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Nijinsky | Romola Nijinsky e Paul Claudel
Introdução
No mês de agosto de 1917, enquanto a Europa ardia em guerra, estavam no Rio de Janeiro – e conviveram por breve período – três figuras importantes da cultura: o poeta Paul Claudel, Ministro Plenipotenciário da França; o jovem Darius Milhaud, com 25 anos, seu secretário e adido da embaixada (1); e o genial bailarino russo/ucraniano Vaslav Nijinsky, com 28 anos, que vinha ao Rio pela segunda vez com os Balés Russos (Ballets Russes) de Serge de Diaghilev – empresário que, por sinal, nunca esteve na cidade em razão do seu terrível medo do mar.
Logo, a vida desses personagens iria mudar muito. Nijinsky, como se sabe, ficaria mentalmente doente, afastando-se dos palcos em 1919 após apresentação em Montevidéu, passando por internações em diversos sanatórios até a morte, em 1950. Ao piano, acompanhava-o Arthur Rubinstein – que também passara, antes, pelo Rio – nessa última apresentação. Milhaud se tornaria um compositor musical influente – integrante, nos anos 1920, do chamado Grupo dos Seis, com Poulenc, Honegger, Auric e outros – e, depois, professor do Conservatório de Paris. Sua principal composição orquestral, o balé sinfônico O boi no telhado (1920), apresenta ritmos e motivos relacionados ao samba, ao maxixe, ao tango brasileiro, decorrentes do contato que manteve, entre 1917 e 1918, com Donga e outros compositores populares. O Corta-jaca, por exemplo, de Chiquinha Gonzaga é facilmente identificável na peça. Leia Mais
Grandes questões da ciência – SWAIN (C)
SWAIN, Harriet (Org.). Grandes questões da ciência. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2010. Resenha de: CAMPOS, Paulo Tiago Cardoso. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 2, p. 148-156, maio/ago, 2013.
A obra organizada por Harriet Swain, aqui resenhada, conta com 20 capítulos que tratam de diferentes temas, cada um deles escrito por um autor e antecedido por uma introdução escrita por outro autor. Dentre os autores dos capítulos há alguns dignos de nota, como Martin Rees, Astrônomo Real, que escreve o capítulo sobre como começou o universo, e a neurocientista Susan Greenfield, da Universidade Oxford, considerada uma das mais importantes cientistas da atualidade; ela escreveu o capítulo sobre o que é o pensamento. Os capítulos são normalmente intitulados com perguntas. A maior parte dos autores é britânica, e alguns são norteamericanos.
Os temas cobertos pelo livro abrangem uma grande variedade de assuntos, e exibem tanto abordagem “positiva” (por exemplo, o capítulo O que é inteligência?) quanto “normativa” (como o capítulo “É certo interferir na natureza?”). O texto é escrito de forma acessível, num estilo quase jornalístico, sem perda do rigor das análises e do emprego dos termos adequados, mas compreensíveis. Leia Mais
Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos (1531-1800) – FRANÇA (HH)
FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos (1531-1800). Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, 356 p. Resenha de: GANDELMAN, Luciana. A cidade e o mar: o olhar dos viajantes sobre o Rio de Janeiro e os circuitos marítimos entre os séculos XVI e XVIII. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7, p.325-330, nov./dez. 2011.
Um soldado alemão rumando para a região do Rio da Prata a serviço da Coroa espanhola. Um piloto francês embarcado nos sonhos da França Antártica. Um capitão holandês de uma fragata corsária retornando de confrontos com portugueses no Golfo da Guiné. Dois irmãos galegos marinheiros em viagem à Terra do Fogo, a serviço da Coroa espanhola, comandando uma tripulação portuguesa. Um poeta e suposto religioso inglês vira-mundo que chega ao Rio de Janeiro na fragata do recém-nomeado governador português. Um marinheiro inglês que chega ao Rio de Janeiro em uma embarcação de comerciante londrino com 500 pipas de vinho. Um engenheiro francês vindo à América do Sul, a mando do rei da França, para estabelecer uma colônia-presídio no estreito de Magalhães. Um tipógrafo alemão a caminho de uma missão inglesa na Índia, carregado de 250 cópias do Evangelho de São Mateus em português. Um pastor alemão em rota para a Índia abordo de um navio inglês, repleto de adoentados e esfomeados, que ancora na Guanabara. Degredados seguindo para cumprirem suas penas na Oceania. Franceses e ingleses se aventurando na empreitada da circum-navegação. Essa é uma amostra da grande riqueza de trajetórias cujos testemunhos nos oferecem a cuidadosa pesquisa histórica e seleção de textos empreendida por Jean Marcel Carvalho França em sua antologia: Visões do Rio de Janeiro colonial.
