O Brasil na Guerra Fria Cultural – CANCELLI (H-Unesp)

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CANCELLI E O Brasil na Guerra Fria cultural Guerra Fria CulturalCANCELLI, Elizabeth. O Brasil na Guerra Fria Cultural: o pós-guerra em releitura. São Paulo: Intermeios, 2018. 182p. Resenha de: CATTAI, Júlio Barnez Pignata; CHAVES, Wanderson da Silva; Brasil de exotismo, minoridade e alinhamento: por uma contra-proposta historiográfica. História v.39  Assis/Franca,  2020.

Brasil na Guerra Fria Cultural: o pós-guerra em releitura, da historiadora do Departamento de História da Universidade de São Paulo, Elizabeth Cancelli, é realização de uma década de sólida pesquisa de documentos inéditos em arquivos do Brasil e dos Estados Unidos. Esforço que já resultou, entre trabalhos publicados no país e no exterior, no livro O Brasil e os outros: o poder das ideias (CANCELLI, 2012).

Neste novo lançamento, a autora aprofunda um tópico de investigação persistente na sua obra recente. Mais amiúde, as finalidades e o percurso de construção, durante a Guerra Fria, de três lugares-comuns da historiografia sobre o Brasil República, que são, além disso, também temas duradouros de nossa tradição de pensamento político: primeiramente, o exotismo brasileiro no interior da modernidade ocidental, tema através do qual vem sendo preenchidas de conteúdos as noções de “falta”, de “atraso” e de “subdesenvolvimento” nacional; em segundo, a defesa, para sanar essa condição de “minoridade” internacional do Brasil, de um ideal de missão intelectual cuja tarefa seja a adequação do país e do brasileiro a padrões hegemônicos de vida social e econômica; em terceiro, o destaque, nessas propostas de alinhamento, à acelerada transformação do Homem, equilibrada através da estabilidade da vida política e das esferas de poder.

Segundo Elizabeth Cancelli, o advento da Guerra Fria trouxe consigo um novo e sofisticado sistema de agendamento da vida pública, alimentando e sendo alimentado por estes três lugares-comuns, base de um eloquente sentimento de privação civilizatória. A formação desse sistema, em suas características de inovação e propostas de mudança, vistas em O Brasil na Guerra Fria Cultural, especialmente através do seu desenvolvimento na frente norte-americana, seria um tema negado e ausente da historiografia brasileira, para Cancelli, porque o debate temático se estrutura, de certa forma, de ponta-a-cabeça. As memórias individuais formam a principal base do arquivo material de época e a aposta teórica, na fluidez entre História e memória, operam conjuntamente uma típica inversão do processo analítico: a História protege a memória de revelar-se além de seus sintomas e, com esse suporte, que traz atributos de legitimidade, temos a propriedade de certas memórias recordadas sendo transformadas em “verdade”. Ela diz, especialmente na “Introdução” e nas “Considerações Finais” do livro, que são casos exemplares dessa inversão a Era Vargas e a ditadura instaurada com o golpe de 1964: o primeiro período é recordado na literatura privilegiando o projeto nacional de Getúlio, obliterando-se, no elogio a esse projeto, a violência que era a premissa do seu regime de modernização totalitário; em relação à ditadura de 1964, é justamente na violência que se funda, de forma quase exclusiva, a reflexão intelectual, de modo que a vida institucional do regime, do qual floresceu nossa “Nova República”, acaba soterrada em sua diversidade de problemáticas por aquilo que Cancelli chama de “a exaltação da memória espetáculo”. Para a historiadora, trata-se da tendência de a escrita da história sobre o período, encapsulada por uma rememoração “ressentida” de imagens de horror, tortura e desaparecimento, prender-se a uma dimensão sentimental e normativa de fala, transmissão e investigação, produzindo limites de compreensão, assim como de superação de problemas. Naturalmente, há no “ressentir” uma fragilidade de elaboração psíquica e política que resulta, à título de realização da justiça, na exortação e nomeação de certos heróis e vilões. O trabalho historiográfico deve, inclusive para fazer justiça à memória própria ao ressentimento, investir contra seus mecanismos de obliteração.

