo Wheling e Maria José Wheling — Direito e justiça no Brasil colonial —, 1 a questão do direito e da justiça neste período tem despertado pouco interesse entre os pesquisadores.
Quando abordada, a administração da justiça na colônia é pensada em geral fora dos referenciais da cultura política e jurídica do antigo regime português e tem sido interpretada como “irracional”, “caótica” e até mesmo “esquizofrênica”. Sem dúvida, assim poderia ser interpretada, se orientada, anacrônicamente, pelos parâmetros do direito moderno, marcado pela racionalismo e pelo papel central atribuído ao Estado, fenômeno para o qual as pesquisas de Antônio Manuel Hespanha sobre as práticas da justiça no Portugal moderno têm chamado a atenção2.
Até a segunda metade do século XVIII, no âmbito da cultura jurídica portuguesa, a lei era uma fonte de menor importância no campo de um direito cuja natureza era basicamente doutrinai. E, além de fenômeno minoritário, a lei era também um fenômeno subordinado. De um lado, o soberano era limitado pelo direito natural e divino, de outro, os juizes não eram obrigados a seguir aquilo que lhes parecia contrário ao direito doutrinai.
Por outro lado, a ordenação dos corpos políticos inferiores e os privilégios também impunham limitações à lei. Assim, a lei situava-se entre a doutrina do direito comum que a limitava por cima e um direito dos corpos políticos que a esvaziava por baixo3.
Embora no período pombalino tenha havido uma valorização da lei, interpretada como manifestação da vontade do monarca, as reformas realizadas no âmbito do direito parecem ter tido impacto reduzido. Permaneceram muitos obstáculos para uma eficácia ampliada da lei, como, por exemplo, o número insuficiente de funcionários administrativos para exercer controle sobre a sua aplicação, as deficiências de comunicações, a permanência de juizes iletrados na maior parte das câmaras municipais e o peso do direito costumeiro nas regiões do interior. Para completar, predominou em Portugal, até a revolução vintista do século XIX, a idéia de uma justiça cristã voltada prioritariamente para o bem comum que revestia o monarca do poder, não apenas de punir exemplarmente seus vassalos, como de agraciar e perdoar.
A idéia de bem comum, embora re-atualizada pela noção de progresso no final do século XVIII, estimulava a prática de uma justiça que priorizava a conciliação em situações de conflito.
Os textos reunidos neste dossiê tratam, sob ângulos diferentes, e em contextos também distintos, da questão da justiça no Antigo Regime, expressão que, embora originária do final do século XVIII e estreitamente associada à Revolução Francesa, é hoje de uso corrente na historiografia para designar os regimes políticos da Europa moderna. Com a preocupação de fugir ao anacronismo, os textos resgatam antigas maneiras de se conceber a justiça, que não apenas foram hegemônicas no passado como se prolongaram no período de transição para o Estado Liberal.
O artigo de Benoít Garnot trata da justiça no antigo regime francês e propõe a interpretação das relações justiça-sociedade a partir das práticas sociais e não apenas das normas jurídicas. O autor insere-se no grupo de autores que tem renovado a história da justiça e da criminalidade na França.
Os demais artigos abordam a questão da justiça no Brasil. Maria • Filomena Nascimento examina a questão da corrupção e do suborno no contexto de uma cultura jurídica que coexistia com as lógicas do privilégio e da hierarquia. Sua reflexão tem como suporte documentação relativa à capitania de Pernambuco dos meados do século XVIII.
Tereza Cristina Kirschner salienta a importância dos canais de comunicação entre vassalos e soberanos na Bahia do final do século XVIII e a associação presente no imaginário social entre a figura do soberano e a justiça.
Entre o rei e a lei interpunha-se a justiça cristã, o bem comum e a graça.
O artigo de Jean-Phüippe Challandes procura mostrar a permanência de antiga concepção da justiça, associada à moral e ao bem comum, no período de formação do Estado nacional brasileiro. Articulada ao Estado constitucional, a justiça assim concebida constituía a base de um dos projetos políticos para o Brasil na primeira metade do século XIX.
