Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950) – TRUZZI (FH)

TRUZZI, Oswaldo. Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950). São Paulo: Editora Unesp, 2016, 137p. Resenha de: SUDATTI NETO, Reinaldo. Faces da História, Assis, v.5, n.1, p.349-355, jan./jun., 2018.

Oswaldo Maia Serra Truzzi nasceu em Campinas em 1958 e, atualmente, atua como historiador titular na Universidade Federal de São Carlos, nos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Engenharia de Produção. Possui trabalhos na área de Sociologia relacionados ao tema das imigrações, envolvendo a história social das imigrações, não somente a italiana, mas também a síria e libanesa. Além de obras de relevância como Roteiro de fontes sobre a imigração internacional em São Paulo (1850- 1950) e Repertório da legislação brasileira e paulista referente à imigração.

O livro Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950), lançado pela Editora Unesp em 2016, é apontado, no prefácio do historiador Ângelo Trento, como uma obra que procura levantar uma discussão inovadora no meio acadêmico, a saber: a formação de uma identidade étnica, envolvendo os imigrantes italianos no interior paulista, em um período precedente à construção identitária ocorrida na Itália.2 Em tempo, discute as circunstâncias que auxiliaram e prejudicaram essa construção, ocorrida entre os anos de 1880 e 1950.

O livro inicia-se tomando como referência os estudos de Philippe Poutignat (2008) e Jocelyne Streiff-Fenart que abordaram as concepções teóricas acerca do processo de construção das identidades culturais dos povos, quando confrontados com uma nova sociedade. Deve-se, aqui fazer uma ressalva a respeito do conceito de etnia, o qual não deve ser tomado como superioridade racial e, sim, como um conceito que permite refletir sobre o tema da identidade de si mesmo e sua constituição, a partir do contato entre grupos culturais.

Partindo dessa análise, o autor dirige-se ao mote da composição identitária. Para tanto, embasa-se no estudo de Benedict Anderson (2008) sobre as origens das noções de pertencimento no interior de comunidades construídas de forma heterogênea.

Acrescenta-se, ainda, as reflexões de Maurice Halbwalchs (2006) a respeito da ativação das memórias individuais e coletivas e, dos fatores que se cruzam, entre essas lembranças, criando uma noção de identidade cultural. Com isso, o autor busca reforçar sua tese de que houve um sentimento agregador de italianidade e de pertencimento, nascido primeiro no Brasil, e depois na Itália.

Como recurso teórico para analisar a formação da identidade italiana no Brasil, Oswaldo Truzzi se apoia nos estudos de Pierre Bourdieu (1996) e de Paula Beiguelman (2005), que enfatizam a relação de alteridade construída entre grupos culturais distintos.

Essa relação de alteridade teria fomentado o início da formação da identidade entre os imigrantes italianos que passaram a habitar o interior paulista, entre os anos finais do século XIX e o começo do XX.

Com o objetivo de ratificar a sua tese de uma identidade italiana surgida primeiro no Brasil, o historiador faz uso das tabelas contidas nas obras dos pesquisadores Zuleika Alvim (1986), Angelo Trento (1989) e na análise do demógrafo italiano Giorgio Mortara (1950), cujos dados indicam os números de entrada e saída dos imigrantes, grupos envolvidos nessas correntes migratórias e destinos dessas pessoas na nova terra.

Em seguida, Oswaldo Truzzi passa a descrever o contexto da Itália e do Brasil, em fins do século XIX, evidenciando os motivos que levaram à saída dos imigrantes italianos em direção ao Brasil; a partir de suas constatações e com base nos estudos de Nugent (1995), o autor concluiu que haveria uma dificuldade em afirmar uma italianidade trazida pelos imigrantes da sua terra natal, por outro lado, seria possível analisar uma italianidade construída aqui, no Brasil.

Com base nos estudos sobre a construção da identidade italiana, o autor segue para a diferenciação que se estabelecia entre os ambientes rurais e urbanos. Sobre os primeiros, destacou o modo de trabalho vigente nas fazendas, nas quais os imigrantes foram submetidos à mentalidade escravocrata e a impossibilidade de locomoção, bem como aos maus tratos que levavam às revoltas e resistências. Entretanto o autor avaliou as causas do pouco número de resistências e, valendo-se das análises do historiador Cliford Welch (1999), e de autores como Stuart Hall (2008) e Zuleika Alvim, concluiu que o isolamento dos colonos aliado a um baixo nível de educação formal dos imigrantes e de seus filhos foi fundamental para a pouca ocorrência de conflitos. O que não impediu o registro de formas de resistências como a mudança frequente de fazendas ou, até mesmo, a fuga delas, em alguns casos, para centros urbanos.