Para a autora, as idiossincrasias do eu testemunhal tendem a aprisionar a História no interior de dogmas e de fantasias pessoais – conforme a análise, inspirada em Jacques Derrida, de Elisabeth Roudinesco (2006), em A análise e o Arquivo – quanto maior for a escassez documental. A solução, portanto, viria da formação de um arquivo que indique, a contrapelo, no interior de instituições e projetos, justamente as formas e avatares de constituição desse sujeito, narrador da História. As fontes desse arquivo de pesquisa foram formadas, grosso modo, do material do Escritório de Assuntos Culturais do Departamento de Estado Norte-Americano, do National Achives and Records Administration (NARA); da documentação do Congresso pela Liberdade da Cultura (CCF) e do Instituto Latino Americano de Relações Internacionais (ILARI), duas frentes da Agência Central de Inteligência (CIA), arquivada na Biblioteca da Universidade de Chicago; dos documentos dos programas de patrocínio da Fundação Ford às Ciências Sociais, do Rockefeller Archive Center (RAC); e dos fundos relativos ao Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), think tank que se tornou fundamental para o golpe de 1964 e para o projeto do seu regime, guardadas no Arquivo Nacional. O Brasil na Guerra Fria Cultural beneficiou-se tanto da busca por novo material nesses arquivos quanto da opção por uma noção ampliada de fonte, na qual buscou-se abordar toda a produção bibliográfica temática também como documento. Assim, Cancelli mergulhou, no que concerne à produção intelectual, na releitura de trabalhos fundamentais do pensamento social, considerando, via desconstrução, os argumentos, lugar e posição de onde falam cientistas políticos como Samuel Huntington e Zbgniew Brzezinski, o pensador protestante Reinhold Niebuhr, os cientistas sociais Fernando Henrique Cardoso, Guilherme O’Donnell e Seymour Martin Lipset, dentre outros autores decisivos.

Atravessam o livro duas premissas de trabalho: é transnacional a dimensão de produção da história do Brasil e trata-se, a Guerra Fria, de um confronto entre distintos princípios ideológicos e de modelos de mudança. Estas premissas são tratadas mais detidamente nos capítulos 1 e 2, respectivamente, “A Guerra Fria Cultural no Brasil, a CIA e uma agenda antitotalitária” e “O ILARI, o Congresso pela Liberdade da Cultura e a construção de uma agenda para as Ciências Sociais”. Ali, a historiadora aborda a consolidação, sob a liderança norte-americana, de um consenso entre seus aliados sobre como o sucesso de pressões militares, diplomáticas e econômicas da Guerra Fria deveria ser obtido, antes e sempre, na arena das ideias do combate por “corações e mentes”. Isso orientou, na colaboração entre políticas oficiais de Estado e de organizações norte-americanas, para a sustentação de agendas de longa duração, centradas na formação e arregimentação de elites políticas, técnicas e intelectuais, das quais foram exemplares, justamente, o CCF e o ILARI. Eram realizados nestes órgãos, de forma modelar, investimentos, geralmente secretos, na promoção das ideias de desenvolvimento, modernização, democracia, liberdade e justiça social do “centro liberal”, a tendência política que se tornara um importante proponente da ofensiva que se convencionou chamar de cultural cold war.

Para esses proponentes, como o historiador da Universidade de Harvard, Arthur M. Schlesinger Jr, intelectual importante na administração de John F. Kennedy, países como o Brasil vivenciariam, no desenvolvimento econômico, industrial e urbano, uma via única rumo à consolidação gradual e pacífica da democracia. CCF e ILARI, neste sentido, eram parte de uma estratégia global na qual buscara se instituir, em lugares como o Brasil, uma agenda de trabalho focado na estruturação das Ciências Sociais como tecnologias de reforma social. Assim, através de uma ampla programação de pesquisas empíricas, as Ciências Sociais pretendiam projetar a criação de alternativas às teorias marxistas, apostando na formação de modernas “classes sociais” e na aceitação, em nome da estabilidade, das premissas de um Estado de Bem-Estar Social. O debate de questões raciais e, no Brasil, do “lugar do negro na sociedade de classes”, viria a ser, por exemplo, profundamente influenciado pela preocupação dessas políticas com o potencial explosivo do racismo para a administração das democracias modernas.