Notas
1 WHELING, Arno e JOSÉ, Maria. Direito e justiça no Brasil colonial. 0 Tribunal da Relação do Rio de janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
2 HESPANHA, Antônio Manuel, justiça e ütigiosidade: História eprospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993; As vésperas do heiiathã,. Instituições e poder político.
Portugal, século XVII. Coimbra: Almedina, 1994; Panorama histórico da cultura juríàca européia. Lisboa: Europa- América, 1998 e Guiando a mão invisível. Direitos, Estado e lei no liberalismo monárquico português, Coimbra: Almedina, 2004.
3 HESPANHA, Antônio Manuel, justiça e ütigiosidade. História e prospectiva. op.át.
Tereza Cristina Kirschner
Justiça e Cidadania / Estudos Históricos / 1996
Vários fenômenos deste fim de século contribuíram, e continuam a contribuir, para recolocar o problema da cidadania na ordem do dia, tanto nas novas democracias como nas antigas. A redemocratização de vários países na América Latina e na Europa, sobretudo do Leste, fez com que a preocupação com os direitos políticos e com a maneira de exercê-los voltasse com toda a força. A crise fiscal do Estado, que atinge indiscriminadamente países ricos e pobres, colocou em cheque o Estado de bem-estar e, conseqüentemente, a amplitude e o alcance dos direitos sociais. O processo de globalização econômica, por sua vez, atingiu ao mesmo tempo direitos civis, políticos e sociais. Atingiu negativamente os direitos políticos ao provocar profundas alterações na concepção e na prática do Estado-nação, agora enfraquecido diante do deslocamento de decisões para organismos multinacionais. Atingiu positivamente os direitos civis ao deslocar para a participação social a ênfase antes colocada na participação política. Atingiu um direito social básico, o emprego, ao exacerbar a competividade internacional e o avanço tecnológico, geradores estruturais de desemprego.
Não terminam aí as mudanças. A diversificação da problemática social (etnias, minorias, ecologia), acompanhada (e promovida) por novos movimentos sociais, sobretudo as organizações não governamentais, trouxe à consciência coletiva novos direitos antes não cogitados. Além dos três direitos clássicos sistematizados por Marshall, chamados de primeira e segunda geração, foram propostos, e incorporados a códigos legais, outros como os direitos civis coletivos e os chamados direitos difusos, ligados à preservação do meio ambiente. Pode-se ainda acrescentar o impacto sobre direitos políticos e civis provocado pela sociedade de consumo que transforma cidadãos em consumidores e pela globalização da informação via mídia eletrônica que, se rompe a barreira do controle estatal, também invade a privacidade do indivíduo.
Diante desse quadro, não é de admirar a explosão de estudos, teóricos e empíricos, sobre a problemática da cidadania. Como se viu, não se trata de uma problemática de democracias jovens e imaturas mas de uma questão universal com modulações nacionais. Não deixa de ser um consolo, embora triste consolo, o fato de descobrimos, os latino-americanos, que europeus e americanos do noite estão às voltas com problemas semelhantes, guardadas as especificidades locais. É na verdade uma vantagem o rato de podemos pensar e agir tendo o benefício da informação sobre o que se está passando nos países considerados avançados. Não se trata também de um tema que se possa abranger com o instrumental teórico de uma ou outra disciplina acadêmica apenas. Ele atinge todas as esferas da vida social e exige abordagens diversificadas e inovadoras. Um tratamento compreensivo seria impossível dentro do espaço aqui disponível.