Outro ponto analisado foram os matrimônios entre pessoas de regiões semelhantes; para tanto, Truzzi se baseou em seus estudos anteriores sobre os casamentos na Cidade de São Carlos, entre 1860-1930, aliando-os aos trabalhos das historiadoras Maria Stella Levi e Julia Scarano (1999) e do pesquisador Angelo Trento.

O autor chega à conclusão que a união entre pessoas de mesma origem, até a Primeira Guerra Mundial, seria algo que facilitaria o retorno à terra natal, pois a estadia no Brasil era vista como temporária. Daí, a questão de tantos casamentos entre pessoas da mesma origem, havendo declínio desse costume após os anos 1930 e 1940, por conta dos desarranjos nas políticas de imigração assim como, o distanciamento dos laços de origem.

Já no meio urbano, o pesquisador faz um contraponto entre os trabalhos do historiador Warren Dean (1977), que apontava uma relação entre a bagagem profissional trazida do país de origem com novas possibilidades de crescimento do imigrante, os estudos da antropóloga Eunice Durham (2004) a respeito da cidade de Descalvado e os estudos da historiadora Flávia Oliveira (2008), na cidade de Jaú, nos quais as autoras ressaltam que a ascensão urbana se dava apenas com algumas famílias, sendo difícil precisar uma única causa.

O movimento associativo é destacado como via de ascensão social, afinal agregava parte da elite de imigrantes. Essas agremiações se constituíram em lugar de comemorações e festas nacionais que lembravam o local de origem, atraindo cada vez mais público. As elites italianas, por sua vez lançavam-se ao trabalho de construir uma unidade cultural e linguística entre os membros da colônia. A discussão sobre os movimentos associativos se amplia com os estudos de Fábio Bertonha (2005), e da socióloga Eunice Durham na cidade de Descalvado, que fazem referência a uma consciência de italianidade que se manifestava na promoção de solidariedade na colônia, na comemoração de datas patrióticas e na organização de atividades assistenciais e recreativas.

Associação de grande importância, a Sociedade Italiana de Beneficência de São Paulo Vitório Emanuel II, fundada na capital paulista, em 1879, é destacada por Truzzi por se constituir no modelo de sociedade para todas as outras que surgiram no Estado (BIONDI, 2011).

Ainda no que tange às associações de imigrantes, são reforçadas as causas que levavam à formação das mesmas (carência e ausência de políticas de amparo aos imigrantes), assim como as questões dos regionalismos trazidos da Itália que ocasionavam certas dificuldades à manutenção dessas agremiações. Tal processo pode ser observado pela visão negativa que os imigrantes do norte e sul da Itália tinham entre si, como exemplo, a tensão entre os vindos da região do Vêneto e da Calábria, ressaltando-se, ainda, o preconceito contra esses últimos por parte do restante dos imigrantes.

Além das rivalidades e diferenças étnicas, que representavam problemas para as associações, Truzzi amparado pelos estudos de Luigi Biondi e Angelo Trento cita outros problemas que levaram as associações a se desestabilizarem. Dentre os motivos estavam os conflitos de agenda dos diretores das associações que precisavam manter os vínculos de identidade dentro da colônia, buscando o reconhecimento da comunidadeMesquita Filho”, UNESP, câmpus de Assis.

de imigrantes da qual faziam parte e, simultaneamente, procuravam vias de integração às elites locais. Essa situação vivenciada pelos dirigentes evidenciava uma ambiguidade entre a cultura interna trazida pelos imigrantes e seus descendentes e a cultura do país de acolhimento, colocando-se como limites a serem extrapolados, segundo os estudos de Robert Foerster (1919).

A questão do fascismo é retratada pelo autor como um meio de ligar novamente a Itália à comunidade de imigrantes. Com base nos estudos de Bertonha sobre a ação fascista junto à comunidade italiana analisa-se a forma como o regime totalitário foi caracterizado no Brasil e como as classes sociais interagiram com ele.

