Reflexões sobre a escrita e o sentido da História na Muqaddimah de Ibn Khaldun (1332-1406) | Elaine Cristina Senko

Reflexões sobre a escrita e o sentido da História na Muqaddimah de Ibn Khaldun, publicado em 2012 pela Mestra em História, Elaine Cristina Senko, nos oferece a análise do papel do historiador e o conceito de História na civilização islâmica do século XIV por parte de Ibn Khaldun (1332-1406), historiador islâmico que procurou dar um sentido específico à historiografia árabe medieval. Para tanto, estabeleceu um método rigoroso de estudo quando escreveu sua obra prima, Muqaddimah, composta a partir da crítica aos documentos e às narrativas árabes, de forma a aproximar-se cada vez mais de uma “verdade” objetivando compreender as vicissitudes de sua época.

Tal assunto mostra-se intrigante e pertinente, uma vez que, como a própria autora salienta na Introdução da obra, há poucos estudos atualizados sobre o historiador muçulmano e, além disso, através da investigação da metodologia histórica por ele formulada, é possível adentrar e aprofundar os conhecimentos da sociedade islâmica medieval de forma sistemática, a fim de desconstruir a imagem sensacionalista e errônea que, por muitas vezes, é transmitida sobre o Oriente pelo Ocidente.

Revelar outra percepção para a compreensão do mundo árabe e islâmico medieval é, pois, um dos objetivos do livro que também é orientado através do questionamento sobre o que representava a escrita de uma obra desse mote no contexto de Ibn Khaldun. Para tanto, a obra divide-se em três capítulos, nos quais a autora discorre sobre a tradição historiográfica islâmica; sobre a escrita propriamente dita de Ibn Khaldun e sua concepção historiográfica, finalizando com a relação entre a metodologia do historiador islâmico e a sua prática na sociedade do seu tempo.

O primeiro capítulo, Sobre a tradição historiográfica islâmica, apresenta distinções na forma de escrita da História na civilização islâmica. Na primeira, pertencente à era formativa dessa civilização, predominava a história oral que foi se transmutando em escrita, na era clássica, já no século X, acompanhando a organização dos califados e de uma necessidade propedêutica, ou seja, guardar as palavras do Alcorão. Além disso, nesse período, como a autora aponta, há uma inter-relação de gêneros, sobretudo: a biografia, a genealogia e crônica que, contudo, dividiam espaço com outros saberes como a geografia, as escolas jurídicas, filosóficas e a literatura.

Dessa forma, a autora nos possibilita a averiguação da riqueza cultural da civilização islâmica, confirmada não só pela variedade de conhecimentos, mas também pelo grande número de estudiosos que são enumerados, tais como os historiadores Al-Maqrizi, discípulo de Ibn Khaldun, que compreende a História como a escrita da verdade, e Al-Furat, que busca compreender o comportamento político do seu tempo através do conhecimento do passado.

O segundo capítulo, A escrita e o sentido da História na Muqaddimah de Ibn Khaldun, antes de mais nada, explora as influências que o historiador poderia ter recebido e que teria contribuído para a sua forma de escrita e também para a sua compreensão da História. Tal influência diz respeito ao itinerário do saber entre o mundo clássico e o mundo árabe, de forma que é possível atestar o diálogo, em termos de proximidade, influência e analogia, entre a metodologia histórica clássica e a de Ibn Khaldun. Tal simbiose é fruto, como aponta a autora, da translatio studiorum, movimento erudito que proporcionou o afluxo e recepção dos saberes da Grécia, de Bizâncio, da Pérsia e da Arábia, influenciando tanto a cultura ocidental, quanto a oriental, de modo que, a presença do pensamento clássico nos escritos de Khaldun teria sentido. Assim, a autora passa a investigar na escrita do historiador islâmico quais elementos da historiografia clássica estão presentes, como a concepção da História como a investigação das causas e narrativa do que realmente aconteceu, ideia também defendida por Tucídides e Políbio.

No que diz respeito à relação entre História e verdade, Khaldun, inclusive, faz severas críticas à fabulação e aos fatos com pouca autoridade, isto é, fatos que, se examinados com a devida crítica, não condizem com a verdade. A partir disso, ele critica alguns historiadores islâmicos que não fazem tal distinção e transmitem informações que podem ser consideradas fantasiosas como é o caso das cifras exageradas quando se faz o relato de batalhas ou do número de descendentes de uma dinastia.

O exame minucioso das informações, utilizando-se da crítica, da lógica e do conhecimento da natureza é, portanto, um dos princípios que regem a escrita da História na visão de Khaldun, que também defende que o historiador deveria ter um conhecimento político, geográfico e militar da região estudada para poder se certificar que o que está sendo relatado é verdadeiro.

