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La folie Dartigaud – JOUHAUD (RETH)
JOUHAUD, Christian. La folie Dartigaud. Paris: Éditions de l’Olivier, 2015. Resenha de: SÁ JÚNIOR, Luiz César de. Dartigaud: Delírio Dartigaud: Uma fábula historiográfica. Revista Expedições: Teoria da História e Historiografia, Morrinhos, v. 8, n. 3, set./dez. 2017.
“Sentimento e objetividade”, “memória e legitimação”, “fascínio e ceticismo” são dilemas profundamente vinculados ao trabalho do historiador. As incertezas que acarretam envolvem os usos contemporâneos do passado, repartidos entre o crescente interesse público pela história e a percepção acadêmica de que ela nada tem a ensinar. Em nossa economia simbólica, permeada pela transformação de sentimentos poderosíssimos, como a nostalgia, a mais-valia (aqueles que conhecem Don Draper sabem do que estou falando), esses usos podem ter trazido consequências ao ofício que ainda não foram totalmente elucidadas.
Afinal, o que impele o historiador a escolher um determinado tema e um determinado método? Imperativos morais e sentimentais próprios a cada indivíduo, agendas ético-políticas ativas na comunidade que os dota dos instrumentos analíticos necessários à pesquisa certamente comparecem em suas preferências. Mas há, talvez, uma questão de fundo, a saber, a interação entre, na falta de um termo melhor, o “desejo de presença” que nos impele aos arquivos e o trabalho hermenêutico voltado à restituição da historicidade dos objetos estudados. É à dramatização dessa dinâmica que o novo livro de Christian Jouhaud se consagra, introduzindo suas reflexões no formato de uma fábula historiográfica.
Tudo começa com um mergulho para fora do tempo. Em 17 de julho de 1962, o espeleólogo2 francês Michel Siffre conduz uma experiência radical: após três horas de descida ele atinge a profundidade de cem metros na caverna de Scarasson, situada fronteira franco-italiana dos Alpes. Dispondo de um caderno de anotações e de um “magnetofone” (que usava para informar uma equipe de acompanhamento médico), Siffre permaneceu, de resto incomunicável, de modo a atingir o objetivo a que se propunha, isto é, viver “fora do tempo”.
Os resultados da experiência foram brutais – física e psicologicamente. O então jovem de 23 anos havia perdido a noção do tempo, desregulando drasticamente hábitos alimentares e a rotina do sono. Conforme relato que consta no livro que escreveu sobre sua experiência (Hors du Temps, 1963), quando questionado sobre a data em que imaginava estar ao sair da gruta, errou por vinte e cinco dias.
Seu ordálio teria inspirado outro caso, anos mais tarde. É nesse período, que Christian Jouhaud situa o personagem de sua ficção, o historiador René Dartigaud, cuja desejo de conhecimento imediato do passado o leva a desencadear uma “experiência de imersão historiográfica” (p. 7). Embora inspirada pelo programa de Siffre, ela diferia radicalmente em sua finalidade; se este havia mergulhado no abismo para “perder o tempo”, aquele desejava avidamente recuperá-lo.
Dartigaud cogitava que a única forma de contemplar o passado seria entrar em uma espécie de máquina do tempo erudita. Ela fora “construída” em uma casa na região estudada pelo historiador, Saint-Croix-du-Mont, e destinava-se a replicar as condições de vida da época de seu interesse, o século XVII. Uma vez instalado nela, seu isolamento era quase total: a alimentação e os documentos disponíveis nos arquivos eram levados à casa sem que ele tivesse contato com os mensageiros, e, todos os aparelhos eletrônicos foram banidos.
A voracidade com que conduziu seu projeto acarretou sequelas tão ou mais graves que aquelas experimentadas por Siffre. Poucos meses depois de trancar-se em seu laboratório, Dartigaud foi encontrado em estado catatônico, o que resultou em sua internação em um hospital psiquiátrico. Aparentemente incapaz de se lembrar do período em imersão, Dartigaud passou os primeiros dias falando compulsivamente do tema da avidez, sem deixar de se condenar pela “insaciável profanação do tempo” (p. 15) que teria cometido.