Deu-se ênfase na seleção dos artigos deste número especial de Estudos Históricos ao tema da garantia dos direitos civis, tratando-se secundariamente dos direitos políticos e sociais. A escolha exige justificativa. Como quase todas as análises se referem ao Brasil, país recém-saído de um governo militar e marcado pelas imensas desigualdades sociais, poder-se-ia perguntar se a ênfase não deveria ser posta nos direitos políticos e sociais. Antes de responder, cabe observar que, do ponto de vista da legislação, todos os direitos estão garantidos aos brasileiros. A Constituição de 1988, chamada com razão de cidadã, esmerou-se em incluir todos os avanços atuais na área. Nosso problema se verifica no campo da consciência e da garantia dos direitos. Quanto a isto, não será polêmico dizer que há um conhecimento razoável dos direitos políticos e que seu exercício está razoavelmente garantido pelo sistema eleitoral e partidário. Há, sem dúvida, enormes problemas no gerenciamento do sistema de saúde e previdenciário, mas há igualmente boa noção dos direitos sociais e há uma Justiça do Trabalho a que se tem acesso com celta facilidade. O mesmo não se pode dizer dos direitos civis. O grau de conhecimento desses direitos é mais precário e sua garantia, baseada sobretudo no sistema policial e judiciário, é de longe a mais deficiente.
Além dessa situação desvantajosa dos direitos civis, cabe observar que eles são os direitos fundamentais numa democracia liberal, como é a em que vivemos. Vida, integridade física, propriedade, segurança, liberdade, são direitos básicos que constituem o alicerce de direitos políticos e sociais. São eles que garantem a conquista de outros direitos e sua preservação. Sem segurança pessoal e liberdade de opinião e organização para todos, por exemplo, a participação política será vazia, a política social frágil, a democracia precária.
Dentro do tema da garantia dos direitos civis, salientam-se os estudos sobre o Judiciário. Sinal dos novos tempos, marcados pela perda de influência do Legislativo e até mesmo do Executivo, tendo em vista o enfraquecimento dos Estados nacionais, o Judiciário passa a ver seu papel contestado, redefinido e ampliado. Mais que nunca é colocada em questão a visão rígida da separação dos poderes e se estabelece um processo ainda de contornos indefinidos em que se politiza a Justiça e se judiciariza a política. Ao mesmo tempo, contesta-se a visão positivista do direito e do papel do juiz como mero aplicador da lei, exigindo-se dele a preocupação com a eqüidade social. Esses temas são expostos e discutidos no artigo de Werneck Vianna.
Ainda dentro do tema do Judiciário, Sérgio Adorno demonstra o viés racista da Justiça criminal e o estereótipo que atribui maior tendência à criminalidade entre determinados grupos étnicos. Maria Celina D’Araujo apresenta o que talvez seja a primeira avaliação acadêmica do desempenho dos juizados Especiais. Surgidos como promessa de agilização da Justiça e ampliação de sua acessibilidade, a autora mostra que seu funcionamento está longe de corresponder à promessa inicial. Dois ensaios bibliográficos (Junqueira e Guanabara) avaliam o estado da arte nos estudos sobre o acesso à Justiça e sobre novas visões do direito.
O impacto da globalização sobre o Estado e as identidades nacionais, sobretudo no contexto europeu, é discutido por Guy Hermet. Enquanto na Europa Ocidental o processo de unificação tende a reduzir o peso dos Estados nacionais, a enfraquecer o envolvimento político dos cidadãos e a diluir as identidades nacionais, na Europa Oriental verifica-se o fenômeno oposto. Essas diferenças nacionais no que se refere ao conteúdo da cidadania e às rotas históricas seguidas em sua construção são discutidas por Carvalho, que usa o Brasil do século XIX como exemplo.
Finalmente, o processo social concreto de construção da cidadania é discutido por Sigaud. Usando como exemplo o recurso à justiça do Trabalho por parte de trabalhadores de engenhos de açúcar em Pernambuco, a autora demonstra que a decisão de recorrer ou não às juntas de Conciliação e Julgamento não se explica apenas pelo conhecimento do direito e pela disponibilidade da Justiça. Tem-se que levar em conta também a interveniência de fatores morais.
Papel do judiciário, concepções do direito, acesso à Justiça, estilos históricos e transformações recentes no conteúdo da cidadania, processos sociais de construção do cidadão, são os temas abordados neste número especial. Pequena contribuição à imensa tarefa que se nos apresenta, a um tempo teórica e prática, de construir a comunidade política do século XXI.
José Murilo de Carvalho – Editor convidado.
CARVALHO, José Murilo de. Apresentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.9, n.18, jul. / dez. 1996. Acessar publicação original [DR]