O autor levanta o ponto de vista das elites brasileiras, que viam os recémchegados como pessoas que conheciam seu lugar na sociedade distanciando-se por isso da política e não ameaçando o domínio das elites locais. Visão que se modificou com a Revolução de 1930, e consequente abertura de oportunidades de projeção social e política por meio das associações comerciais, formadas por uma maioria de origem italiana. Por outro lado, o autor observou-se na geração dos filhos de imigrantes um menor pendor a propagandearem a sua filiação étnica, implicando na diminuição da italianidade como critério de legitimação política e social.

Sabemos que o tema sobre o processo imigratório Itália – Brasil é algo muito estudado, parecendo à primeira vista que nada de inovador possa emergir dele. No entanto, lermos o livro citado, podemos verificar como “[…] essa abordagem do tema torna-se a linha mestra de Truzzi”, que pesquisa a formação e construção do sentimento de identidade italiana, no Brasil, antes de ser construído na Itália.

O livro Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950) traz, portanto, algo muito inovador e instigante. Essa pesquisa aumenta e revitaliza o entendimento sobre a importância da imigração italiana e identidade cultural, no Brasil, a despeito das diversidades regionais trazidas da Itália, além de permitir a compreensão de como esse processo repercutiu entre seus descendentes, assim como na sociedade de acolhimento, evidenciando a importância das trocas culturais tanto para imigrantes quanto para os brasileiros.

Notas

2 Mesmo após a unificação em 1870, os habitantes da Itália possuíam uma relação de identidade ligada mais ao local de origem do que à nação como um todo, não havendo uma identificação comum, antes e durante a fase que da grande imigração, entre as décadas de 1870 e 1920, período no qual a nação enfrentou instabilidades políticas e sociais, que prejudicaram a construção de uma identidade nacional.

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Reinaldo Sudatti Neto – Mestrando em história pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Campus de Assis.

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Italianidade no interior paulista – TRUZZI (RH-USP)

TRUZZI, Oswaldo Mario Serra. Italianidade no interior paulista – percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950). São Paulo: Editora Unesp, 2016. Resenha de: ALMEIDA, Geraissati Castro de. Identidade étnica ou identidades étnicas? Italianidade em Oswaldo Truzzi. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo  2018.

Entre os anos de 1881 e 1915, cerca de 31 milhões de imigrantes chegaram à América no período classificado como o das grandes migrações.2 Estes deslocamentos ensejaram contatos entre pessoas de diferentes formações culturais que tornaram a construção de uma identificação de si um fenômeno recorrente ao longo dos séculos XIX e XX.

Inserido na produção que analisa essa conjuntura está o livro publicado em 2016, Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950), pelo professor da Universidade Federal de São Carlos, Oswaldo Truzzi. Seu objetivo é compreender como se deu o processo de estruturação de uma identidade étnica do grupo de indivíduos que emigraram da Itália no recorte temporal que abrange os anos de 1880 a 1950. O espaço geográfico privilegiado em sua análise é o interior paulista, pertencente ao estado que possuiu o maior afluxo migratório brasileiro neste contexto; do total de imigrantes que vieram ao Brasil, 57,7% optaram por São Paulo.3

O pesquisador é formado em Engenharia de Produção pela Universidade de São Paulo (1979), mestre em administração de empresas com a dissertação Café e indústria (1850-1950) – o caso de São Carlos pela Fundação Getúlio Vargas, SP (1985) e doutor em Ciências Sociais com o estudo Patrícios – sírios e libaneses em São Paulo pela Universidade Estadual de Campinas (1993). Sua tese de doutorado elucidou o processo da integração entre migração e imigração e salientou que há contextos específicos tanto na pátria de origem quanto na que os recepciona que possibilitam a estes indivíduos permanecerem em locais por vezes com costumes diversos.

Também autor do livro Sírios e libaneses: narrativa de história e cultura (2005), Truzzi propõe, por meio de uma análise quantitativa, uma periodização para as levas migratórias deste grupo. É coautor de livros que sistematizam informações sobre a imigração como Atlas da imigração internacional em São Paulo (1850-1950)Roteiro de fontes sobre a imigração em São Paulo (1850-1950) e Repertório da legislação brasileira e paulista referente à imigração, todos publicados em 2008 pela Editora Unesp. Entre os anos de 1990 e 2002, foi pesquisador do grupo de História Social da Imigração do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp) que visava a preencher a lacuna sobre a imigração de caráter urbano. Sua trajetória acadêmica e sua inserção em grupos como a Red de Estudios Migratorios Transatlánticos indicam sua importância no tema.