Somos apresentados pelo narrador a alguns vestígios deixados pela experiência de Dartigaud. Em primeiro lugar, um breve relato manuscrito feito após o período de sua internação em um hospital psiquiátrico, na sequência do confinamento. Além dele, dois documentos são encontrados nos arquivos do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS: de um lado, o “contrato” que estabelecia as normas do confinamento historiográfico; de outro, o “projeto” que o subsidiava.
A leitura do contrato paródico introduz elementos determinantes para a compreensão do caso. Dartigaud é de saída satirizado como um lunático, à medida que o “grupo de pesquisa” ao qual se vincula para a consecução do projeto é constituído, ao que parece somente por ele. Assim, o contrato é firmado entre René Dartigaud e o diretor do “Grupo Experimental de Imersão Historiográfica”, dirigido por René Dartigaud.
O projeto de pesquisa remetido ao CNRS sustentava um objetivo bifronte, orientado tanto a “escrever a história das atividades sociais, econômicas, políticas, religiosas e culturais” (p. 11) da Saint-Croix-du-Mont seiscentista quanto a observar seu próprio comportamento no processo, estabelecendo os impactos de sua situação de imersão a partir da hipótese de que a restrição a todos os artefatos do presente culminaria no contato direto com o passado, cuja presença radical tornaria visível o que estava morto. Recusando-se a empreender qualquer tentativa de demografia histórica (o que sugere a distância para as inclinações de seu métier naqueles anos), Dartigaud planejava conhecer os “personagens mais visíveis” da vida citadina, sobretudo do ponto de vistas das ações destinadas a estabelecer sua unidade social.
Pouco a pouco, o historiador recupera a memória de sua experiência, e ela é descrita na chave do arrebatamento provocado pela avidez com que perscrutou o passado. Ao invés de ser preenchido pela exuberância da “presença”, o que viu foi a ruína de um “tempo abolido, atingido pela corrosão universal” (p. 16-17): Sentia-me imobilizado e congelado pelo encantamento de alguma fonte invisível, petrificado pelos mil fios grudentos de uma teia de aranha […]. Não passo de uma pedra fria, um rochedo colocado na entrada da fúnebre gruta onde nascem os infernos. Estou condenado (p. 18).
O processo de cura de Dartigaud começa quando ele encontra uma bicicleta arruinada no hospital. Em seus relatos, afirma que foi a tentativa de consertá-la que o despertou do delírio que o experimento havia lhe imposto, e que estava calcado num sentimento de melancolia. Todos os lugares que visitara emanavam sombras da presença que o faziam sonhar. Cada silêncio soava-lhe como um convite a que resgatasse os ruídos que outrora coloriam Saint-Croix-du-Mont, todos os vivos lembravam-lhe dos mortos que poderiam ser ressuscitados. Como a pressão para que efetivasse essa operação fosse incontornável, Dartigaud só conseguia qualificá-la de inebriante; as sombras eram uma fonte inesgotável que ele sorvia “como aguardente” (p. 29).
Mas, a restauração da bicicleta permitiu-lhe enveredar por operações de outra ordem. Ao invés de sonhar com a presença daqueles que a usaram, bastava recuperá-la. Para isso, era necessário refazer certas peças, peças novas, porém idênticas àquelas perdidas, o que exigia por sua vez, a invenção de ferramentas apropriadas. A bicicleta em si não tinha qualquer importância; o que de fato valia o seu tempo era a ação de torná-la útil uma vez mais, de fazer suas rodas girarem como giravam em 1865, data de sua criação.#
“A meu ver, a bicicleta, enquanto objeto, não tinha de fato a menor importância. Poderia ter sido qualquer outro objeto. Tudo residia na ação. Na densidade, na plenitude dessa ação sem sonho, sem sombra e sem presença” (p. 31). Sem que fosse realmente possível andar nela, a bicicleta não era mais do que comemoração, e não presença viva do passado. Nesse sentido, a bicicleta serviria de elogio à utilidade “como artefato radical de uma presença eficaz” (p. 86).