A cidade que emerge desses testemunhos também é múltipla e em transformação. E isto torna-se bastante claro quando percorremos as descrições selecionadas pelo organizador da coletânea. Segundo o poeta Richard Flecknoe, escrevendo em 1649, A cidade antiga, como testemunham as ruínas das casas e igreja grande, fora construída sobre um morro. Contudo as exigências do comércio e do transporte de mercadorias fizeram com que ela fosse gradativamente transferida para a planície. Os edifícios são pouco elevados e as ruas, três ou quatro apenas, todas orientadas para o mar (FRANÇA 2008, p. 43).
Nas palavras do comandante inglês John Byron, escritas em 1764, por sua vez, podemos entrever a cidade enriquecida do período posterior ao auge do ouro e de seu estabelecimento como cabeça de governo e um dos portos predominantes sobre o Atlântico: O Rio de Janeiro está situado ao pé de várias montanhas […]. É dessas montanhas que, por meio de um aqueduto, vem a água que abastece a cidade. […] O palácio (do vice-.rei), além de ser uma suntuosa construção de pedra, é o único edifício da cidade que conta com janelas de vidro, pois as casas só dispõem de pequenas gelosias. […] As igrejas e os conventos locais são magníficos. […] As casas, quase todas de pedra e ornadas com grandes balcões, têm em geral três ou quatro andares (FRANÇA 2008, p. 148-149).
A cidade se modifica, portanto, não somente diante dos diferentes olhares que seus observadores lançam sobre ela, mas também em virtude das intensas transformações enfrentadas por este porto de crescente importância na América portuguesa ao longo de três séculos. Constante nas observações dos viajantes é a menção à existência de numerosa população de escravos e agregados familiares, fossem estes de origem africana ou nativos e mestiços. Igualmente predominantes são as observações acerca das manifestações religiosas e as descrições de igrejas e mosteiro, sendo essas observações previsíveis em um grupo de viajantes estrangeiros, muitos deles protestantes. Uma bibliografia bastante extensa, produzida não só por historiadores, estabeleceu e estabelece ainda um profícuo diálogo com a literatura de viagens, ainda que focada especialmente na dos viajantes do século XIX, e já discutiu as implicações e os desafios daqueles que buscam trabalhar com o olhar dos viajantes.1 Conforme referenciado pelo autor em seu texto de introdução à antologia, a obra apresenta 35 descrições da cidade do Rio de Janeiro elaboradas por viajantes de diversas procedências, cujas viagens respondiam igualmente aos mais variados propósitos, sendo a primeira datada de 1531 e a última de 1800.
Trata-se da seleção de trechos de livros, cartas e escritos que fazem algum tipo de referência ao Rio de Janeiro e seu entorno. Alguns destes trechos já haviam sido transcritos ou referenciados por historiadores e memorialistas, sem, no entanto, contar com um trabalho tão circunstanciado de contextualização e organização. Cada relato é precedido por um breve, porém bem elaborado, artigo de introdução onde são oferecidas notas biográficas do viajante em questão e explicações acerca da viagem na qual se insere o relato. Reside nesses textos explicativos uma parte da preciosidade do trabalho feito por Carvalho França e que possibilita ao leitor um aproveitamento dos testemunhos que não se limita à descrição da cidade do Rio de Janeiro, mas que oferece também, por exemplo, pistas acerca dos circuitos mercantis do período, da organização da navegação e da paulatina reestruturação dos impérios ultramarinos no período moderno.
