Machado de Assis – Antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção – GRANJA (MAEL)

GRANJA, Lúcia. Machado de Assis – Antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2018. 111 pp. Resenha de: SALA, Thiago Mio. Machado em meio à civilização do jornal. Machado Assis Linha v.12 n.26 São Paulo Jan./Apr. 2019.

Em Machado de Assis – Antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção, Lúcia Granja retoma alguns de seus trabalhos relativos à produção cronística e ficcional do célebre autor de Quincas Borba e à história literária do século XIX, mas, diferentemente do que se poderia pensar num primeiro momento, não se trata da simples compilação de artigos, capítulos de livros ou trechos de teses. A obra consiste, na verdade, no reexame da produção recente da distinta pesquisadora à luz de novas ideias, reflexões e, sobretudo, de um pressuposto que confere ao livro em questão um sabor original quando se consideram as relações entre letras e comunicação: o papel do suporte editorial na produção do sentido. Em conformidade com tal perspectiva, Lúcia Granja procura examinar o fazer jornalístico e literário de Machado tendo em vista, para além da dimensão de artefato verbal do texto, a forma midiática na qual o escritor se fixou e se manteve durante grande parte de sua trajetória, isto é, o jornal.

Matriz importante para tal proposta analítica são os trabalhos do historiador francês Roger Chartier, com destaque para os estudos por ele conduzidos em torno do conceito de “mediação editorial”. Segundo Chartier (2002, p. 61-62), os escritos não existiriam “fora dos suportes materiais por meio dos quais foram veiculados, pois a construção de seus significados estaria diretamente ligada às formas que permitiriam sua leitura, audição ou visão”. Em outras palavras, para além do aparente truísmo, aquilo que costuma ser tratado como exterior e apartado da história do livro e da literatura, isto é, a análise das condições técnicas e materiais de produção ou de difusão dos objetos impressos e a dos conteúdos que eles transmitem (CHARTIER, 2002, p. 62), ganha importância quando se tem em vista, em perspectiva ampliada, os efeitos de sentido produzidos por um texto. Seguindo os passos de Chartier, mas caminhando por conta própria e com desenvoltura pela produção de Machado e por nosso jornalismo oitocentista, Granja se detém no exame das formas particulares e sucessivas de transmissão dos textos do autor em oposição a uma leitura abstrata, que desconsidera a poética do suporte periódico.

Todavia, para além de uma compreensão reduzida do papel da imprensa diária ou de uma descrição instrumental do espaço ocupado pelo texto machadiano nas diferentes folhas, Lúcia procura entender o suporte jornalístico enquanto peça-chave de um sistema midiático e civilizacional que floresce no século XIX. Para tanto, vale-se, em chave crítica, da produção de uma plêiade de autores franceses dedicados ao estudo do periódico do Oitocentos em conformidade com tal enquadramento: Dominique Kalifa, Marie-Ève Thérenty, Allain Vaillant e Marie-Françoise Melmoux-Montaubin, entre outros. Em linhas gerais, tais pesquisadores procuram examinar o intercâmbio entre formas literárias e jornalísticas, bem como o novo regime de comunicação instituído: se o jornal, por um lado, emprestava à literatura atributos como o ritmo da vida moderna, coletivização da escrita (numa única página de jornal passam a conviver diferentes rubricas com espaços delimitados), remissões internas e externas, fragmentação, periodicidade, ficção da atualidade (assuntos na ordem do dia passam a oferecer temas para a produção artística) etc., por outro, recebia dela esquemas narrativos e retóricos que permitiam seu desenvolvimento.

Mais especificamente, observa-se que o livro se divide em apenas duas partes. Na primeira, Granja trata, sobretudo, das características plásticas e estruturais dos rodapés dos jornais no século XIX, promovendo o devido contraponto entre Brasil e França. Ao abordar a crônica machadiana e, em chave comparatista, a produção folhetinesca do escritor francês Théophile Gautier, a pesquisadora examina não apenas a textualidade das realizações de ambos os autores, mas a materialidade destas, ou seja, o fato de elas terem sido publicadas em suportes editoriais e em enquadramentos históricos específicos. Assim, sem prescindir da análise intrínseca (linguística e literária) dos escritos de Machado e Gautier, também ganha destaque, na pena da pesquisadora, o estudo dos significados a eles agregados no processo de sua transmissão e difusão. Além disso, ela ressalta como os escritores-jornalistas em questão, enquanto artistas dotados de consciência tipográfica e concepção metarreflexiva do texto, integraram a lógica da materialidade do jornal na própria construção de suas obras.

Estabelecidas tais bases, a segunda parte do livro dedica-se a uma análise mais vertical de um corpus reduzido, com destaque para o exame de um conto, uma crônica e aspectos de um romance. Trata-se, mais especificamente, de “Conto alexandrino” (publicado de início em 13 de maio de 1883, na Gazeta de Notícias, e, um ano depois, recolhido em Histórias sem data); crônica de 7 de julho de 1878 (estampada na série “Notas semanais” do jornal O Cruzeiro, na qual ganha atenção o caso bizarro de um homem que teria expelido um feto natimorto); e Memórias póstumas de Brás Cubas. Em chave metonímica, tal conjunto cuidadosamente selecionado permite divisar com mais clareza o modo como “as revoluções ideológicas e reconfigurações sociais operadas pelo jornal em nível mundial teriam resultado em transformações estéticas para um escritor carioca daquele século, afastado dez mil quilômetros da ‘capital do século XIX’, mas completamente inserido naquela civilização do jornal e do impresso” (GRANJA, 2018, p. 15).