Esse discernimento o tirou definitivamente da ala psiquiátrica e o trouxe de volta aos estudos. Professor universitário conhecido, passou a defender os valores de uma erudição ascética desconfiada das “miragens” que o anseio pela presença do passado poderia suscitar. Contra toda metafísica dos espectros, Dartigaud realizava, aula após, aula, um exorcismo terapêutico apto a mitigar sua aflição, canalizada em prol da admoestação metodológica.
Mas, esse comportamento apenas relegava o problema ao segundo plano, pois o engajamento de Dartigaud sinalizava a persistência da experiência na forma de trauma, o que proporciona uma resposta cômico-pedagógica àqueles que imaginam que reações aquelas aulas semelhantes a sessões de terapia podem ter suscitado nos alunos. Para ficar na alusão alcoólica convocada pelo protagonista anteriormentr, Dartigaud cala sua angústia fundando uma espécie de “epistemólogos anônimos”, verdadeira clínica de orientação contra delírios historiográficos.
O livro de Christian Jouhaud metaforiza modalidades da produção de presença, e, para atingir esse objetivo, mobiliza discussões que se vinculam à sua obra. Historiador da política e das práticas letradas francesas seiscentistas, Jouhaud notabilizou-se com a publicação de Mazarinades, la fronde des mots (1988), objeto do último texto de Michel de Certeau, uma resenha bastante elogiosa. De modo geral, tem se preocupado com a restituição das “tecnologias escriturárias” outrora vigentes, sobretudo de escritos elaborados no âmbito de polêmicas e/ou a serviço dos poderes monárquicos.
Em livro recente, Richelieu et l’écriture du pouvoir (2015), somos apresentados a esse programa através da análise da ressonância dos escritos produzidos em torno do cardeal (portanto, em seu primeiro ambiente de consumo), mas não só. Tomamos ciência de seu funcionamento como ações cujo propósito era garantir que seus leitores futuros fossem persuadidos pelos argumentos originalmente comunicados, instilando o apagamento de certos personagens e ideias e a preservação de outras.
A persistência de sombras que são propriamente vestígios das ações passadas irrevogavelmente perdidas rebate no vocabulário do “espectro”, segundo a acepção delirante de Dartigaud. Em debate sobre o livro, Jouhaud diz ter retomado as definições de “espectro” de Derrida para discutir seu uso do conceito. Em Espectros de Marx, Derrida define os espectros como frequências invisíveis (no sentido de uma presença sutil, como uma vibração radiofônica) que apenas a visibilidade poderia captar. O conceito de visibilidade, aqui, escapa ao de visão, sendo compreendido como possibilidade de perceber; quanto às frequências, elas seriam detectáveis por seu caráter repetitivo – os espectros são révenants, sempre de regresso, sempre disponíveis para tentar perfurar a espessa camada de visibilidade e atingir nossa visão.
A interação entre esses dois elementos traduz-se na experiência do tempo: se os espectros não podem ser vistos por não pertencerem à ordem do fenômeno, podem ser apreendidos, porque deixam vestígios recorrentemente. Uma vez flagrados pela visibilidade, tornam-se passíveis de “tradução”, abandonando o plano espectral para emergir (retornar) como representações, imagens – em suma, fantasmas.
A conversão da condição espectral irmana-se ao trabalho do luto. O espectro é algo que nos vê, mas que jamais poderemos contemplar em sua forma original, lição aprendida a duras penas por Dartigaud. Transposto para toda a comunidade de Saint-Croix-du-Mont ao longo dos séculos de sua existência, essa limitação tem consequências devastadoras. O conjunto de ruínas que sinaliza para aqueles passados jamais se presentificará nos termos inicialmente pretendidos, condenando a atividade do historiador a um interminável (e, para alguns, doloroso) trabalho de contrição.
A metodologia histórica de Dartigaud é descrita, por isso, no registro de categorias psicanalíticas. Lembremos que Derrida escreveu Espectros de Marx para (e contra) Freud, o que provavelmente não escapou a Jouhaud, uma vez que este publicou La folie Dartigaud em uma coleção penser/rêver, voltada a escritos de psicanálise.
A segunda parte do livro dedica-se, aliás, à investigação do psicanalista, que persegue os vestígios de Dartigaud após sua morte. O modelo dessa investigação é historiográfico-detetivesco, mesclando a leitura dos vestígios disponíveis, isto é, os documentos que compõem o corpus Dartigaud, a diligências, como uma visita a Saint-Croix-du-Mont, onde ele foi enterrado, e a tentativa de estabelecer quais foram seus últimos passos, graças ao apoio de um amigo policial.