Grupos “conservadores”, como o representado pelo cientista político de Harvard, Samuel Huntington, também apostavam nessa intervenção política global e de apoio às Ciências Sociais, mas sustentando, diferentemente do “centro liberal”, que a modernização preconizada por eles geraria instabilidade política e pressão sobre as instituições, na medida em que produziria maior complexidade social e, por isso, pressão sobre a partilha do poder e da participação no governo. As propostas da orientação “conservadora”, tratadas principalmente nos capítulos 3 e 4, respectivamente, “O golpe de 1964 e sua construção antitotalitária: âncoras teóricas e redes intelectuais” e “Modernização, democracia e totalitarismo: teses de transição democrática”, estavam alicerçadas, para Cancelli, no preceito de que toda mudança, especialmente em nações consideradas “sem tradição democrática”, como o Brasil, corriam o risco de enveredarem pelo totalitarismo sempre que houvesse ameaça de ruptura institucional.

Segundo a historiadora, o golpe de 1964 e seu regime partiram de uma premissa “antitotalitária”, da qual o “centro liberal” também partilhava, que significava um acordo sobre o perigo da politização das “massas”, representada especialmente pelo “totalitarismo não derrotado”, o comunismo, e na contraposição que este, como qualquer proposta totalitária, representaria para as proposições ocidentais de democracia liberal, cristianismo, direitos humanos e justiça social. Mas, para pensadores como Huntington, o caminho para a democratização seria, em países como o Brasil, no máximo, elíptico, pois dependeria de um regime de “transição” que alternaria, necessariamente, para gerar estabilidade e acomodação de forças sociais emergentes, momentos de “compressão” e de “descompressão” política.

O “antitotalitarismo” ofereceria um guarda-chuva de estratégias de mudança, em particular, para o mundo pós-colonial africano e asiático e para os países “subdesenvolvidos” da América Latina, contornando, assim, quaisquer propostas de ruptura da ordem, combatidas como sendo “totalitárias”. Se as “teorias de modernização”, na frente antitotalitária, preconizavam o desenvolvimento econômico, na elevação das condições materiais de vida, como requisito de formação das instituições da democracia, tal como na proposição da Aliança para o Progresso, de que houvesse, ainda que anticomunista, a formação de uma liderança latino-americana progressista e moderada para a pacificação de conflitos sociais, nesta mesma frente, as teorias de “desenvolvimento político” preconizavam quase o inverso: o “fortalecimento das instituições” como princípio indutor de um ambiente “democrático” e de desenvolvimento econômico. A historiadora, na linha do que transmitira René A. Dreifuss (1987), demonstra como o IPES, além do trabalho conspiratório contra a administração de João Goulart, atuava, articulado às premissas antitotalitárias, como verdadeira agência de inteligência da ditadura. O IPES dava orientação a uma proposta de modernização que se constituía em diálogo com premissas huntingtonianas de segurança e estabilidade, isto é, a mudança, para eles, deveria se dar contra o desequilíbrio entre governo e governados, para que quaisquer transformações assumissem, via contínua aglutinação de forças políticas, uma sedimentação institucional que produzisse formas próprias de “transição”.

Samuel Huntington veio diversas vezes ao Brasil para o aconselhamento de lideranças fundamentais do regime, como Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, e divulgava suas proposições do “desenvolvimento político” junto a um novíssimo campo disciplinar de Ciência Política no país que a Fundação Ford vinha patrocinando. O cientista político de Harvard trazia, assim, ao debate acadêmico e à aplicação, pelas políticas de Estado, a importância de instrumentos de “compressão” e “descompressão”, que logo viriam a ter um uso específico na aplicação dos Atos Institucionais (AIs) da ditadura. A promulgação da Emenda Constitucional n.º 1, de 1969, que devolvera “a ordem legal ao domínio da Constituição”, marcaria o fim da estratégia de “compressão” pretendida com os AIs, para dar início a um debate sobre a tomada de medidas de “descompressão”. Ou seja, acerca de propostas de “abertura” na qual a assimilação de novos atores políticos, que a própria modernização da sociedade criara ou pusera em movimento, se desse no cálculo do equilíbrio entre as liberdades e as restrições a elas, tendo-se em vista, por princípio, a segurança e a estabilidade. Cancelli revela, nessa análise, que a leitura que capturou o discurso historiográfico, da disputa entre “duros” e “moderados” como sendo estruturante do governo realizado pela ditadura, trata-se, antes, de uma tipologia oriunda do trabalho de Huntington, com a qual pretendera-se criar, ora uma justificativa para a “compressão”, ora para a “descompressão”, fazendo emergir ou submergir grupos e projetos de poder, de acordo com a análise do que, em cada momento, configurava melhor a governabilidade e o que, dentro e fora do regime, representava o risco de rompimento da ordem.

