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Júlia: nos campos conflagrados do Senhor | Bernardo Kucinski
Bernardo Kucinski | Foto: Marcos Santos/USP Imagens/Cult
“[…] quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava” (BENJAMIN, 2000, p. 239).
Narrada em terceira pessoa, a novela Júlia: nos campos conflagrados do Senhor, de Bernardo Kucinski, publicada pela editora Alameda, em 2020, retrata a história de uma bióloga que, por um acaso, acaba se debruçando no passado de sua família, até então desconhecido pela jovem. Após o falecimento de seus pais, Júlia, assim como é denominada na narrativa, entra em conflito com seus irmãos Beto e Jair para não vender um luxuoso apartamento que ganhara de herança paterna, pois esse imóvel guardava as memórias afetivas da personagem.
Decidida a não vender seu aposento, essa bióloga compra a parte da herança de seus irmãos. No entanto, por conta de seu doutorado em Londres, ela resolve alugá-lo a Daniel, um pesquisador que conhecera no Instituto Biológico. Esse homem, além de sentir-se o dono do imóvel, acabou deteriorando toda a morada dela. Ao ver tal reação do inquilino, a personagem, depois de vários acordos, consegue despejá-lo de seus aposentos.
Como o apartamento estava bastante danificado, a protagonista decide fazer uma reforma naquele lugar. Durante esse período de reparação de seu imóvel, Júlia encontra uma caixa de fuzil, a qual desperta a sua curiosidade. Ao abrir tal objeto, ela encontra umas cartas que revelam não só a participação de seu pai, o engenheiro Durval, na luta contra o regime militar, mas também o envolvimento de religiosos da igreja católica: uns que colaboravam com o autoritarismo, encobriam mortes e colocavam crianças sequestradas para adoção; outros que tentavam impedir as barbaridades cometidas pelos militares. A descoberta dessas correspondências representa a história de um passado obscuro, que até então a personagem não conhecia, como podemos perceber no fragmento abaixo:
Júlia larga os papéis no meio da leitura. Então era isso que acontecia no Brasil? E o pai sabia de tudo isso? E a mãe será que sabia? E o Beto? Estarrecida, retoma a leitura. […] Ao terminar, noite alta, Júlia sente que descobriu um outro país- e um outro pai. Nunca imaginou atrocidades dessas no Brasil (KUCINSKI, 2020, p. 45).
Por meio dessas cartas, a bióloga descobre que fora adotada por sua família. Esse fato a deixa muito aflita. Isto porque ela percebe que vivera uma farsa durante toda a sua vida, no entanto, mesmo angustiada por saber que era filha adotiva, a personagem decide ir em busca de sua verdadeira história.
Nesse percurso pela busca de seu passado, Júlia encontra Magno, um delegado da Polícia de Santos, que ajudava o pai da bióloga tanto com o repasse de informações acerca de alguns presos políticos, quanto em atividades contra o governo. Através desse homem, ela conhece Paula Rocha, uma jornalista bastante conceituada na área do jornalismo, a qual havia sido perseguida durante o regime, devido a algumas reportagens sobre o tráfico de bebês praticados por membros religiosos, em parceria com militares.
Por meio do contato com a repórter, a jovem bióloga toma conhecimento de que é fruto de um relacionamento extraconjugal entre seu pai e Maria do Rosário, uma jovem enfermeira e ex-militante, criada pelas madres do Orfanato e Casa Maternal São Vicente de Paula.
Além disso, a personagem descobre não só que a sua mãe biológica havia sido presa, torturada e morta pelos agentes da repressão, mas também que a sua avó materna, de nome Maria das Dores, havia sido abusada sexualmente por Felipe Mesquita, um agente colaborador da ditadura.
Desse estupro, essa mulher engravida e, assim que tem a criança, é forçada pelo seu agressor a deixar o bebê em um orfanato. Vejamos: “– Foi o patrãozinho que me forçou, o mais taludo deles o Felipe, a depois nem não quis saber do bebê. […] era para entregar pras madres” (KUCINSKI, 2020, p. 95-96).
Essa criança, a qual a mulher havia entregue no orfanato, era Maria do Rosário. Inclusive, na página final da narrativa, há um trecho bastante significativo que serve de pista para o leitor compreender a violência traumática e autoritária sofrida tanto por Júlia, por Maria do Rosário, quanto por Maria das Dores. Vejamos: “Em vez de encontrar a mãe, encontrou uma tragédia, que também era sua, que passava a ser sua. Uma tragédia atravessando três gerações” (KUCINSKI, 2020, p.181). A narrativa termina com a bióloga indo atrás de sua avó para contar- lhe que a filha por quem chorava tanto, tornara-se uma moça linda, inteligente, boa e que teve uma vida curta.
