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Bloodlands: Europe between Hitler and Stalin – SYNDER (LH)
SYNDER, Timothy. Bloodlands: Europe between Hitler and Stalin. New York: Basis Books, 2010. 524 p. Resenha de: LOI, Stefano. Ler História, n.62, p. 206-210, 2012.
1 Uma parte importante da historiografia contemporânea é constituída pelos estudos que se debruçam sobre o confronto político e bélico entre as ideologias – e os Estados construídos em volta delas – que marcaram profundamente a vida europeia da primeira metade do século XX, nomeadamente o comunismo na sua realização russa e as ideologias de extrema-direita como o fascismo e, especialmente, o nacional-socialismo alemão. A obra de Timothy Snyder inscreve-se nesta corrente historiográfica, pois tenta oferecer novas perspetivas sobre as consequências que a aplicação das ideologias políticas acima referidas teve na população que as experienciou e que viveu o confronto bélico entre os países moldados por estas ideologias, ou seja, a União Soviética e a Alemanha. Daí a ambivalência do título da obra do historiador americano: as Bloodlands não foram só as zonas das batalhas europeias da II Guerra Mundial, numa Europa dominada pelas figuras de Hitler e Estaline. Elas foram, de uma forma mais vasta, o espaço geográfico compreendido entre o rio Oder e a Roménia, no Oeste, e Leningrado e Estalinegrado, no Leste, onde os Estados nazi e comunista colocaram em prática os princípios ideológicos do comunismo e do nacional-socialismo. Foram, depois, o lugar físico onde se confrontaram militarmente a União Soviética e a Alemanha durante a II Guerra Mundial. As «Terras Sangrentas» são, portanto, os lugares politica e militarmente disputados por Hitler e Estaline, ou seja, a Europa, numa declinação política do confronto entre o ditador austríaco e o ditador georgiano, com destaque no Leste europeu, em particular, na vertente sobretudo ideológica e militar deste confronto, um espaço mais limitado no coração da Europa Oriental.
2 O objetivo principal da obra de Snyder é a descrição dos eventos que marcaram as «Terras Sangrentas» entre 1933 e 1945, período em que, com a evolução política em sentido ditatorial da Alemanha hitleriana, a interação política entre Alemanha e União Soviética marcou o início de uma nova fase da vida europeia. O mesmo autor sugere uma cronologia da dúzia de anos que analisa: a primeira fase, entre 1933 e 1939 é marcada por uma mais acentuada atividade de repressão por parte do regime soviético, com destaque para a grande carestia na Ucrânia entre 1932 e 1934 e a Grande Purga de 1936-1938; a segunda fase, entre 1939 e 1941, é a fase da aliança entre as duas ditaduras através do Pacto Molotov-Ribbentrop, fase caracterizada por uma ação militar ofensiva e repressiva comparável entre as duas potências; enfim, uma terceira fase, entre 1941 e 1945, na qual é a Alemanha nacional-socialista a causar o maior número de mortos e na qual se enquadra o drama da Shoah. Ainda mais, o campo de investigação do historiador americano limita-se à violência desencadeada nas Bloodlands no período acima referido, excluindo as vítimas dos combates entre os exércitos alemão e russo começados com a invasão da Polónia pela Wehrmacht e acabados em maio de 1945, com o cerco de Berlim pelo Exército Vermelho. Snyder quantifica os holocaustos contra a população civil e os judeus nas Bloodlands em cerca de 14 milhões de mortos.
