La démocratie contre les experts: les esclaves publics en Grèce ancienne – ISMARD (Tempo)

ISMARD, Paulin. La démocratie contre les experts: les esclaves publics en Grèce ancienne. Paris: Seuil: 2015. 273 p.p. Resenha de: TRABULSI, José Antonio Dabdab. Experts e democracia: uma convivência impossível? Tempo v.23 no.2 Niterói mai./ago. 2017.

Paulin Ismard, maître de conférences em história grega antiga na Universidade de Paris I Panthéon-Sorbonne e nome emergente no campo dos estudos sobre a Grécia antiga, publica um novo livro muito interessante. Desde a apresentação e a contracapa, o autor não deixa pairar qualquer dúvida sobre sua vontade de propor um livro de intervenção cidadã:

Suponhamos por um instante que o diretor do Banco da França, o chefe da polícia nacional e o chefe do Arquivo público sejam escravos, propriedades do povo francês a título coletivo. Imaginemos, em suma, uma República na qual alguns dos maiores dirigentes do Estado fossem escravos. Eles eram arquivistas das leis, policiais, controladores da moeda: todos escravos, apesar de se beneficiarem de uma condição privilegiada, e foram os primeiros funcionários públicos das cidades gregas […]. Que a democracia tenha se construído em sua origem contra a figura do expert que governa, mas também segundo uma concepção do Estado que nos é radicalmente estrangeira, eis o que deveria nos intrigar.

Vemos como o autor atiça desde o início a atenção do leitor, seja ele helenista, seja ele simples cidadão atento aos assuntos coletivos.

Na Introdução (p. 13-30), ele propõe colocar seu estudo no contexto de renovação dos trabalhos sobre a escravidão, e os escravos públicos gregos como um exemplo análogo a outros ao longo da história ocidental, mas também africana ou asiática. Faz uma revisão bibliográfica e observa, com razão, que apenas um livro (Jacob, Oscar. Les esclaves publics à Athènes. Liège: Champion, 1928), já bem antigo e puramente descritivo, existe sobre o tema dos escravos públicos na Grécia antiga. Afirma:

Algumas das tarefas confiadas aos dêmosioi requeriam de facto competências excepcionais. Confiando-as a escravos, a cidade queria colocar fora do campo político alguns saberes especializados, impedindo que seu exercício pudesse vir a legitimar a detenção de um poder. A expertise dos dêmosioi esclarece assim com uma nova luz a questão espinhosa – e tão contemporânea – do status político dos saberes no seio da cidade democrática. (p. 30)

Observemos de passagem sua estimativa do número de escravos públicos na Atenas clássica, entre 1000 e 2000, o que parecerá a certos analistas um pouco excessivo, sobretudo porque ele tende a privilegiar na argumentação o limite mais alto desse intervalo, o que tem implicações importantes para seu ponto de vista, pois ele pensa quase sempre (ou pelo menos deixa o leitor pensar) que as numerosas magistraturas propriamente políticas ficavam fora do campo das competências, quaisquer que fossem. Outra vez, muitos historiadores do período não estarão de acordo com ele. Isso não invalida a constatação de que o livro se apresenta como muito atrativo, com uma abordagem renovada e muito atual.

No Capítulo I (“Gênese”, p. 31-61), Ismard procede a uma arqueologia do dêmosios desde o início do arcaísmo, a partir do dêmiourgos homérico, das figuras de Dolon, de Dédalo, de Spensithios, o Escriba, na Creta do século VI, e de Patrias, na Élis do início do século V. Considera também o papel das tiranias arcaicas na gênese de um aparelho estatal no qual o escravo público encontrará, mais tarde, seu lugar. Tudo resultando, na época clássica, em uma nova configuração:

Abrindo o acesso à participação política ao maior número de cidadãos, os regimes democráticos instauraram enfim novas relações entre saber e poder. A competência herdada de uma longa familiaridade com o poder era doravante imprópria para legitimar a autoridade política. Sem dúvida, em certos campos, a competência permanecia indispensável, mas os valores do regime democrático proibiam que tais funções fossem confiadas a uma categoria restrita de cidadãos. Os atenienses preferiram então, na maior parte das vezes, atribuí-las a escravos, o que resultava em suma em relegar essa expertise para “fora do político”. (p. 60)

Temos aqui um capítulo muito bom, realmente original.