A autora observa, ainda, que para Khaldun, a História tem um objetivo prático, ligado ao poder: a análise das ações do passado faria com que o historiador ensinasse aos homens de poder a melhor forma de governar. Esse tema é abordado no terceiro capítulo, Uma metodologia da História que se aplique ao estudo e ao entendimento da sociedade, no qual a autora aborda a racionalização do conhecimento do estudo da sociedade no tempo por Khaldun, a partir da qual ele elabora estágios de desenvolvimento da sociabilidade humana e elenca os elementos necessários para tal.

Nesse contexto, temos o pensamento de Khaldun atrelado ao de civilização (umran), o que nos permite perceber que o historiador islâmico parte de uma questão do seu próprio momento em busca de uma compreensão que só se realiza na volta ao passado. Ibn Khaldun vivenciava a desestruturação do poder muçulmano em seus territórios e formulou uma inovadora metodologia historiográfica a partir da necessidade de compreensão da realidade social na qual estava inserido. Por isso sua concepção da História é prática, pois o historiador não pode se eximir do seu tempo. E foi o que Khaldun fez com seu trabalho. Além da formulação de uma teoria da História, também destacou, legitimou e fortaleceu o papel do erudito, a figura do historiador na sociedade, como o responsável por orientar os homens de poder, como ele mesmo realizou.

Assim, o livro de Elaine Cristina Senko, sobre as reflexões na escrita da História deste emérito erudito muçulmano vem com o bom propósito, para o público em geral, de criticar uma noção atual simplista das questões entre Oriente e Ocidente, sobretudo, após os acontecimentos do 11 de setembro de 2001. Critica o medo ao muçulmano e propõe uma visão mais global sobre um tema complexo que envolve força militar, política, religião, cultura e história.

Num segundo momento, para o ofício do historiador, o livro traz a maior contribuição e reflexão, para além da demolição dos preconceitos de hoje. O que parece essencial é a exploração do tema escolhido para demonstrar o outro lado da questão da ocupação da Península Ibérica, do Mediterrâneo, do Magreb (Norte da África) pelos muçulmanos no final do século XIV.

Descobrimos que por meio dos escalonamentos, abordados no terceiro capítulo, que Ibn Khaldun indicava os níveis de desenvolvimento que as sociedades podiam percorrer, um “padrão de movimentos”, até a falência destas que o próprio já havia presenciado. A escolha deste universo demonstra a coerência com a proposta inicial da autora de compreender o “outro” por meio da história da sua civilização, do olhar pela lente de um dos seus mais ávidos estudiosos. E ainda, é importante atentar que explorar um teórico da História que se aproxima tanto da Filosofia clássica herdada dos muçulmanos (desde o século IX, a partir das escolas de tradutores) para elaborar sua historiografia é colocar novamente a questão sobre o que é ser um historiador em nossas mentes. Da mesma forma, renovar a historiografia hoje, envolve ultrapassar limites disciplinares e buscar erudição para que se possa recontar histórias (mas não sem método) como a autora faz ao apresentar a renovação da metodologia que Ibn Khaldun propôs, a partir dos elementos variados, mesclando a Filosofia de Aristóteles, de Tucídides e a história oral e as narrativas islâmicas.

A exemplo disto, a escolha de uma destas narrativas existentes no livro, Harun AlRashid: o esplendor de Bagdá permite uma referência cultural diferenciada do contexto de Ibn Khaldun. Esta foi uma escolha feliz da autora, pois é uma história conhecida no Ocidente, que aproxima o leitor do contexto histórico árido, pouco familiar, mas que permite observar o que “também é uma história” naquele contexto, possibilitando a percepção que a História pode ser vista em sentidos variados.

E, por fim, não podemos deixar de observar que estes escritos levam o leitor da área a perceber a importância de o historiador estar aberto à crítica e evitar ao máximo a influência dos poderosos na escrita da História, não devendo depender do poder político ideológico para escrevê-la. Neste caminho, portanto, entrevemos a necessidade de ver além dos preconceitos – é o que defende Ibn Khaldun -, mas é o que defende também a autora, quando cita os nomes dos autores especialistas sobre o Oriente, como o de Uma História dos Povos Árabes3 , que publicaram seus escritos críticos sobre o modo como o Oriente era visto no século XX, críticos que como Khaldun, esclareceram comportamentos e preconceitos.

Aqui é clara a defesa que a autora propõe da integridade do ofício do historiador pela escolha do objeto e pela forma de abordagem, e pelo respeito com o qual trata o seu objeto de estudo.

Notas

2 Graduada em História pela Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail para contato: belkiss.drabik@hotmail.com

3 HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Referências

HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

SENKO, Elaine Cristina. Reflexões sobre a escrita e o sentido da História na Muqaddimah de Ibn Khaldun (1332-1406). São Paulo: Ixtlan, 2012.