A escolha das edições foi cuidadosa e deu preferência, como afirma o autor, sempre que possível, às primeiras edições ou edições consideradas mais completas e cuidadas das obras. Característica essa confere à antologia um caráter bastante útil, não somente para o leitor em geral, mas também para o público acadêmico. Houve por parte do autor um investimento e uma preocupação com a elaboração das versões para o português, uma vez que se trata na sua quase totalidade de textos publicados em língua estrangeira, havendo, como este reconhece na introdução, a modificação dos mesmos em nome da clareza da leitura. Isto significa que, se para o leitor em geral o texto ganha em facilidade de compreensão, para o especialista pode tornar necessário o cotejamento com os originais.
Organizados em ordem cronológica, os 35 testemunhos selecionados pelo autor podem ser divididos da seguinte maneira: 1) três são anteriores à União Ibérica e estão concentrados nas décadas de 1530-1550; 2) dois devem ser situados no período do domínio filipino; 3) dois são marcados pelo contexto dos conflitos da chamada Guerra de Restauração, entre 1640 e 1668; 4) um, pertencente a François Froger, diz respeito justamente à década das primeiras descobertas na região mineradora e aponta notícias, inclusive, sobre a região de São Paulo; 5) dois relatos são das primeiras décadas do século XVIII, sendo um deles testemunha da invasão francesa liderada pelo capitão Duguay-Trouin; 6) cinco testemunhos encerram a primeira década do século XVIII, incluindo os cruciais anos do governo de Gomes Freire de Andrade, 1º Conde de Bobadela, que se encerraria com a transformação da cidade em cabeça do governo geral do Estado do Brasil, já no governo de Antônio Álvares da Cunha; 7) vinte dos relatos dizem respeito à segunda metade do século XVIII e testemunham o definitivo adensamento da presença de reinos europeus, como a Inglaterra, na Ásia e na Oceania.
O espaço da resenha seria pequeno para tentarmos mapear devidamente os contextos aos quais pertencem todos esses depoimentos e suas respectivas implicações para esses mesmos relatos. Deve-se destacar, entretanto, a amplitude cronológica e histórica dos testemunhos reunidos.
Publicado pela primeira vez em 1999, e contando presentemente com a terceira edição de 2008,2 a antologia proposta por Jean Marcel Carvalho França tem por objetivo tirar as descrições do Rio de Janeiro da obscuridade e do desconhecimento. Os testemunhos selecionados, entretanto, como argumenta o próprio organizador, não se limitam a descrições acerca da cidade e seu cotidiano, muitas vezes nos dão indicações acerca da visão que esses europeus registraram da natureza circundante e do próprio continente americano de maneira mais ampla. Além disso, o leitor passa a conhecer bastante as características do porto da cidade e suas condições de navegação. Pode-se dizer que a obra cumpre seus objetivos e justifica, desta maneira, as reedições disponíveis, bem como as que futuramente sejam realizadas com o intuito de garantir aos leitores e pesquisadores acesso a esse rico acervo de testemunhos.
Para concluir, cabem alguns breves comentários suscitados pela própria fertilidade da antologia reunida na obra resenhada. França nos apresenta mais do que a riqueza das descrições da cidade do Rio de Janeiro e seu entorno, revela-nos igualmente um pouco das mudanças sofridas no papel da América dentro do Império colonial português e mesmo a transformação dos circuitos comerciais, da navegação e do papel desempenhado por outras nações europeias no desenvolvimento dos demais circuitos coloniais do período. Esse verdadeiro mosaico contradiz, de certa maneira, as próprias alegações de França quando este, na introdução, ressalta a política “ciumenta” da Coroa portuguesa e o consequente isolamento de sua colônia americana em relação a seus visitantes estrangeiros. Mesmo quando os testemunhos nos deixam entrever as cautelas e receios de governadores e representantes régios ou colonos em comercializar e permitir contato com navegadores e embarcação de súditos de outros 2 A antologia de França foi desdobrada ainda em outra importante seleção de relatos de viajantes, ver: FRANÇA 2000.
monarcas, a própria riqueza dos depoimentos e das circunstâncias que os envolvem nos permite pensar mais em conexões do que em isolamento.
