Intelectuais, Literatura e Historiografia / Vozes Pretérito & Devir / 2014

No quadro acima do pintor francês Henri Matisse, denominado “Mulher Lendo”, vê-se uma mulher sentada de costas para o olhar curioso do seu observador. À sua frente, vestígios de um tempo esquecido, mas iluminado pela luz que parte de uma tímida luminária, permitindo ver a existência de um pequeno lugar excedido por um móvel que guarda sob sua superfície alguns objetos (quadros, vasos, objetos decorativos).

O pequeno móvel encontra-se ligeiramente aberto, dando mostras da existência de alguns papeis, provavelmente o lugar onde a mulher abriga o livro que lê de maneira silenciosa e indiferente à presença do seu observador.

A cena retratada pela imaginação e pelos pinceis de Matisse faz parte do acervo sensível do imaginário sobre leitores e leituras, desde o tempo que a Literatura se avizinha ao gosto humano de criar outras dimensões ficcionais; de abrir novas expectativas temporais e desenhar outras virtualidades ligadas ao espaço, aos sonhos, às necessidades e expectativas.

A leitora de Matisse representa o nosso desejo inconsciente de escapar do tempo comum, do tempo calendário e tornar-se andarilho no tempo da leitura. O tempo da leitura é o tempo do agora que presentifica o texto. Ele dissolve o passado, dando a esse novo formato, possibilidade e historicidade, pois o tempo se renova a partir do olhar de cada leitor(a) e de cada flâneur.

Não olhamos as coisas e as pessoas da mesma forma, mas sob nossa perspectiva. Nosso olhar é de perspectiva, referencial e moldado pela nossa experiência de leitores. É a nossa experiência que atualiza sujeitos, objetos, problemas, que nos chegam desfocados do passado. É o presente que amplia as formas do passado. Não somos presidiários do passado. Aquilo que nos chega amorfo, empoeirado, desgastado pelo tempo é atualizado pela leitura, pelo tempo sempre inebriante do presente. Somente o presente atualiza o passado. No presente de cada passado existe uma leitora de Matisse atualizando o tempo, os sentidos e as passagens.

Em nosso Dossiê, Intelectuais, Historiografia e Literatura, existem várias passagens atualizadas pela artimanha dos nossos leitores privilegiados: os autores e autoras. Há passagens com relação ao Arquivo de si: as implicações entre testemunho, escrita literária e escrita de si, escrito por Ana Cristina Meneses de Sousa; Sociabilidade intelectual na imprensa natalense na Primeira República (1889-1930), de Maiara Juliana Gonçalves da Silva; O que há de impessoal em arquivos pessoais: considerações a partir de uma experiência de pesquisa na França de Rafael Faraco Benthien; Poema erguido na rua: usos e sensibilidades de uma Teresina em dois tempos (57 / 77) de Renata Flávia de Oliveira Sousa;A cronologia das bestas e o cumprimento das profecias: o conhecimento histórico nas obras pentamonarquistas de William Aspinwall (1653-1657), de Verônica Calsoni Lima; Roberto Piva, periferia-rebelde e estética da existência: subjetividades urbanas desviantes e manifestos literários no Brasil (1958-1967), de Reginaldo Sousa Chaves; Sobre a cultura política de esquerda na França e suas reconfigurações na revista Socialisme ou Barbarie (1946-1968) de Guilherme Bianchi Moreira; Homens de cultura na Baixa Idade Média ocidental: aspectos da formação erudita de Eliane Santana Veríssimo; Carlos Eduardo Zlatic; Oswald de Andrade e a experiências de modernidade em São Paulo: identidade, sociabilidade e política, de Marcio Luiz Carreri; Luiz Costa Lima: afinidades e linha de força de uma obra de Raphael Guilherme de Carvalho; Representações da Nação: a apresentação de Alceu Amoroso Lima no álbum fotográfico Brésil de Rafael Luis dos Santos Dall’olio. Além dos textos de Ronaldo Zatta, em tributo a Helenice R. da Silva e André Feixo que discute a série de documentos históricos editados sobre a direção de José Honório Rodrigues quando este esteve à frente da biblioteca nacional.

Os artigos favorecem pensar outras virtualidades sobre a relação história e literatura, como: A cidade e a música popular: Teresina e os espaços de prática musical nos anos 1980, de Hermano Carvalho Medeiros; Euclides da Cunha, Rodolfo Teófilo e o debate sobre a migração cearense para a Amazônia, de Bruno de Brito Damasceno; Instituto do Museu Jaguaribano: discurso e cidade, de Alex da Silva Farias.

Além dos artigos, a nossa 3º edição conta ainda com uma homenagem à professora Helenice Rodrigues da Silva, ex-conselheira da revista, falecida ano passado, grande estudiosa da história intelectual, e uma resenha sobre Reflexões sobre a escrita e o sentido da História na Muqaddimah de IbnKhaldun, publicado em 2012 por, Elaine Cristina Senko, analisada pelas pesquisadores Ana Luiza Mendes, Bel Drabik.

Todos esses escritos desalojam a leitura, abrem novas virtualidades e passagens no tempo. As configurações elaboradas por nossos autores e autoras provocam por parte de nós, seus leitores, novas refigurações, ou seja, a transformação das nossas experiências vividas sob o efeito da narração.

A partir da remodelação de nossas experiências de leitor reconstruímos historicamente o passado baseados nos rastros deixados pela ausência desse. É a partir da ficcionalidade de nossa leitura que transformamos a nossa experiência temporal.

Nesse sentido fica o convite para os nossos leitores virtuais e atemporais refigurarem seu mundo de forma diferente, a partir da apreciação de nossos escritos; pois a leitura é uma atividade de recepção e de reapropriação transformadora dos nossos sentidos e percepções.

Somos todos como um quadro de Matisse, pintados pelo tempo, refigurados pelos novos sentidos que damos ao mundo. Assim como a leitora de Matisse, também subtraímos do tempo suas inquietações, pois ele passa, mas cabe a nós preenchê-lo de sentidos, remodelarmos seus rastros e permitirmos que o passado seja uma tela sempre pronta para novas refigurações e atualizações.

Boa leitura!!!

Ana Cristina Meneses de Sousa


SOUSA, Ana Cristina Meneses de. Apresentação. Vozes Pretérito & Devir. Teresina, v.3, n.1, 2014. Acessar publicação original [DR]

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