Ana Luiza Mendes – Doutoranda em História pela Universidade Federal do Paraná. E-mail: ana.luiza@ufpr.br

Bel Drabik – Graduada em História pela Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail: belkiss.drabik@hotmail.com


SENKO, Elaine Cristina. Reflexões sobre a escrita e o sentido da História na Muqaddimah de Ibn Khaldun (1332-1406). São Paulo: Ixtlan, 2012. Resenha de: MENDES, Ana Luiza; DRABIK, Bel. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.3, n.1, p. 303-306, 2014. Acessar publicação original [DR]

O Livro de Anaximandro. O mais antigo tratado geográfico conhecido – HEIDEL (RA)

HEIDEL, William A. O Livro de Anaximandro. O mais antigo tratado geográfico conhecido. Tradução, apresentação e apêndices de Katsuko Koike; 1ª Ed. Mogi Mirim/SP: Ixtlan, 2011.Resenha de: CORNELLI, Gabriele. Revista Archai, Brasília, n.8, p.143-144, jan., 2012.

A  tradução para o português do artigo de  William Heidel,  Anaximander’s Book, the Earliest  Known Geographical Treatise  (1921) representa  uma contribuição de interesse para o estudo dos  Pré-socráticos. Apesar de já circularem no espaço literário brasileiro alguns trabalhos de relevo sobre os primórdios do pensamento grego, poucos foram os livros editados que trataram de modo específico sobre Anaximandro de Mileto. O helenista americano William Heidel (1968-1941) não procurou  nesse texto discutir a antiga metafísica jônica,  da qual os filósofos de Mileto seriam os primeiros representantes. Seu objetivo, ao invés disso, foi  investigar questões muitas vezes negligenciadas  pela literatura especializada, como por exemplo, a relação da obra de Anaximandro com seu mapa do mundo, ou a natureza desse pretenso escrito. Os  testemunhos sobre o milésio lançam indícios de que seu livro era mais que um mero tratado de filosofia, física ou astronomia, pois deveria conter também assuntos geográficos e históricos supostamente  ligados ao mapa. A tradição doxográfica a partir  de Teofrasto foi responsável por moldar a figura  histórica de Anaximandro como filósofo puro. Mas se todos estiveram substancialmente dependentes dos trabalhos de Aristóteles acerca dos Pré-socráticos, é compreensível que a prioridade da análise recaísse sobre o saber cosmológico concebido pelos antigos physiologoi, como Anaximandro.

O alegado “livro”do milésio é considerado um dos primeiros escritos em prosa da Grécia, e sem dúvida, uma das mais influentes obras da Antiguidade. Sua publicação, ocorrida por meados do século VI a.C., serviu de referência para uma série de escritos posteriores sobre o mundo físico e cosmologia. Mas Heidel decide seguir outro roteiro, em sua pesquisa, com base na informação de que Anaximandro produzira um mapa do mundo conhecido, um relógio de sol e uma esfera celeste. Ao estudar a tradição histórico-geográfica presente em antigos autores  das épocas alexandrina e romana, como Eratóstenes, Estrabão e Agatêmero, além de outras fontes mais antigas, como Hecateu de Mileto e Éforo, ele procurou revelar outros aspectos importantes da  personalidade e da obra do milésio. A tradição bibliográfica tardia, a exemplo da que consta no léxico Suda, confere alguns títulos que no mínimo fornece- riam o escopo da obra que circulou na Antiguidade ligada ao nome de Anaximandro (pp. 13-51). Em  outra parte, o autor avalia o pretenso conteúdo do livro, negando que ele não consistira em um típico escrito de filosofia, mas basicamente continha dados histórico-geográficos segundo exigiria a construção de seu mapa da Terra (pp.51-68). Por fim, Heidel  busca provar a linha histórico-geográfica da obra  aprofundando-se na tradição geográfica alexandrina, ao largo da doxografia oficial de Teofrasto em diante (pp.68-80). Como conclusão, é dito que o livro  de Anaximandro não narrava ou explicava apenas  a cosmologia da Terra e os principais fenômenos  naturais. Para Heidel não há como encobrir o viés histórico da obra, que apresentava basicamente a descrição de povos e terras conhecidos do Mediterrâneo, como fará Hecateu uma geração depois. Outra contribuição importante neste volume está  nos dois apêndices finais (p.83 e p.125), que não apenas comentam o artigo de Heidel, mas também discutem as notícias e a bibliografia mais recentes sobre a figura histórica de Anaximandro e de sua  obra, incluindo uma vistoria nos dados arqueológicos do sítio de Mileto relacionados com seu ilustre cidadão. Katsuzo Koike, tradutor do artigo e autor dos apêndices, atualmente é bolsista da CAPES, e doutorando em Estudos Clássicos na Universidade  de Coimbra, Portugal.

Gabriele Cornelli – Professor da Universidade de Brasília. E-Mail: cornelli@unb.br

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