Inventar a heresia? discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição – NOGUEIRA; ZERNER (RBH)

NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo; ZERNER, Monique (Org.). Inventar a heresia? discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas (SP): Ed. Unicamp, 2009. 304p. Resenha de: NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.31, n.62, dez. 2011.

Após mais de 30 anos de estudos sobre o aparecimento de seitas de ‘adoradores do Diabo’, que constituíram o tormento e a preocupação da Igreja ao longo do período medieval e que foram metodicamente mapeadas e perseguidas com rigor cada vez maior até culminarem na caça às bruxas da Europa moderna, uma questão foi se tornando cada vez mais clara: na construção dessas seitas existia uma combinação trágica, porém eficaz do ponto de vista repressivo, o amálgama da alteridade com uma enorme carga de erudição.

Daí, então, tornava-se cada vez mais óbvio para nós que, igualmente, não haveria um estranhamento, uma ‘estrangeirice’ nas seitas heréticas. Não eram crenças que migraram e se instalaram no seio da boa coletividade cristã, tampouco ‘sobrevivências de um paganismo’ há muito perdido e do qual restavam símbolos fragmentados e desenraizados ou vestígios de uma gestualidade claramente cristianizada. Tratava-se, sim, do produto dos intentos de uma ortodoxia de impor a outros a existência de outras interpretações do que era viver (espiritual e materialmente) a religião cristã.

O cristianismo nasce como uma religião que se propõe universal em um mundo de particularismos, em especial, particularismos religiosos. Para levar a Boa Nova a todos os homens, o cristianismo precisava se impor a partir do Outro.

Assim é construída a ecclesia, antes de tudo se apartando do judaísmo, o primeiro e mais incômodo ‘outro’, pela proximidade e pela responsabilidade de haver gestado a nova religiosidade.

Eliminados os ‘assassinos de Cristo’, os discordantes e opositores – em suma, os heterodoxos – são calados ou perseguidos, objetos de uma retomada erudita que mergulha na Antiguidade Clássica para buscar identidades, estabelecer ligações para garantir a credibilidade e legitimar a repressão.

Dessa maneira a ‘reação folclórica’, a sobrevivência pagã, criadora da heresia, muda de significado. O paganismo ganha o direito de existir por intermédio da ação de uma ortodoxia em busca de uma tradição que lhe permita estabelecer paralelismos e impor rótulos aos seus opositores.

Assim, é com grata surpresa que vemos aparecer no mercado editorial brasileiro o livro Inventar a heresia?, organizado por Monique Zerner.

Obra plural, mas com uma coesão interna bastante singular: a análise de tratados que constroem a heresia e ‘identificam’ o herege. Produto de investigações produzidas e discutidas em seminários, retoma, a nosso ver com grande acerto, os textos escritos antes da constituição dos Tribunais da Inquisição. Postura acertada, pois se o objetivo era confrontar os documentos com a ‘realidade’ das heresias, o período de ação inquisitorial traz enormes problemas, uma vez que a perseguição acaba consagrando a heresia ipso facto, tornando-a uma realidade irreversível, cuja punição traz aos olhos da comunidade a sua materialização objetiva e inquestionável. Realidade viciada que levou muitos historiadores a acreditarem na realidade das heresias, ou mesmo imaginá-la como outra religião, como no caso do Catarismo.

Inventar a heresia? percorre uma larga trajetória temporal, começando por santo Agostinho e o seu procedimento na polêmica contra o maniqueísmo que o havia desencantado, e se estende até um caso de não-heresia na Gasconha dos inícios do século XII.

E por que um intervalo de tempo tão alargado? A resposta está na perspectiva dos autores. Sabemos que no princípio do cristianismo a tônica é a persuasão. No entanto, no Contra Faustum Agostinho já prefigura a atitude que virá depois: se não persuadidos, os adversários serão por fim condenados.

De maniqueístas e exegetas gregos da Bíblia, a obra saltará para o século XI, o período de emergência das heresias, momento que Jacques Le Goff leu equivocadamente como um ressurgimento folclórico, o que justificava o aparecimento dos movimentos heréticos.

A obra que examinamos inverte a questão, buscando a ‘confecção’ dos hereges no interior dos embates de uma Igreja que tenta impor a sua hegemonia reformista. A heresia é esgrimida por Gerardo, no sínodo de Arras, como resposta à sua tentativa de manter sob controle um domínio que escapa por entre as suas mãos, pois remete a um sistema carolíngio antiquado, que não dá conta da nova ordem social.

Contudo, ainda com Pedro, o Venerável, e seu Contra Petrobrusianos, persiste a argumentação. No entanto é singular que esse abade de Cluny invista contra os hereges, contra os judeus e contra os sarracenos. O século XI, e fundamentalmente Cluny, preparam as armas para defender a Igreja. A argumentação ‘defensiva’ de nosso abade não resiste a uma política de hegemonia da religiosidade. Ao final do século XI, está aberto o caminho para a ausência de diálogo com a heresia, substituído pelo procedimento judiciário de fazer aqueles que a Igreja condena, confessarem a verdade.

E a ofensiva se intensifica. O front cada vez mais ampliado, o inimigo cada vez mais irredutível. A heresia com a incorporação do Direito Romano ao Direito canônico, tornada crime de lesa-majestade no século XIII, acaba necessariamente no apelo às armas contras os hereges, cujo exemplo emblemático foi a Cruzada Albigense.