No Capítulo II (“Servidores da cidade”, p. 63-94), o autor procede a um levantamento sistemático das atividades dos escravos públicos na Atenas clássica, mas também na época helenística, em várias cidades, o que abre o campo de observação de forma muito enriquecedora. Ele explica sucessivamente o papel dos dêmosioi na assembleia, no conselho, diante dos tribunais e no ginásio. Seu papel é muito importante nas escrituras públicas, na gestão dos arquivos oficiais, no estabelecimento dos inventários de bens, nas contas dos canteiros de obras ou dos santuários religiosos em Atenas; eles garantiam a autenticidade das moedas e cuidavam da regularidade dos pesos e das medidas. Muitas vezes, em Atenas e em outros locais, eles encarnavam a autoridade pública em sua dimensão repressiva, com um papel de polícia e de manutenção da ordem, auxiliavam os magistrados quando das detenções e cuidavam da prisão da cidade. Em Atenas, os “cítios” (nem sempre provenientes desse povo) tinham papel-chave no funcionamento das instituições (assembleia, conselho, festas, mercado etc.). Outros, menos especializados, trabalhavam em tarefas de interesse coletivo, nas oficinas e canteiros diversos. Por vezes, puderam até ser encarregados de alguns sacerdócios. Em sua maioria comprados nos mercados de escravos, eram numerosos em Atenas, sem que possamos ter um número preciso (ele insiste nos valores entre mil e 2 mil, p. 85). Segundo o autor:

Assegurar com competência o controle da comunidade cívica sobre um dirigente; efetuar no lugar de um cidadão uma tarefa infamante; fornecer força de trabalho indispensável aos grandes canteiros de obras cívicas: não faltam razões para explicar o interesse das cidades gregas em ter a seu serviço escravos. Algumas dessas tarefas conferiam de facto aos dêmosioi um certo poder sobre os membros da comunidade cívica. Entretanto, como afirmava Sócrates o Jovem, a função deles não participava do domínio da arché. Os dêmosioi não eram magistrados da cidade e sua atividade era entendida como estranha ao campo político. (p. 88-89)

Muitos intérpretes viram nos dêmosioi as primícias de um “serviço público” na cidade clássica.

O Capítulo III (“Estranhos escravos”, p. 95-130) é um dos mais importantes para o objetivo do autor e apresenta o interesse de estar “irrigado” por um comparatismo bem-feito com outras sociedades com escravos e outras sociedades escravistas (não apenas o velho sul dos Estados Unidos, o que é frequente na bibliografia, mas também os mundos árabe, otomano, africano, indiano, entre outros, o que é bem mais raro). Ele examina o corpo escravo, os privilégios dos dêmosioi que os distinguiam dos escravos-mercadoria típicos. Por exemplo, eles podiam ser proprietários de bens, e até, talvez, de escravos; beneficiavam-se de um “privilégio de parentesco” (p. 107); em pelo menos um caso bem conhecido (Pittalakos), um escravo público pôde ter acesso aos tribunais, diretamente, como um cidadão; não estavam excluídos de todas as honras públicas, o que revela a delicada questão da timè; se o próprio do escravo é estar privado dela, o caso dos dêmosioi apresenta uma exceção notável. Eles eram um “bem público” em um universo em que o Estado não era um sujeito de direito; e, portanto, seu pertencimento era mais vago, definido pela negação, pelo fato de “não pertencer” a ninguém de forma individualizada. O autor volta às teorizações de juventude de Moses Finley (p. 125-126), para reabilitar o uso da noção de status como um conjunto de direitos, privilégios, imunidades, capacidades etc.; tudo ligado à timè (com mil configurações e contornos):