O livro, em um diálogo da historiadora com uma nova produção de especialistas norte-americanos e europeus, vai de encontro às visões, não exclusivas de teorias das relações internacionais, nas quais se naturaliza a existência de práticas de “soft power” e de “hard power”, isto é, de separação entre o exercício do poder político-militar do ideológico e cultural, pois, segundo Elizabeth Cancelli, essa distinção, falha factualmente, é contraproducente analiticamente em relação ao fenômeno da “Guerra Fria Cultural” e de suas estratégias de persuasão, penetração política e dominação, objeto de suas pesquisas. O livro, se convida à um aprofundamento analítico além do sintoma, obriga o leitor e a leitora a considerar, por isso mesmo, como a nova configuração política dos anos 1970 pode ter sido orientada, no Brasil, na sua guinada para uma defesa dos direitos humanos e retorno à legalidade do Estado de Direito, menos por uma esquerda, que buscava reinventar-se frente ao esmagamento da luta armada, e mais por uma proposta dos EUA para a Guerra Fria, com a qual se pretendeu novas formas de engajamento político, em propostas de modernização que vinham renovar e substituir uma perspectiva tecnocrática e “amoral” de desenvolvimento das sociedades que tanto naufragara no Vietnã quanto quase implodira a própria sociedade norte-americana.

Brasil na Guerra Fria Cultural encaminha ainda duas questões sobre a transmissão e os usos da história do Brasil, sublinhando, nas justificativas colocadas à guisa de legitimidade dos discursos políticos: a) a persistente submissão dos meios aos fins, em propostas que, em nome de desenvolvimento e melhoria das condições sociais, soterram ou rebaixam a expansão das liberdades e da esfera pública; e b) a sustentação, nas agendas de “transição ”, de certa inaptidão democrática do país, indefinidamente colocado como incapaz de realizar-se senão como uma demanda feita ao futuro.

Para Elizabeth Cancelli, trata-se de uma captura pela máxima tocquevilleana, na qual se perguntava: “poderia a América do Sul (e o Brasil, por suposto) suportar a democracia?” Como O Brasil na Guerra Fria Cultural o demonstra, esta dúvida, uma velha novidade, é hoje nosso principal projeto de país.

REFERÊNCIAS

CANCELLI, Elizabeth. O Brasil e os outros: o poder das ideias. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012. [ Links ]

DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. 5a. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. [ Links ]

ROUDINESCO, Elisabeth. Análise e o arquivo. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. [ Links ]

Júlio Barnez Pignata CATTAI. Historiador, possui doutorado em História Social (2018) pela Universidade de São Paulo (2018). É autor de Guerra Fria e Propaganda: a U.S. Information Agency na mídia impressa brasileira, 1953-1964 (Prismas, 2017; Appris, 2018). Responsável pela coordenação do Núcleo de Pesquisa e Extensão e, na condição de Editor-Chefe, pela Revista Diálogos Acadêmicos – IESCAMP, do Instituto de Educação e Ensino Superior de Campinas. Membro no Brasil do Grupo de Estudos sobre a Guerra Fria, sediado na Universidade de São Paulo (USP/CNPq), dedica-se a pesquisas em História das Ideias, com foco em pensamento político, direito, intelectuais, organismos internacionais e liberalismo. E-mail: juliocattai@gmail.com 

Wanderson da Silva CHAVES. Historiador, possui graduação (2003) em Ciências Sociais, com habilitação em Antropologia e mestrado (2007) em Ciências Sociais, com especialização em Estudos Americanos, pela Universidade de Brasília; e doutorado em História Social (2012), pela Universidade de São Paulo (USP). Membro no Brasil do Grupo de estudos sobre a Guerra Fria e pesquisador colaborador do Departamento de História da USP, dedica-se atualmente a pesquisas na área de História Contemporânea, com foco em Guerra Fria, intelectuais, direitos humanos, organismos internacionais e racismo. E-mail: wanderson_schaves@yahoo.com.br

O Tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da história | Durval Muniz de Albuquerque Júnior

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. O Tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da história. São Paulo: Intermeios, 2019. Resenha de: MAYER, Milena Santos. Revista Expedições, Morrinhos, v. 11, jan./dez. 2020.