Sua avaliação é que, no caso de Dartigaud, o luto não conseguiu represar a melancolia, e dessa combinação infeliz despontaram a angústia e a subsequente vigilância maníaca da penetração da nostalgia nos trabalhos de outrem. Como constata o narrador, “a aridez de sua escrita de historiador visava a abolir toda ressurgência da nostalgia” (p. 64), e “não há um parágrafo sequer escrito por Dartigaud após a saída de sua fase ávida que não possa ser encarado como uma recusa da ideia de que o passado possa ser tornado presente pela escrita que o elabora” (p. 75).
Entretanto, o regresso dos espectros ignora seu ascetismo, impondo uma ameaça temível: ao se recusar a admitir alguma forma de presença do passado, Dartigaud terminou se transformando, ele mesmo, num espectro. O vetor desse risco, na opinião do analista, é a afasia: quanto mais lutava contra a presença das imagens, quanto mais buscava a “verdade da história sem sombras” (p. 86) ao censurar o discurso, mais ele se silenciava (p. 84).
Graças a esses esclarecimentos, a natureza da turbulência emocional de Dartigaud fica menos nebulosa: de um lado, o excesso de vozes trazidas à tona pelo experimento de imersão o enlouqueceu; de outro, o silêncio absoluto a que se condenava ao declarar-se contrário a qualquer forma de interação com os espectros não lhe garantia conforto. Irrompe, assim, um questionamento abrangente: seria de fato desejável evitar a valorização intelectual da nostalgia como antídoto válido contra o celibato enaltecido pela fria monumentalização? Sabemos muito pouco sobre Dartigaud para tirar conclusões pormenorizadas quanto a sua conduta. Todavia, as angústias que simboliza soam como um comentário à constatação de Michel de Certeau de que o trabalho do historiador residiria na superação do papel de “adivinho” intuído por Michelet, devendo se comprometer, antes, com a formulação de monumentos eruditos que preenchem vazios de resto insondáveis. Recorrendo a Freud, Michel de Certeau mobilizou a categoria de luto num sentido que ultrapassa o psicanalítico, propondo-o como chave epistemológica para o exame de um passado irremediavelmente perdido. É o que achamos em História e Psicanálise:
Meio século depois de ter sido afirmado por Michelet, Freud observa que, de fato, os mortos “voltam a falar”. Não mais como pensava Michelet, pela evocação do “adivinho” que seria o historiador; “isso fala”, mas à sua revelia, em seu trabalho e em seus silêncios. Tais vozes, cujo desaparecimento é o postulado de qualquer historiador que as substitui por sua escrita, remordem o espaço do qual estão excluídas e continuam falando no texto-homenagem que a erudição ergue em seu lugar.
O corolário dessa prescrição, isto é, a defesa de que é metodologicamente conveniente preocupar-se mais com os dispositivos através dos quais as vozes espectrais serão ouvidas do que com sua presença, atende aos protocolos do campo, atacando, nesse sentido, os apêndices da nostalgia – o fetichismo e o anacronismo. Entretanto, graças à versão hiperbolizada desse procedimento, que emerge da caricatura de Dartigaud, somos induzidos a constatar, por outro lado, que o ódio alimentado pelas sombras da nostalgia só pode surgir de um amor profundamente reprimido.
Assim, ao amplificar as prescrições na forma do delírio, Jouhaud descreve, em essência, a face oculta do mesmo pesadelo historiográfico, o risco do silêncio que corremos ao ignorar potências latentes da imaginação e do sonho impossível da presença. Trata-se, como se vê, de um livro curioso, e que pede análises mais detidas. Por ora, é de se destacar em La folie Dartigaud o mérito de fabular oportunamente o recalque, a inquietude e o medo, assombrações que cercam toda atividade escriturária, espectros que rondam cada historiador.
2 Cientista que estuda as cavernas e grutas.
3 CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre a ciência e a ficção. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
Luiz César de Sá Junior – Pós-Doutorando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/PNPD/CAPES). Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).