O livro, dividido em cinco capítulos, principia por apresentar quais foram as concepções teórico-metodológicas utilizadas para estruturar sua noção de identidade. No primeiro capítulo, “à guisa de uma introdução teórica”, o autor propõe que a identidade étnica é essencialmente uma fronteira social, produto da relação entre o imigrante, seu próprio grupo e sua sociedade receptora. Ao perscrutar as diversas camadas sobrepostas na identidade italiana, visa mostrá-la como um processo histórico constantemente negociado, em que ora ocorre a aceitação, ora a resistência à assimilação. Dessa forma, ao migrarem, inevitavelmente as culturas tradicionais passam por alterações (p. 17). Truzzi entende que a experiência social destes imigrantes se localiza em uma zona de intersecção entre background social, econômico e cultural de sua terra de origem, contexto político e econômico de ambas as nações no período de migração e condicionantes de inserção na nova terra com suas oportunidades de mobilidade (p. 20).

Para a construção da “italianidade”, uma forma de identificação a partir de uma experiência social heterogênea, o pesquisador se referencia na noção de comunidade imaginada proposta por Benedict Anderson que consiste em um sentimento de pertencimento a uma identidade nacional forjada. Entretanto, ao longo das páginas seguintes, demonstra que as primeiras levas migratórias advindas de uma Itália recém unificada possuíam vinculações com suas regiões de origem, identificando-se como calabreses, vênetos, dentre outros, e não com o Estado-nação italiano, algo que leva o leitor a indagar-se ao longo do livro se será possível emergir de fato a “italianidade”.

No capítulo “A profusão de italianos no interior paulista”, é reafirmada a importância do tema ao compilar bibliografia que analisa a imigração advinda da Itália: as cifras atestam que 57% dos imigrantes aportados no Brasil entre 1886 e 1900 provinham dessas regiões. Para possíveis questionamentos quanto ao recorte centrar-se no interior paulista, o autor retoma Thomas Holloway que estima que, nos anos 1893-1910, nove entre dez imigrantes que deixaram a hospedaria do Brás se dirigiram ao oeste paulista, sobretudo próximos à Ferrovia Paulista (São Carlos) e à Ferrovia Mogiana (Ribeirão Preto) (p. 23).

Para compreender o percurso que foi desenvolvido pela “italianidade” no interior paulista, o sociólogo elenca três ocasiões que se constituíram em marcos para uma mudança neste sentimento. São elas: os momentos iniciais da imigração e a construção da “italianidade” fora da Itália, isto é, forjada na sociedade de acolhimento; a emergência do fascismo na Itália e sua tentativa de revigorar um sentimento nacional; e o Estado Novo e a campanha de nacionalização encetada por Vargas. Os meandros desses processos e os argumentos do autor serão elencados a seguir.

O capítulo “Uma italianidade construída em São Paulo” aponta que inicialmente, ao migrarem, estes sujeitos não possuíam uma “italianidade”. Para corroborar esta afirmação o autor cita que Hobsbawm estimou que apenas 2,5% falavam italiano na época em que a Itália foi unificada (p.36). Logo, a designação “italiano” foi cunhada em solo brasileiro pela própria sociedade receptora que, assim, denominava a todos os advindos deste mesmo espaço geográfico. Apesar de haver sido criada de maneira exógena, o autor acredita que esta circunstância promoveu consequências na formação de uma identidade comum dentro desta comunidade. A relação com outros, cujas fronteiras identitárias nacionais e raciais já estavam bem demarcadas, a exemplo dos negros, propiciou a criação de um reconhecimento de si por contraste. O grupo se afirmou enquanto branco e vinculado a uma valorização da ética do trabalho, de caráter preponderantemente individualista (p. 41). Apesar de trazer este contexto como o momento inicial de sua identificação enquanto grupo, Truzzi destaca que houve desafios para sua consolidação tanto em virtude dos regionalismos, que se faziam presentes na trajetória destes imigrantes, quanto em função de sua progressiva diferenciação social ao gerar reconhecimentos de classe que superavam a identificação étnica.