“Os textos aqui reunidos formam uma constelação simultaneamente erudita e polêmica, ferina e generosa, que pode ser lida de trás para frente, de frente para trás, com pés calçados no presente, com olhos no passado ou como um projeto de história futura” (CEZAR, 2019, p.12). É assim que o historiador Temístocles Cezar apresenta o livro “O Tecelão dos Tempos “publicado no ano de 2019 pela Editora Intermeios. Publicados anteriormente em outros livros ou revistas acadêmicas, os escritos são frutos de análises, pesquisas e apresentações do historiador Durval Muniz Albuquerque Junior em conferências, aulas magnas ou seminários. O autor de “A Invenção do Nordeste e Outras Artes” (1999), “Nordestino: Uma Invenção do Falo – Uma História do Gênero Masculino” (2003) e “História: A Arte de Inventar o Passado” (2007), dentre outros, apresenta a nova publicação rebatendo críticas e comentando a repercussão que o livro de 2007, dedicado também à teoria, que causou entre os colegas da academia.

Segundo Durval, as críticas iniciaram pelo próprio título, uma vez que os termos arte e invenção sugerem um debate polêmico e recorrente no campo da história diante da busca por uma cientificidade. Além das questões teóricas, o autor foi avaliado em relação a forma em que o texto foi construído e apresentado. Por esse motivo, o historiador dedica a apresentação do novo livro para rebater as críticas, justificar e argumentar o uso do ensaio como gênero de escrita. Para ele é possível produzir conhecimento histórico preocupando-se também com a forma e com a estética da narrativa. No decorrer da leitura é possível perceber a intenção em reforçar o entendimento de que o trabalho do historiador é um trabalho de escrita e que, portanto, a forma dessa escrita é essencial e um desafio constante. “Sem a reflexão crítica sobre a arte da narrativa não há ciência possível na historiografia” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2019, p. 16). Leia Mais

Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo” – PARANHOS (H-Unesp)

PARANHOS, Adalberto. Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”. São Paulo: Intermeios/CNPq/Fapemig, 2015. 172p. Resenha de: BUSETTO, Áureo. Sambas e bambas sem o breque do Estado Novo. História v.37  Assis/Franca  2018.

Na década de 1980, o samba andava em baixa na indústria fonográfica, no rádio e na televisão. A mídia promovia larga e amplamente outros ritmos musicais. Muitos vaticinavam o fim do samba. Em reação a tal cantilena, Paulinho da Viola em Eu canto samba, integrado ao seu premiado disco homônimo lançado em 1989, canta que ele há muito tempo escutava “o papo furado dizendo que o samba acabou”, ao que ementa resposta irônica: “só se for quando o dia clareou”. Enfim, o sambista, com maestria e temperança, pontuava que não era porque o samba seguia preterido ou vitimado por alterações impostas pelos interesses comerciais da mídia que ele havia deixado de existir, alegar a vida e falar das coisas dos sambistas e admiradores do gênero, bem como de ser cantado e dançado nas rodas de samba em fundos de quintais.

Ainda naquela década, na historiografia era assinalado que sambistas durante o Estado Novo, então, empenhado em alçar o samba urbano carioca à tradução musical da nacionalidade, tinham submetido suas canções totalmente aos valores políticos e sociais calcados na ideologia trabalhista idealizada e difundida por aquele regime ditatorial, via o vigilante serviço do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado no final de 1939 e atuante até o fim do regime, em 1945 (PEDRO, 1980GOMES, 1982VASCONCELLOS e SUZUKI JR., 1984).

Ainda que pretendesse revelar a censura sofrida e os esquemas de aliciamento do DIP investidos ao universo do samba, aquela historiografia caracteriza como dócil e passiva a adesão dos sambistas à ideologia estado-novista, mesmo essa se opondo radicalmente a elementos constituinte do samba urbano carioca, como, por exemplo, a malandragem e a boemia. Interpretação que, ademais, reforça a imagem de que o Estado Novo fora hegemônico, absoluto na vida cotidiana e mesmo na dimensão cultural, além de potencializar a mítica do líder máximo do trabalhismo, Getúlio Vargas.