Conexões, circulação, alianças, confrontos e compromissos, às vezes os mais improváveis, fizeram parte desse universo, como procuramos destacar no início deste texto. Entre o “ciúme mercantilista” e os entrecruzamentos de uma aventura ultramarina que se constrói por meio de diferentes níveis de interdependência e que se espalha concomitantemente nas mais diversas direções, encontramos, para retomarmos uma imagem de A. J. R. Russell-Wood, um mundo em movimento (RUSSELL-WOOD 2006). São justamente esses movimentos conectados, em alusão ao conceito de Sanjay Subrahmanyam, que aparecem belamente representados em Visões do Rio de Janeiro colonial (SUBRAHMANYAM 1999).
Referências
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. 3 vols. São Paulo: Metalivros, 1994.
FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Outras visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos (1582-1808). Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
GALVÃO, Cristina Carrijo. A escravidão compartilhada: os relatos de viajantes e os intérpretes da sociedade brasileira. Dissertação de mestrado. Campinas: IFCH/ UNICAMP, 2001.
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
LEITE, Miriam L. Moreira. Livros de viagem (1803-1900). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
LISBOA, Karen M. A nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Hucitec, 1997.
MARTINS, Luciana de Lima O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Um mundo em movimento. Lisboa: DIFEL, 2006.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SELA, Eneida Mercadante. Desvendando figurinhas: um olhar histórico para as aquarelas de Guillobel. Dissertação de mestrado. Campinas: IFCH/ UNICAMP, 2001.
______________________. Modos de ser, modos de ver: viajantes europeus e escravos africanos no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: Ed. da UNICAMP, 2008.
SLENES, Robert W. A Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected histories: notes towards a reconfiguration of Early Modern Eurasia. In: LIEBERMAN, Victor (ed.). Beyond binary histories: re-imagining Eurasia to c. 1830. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1999, p. 289-316.
VIANA, Larissa Moreira. As dimensões da cor: um estudo do olhar norte americano sobre as relações interétnicas, Rio de Janeiro, século XIX. Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 1998.
Notas
1 Gostaria de citar entre outros: BELLUZZO 1994; GALVÃO 2001; KARASCH 2000; LEITE 1997; LISBOA 1997; MARTINS 2001; SCHWARCZ 1993; SELA 2001; SELA 2008; SLENES, 1999; VIANA 1998.
Luciana Gandelman – Professora adjunta Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro lucianagandelman@yahoo.com.br Km 07 da BR 465 23890-000 – Seropédica – RJ Brasil Palavras-chave América portuguesa; Colônia; Relatos de viajantes.
Sertanejos que eu conheci | Francisco José Maria Audrin
Resenhista
Maria de Fátima Oliveira – Mestranda do Programa de Mestrado em História das Sociedades Agrárias da Universidade Federal de Goiás.
Referências desta Resenha
AUDRIN, Francisco José Maria. Sertanejos que eu conheci. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963. Coleção Documentos Brasileiros. Resenha de: OLIVEIRA, Maria de Fátima. História Revista. Goiânia, v.1, n.2, p. 139-141, jul./dez.1996. Acesso apenas pelo link original [DR]
O teatro dos vícios – ARAUJO (VH)
ARAUJO, Emanuel. O teatro dos vícios. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1993. Resenha de: MAGALHÃES, Beatriz Ricardina de. Varia História, Belo Horizonte, v.12, n.15, p. 200-202, mar., 1996.
Resenha discutida durante o seminário Estudos Bibliográficos: Subsidio para a História Social da Comarca do Rio das Velhas – 1994 – de 03 a 07 de Janeiro. Grupo “Século XVIII mineiro”- Centro de Estudos Mineiros – Fafich – UFMG.
“Todavia os donos do poder fortaleceram-se com o tempo, os burocratas públicos ficaram ainda mais burocratas, o judiciário permaneceu venal e o povo, esse, perpetuou-se sob eternos males a ele impostos e mazelas por ele próprio criadas”. (P27).