Neste sentido, a sociedade ateniense não se decompõe em blocos de estatutos homogêneos, superpostos à maneira das ordens. Ela também não é uma sociedade aberta, na qual cada um pode se liberar de suas determinações estatutárias e transitar de um status a outro graças ao mérito ou à sorte. Ela se apresenta como um espaço social multidimensional, atravessado por um caleidoscópio de statusDêmosios é o nome de um deles. (p. 128)

Trata-se, é preciso observar, de uma muito rara reabilitação de Finley… Estaríamos assistindo aos primórdios de uma reviravolta historiográfica? A questão se apresenta, a tal ponto Finley foi criticado ao longo dos últimos 20 anos.

Em um capítulo que está, em certo sentido, no âmago do argumento do livro (Capítulo IV, “A ordem democrática dos saberes”, p. 131-165), o autor analisa em detalhes certo número de “casos” muito esclarecedores: a função de “verificador” das moedas, uma das funções exigindo um conhecimento técnico dos mais profundos, é confiada a dêmosioi. O caso de Eucles, escrivão e contador de santuários, realizando inventários da maior importância para a cidade; o caso de Nicomachos, o Jurista, filho de dêmosios, encarregado durante vários anos seguidos da tarefa de revisar e republicar as leis de Atenas. Tais exemplos, entre outros, mostram, segundo o autor, que

[…] a experiência ateniense encontra aqui uma das questões mais ardentes do nosso presente democrático. O status político da expertise está, com efeito, no coração do “desencanto” contemporâneo em relação à democracia representativa. Democracia e saber: os dois termos se apresentam o mais das vezes no discurso corrente sob a forma de duas exigências contraditórias. O ideal democrático de participação do maior número de pessoas nos assuntos públicos seria incompatível com a exigência de eficácia que é necessária ao governo dos Estados, coisa forçosamente complexa, e, portanto, especializada: quem não reconheceria aqui um refrão do nosso tempo, que faz da “epistocracia” dos governos o horizonte necessário de qualquer política? (p. 133)

Ismard mostra muito bem a que ponto a figura do expert governante é estranha à ideologia democrática antiga. O fato de confiar tarefas muito importantes a escravos não implica nenhum desprezo pelos conhecimentos inerentes à função, que são considerados como muito importantes. Mas a preocupação era manter certos saberes especializados fora do campo político para conservar todo o espaço para o debate político entre não especialistas, na convicção de que desse debate sairia um saber coletivo útil à cidade (p. 134-135). Foi também a razão pela qual a cidade grega privilegiou o recrutamento de seus escravos públicos muito qualificados no mercado externo, para impedir a constituição de um grupo muito hereditário que poderia controlar uma parte do poder social:

Se os escravos públicos da Atenas clássica não vieram a formar um corpo autônomo na cidade, foi também porque a ideologia democrática ateniense, estabelecendo uma barreira entre a ordem da expertise e o campo político, proibia que sua competência própria pudesse resultar no exercício de um poder. Neste sentido, a epistemologia democrática ateniense, ao relegar os saberes especializados para fora dessa nobre atividade reservada aos cidadãos, ou seja, a política, não se apresenta apenas como a defesa de um saber público fundado na prática deliberativa. Ela também tem indiretamente por função legitimar a distinção fundamental que separa o escravo do homem livre e fundar na razão a estrutura escravista da sociedade ateniense. Na Atenas clássica, a ordem democrática dos saberes é também a ordem da sociedade escravista. (p. 165)

Mais uma análise que tem no final uma “sonoridade finleyana”; lembramo-nos imediatamente da célebre expressão da marcha “de mãos dadas”, da democracia e da escravidão, formulada pelo grande historiador. Quanto a mim, se aprovo totalmente a primeira parte do argumento de Ismard, ou seja, a parte relativa à preocupação em preservar a totalidade da soberania popular colocando o conhecimento técnico sob controle político, a segunda parte do argumento me deixa relativamente cético; que as coisas tenham acontecido historicamente como ele diz, é um fato. Que a democracia antiga deva sua existência ao fato escravista, no absoluto, é outro debate, longo demais para ser levado adiante aqui.