Mas agora, com ampla e acurada pesquisa histórica, perpassada de igual sensibilidade e respeito com que Paulinho da Viola canta a gente e as coisas do mundo do samba, Adalberto Paranhos revela, em seu livro Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”, sambistas valeram-se em suas canções de “linhas de fuga” às investidas do DIP contra práticas e representações próprias do mundo do samba. Assim, o historiador assinala que bambas não foram somente sambistas que primavam pela qualidade do samba, mas, também, por saberem ou intuírem que nele apenas se podia admitir um tipo de breque, qual seja: aquela pausa do acompanhamento acentuadamente sincopado para intervenção declamatória do intérprete do samba. Enfim, se depreende da análise de Paranhos que, calcada em seu expressivo e firme conhecimento histórico e musical, as tentativas de doutrinação do trabalhismo varguista sobre o riscado do samba foram recebidas de maneira parecida à recepção dispensada a uma inautêntica baiana ao tentar entrar na roda de samba; valendo-se aqui de cena caracterizada pela letra do samba Falsa baiana, da autoria de Geraldo Pereira, lançado em 1944, na voz de Ciro Monteiro.

Na letra do seu samba, Geraldo Pereira narra que a impostura da falsa baiana se revela ao pessoal da roda de samba por ela não saber mexer, remexer e dar nó nas cadeiras. No seu livro, Paranhos evidencia que as intenções do Estado Novo em “higienizar a poética do samba”, em conformidade com a ideologia trabalhista, fora sentida e percebida por bambas como embuste em relação às coisas que nutriam e, mesmo, alegravam a vida de sambistas e do mundo a sua volta. Afinal, aquela imposição oficial era obra da elite, coisa de gente que sequer tinha patente para tirar samba – condição cultuada e defendida no meio sambista – e que imaginava, de maneira prepotente, bambas apenas dançassem conforme a música tocada. Completo desconhecimento da criatividade escapole dos que nasciam e queriam morrer com o samba, os quais em seu cotidiano tiravam de letra adversidades sociais impingidas pelos agentes do mando por meio da vigilância e força policiais. Dribles dados tanto aos apertos da subsistência, à época, amplamente pautada pelo desemprego e subemprego, quanto à ordem imposta que invariavelmente serviam de motes às letras de seus sambas, caracterizando o elo entre experiências de vida e a composição de suas canções, as quais, costumeiramente, ganhavam a aderência do seu típico público.

Na tentativa da falsa baiana entrar no samba, prossegue a letra de Geraldo Pereira, ninguém bate palmas, grita oba ou abre a roda para ela. As investidas do DIP para “higienizar” o samba, revelam as páginas de Os desafinados…, receberam por parte de bambas parecida recepção. E se eles, vez ou outra, aplaudiram, lançaram vivas ou abriram espaço em seus sambas aos valores políticos e sociais impostos pelo Estado Novo, não o fizeram por aquiescência própria e, mais ainda, não os dotaram necessariamente de igual sentido ao desejado por aquele regime. Se houve, conclui Adalberto Paranhos, a existência de uma plêiade de compositores e composições populares que se prestaram a enaltecer e exaltar o ideário estado-novista, fosse por meio de aliciamento ou de censura do DIP, o coro de sambistas descontentes com valores estado-novistas não deixou de se fazer presente no cenário musical, ainda que de maneira sútil e segundo as circunstâncias.

Não há como deixar de registar que Adalberto Paranhos lega um livro que expressa o cume da pesquisa na área de História, uma vez que enfoca tema e vale-se de fontes já tratados pela historiografia anterior, porém, fornecendo original e acurada interpretação deles por meio de abordagem inovadora. Com sua pesquisa, o historiador trata de um velho tema da história política – o poder do Estado na sociedade – e uma temática enfocada pela historiografia nas últimas décadas – o Estado Novo e a construção da nacionalidade – por um ângulo muito pouco tratado na área de História – o samba. Assim, a pesquisa e o livro de Paranhos se desenrolam com base na compreensão do entrelaçamento das dimensões da cultura, política e do social vigentes no Estado Novo, sem, contudo, desafinar quer nas notas necessárias para compreender as especificidades históricas de cada uma daquelas dimensões, quer nas dispensadas ao tratamento histórico das interseções entre elas. E como resultado final oferece novos e acurados acordes ao conhecimento historiográfico sobre as relações entre política e samba durante a ditadura varguista, os quais não poderão ser prescindidos em futuros estudos históricos sobre a política, sociedade e cultura na ditadura do Estado Novo, assim como nos voltados para história do samba, sob o risco de o pesquisador que agir ao contrário desafinar em suas conclusões.