Através de uma linguagem simples e bastante cativante ao leitor, Kucinski aborda um passado que permanece com suas feridas abertas, pois ao trazer para o centro da narrativa uma jovem, em busca de sua história, o autor mostra-nos a necessidade de olharmos para esse passado, a fim de não só conhecê-lo, mas também de analisar criticamente a densidade simbólica da violência autoritária vivida pelas vítimas da ditadura e seus familiares, pois como bem afirma Gagnebin (2006, p. 47):
A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente.
Ao dialogar com a pensadora acima, percebe-se que o autor, ao resgatar esse passado traumático na narrativa em estudo, busca tirar do esquecimento fatos que se pretendeu não só silenciar, mas também apagar da nossa história, a fim de levar o leitor a refletir sobre a violência autoritária praticada àqueles que lutaram pela utopia de um país mais democrático.
À medida que Kucinski configura o horror perpetrado durante a ditadura em sua obra, também mostra que “[…] enquanto a sociedade não assimilar e superar inteiramente a dor do que viveu, suas perplexidades e fragilidades serão estendidas” (GINZSBURG, 2004, p. 56). Na narrativa em estudo, as marcas desse passado dolorido e violento atingem não somente os pais de Júlia e a sua avó Maria das Dores, mas também a própria personagem, pois ela é vítima de um “trauma sequencial3 ”, ou seja, a personagem carrega as cicatrizes provocadas por esse passado violento.
Outro ponto perceptível, na obra de Kucinski, é a naturalização da violência como um grave sintoma social. Isto porque, quando olhamos a história de Maria das Dores e de sua filha Maria do Rosário, percebemos que a impunidade das agressões sofridas por essas duas mulheres provoca “[…] uma sinistra escalada de práticas abusivas por parte dos poderes públicos, que deveriam proteger os cidadãos e garantir a paz” (KEHL, 2010, p. 124).
Enfim, Júlia: nos campos conflagrados do Senhor insere-se num conjunto de narrativas ficcionais que busca “[…] contestar o discurso oficial nunca totalmente desmentido e de impedir o apagamento coletivo com o qual órgãos oficiais pretenderam e ainda pretendem camuflar a história” (PEREIRA, 2020, p.123). Ao apontar para o dever de memória, o autor convida o leitor a (re)pensar sobre essa grande ferida histórica que ainda permanece aberta e impede de termos uma sociedade mais justa, democrática e menos violenta.
Nota
3 Trauma sequencial é “[…] uma experiência histórica de violência que não atinge apenas os que estão imediatamente vinculados a ela. Na mediada em que essa experiência não é superada, por vários caminhos mediados, suas marcas se prolongam para as gerações seguintes” (GINZSBURG, 2004, p.56-57).
Referências
BENJAMNIN, Walter. Rua de mão única. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 2000.
GAGNEBIN, James Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.
GINZBURG, Jaime. Ditadura e estética do trauma: exílio e fantasmagoria. In: CORREIA, Francisco José Gomes; VIANA, Chico (Orgs.). O rosto escuro de Narciso: ensaios sobre literatura e melancolia. João Pessoa: Ideia, 2004.
KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a execução brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
KUCINSKI, Bernado. Júlia: nos campos conflagrados do Senhor. São Paulo: Alameda, 2020.
PEREIRA, Helena Bonito C. Exílio e deserção em Azul Corvo, de Adriana Lisboa. In: Narrativas brasileiras contemporâneas: memórias da repressão. GOMES, Gínia Maria (Org.). Porto Alegre: Polifonia, 2020.
Resenhistas
Francisca Luana Rolim Abrantes – Doutoranda em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Mestra em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). E-mail: luana_abrantes@hotmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/2815636040264614
José Edilson de Amorim – Professor Titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Doutor em Letras, área de Literatura, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mestre em Letras na mesma área de concentração. Atua no PPGLE/UFCG e desenvolve pesquisa sobre literatura e ditadura no Brasil. E-mail: edilsondeamorim@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/6524195105007515
Referências desta Resenha
KUCINSKI, Bernardo. Júlia: nos campos conflagrados do Senhor. São Paulo: Alameda, 2020. Resenha de: ABRANTES, Francisca Luana Rolim; AMORIM, José Edilson de. Memória e ditadura em Júlia: nos campos conflagrados do senhor, de Bernardo Kucinski. Literatura, História e Memória. Cascavel , v. 18, n. 31, p. 415-418, 2022. Acessar publicação original [DR]