“Mas quem são os hereges?”, pergunta-se Michel Lauwers, buscando os hereges nas tensões sociais (as contestações aos privilégios e às determinações eclesiásticas) e analisa como exemplo o tema “Os sufrágios dos vivos beneficiam os mortos?”, demonstrando como os polemistas passaram da recusa das práticas impostas pela instituição à doutrina, fazendo dela um instrumento de julgamento da recusa: a heresia.

“Albigenses: observações sobre uma denominação”, cujo título despretensioso oculta o seu verdadeiro teor, é de longe o ponto alto da coletânea. Nele Jean-Louis Biget identifica a origem e analisa a história do nome ‘albigenses’, protagonistas de uma história que começa em 1209, mas que bruscamente foram ‘esquecidos’ após 1960, sendo substituídos pelos ‘cátaros’. Para isso retoma o papel da ordem de Cister como construtora da heresia. Empenhada em consolidar a reforma da Igreja, traduz os conflitos internos e regionais que comprometem a tão almejada unidade, como as expressões de divergências doutrinárias. Ou seja: a invenção de um nome para batizar os desvios da verdadeira unidade até designar todos os dissidentes religiosos do Midi.

Como lembra Dominique Iogna-Prat, a escassez de análises de discursos anti-heréticos é marcante até nossos dias. Os trabalhos sobre heresia analisam os documentos como fontes que expressam a realidade herética e não como um discurso construído com base na ótica constitucional.

Assim, este livro nos ensina um princípio fundamental. Frente aos documentos que tratam da heresia deve-se, em primeiro lugar, duvidar da realidade dos fatos descritos pelos textos produzidos pelo meio eclesiástico ou por autores a ele vinculados. R. I. Moore em seu posfácio vai além: “nem mesmo de um movimento não enquadrado e relativamente inocente de entusiasmo pela vita apostolica entre rustici“. A acusação de heresia tornou-se a principal ferramenta de construção da unidade, revestindo de uma ‘aura sagrada’ a tarefa bem menos momentosa aos olhos da comunidade cristã de eliminar desvios e manter o rebanho cristão dentro da ortodoxia proclamada como religiosa, mas cuja real ameaça não está no plano do sagrado, mas nas divergências políticas e sociais que ameaçam a instituição eclesiástica.

Apenas um senão que não compromete fundamentalmente a qualidade da obra. A tradução dos capítulos, ainda que feita de maneira correta, ressente-se do fato de ter sido executada por diversos colaboradores, o que leva o texto a variar seu estilo, ora mais fluido ora mais ‘trancado’. Mas repetimos: isso afeta a estética, não o conteúdo dos capítulos.

Não poderíamos terminar sem tratar de um pequeno, mas não menos importante capítulo (altamente esclarecedor do caráter rigoroso dessa coletânea) que estabelece ao final da obra um precioso contraponto: “Um caso de não-heresia na Gasconha do ano de 1208”. Frente a uma ‘revolução’ dos leigos dependentes de Saint Sever, na Gasconha, o legado papal reinverte os papéis, ignora práticas e faz dos episódios uma leitura não-herética – extremamente necessária em razão da crise que se estabeleceu entre Inocêncio III e João I da Inglaterra, o qual detinha os domínios das terras insurgentes. Estamos diante de uma boa demonstração da exceção que confirma e elucida a regra!

Enfim, o livro reúne artigos instigantes, que abrem as portas à dúvida e ao questionamento da construção da heresia. O que nos leva a terminar esta resenha assumindo como nossas as palavras do autor Benoît Cursente, que resume a perspectiva de todos os demais: “E nessa circunstância, para que a heresia não existisse, era necessário e suficiente não nomeá-la”.

Carlos Roberto Figueiredo Nogueira – Professor Titular, Universidade de São Paulo. Av. Lineu Prestes, 338 – Cidade Universitária. 05508-000 São Paulo – SP – Brasil, E-mail: crfnogue@usp.br.

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Inventar a Heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição | Monique Zerner

Desde a publicação de Montaillou de Emmanuel Le Roy Ladurie2, em 1975, consolidou-se um campo de investigação para a heresia. Com sua obra, os cátaros ganharam o olhar dos estudiosos da chamada Idade Média Central e foram alvos de investigação de homens preocupados com o descortinar do processo inquisitorial. Tais comunidades heréticas do século XIII eram opositoras à Igreja e sua recusa podia ser verificada na doutrina que sustentavam, de cunho dualista, anticlerical e antiprocriacional, que os ligava a gnósticos e maniqueus dos séculos iniciais da era cristã. Essa imagem do herege dominaria a historiografia e caminharia ao lado de uma linha de interpretação historiográfica também iniciada nas décadas de 60 e 70 do século XX. Ali, a heresia era tida como foco de resistência, não só à estrutura clerical, mas à cultura que se pretendia homogênea e dominante. Ligados ao campo da Nova História Cultural, trabalhos como os de Jacques Le Goff3 situaram a heresia em uma dinâmica sócio-cultural que deslocava o conflito social entre dominantes e dominados para a esfera cultural. A heresia, juntamente com as superstições4, passava a ser parte da manifestação da cultura popular, da expressão religiosa dos camponeses e estava atrelada, de maneira inequívoca, ao conflito cultura erudita/cultura popular, ou “folclórica”. Leia Mais