Tomando o samba, ao mesmo tempo, como objeto e fonte de sua pesquisa, Paranhos transcende a limitada e arriscada análise centrada na letra ou partitura do documento canção. Ao valer-se de registros fonográficos gravados à época estudada, o historiador, por entender que a canção não existe em abstrato e o (re)interpretar também é compor, empreende, com grande acuidade, uma análise sobre a realização sonora da canção, englobando desde a orquestração musical à interpretação vocal, posto defender que tais expedientes são portadores de significações. É nesse diapasão que o autor revela que o emprego do breque em vários sambas da época funcionara para o intérprete se distanciar, ironizar, debochar e, mesmo, negar o que foi cantado na parte anterior da letra.

E quando da análise das letras dos sambas, Paranhos destaca palavras e expressões muito próprias às representações de criadores e cultores do gênero no período enfocado, dotando-as de historicidade, como, por exemplo, o faz com as palavras ‘batucada’ e ‘orgia’. Paranhos nos elucida que ‘batuque’ ou ‘batucada’ expressavam, ao mesmo tempo e paulatinamente a partir dos anos 1930, sinônimo ou referência de samba e elementos constituidores dele, sobremaneira quando se procurava dar ênfase na autenticidade do gênero e no seu valor como representante musical do povo brasileiro. Embora, saliente

que ambos os termos pudessem ser empregados quando se intencionava detratar o samba, segundo apreciações de lugares e comportamentos ligados ao gênero, isto é, os da população negra, mestiça e marginalizada. Em relação à ‘orgia’, nos ensina que a palavra expressava, nos sambas dos anos de 1930, o sentido de festa ou diversão pândega, logo, não se prendendo à conotação sexual que o termo pode suscitar, contudo, expressando ação oposta ao penar do mundo do trabalho, ainda que, dependendo do samba, a labuta com o trabalho pudesse oscilar entre honradez e humilhação.

Ademais, o livro de Adalberto Paranhos serve como dínamo a novos estudos históricos. Qual popular samba enredo após desfilar pela avenida, o conhecimento trazido pelo livro tende a ficar batucando na cabeça de atentos leitores sobre possibilidades de pesquisas ocupadas com as relações samba/política em outros períodos, bem como as de outras manifestações da cultura popular com o Estado e políticas governamentais. Batucada possível de se apossar da mente do leitor já nas páginas da introdução – intitulada sabiamente como Palavra Prima – e nas integradas ao primeiro capítulo do livro.

Com a leitura de ambas as partes, os leitores podem vislumbrar o rigor das reflexões sobre o saber historiográfico e elementos teórico-conceituais que Paranhos investiu à elaboração de sua temática de estudo, assim como o seu empenho na consecução da sua ampla e acurada pesquisa documental. Somam-se a isto férteis reflexões do historiador acerca do estatuto das variadas fontes consultadas (discos, jornais, revistas e conteúdos de programas de rádio, depoimentos), além de detalhes sobre a busca por elas, tarefa que envolveu dificuldades tanto da ordem de localização quanto de acesso. Registro que, ao mesmo tempo, facilita e estimula novas pesquisas com a documentação levantada. Louvável generosidade do autor para com a comunidade de pesquisadores interessados em estudos históricos sobre o Estado Novo e o samba.

No primeiro capítulo do livro, Paranhos apresenta um balanço reflexivo sobre as perspectivas teóricas que alicerçaram anteriores interpretações historiográficas ocupadas com a análise do Estado Novo e a dimensão do poder desse regime. Nessa direção, conceitos como hegemonia, dominação, resistência, apropriação e ressignificação, bem como questões teóricas centrais ligadas a eles, são enfocados, discutidos e refletidos pelo autor para definir e substanciar, de maneira objetiva e firme, a sua adesão à perspectiva da ‘história vista de baixo’. Capítulo que muito se distancia das partes introdutórias usualmente constantes em trabalhos acadêmicos e livros de difusão da pesquisa em História, posto que expressa diálogo ativo e reflexivo do pesquisador com referenciais teórico e historiográficos convergentes ou divergentes à perspectiva de análise e interpretação por ele compostas.

Longe de encerrar sua pesquisa sob a perspectiva de análise que tudo concede ao poder do Estado e centra-se na busca por marcar o império dos projetos de dominação estatal, Paranhos enceta uma abordagem que lhe possibilitou apreender os conflitos, as contradições, enfim, “o caráter dialético da dominação”. Para tanto, parte de elementos teóricos engendrados por Pierre Bourdieu (2002) e Michel Foucault (19771979)- votados à análise de práticas e dispositivos das disputas encontráveis nas relações de poder que atravessam os diferentes domínios sociais que compõem a sociedade – e de E.P. Thompson (1998) e Raymond Willians (1992) – ocupados em conhecer e analisar forças de lutas e resistências contra-hegemônicas.