De acordo com tal perspectiva, que toma as folhas periódicas não apenas como espelhos do mundo exterior, mas como espécies de substitutos dele, Lúcia procura entender os cruzamentos entre realidade (recriada pelo imaginário jornalístico) e ficção na prosa machadiana. Assim, os movimentos trepidantes da modernidade espacializados nas páginas dos jornais se tornam motivos da própria produção literária de Machado. Nesse processo, ao recuperar a divisão e a disposição da primeira versão de Memórias póstumas de Brás Cubas publicada em periódico, a autora revela a forma por meio da qual o escritor desconstrói os modos de leitura ligados ao romance-folhetim. Prosseguindo na análise da correspondência entre os efeitos produzidos pelo referido romance em jornal e no livro, Granja (2018, p. 99) caracteriza a novidade literária da narrativa concebida por um defunto autor como “uma transposição de uma manobra retórica da crônica jornalística e da própria poética da escrita dos jornais”, elevando o jornal a protagonista da originalidade e do impacto da referida obra que ganhará perenidade no suporte livresco.

Para a construção de tal percurso argumentativo em torno do papel do suporte e do fazer jornalístico-literário de Machado, Granja se vale não só de seu trabalho como professora e pesquisadora, mas também como editora. Em parceria, respectivamente, com Jefferson Cano e com John Gledson, ela esteve à frente da edição anotada, em livro, das séries cronísticas Comentários da semana e Notas semanais, ambos os volumes publicados pela editora da Unicamp em 2008. Tais experiências lhe possibilitaram o contato íntimo com o texto de Machado ambientado em seu suporte primeiro, bem como lhe conferiram a percepção in loco dos gêneros textuais nos quais o escritor investia. Desse modo, pôde articular as relações existentes entre crônicas, contos e romances com a materialidade das páginas onde tais produções foram originalmente estampadas.

A ênfase no particular permite que Granja lance um novo olhar sobre as respostas que a obra literária de Machado de Assis propõe a questões estéticas e contextuais do tempo em que circulou quer em periódico, quer, posteriormente, em livro. Nesse sentido, sem questionar o talento individual do artista, a pesquisadora interpreta a singularidade dele de acordo com as demandas da “civilização do jornal” (KALIFA et al, 2011, p. 7-21). Segundo tal perspectiva, portanto, o autor de Dom Casmurro passa a ser encarado, em sentido mais amplo, como um “escritor-jornalista” (MELMOUX-MONTAUBIN, 2003), isto é, como um intelectual e artista de seu tempo que não apenas se revelava consciente do lugar da imprensa enquanto universo textual responsável pela ampla e contínua difusão de conteúdos, mas que também se valeu das formas forjadas nesse novo e pulsante sistema de escrita para conferir à sua literatura o ritmo da vida moderna.

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Por fim, em consonância com a orientação seguida por Lúcia Granja a respeito da importância dos diferentes suportes e das dinâmicas particulares de produção e circulação dos escritos estampados nestes, convém destacar que o livro da autora, em seu formato eletrônico e-pub, pode ser baixado gratuitamente no site da editora da Unesp (disponível em <http://editoraunesp.com.br/catalogo/9788595462816,machado-de-assis-antes-do-livro-o-jornal>). Todavia, para os desejosos em ter o livro em mãos e efetuar uma leitura mais detida dele, é ainda possível, no mesmo endereço, encomendar a impressão da obra sob demanda. Se o novo procura se impor, a materialidade, a verticalidade e a contiguidade do impresso tradicional felizmente, neste caso, também estão ao alcance dos leitores.

Referências

CHARTIER, Roger. A mediação editorial. In: ______. Os desafios da escrita. São Paulo: Editora Unesp, 2002. [ Links ]

GRANJA, Lúcia. Machado de Assis – Antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2018. [ Links ]

KALIFA, Dominique; RÉGNIER, Philippe; THÉRENTY, Marie-Ève; VAILLANT, Alain. La civilisation du journal: une histoire de la presse française au XIXe siècle. Paris: Nouveau Monde, 2011. [ Links ]

MELMOUX-MONTAUBIN, Marie-Françoise. L’écrivain-journaliste au XIXe siècle: un mutant des lettres. Saint-Étienne: Éditions des Cahiers Intempestifs, 2003 (Collection Lieux Littéraires 6). [ Links ]

Thiago Mio Salla – É doutor em ciências da comunicação e em letras pela Universidade de São Paulo. Enquanto docente e pesquisador da Escola de Comunicações e Artes da USP e do Programa de Pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH/USP, dedica-se às áreas de Literatura Brasileira, Teorias e Práticas da Leitura e Editoração. E-mail: thiagosalla@usp.br.