Segundo se lê na seção “Ideias”(FSP, 24/12/93, p.3), 0 teatro do vícios está classificado entre os oito melhores livros de História publicados em 1993.Outra referência da mídia a dar destaque a essa obra é a resenha de Luís Felipe de Alencastro (FSP, 06/06/93), que lhe faz uma justa apreciação.
Ao meu trabalho, em particular, a obra vem enriquecer não só com elementos referentes a grande parte do território nos três primeiros séculos da história do Brasil, mas também com a divulgação de uma variada bibliografia sobre o assunto, pouco difundida, e, portanto, pouco consultada. Embora ARAUJO use como fonte “o universo documental publicado” (p.14), deixando de lado as fontes primarias. Demonstra permanente recorrência aos processos inquisitoriais, as Ordenações Filipinas e as Atas das Câmaras, entre outros documentos. Contudo, exagera na citação de relator de viajantes estrangeiros —sobretudo ingleses —que percorreram o País, particularmente no século XIX.
De início, o autor expõe seus objetivos: ao convocar os mortos “a falarem”, pretende comprovar a imutabilidade da estrutura do poder, apesar das mudanças dos regimes políticos, analisando a forma como o Estado controla a população:”…levou-se a extremos o sentimento do rei como bom pastor que vela por todo o rebanho, dissimulando habilmente sempre, o que encobre tal noção: o rebanho…” (p. 23). Essa passagem lembra, com muita propriedade, um texto recente de Renato Janine Ribeiro, em que comenta a má fé da última fala do ex-Presidente Collor, ao destacar “dois temas: o dos órfãos do poder e o do repudio as paixões e interesses políticos”, confirmando sua demagogia. “Falar… em ‘Órfãos do poder’ e pretender assim que fosse ele o pai que redimiria esses desvalidos, é a prova cabal do caráter autoritário de um projeto que negava a própria cidadania, que reduzia os brasileiros a tutelados. ” 0 articulista termina seu texto lembrando que o apelo as ultrapassadas formas de populismo —”a referência ao pai e a sua privação…” não passa de “uma parodia pobre de nosso passado da qual esperamos ter visto agora o último ato” (FSP,27/12/93). Nesse caso, estariam os prognósticos de Araújo sendo confirmados.
Na obra em questão, o autor incita o brasileiro a recuperar sua identidade, a repensar historicamente o seu próprio caráter —a buscar, no comportamento dos colonizados, a tecitura da sociedade brasileira e seus antigos mitos. Para isso, privilegia, como “exame prioritário e norteador, (a análise) do comportamento desviante em amplo sentido”(p.26).
Os quatro capítulos do livro são bastante sugestivos. No primeiro, fica logo delimitado o cenário, o local onde os atores cumprem seus papeis: a vila, a cidade. Tudo indica que os primeiros povoados foram improvisados em sítios inadequados, com muitas ladeiras e tragados irregulares, compondo-se de casas mal alinhadas e ruas estreitas, escuras e mal cheirosas. Desde os primeiros momentos, o autor insiste em considerar a pobreza das ralas populações das vilas, em 1585, 1610 e 1630, comparando-a a uma população rural predominante, citando, particularmente, a região Nordeste.
Se o mundo rural prevalece, nos dois primeiros séculos, a partir do sec. XVIII, com o desenvolvimento da economia mineira, algumas transformações profundas começam a se fazer notar nas vilas coloniais, que se formam rapidamente. Nesse momenta, as Câmaras atuam de maneira efetiva1. Quanto as edificações particulares, parece que o autor fez uma leitura rápida da tese de Sylvio de Vasconcelos2. Na verdade, as dificuldades com relação ao urbanismo brasileiro dizem mais respeito a herança portuguesa do que a desordem e/ou provisoriedade da ocupação, a pobreza, a falta de higiene e a indolência do brasileiro. Ainda no mesmo capitulo, ele trata da alimentação e da moradia.