Com tal foco analítico investido à plêiade de fontes pesquisadas, Paranhos evidencia, nos dois capítulos seguintes, como sambistas conseguiam, ao mesmo tempo, desempenhar, em meio à sua afirmação social, papel decisivo na incorporação do samba à galeria de símbolos nacionais e registrarem composições e interpretações dissonantes aos valores políticos e sociais ditados pelo Estado Novo, burlando as tentativas do DIP em “regenerar” o temário do gênero, extirpando desse representações sociais de mundo tidas como inconvenientes ao trabalhismo.

Dentro desse quadro, bambas investiram aos seus sambas, não sem sucesso, uma linguagem e/ou sonoridade prenhes de sentidos ambíguos, transpondo ao seu universo musical expediente tão comum no cotidiano da malandragem, geralmente empregado para despistar pequenos ilícitos e contravenções diante dos agentes da ordem. Nessa direção, bambas, como bem estabelece Paranhos, desenrolavam “linhas de fuga em relação à palavra estatal”, incorporando seus sambas às disputas de representações sobre o trabalho e o trabalhador, as quais, consonantes às experiências dos sambistas, podem ser sintetizadas pela letra de um samba da época: “o trabalho não dá camisa ao trabalhador”.

Mas Paranhos também capta a reação de bambas às investidas do Estado Novo em regular as relações de gênero, decorrência do entendimento dos ideólogos do regime que desajustes do mundo do trabalho contribuíam à manutenção de conflitos de gênero. Acentua que sambas com motes relativos às relações de gênero repercutiam as tratativas acerca do estabelecimento do Estatuto da Família entre o final dos anos de 1930 e o início da década seguinte. Apresenta como sambistas cantavam, de um lado, as insatisfações das mulheres no desempenho da função de provedoras do lar, em decorrência de seus maridos ou companheiros não assumirem ou negligenciarem aquele compromisso social – o que, aliás, como destacada o historiador, sambas que “não deixavam de retratar a sobrevivência de figuras masculinas que voltavam as costas ao trabalho”-, e, de outro, entoavam os lamentos de homens por conta de suas mulheres não se submeterem ao esperado papel social de dona de casa, preferindo elas a diversão. Assim, enfatiza o historiador, sambistas mesmo que admitissem a intromissão oficial na moral conjugal, mantiveram brechas em seus sambas para discordar e, mesmo, desprezar o ideário das relações de gênero difundido pelo regime estado-novista.

Há ainda que se considerar que os dois últimos capítulos iluminam ainda mais o que se conhece sobre a estrutura e dinâmica da indústria fonográfica e do rádio nos tempos do Estado Novo (CABRAL,1990LAGO,1977), enfatizando ou revelando práticas e representações próprias de agentes integrados naquelas mídias, fossem em termos da programação musical de maneira geral, fossem em relação ao samba. Sem deixar de demarcar precisamente as interseções entre aquelas duas mídias eletrônicas e a imprensa no tratamento tanto das manifestações culturais populares/samba quanto das populações identificadas com elas.

Sem dúvida, Os desafinados… se inscreve como livro original e inovador na historiografia sobre o Estado Novo e o samba, mas, também, como um ótimo guia a todos os interessados em melhor ouvir, sentir e compreender historicamente o amplo repertório dos bambas em tempos da ditadura varguista.

Referências

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LAGO, Mário. Na rolança do tempo. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. [ Links ]

PEDRO, Antonio (Tota). Samba da legalidade. Dissertação (Mestrado em História) – USP, São Paulo, 1980. [ Links ]

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VASCONCELLOS, Gilberto; SUZUKI, JR. Matinas. A malandragem e a formação da música popular brasileira. In: FAUSTO, Boris (dir.). História geral da civilização brasileira – III – O Brasil republicano (Economia e cultura: 1930-1964). 3.ed. São Paulo: Difel, 1984. [ Links ]

WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1992. [ Links ]

Áureo Busetto. Professor Doutor. Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História, UNESP. Av. Dom Antônio, 2100, Parque Universitário, Assis, 19.806-900 SP, Brasil. E-mail: aureohis@assis.unesp.br.