Em um Capítulo V mais teórico (“Os mistérios do Estado grego”, p. 167-202), Ismard discute sobre os escravos públicos no quadro mais amplo do debate sobre o Estado e sua existência no mundo grego antigo:

Pois é este o sentido dessa surpreendente instituição: ao mesmo tempo em que confiava funções que atribuíam um poder de facto a escravos, as cidades manchavam essas funções com um déficit irremediável ligado ao status dos que as exerciam […]. Tornando invisíveis os que tinham o encargo de sua administração, a cidade conjurava o aparecimento de um Estado susceptível de se constituir em instância autônoma e, em certas circunstâncias, se voltar contra ela. Podemos formular isso de outra forma: na cidade clássica, o Estado nunca se encarnou de outra forma que não fosse na pura negatividade do corpo-escravo do dêmosios. (p. 176)

O autor examina, então, três casos: os últimos momentos de Sócrates na prisão; a queda de Édipo; o batismo do primeiro dos gentis. Três casos que fazem intervir a figura de um escravo público ou real.

Em sua conclusão, insiste ainda acerca desse aspecto “obscuro” da cidade antiga ao dizer que

[…] a viva luz que ainda brilha a partir das assembleias e dos teatros das cidades talvez nos cegue. A “transparência” do político grego tem, com efeito, a medida do véu de opacidade com o qual a cidade encobre o que permanece nas suas margens e que, portanto, é indispensável ao seu funcionamento. Pois à digna gestualidade das belas palavras dos cidadãos reunidos em assembleia responde, como num teatro de sombras, a cenografia muda de seres anônimos, sem identidade e sem voz. Quase escondidos nos cantos da Acrópole contando e recontando os bens de Palas Ateneia, anotando conscienciosamente as despesas dos estrategos em expedição militar, ou se agitando por todos os lados para orientar os jurados cidadãos e dirigir os espectadores nos tribunais: era preciso que todos esses homens fossem invisíveis para que pudesse se manter a ilusória transparência da comunidade cívica. (p. 205)

Ele prolonga sua análise sobre a diferença radical entre a cidade grega e os Estados modernos, falando do “primitivismo” da cidade, “condição intransponível da experiência democrática na Grécia antiga” (p. 213), em um último eco finleyano. A retração dos circuitos do comércio de escravos a partir de meados do século III de nossa era, conjugada com uma nova concepção, agora cristológica, do poder, pôs fim à prática então quase milenar da escravidão pública nas cidades antigas.

Estou de acordo com a maior parte das opiniões do autor, mas uma vez que seu livro toca voluntariamente a questão da política atual, e como eu também sou historiador da antiguidade grega preocupado com a política atual, permito-me não estar de acordo quanto a um ponto importante da análise de Ismard, que podemos ler ao longo de seu texto e especialmente no final: “Nesse sentido também, a democracia direta era paga com o preço da escravidão” (p. 215). Tal posição me parece ligeiramente excessiva no que se refere à política antiga e, sobretudo, muito pesadamente desanimadora para o interesse que podemos ter hoje pela política antiga na intenção de renovar nossa política. Mas isso não muda nada quanto ao interesse do livro; é uma obra cheia de qualidades, um tipo de livro que faz bem aos estudos clássicos e ao debate político contemporâneo ao mesmo tempo. E esses livros não são assim tão numerosos para nos impedir de saudar calorosamente a iniciativa de Paulin Ismard.

José Antonio Dabdab Trabulsi – Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte – Brasil. E-mail: dabdabtrabulsi@fafich.ufmg.br.