É no segundo capitulo —A sociedade da aparência —que ARAUJO começa a delinear os tragos psicológicos predominantes do brasileiro: preguiçoso, presunçoso, amante dos prazeres, etc. Nessa conceituação, prevalece sempre a opinião de estrangeiros visitantes do século XIX. Até que ponto se pode endossar a fata de autores originários de culturas tão diferentes e de países como a Inglaterra, que criou e massacrou, durante séculos, uma massa enorme de pequenos camponeses, despojando-os da terra, transformando-os num exército de mendigos “hospedes” das work houses ou de miseráveis que vão povoar Londres nos séculos XVII e XVIII, tornando-se permanente ameaça social GUTTON 3 esclarece que, na verdade, nas sociedades europeias da época, a presença de pobres era inevitável. Contudo, mesmo na Europa, o estudo desse estrato da população e extremamente difícil: os registros a respeito são precários: seus elementos vem, sobretudo, de algumas instituições assistenciais particulares ou públicas. Assim, que tipo de individuo viria para o Brasil Colônia.
Continuando, ARAUJO informa que, no Brasil, nessa época, o trabalho se torna indicador de condições subalternas, desonrosas, portanto. Os ofícios mecânicos eram desempenhados por mestiços, negros ou brancos pobres. Explica-se esse desprestigio do trabalho, e a consequente preguiça do brasileiro, pela permanência do sistema escravista.
Entretanto, para curtir a preguiça, urgia comprar escravos. De onde vinha o capital necessário Um escravo media, em Minas Gerais, em meados do sec. XVIII, custava de 100.000,000 (cem mil reis) a 120.000,000 (cento e vinte mil reis), o que correspondia, em média, ao preço de três casas urbanas, no mesmo período. Curioso e que L.S. Vilhena, um “modesto professor de Grego” (p.87) possuía oito escravos. E dele a lapidar frase que caracteriza o Brasil como a “moradia da pobreza, o berço da preguiça e o teatro dos vícios”.
0 ócio, de acordo com alguns depoimentos referidos, era prerrogativa dos citadinos burocratas, profissionais liberais, estalajadeiros, padeiros, taverneiros, açougueiros, barbeiros, costureiras e outros. Essa é uma imagem que necessita verificado mais acurada, por meio de análise de outras fontes que não as opinativas e/ou circunstanciais.
Por outro lado, ser aceito e reconhecido pela sociedade era uma condição fundamental para o colono. Portanto, a aparência física contava muito. Um traje de boa qualidade, ataviado com detalhes em ouro e prata e altos penteados ou perucas enfeitadas, para aparecer em público, contrastavam com a simplicidade das vestes caseiras e, em especial, com a sobriedade da decoração interior das casas. Parece, no entanto, que eram hábitos apenas transplantados de Portugal. Tudo indica que a rua apresentava muitos atrativos, como procissões, cavalhadas, touradas, carnaval, danças, teatro. Quanto a essa questão (p.145), chocam-se as opiniões de dois viajantes, Lindley e Maria Graham, a respeito do teatro de Salvador. 0 que torna bem Clara a precariedade dos depoimentos opinativos.
No terceiro capítulo — A Colônia pecadora— ARAUJO empenha-se em detalhar a conduta desviante do brasileiro, privilegiando sua vida privada, em que os comportamentos da mulher e do padre se tornam paradigmáticos.
Como se pode deduzir, trata-se de uma obra que merece uma leitura cuidadosa. 0 autor transita bem pela moderna historiografia brasileira. Sua tentativa de incentivar a fala dos mortos deve prosseguir.
No entanto, ficam, ainda, algumas questões: Como a crítica recebeu a obra Como são trabalhados, nela, as categorias pobreza, mendicância, vadiagem e prostituição As dicotomias público X privado e colono X colonizado são bem definidas ao longo do texto E outras mais…
Notas
1.MAGALHAES, Beatriz Ricardina. Estrutura e funcionamento do Senado e da Câmara em Vila Rica (1740- 1750). In: Anais da Xl Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (SBPH), são Paulo, 1991.p..133-136. Esse texto foi elaborado para fazer entender a dinâmica da administração municipal de Vila Rica.
2.VASCONCELOS, Sylvio. Vila Rica, São Paulo.: Editora Perspectiva,1977.
3.GUTTON, Jean Pierre. La societe et les pauvres en Europe (XVI-XVII).Paris: PUF,1974.
Beatriz Ricardina de Magalhães.
[DR]