3 A ampla obra de Snyder estrutura-se num prefácio, introdução, onze capítulos e conclusão. O objetivo do prefácio é enquadrar a obra, explicando o que são as Bloodlands, o que lá aconteceu, quando aconteceu, e introduzir os «protagonistas» da obra: Estaline, Hitler e as vítimas do furor ideológico dos ditadores. A introdução e os onze capítulos do livro constituem uma ampla descrição dos eventos que marcaram a história das «Terras sangrentas» entre a tomada do poder por parte de Hitler até à queda de Berlim, em 1945, com algumas referências à situação política na Europa oriental entre o final da I Guerra Mundial e 1933 – o período em que se criaram os pressupostos políticos e sociais para o desenvolvimento do estalinismo e do nacional-socialismo – e alguns aspetos da política interna soviética entre a queda de Berlim em 1945 e a morte de Estaline em 1953. Do ponto de vista de escrita histórica, ao corpo central da obra de Snyder faltam muitos aspetos de problematização dos acontecimentos, sendo a narração orientada quase exclusivamente para a descrição sic et simpliciter dos holocaustos que foram perpetrados nas regiões da Europa Oriental. Deste ponto de vista, os objetivos de síntese e descrição que o autor estabeleceu são cabalmente cumpridos através da análise minuciosa de um amplíssimo conjunto de fontes primárias e secundárias que exploram os testemunhos diretos dos massacres e obras de síntese sobre os principais acontecimentos daqueles anos. A capacidade de síntese de Snyder emerge da sua habilidade em criar um fio condutor entre política, economia, ideologia e imanência dos acontecimentos bélicos que contribuíram para a criação das «Terras sangrentas».
4 Como já foi referido, o problema principal na introdução e no corpo central da obra é a falta da problematização dos factos históricos. A escrita do autor segue os princípios da historiografia descritiva, adotando uma estrutura dos capítulos recorrente, resumível na tríade dos números – quantos mortos houve na fração temporal examinada –, descrição dos factos e apresentação dos testemunhos através das suas próprias palavras. A problematização dos acontecimentos, as razões dos eventos e o cruzamento com o devir histórico estão ausentes da maior parte da obra, embora se coloquem questões interessantes que, todavia, não foram aprofundadas: é o caso das ligações entre o tratamento dos judeus e dos prisoneiros de guerra soviéticos por parte das autoridades nacional-socialistas consoante a dicotomia necessidade de alimentos / necessidade de mão de obra; a avaliação das várias «soluções finais» previstas por Hitler e seus colaboradores perante a «ameaça judaica»; a ligação entre os massacres e os momentos de crise na União Soviética e na Alemanha nacional-socialista; o papel desempenhado pelos outros países beligerantes no que diz respeito aos massacres contra as populações civis e os judeus no período da aliança entre Alemanha e União Soviética, bem como nas fases finais da guerra.
5 A falta de problematização histórica no corpo central do livro virá a ser recuperada nas conclusões, provavelmente a parte mais fecunda de toda a obra. Aí o historiador americano, para além de um resumo das cifras de mortos no período analisado, tenta problematizar os acontecimentos e explicar mais em profundidade as razões que o levaram a escrever o livro. Entre os problemas historiográficos mais interessantes que o autor refere vale a pena citar a ideia dos massacres como resposta natural de ambas as ditaduras perante uma «falha», ou seja, um resultado não alcançado ou um desvio dos planos estabelecidos que, por causa da rigidez das ideologias, não podia ser pensado (unthinkability nas palavras de Snyder) e que, desta forma, era considerado como uma conspiração de alguém contra a ordem estabelecida e contra a tentativa de desenvolvimento destas sociedades. Para além desta «teoria dos massacres», Snyder propõe nas conclusões uma interessante comparação articulada entre os sistemas político-ideológicos nacional-socialista e comunista, referindo-se também aos estudos de Hannah Arendt e de Vasily Grossman. Segundo Snyder para reconhecer as diferenças entre os dois sistemas é necessário reconhecer os pontos em comum. Por fim, Snyder explica melhor os meios que os nazistas – sobretudo as Waffen-SS – usaram para perpetrar os massacres contra os judeus e os prisoneiros de guerra, especialmente entre 1941 e 1945, tentando assim quebrar um conhecimento aproximativo dos acontecimentos, dos meios e das razões que levaram aos massacres nos campos de concentração e nos locais da morte (killing sites) de milhões de pessoas, conhecimento esse que se encontra difundido na maioria do público não académico interessado pela história da II Guerra Mundial.