Nos capítulos “No meio rural” e “No meio urbano” o autor pontua episódios que foram relevantes na trajetória destes sujeitos e que impactaram na formação de um sentimento de pertencimento a uma mesma comunidade. Entre eles, a proibição em 1902 pelo governo italiano das passagens subsidiadas em função das precárias condições de trabalho nas fazendas de café. Esta promoveu a queda dos fluxos migratórios de italianos que foram substituídos por espanhóis e portugueses (p. 55-56), fato que enfraqueceu as possibilidades da formação da “italianidade”.

Truzzi afirma que, para tentar articular estes indivíduos, a ação da imprensa, das escolas étnicas e das sociedades de auxílio mútuo desempenharam um papel significativo ao realizarem esforços para acomodar, em uma mesma instituição, indivíduos com credos e ideologias distintas. Contudo, a arregimentação e o entendimento entre estratos de uma colônia com diferenças de origem muito acentuadas foram árduos (p. 87) e pareceram se prestar mais aos interesses de uma camada bastante específica desta colônia. O autor tangencia o argumento de que uma “italianidade” ocorreu em função dos esforços de uma elite étnica que, ao integrar essas associações, visava se legitimar enquanto representante de uma numerosa coletividade e assim adquirir um prestígio que lhe outorgasse espaço nas oligarquias locais.

A efetivação da “italianidade” parece adquirir expressão a partir dos anos de 1920 com a emergência do fascismo na Itália. Ao propor uma vinculação direta entre regime e nação, o governo italiano entendia a comunidade dos emigrados como um importante representante e propagandista de seus interesses políticos e econômicos. Todavia, o autor destaca que a queda dos fluxos migratórios debilitava a adesão ao fascismo e que os filhos de imigrantes já se consideravam brasileiros e estavam mais propensos ao integralismo. Logo, o fascismo obteve impacto apenas entre os imigrantes que ascenderam socialmente e aspiravam se desvincular de sua aldeia de origem, e entre os comerciantes que viajavam para a Itália com frequência (p. 106). Para as classes subalternas essas questões permaneceram difusas e a condição de classe se fez mais presente que a étnica.

Por fim, o golpe final dado na tentativa da formação da “italianidade” foi perpetrado pelo Estado Novo que, com uma forte política nacionalista, reprimiu as escolas, imprensa e associações étnicas, ato que segundo o sociólogo fez com que o capital étnico migrasse para o social e político. Em fins dos anos de 1930 e especialmente no pós-Segunda Guerra, a “italianidade” não servia mais como legitimidade na comunidade já que a distância do processo migratório esvaziava o sentido de invocar essa noção (p. 120).

Ao fim do livro restam algumas indagações: afirmar a italianidade como uma comunidade imaginada, limitada e soberana aos moldes de Anderson não pressuporia especificidades em comum destes indivíduos? Atribuí-la a uma diferenciação com relação aos negros e ao fato de serem estrangeiros dentro de uma comunidade com costumes diferentes pode ser proposto a todas as comunidades de imigrantes. Indicar que a construção deste sentimento esbarrou em diferenças de formação social e histórica das diversas regiões da Itália implicaria que, para estes indivíduos, a noção de comunidade limitada nunca se fez presente.

Afirmar o protagonismo do imigrante no comércio e na indústria tanto como empresário quanto como empregado (p. 68), sem destacar todas as tensões que envolviam sua inserção na sociedade, oblitera um aspecto que foi relevante na formação destes indivíduos. Os imigrantes se tornaram a maior parte da população e exerceram inúmeras funções no campo e na cidade, o que gerou insegurança sobre como lidar com esse enorme contingente. No período abordado pelo autor, eram correntes os embates tensos entre a “assimilação” ou a “aculturação” destes indivíduos.4 Longe de embates que tensionavam constituírem uma população naturalizada no cotidiano, as crônicas e jornais demonstram que sua presença era percebida e incômoda. Foram criados estereótipos para as diferentes colônias que aqui aportaram, denotando uma insatisfação com a sua presença e demarcando-as como “o outro” na cidade. A respeito dos italianos houve a criação da imagem do “carcamano”, termo pejorativo para designar os comerciantes.