6 Provavelmente a perspetiva mais interessante do livro encontra-se nas últimas páginas das conclusões, onde se referem os objetivos mais profundos que levaram o autor a escrever a obra. O assunto sobre o qual o autor se interroga diz respeito ao uso dos números na narração histórica. O historiador americano expressa claramente e inteligentemente que os números, como no caso das vítimas dos massacres da II Guerra Mundial, servem essencialmente para sustentar uma política, uma ideologia ou uma propaganda direcionada para um objetivo claro e, por esta razão, é necessário ponderar muito o uso das cifras no trabalho historiográfico, particularmente no caso de acontecimentos históricos recentes. Essa utilização dos números ainda hoje exalta os ânimos da sociedade, como no caso da Shoah ou dos holocaustos da época de Estaline. O autor considera ainda que a tarefa do historiador é ligar os números à memória e não fornecer dados brutos que, implicitamente, podem ser usados por propagandistas para apoiarem as suas teses, tornando-se por isso factos políticos e já não elementos de análise histórica, como de facto já acontece, por exemplo, com os revisionistas da Shoah. O objetivo principal da obra de Snyder é, assim, criar ligações entre os números e as memórias de quem viveu aqueles momentos trágicos da história que não é só a história das Bloodlands mas também a história europeia e a história de cada indivíduo. Por esta razão, não se deveria pensar nos catorze milhões de mortos nas Bloodlands como um enorme número de mortos, porque os grandes números levam necessariamente ao anonimato; o objetivo de Snyder é pensar neste enorme número de mortos como catorze milhões vezes um, pois cada pessoa leva um fragmento singular de uma memória do passado que deve tornar-se história e consciência compartilhada. As palavras de Snyder, neste sentido, são emblemáticas: os regimes nazi e comunista tornaram as pessoas em números e é nossa tarefa, como humanistas, transformar novamente os números em pessoas, caso contrário Hitler e Estaline não modificaram somente o nosso mundo mas também a nossa humanidade1.
7 O objetivo há pouco descrito foi cumprido admiravelmente pelo historiador americano e justifica as amplas partes da sua obra dedicadas aos testemunhos diretos dos massacres perpetrados nas «Terras sangrentas». Pelo contrário, é o mesmo amplo uso de fontes diretas que contribui de forma significativa para a construção de uma narrativa que tem o claro objetivo de impressionar o leitor, de causar uma reação emotiva e suscitar comoção, quando não mesmo horror. Sendo a cadência do corpo central do livro muito descritiva, a construção da narrativa desempenha um papel fundamental nos equilíbrios da obra; é como se o autor tivesse tentado moldar a configuração dos vilões aos protagonistas da história, Hitler e Estaline, corroborando esta tentativa com as vozes das testemunhas, para que um leitor não especialista de história se sentisse familiarizado nas descrições, ou para que, pelo menos, estas coubessem bem na típica dicotomia «bem/mal», sempre muito apreciada pelo grande público. Os primeiros capítulos do livro, de facto, podem parecer uma obra de Robert Conquest2 sem que se vislumbre algum novo equacionar de problemas ou aprofundamento historiográfico. É opinião de quem escreve que não foi por acaso que esta obra, sem dúvida nenhuma interessante e bem escrita, não foi publicada por uma University Press americana, mas sim por uma editora comercial e se tornou um bestseller em quatro países. A construção narrativa de Snyder desvalorizou parcialmente uma obra otimamente estruturada do ponto de vista bibliográfico e que, apesar de tudo, propõe algumas sugestões e problemas historiográficos de claro interesse para a comunidade académica.
8 Retomando afirmações anteriores, provavelmente o problema principal da obra de Snyder é a falta de uma maior problematização dos eventos descritos e uma narrativa que resulta às vezes parcial. Contudo, estas características não devem desvalorizar a força da obra do historiador americano e o enorme trabalho de pesquisa, de avaliação das fontes documentais e a ampla bibliografia em que se alicerça a obra. Em particular, o objetivo que o autor propõe sobre a utilização dos números na narrativa histórica e a problematização do papel dos humanistas perante tragédias como a da Shoah, para além das descrições precisas e pormenorizadas dos factos que aconteceram, tornam Bloodlands uma obra de grande interesse sobre a história contemporânea da Europa Oriental.
Notas
1 Snyder, Timothy, Bloodlands: Europe between Hitler and Stalin, New York, Basis Books, 2010, p. 383.
2 Refiro-me aqui a Conquest, Robert, The Harvest of Sorrow: Soviet Collectivization and the Terror Fa (…)
Stefano Loi – Doutorando em História Moderna e Contemporânea e membro do CEHC, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. A sua área de pesquisa é a história militar dos séculos XIX e XX. E-mail: kazam82@gmail.com