A imagem de São Paulo como um local de convivência harmoniosa foi forjada ao longo dos anos, a partir de um discurso que tentava imprimir marcas cosmopolitas à cidade e ao estado. Os imigrantes que enriqueceram e os operários que participaram de movimentos políticos não foram vistos com bons olhos pelas famílias tradicionais. O suposto cosmopolitismo possuiu outras faces, nas quais o incentivo à imigração se inseriu em virtude do fim da outrora lucrativa escravidão e da política de embranquecimento atrelada à ideia de modernidade. Em decorrência desse projeto nem todos os imigrantes eram bem-vindos e, como propõe Sevcenko, a capital estava mais para um “Cativeiro da Babilônia” que para uma “Babel invertida”, como sugeriu um cronista da época.5

Quanto ao fato de os imigrantes que adentraram na política não manejarem o capital étnico ao se colocarem como estrangeiros, pode-se indagar se isto não decorre da tentativa de ocupar espaços junto às oligarquias locais, tornando invisíveis suas origens para não parecerem uma ameaça aos nacionais. Para a historiadora Raquel Glezer a gênese da interpretação do passado colonial como um período glorioso foi cunhada neste momento em função da elite intelectual entender os imigrantes como uma ameaça constante que, uma vez trazidos para trabalhar na lavoura, impactaram a transformação do território.6 Logo, a análise de Truzzi não pontua alguns momentos relevantes na política e na legislação da cidade, necessários para pensar a inserção e as possíveis identidades manejadas pelos imigrantes ao atuarem nestes espaços.

Em termos metodológicos, em seus artigos mais recentes, tal como “Redes em processos migratórios”,7 o sociólogo defende enfoques que caminhem no sentido de recuperar o papel do agente e de sua rede, fator decisivo na escolha dos locais de destino. Na abordagem proposta por Truzzi, visa-se dar ao imigrante um papel de agente racional, privilegiando o viés da micro-história na expectativa de encontrar a ação social e informações que se perderam nas escalas macroscópicas. Neste livro, apesar de realizar breves menções a imigrantes que atuaram nas cidades analisadas, não são consideradas suas trajetórias, usadas apenas para ilustrar algumas de suas proposições. Verifica-se tal procedimento ao versar sobre os imigrantes que, de forma precoce, adquiriram uma inserção privilegiada na sociedade de destino (p. 77). São citados alguns nomes e breves informações que não demonstram os meandros dessas ascensões sociais, gerando a heroicização desses self-made-men, uma vez que não há a significação e a problematização de suas trajetórias. Metodologia similar ocorre em relação à abordagem da iconografia que é utilizada ao longo do livro para corroborar suas afirmações, sem merecer maiores explanações.

A pertinência de Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950) está em historicizar o termo “italianidade” mostrando seus desafios e particularidades em diferentes temporalidades. Contudo, o leitor ao fim do livro, percebe que ocorreram múltiplas criações de identidades étnicas, frutos de uma ação ativa destes indivíduos. Porém, não fica convencido da equivalência entre identidade étnica e “italianidade”. A última parece nunca ter se efetivado para além de um projeto criado fora do grupo pela sociedade receptora e que, posteriormente, foi reapropriado por setores desta colônia que desejavam erigir seu poder simbólico.

Referências

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2 KLEIN, Herbert. Migrações internacionais na história da América. In: FAUSTO, Boris. Fazer a América. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 23.

3 OLIVEIRA, Lúcia LippiO Brasil dos imigrantes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, p. 22.

4 GORELIK, Ádrian. A aldeia na cidade. Ecos urbanos de um debate antropológico. In: LANNA, Ana Lucia Duarte; LIRA, José Tavares Correia de; PEIXOTO, Fernanda Arêas; SAMPAIO, Maria Ruth Amaral. São Paulo, os estrangeiros e a construção das cidades. São Paulo: Alameda Editorial, 2011; SEYFERTH, Giralda. Cartas e narrativas biográficas no estudo da imigração. In: DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri & TRUZZI, Oswaldo Mário Serra. Estudos migratórios: perspectivas metodológicas. São Paulo: EdUFSCar, 2005; PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In: VELHO, Otávio Guilherme (org.). O fenômeno urbano. 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.

5SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 37.

6GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Ed. Alameda, 2007, p. 179.

7TRUZZI, Oswaldo Mario Serra. Redes em processos migratórios. Tempo Social (USP. Impresso), vol. 20, p. 199-218, 2008. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ts/article/view/12567. Acesso em: 6 jun. 2018. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-20702008000100010.

Renata Geraissati Castro de Almeida – Doutoranda no Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. E-mail: rgeraissati@gmail.com.