História da saúde e das doenças: instituições, discursos e relações de poder / História – Debates e Tendências / 2021

BARRIERE Professores da Faculdade de Medicina História da saúde e das doenças

A saúde e as doenças não podem ser pensadas como conceitos estanques, a complexidade que envolve o estar são ou doente tem uma relação direta sobre como as sociedades interpretam e assimilam esses dois estados. Assim, a conceituação também está envolvida nas relações de poder, nas disputas discursivas que dizem respeito aos diversos comportamentos referentes à multiplicidade de doenças existentes.

O saber médico precisa ser problematizado nos diversos contextos, possibilitando ver como os discursos se articulam e garantem a sua condição de existência. Neste sentido, as representações sociais sobre as doenças estarão diretamente relacionadas com os mecanismos de controle, definição e exclusão dos indivíduos em diferentes conjunturas históricas. Leia Mais

Religiões e religiosidades: dinâmicas institucionais e práticas devocionais (Brasil e Portugal, séculos XVIII e XIX) | Temporalidades | 2021

Basta lermos o jornal ou assistirmos ao noticiário na TV para percebermos que a temática da religião é recorrente em nosso dia a dia. Quem nunca ouviu a expressão bancada evangélica ou escutou que grupos políticos alteraram seus discursos para não desagradar a determinados segmentos religiosos? Quem, nos últimos 20 anos, não se deparou com o conceito de fundamentalismo ou de guerra santa? Não há como negarmos a influência cultural das religiões ainda hoje. Além disso, percebemos uma constante tensão entre diferentes crenças no Brasil. Basta uma busca rápida no Google para localizarmos diversas informações sobre a violência e a intolerância religiosa. O jornal Correio Brasiliense divulgou, no ano de 2019, que as religiões afro-brasileiras são alvos de 59% dos crimes de intolerância no Distrito Federal [1]. O Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015) analisou a crescente violência noticiada na imprensa. Segundo os dados, 53% dos agredidos são de religiões afro-brasileiras [2]. O que explicaria toda essa violência? Por que as religiões afro-brasileiras sãos as que sofrem mais ataques? Não são questões simples de serem respondidas, mas são possíveis de serem analisadas à luz da História das Religiões. Marcelo Massenzio, ao analisar a obra de Angelo Brelich, lembra-nos que os fenômenos que atribuímos ao plano da religião podem ser percebidos em distintas sociedades, mas o conceito religião não. Este é uma construção própria do ocidente cristão (MASSENZIO, 2005, p. 179). Leia Mais

Perda de informação e de bens em arquivos e instituições responsáveis por guarda do patrimônio / Revista do Arquivo / 2020

Sinistro, palavra comum no jargão arquivístico e também no vocabulário de seguradoras e órgãos de prevenção a desastres, em quaisquer dos sentidos indicados por sua sinonímia transmite ideia de negatividade.

Segundo o dicionário [1], no adjetivo, sinistro é tudo o que é de “mau agouro, que pressagia desgraças”, ou ainda que “infunde temor, ameaçador, assustador, temível”, ou “o que provoca o mal, perigoso, pernicioso… o que é trágico, calamitoso”. No caso específico do significado substantivo da palavra, sinistro é “qualquer acontecimento que acarreta dano, perda ou morte; acidente, desastre, soçobro”, ou “grande prejuízo material, dano …. sobre o qual se faz seguro”, e finalmente, “risco”.

Entretanto, o sinistro aqui é tratado como uma dimensão da preservação. Dito de outro modo, sob o astuto viés da dialética, o sinistro é a preservação em sua negatividade.

Nesta décima primeira edição da Revista do Arquivo, esse ‘mau agouro’, ou ‘acontecimento’ que incide na realidade dos arquivos, é o foco central de nossas preocupações.

Não é para gostar, é para ficar atento!

Introdução ao Dossiê

Desta vez, um pequeno e substancial mosaico de olhares sobre o tema. Cinco assinaturas em quatro textos a refletirem sobre o tema da preservação nas suas variadas dimensões.

Marcelo Chaves e Marcio Amêndola abrem o espectro da Revista com contundente grito de alerta sobre a cotidianidade e a invisibilidade dos sinistros nos arquivos brasileiros. Faltam números e estatísticas, mas sobram condições e motivações para o “mau agouro que pressagia desgraças” nos arquivos brasileiros. Buscam-se números nos silenciosos relatórios administrativos e também na barulhenta e nem sempre consequente imprensa. Leiam e reflitam com A perda de patrimônio cultural como negatividade da preservação.

Uma das maiores autoridades em conservação e preservação de patrimônio cultural e “alto funcionário” do ICCROM [2], Luiz Pedersoli nos deu a honra de sua entrevista que destila muito conhecimento, equilíbrio e assertividade: O gerenciamento de riscos é um processo contínuo e tem que constar entre as prioridades institucionais.

Tratando da Perda de informações e de bens em arquivos e segurança da informação e o viés digital, Vanderlei dos Santos reitera estudo realizado pelo Ministério da Justiça canadense, que conclui serem quatro os grupos que ameaçam a segurança da informação nos arquivos digitais: a) de natureza tecnológica; b) falha da instituição na adoção de medidas de segurança adequadas; c) ação de usuários autorizados; e d) ação de usuários não autorizados. Confiram!

“Então, é fundamental a visão da preservação digital sempre levando em consideração o que eu chamo do tripé do documento digital, que é o hardware, o software e o suporte, ou seja, onde a informação está registrada”. Com esse trecho da ótima entrevista que conclui o brilhante bloco introdutório, convidamos o leitor a ‘escutar’ com atenção as orientações de Humberto Innarelli em texto intitulado Sinistros em ambientes digitais de arquivos.

Artigos

Recomendações para acervos de arquivo após perdas causadas por incêndio é o título de artigo em que “apresenta-se parte dos resultados da pesquisa que teve como objetivo servir de orientação para o desenvolvimento de um plano de recuperação do acervo pós-desastre. Tudo isso baseado no caso da Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional (SEMEAR), sinistrado em setembro de 2018”. Os seus autores são Jorge Dias da Silva e Eliezer Pires da Silva.

Denise Aparecida Soares de Moura, no seu Montando as peças de um quebra-cabeças: dispersão de informações e bens em arquivos, trata de um dos fenômenos mais comuns e dos menos difundidos no rol de sinistros que causa perda de informações e fere pilares da ciência arquivística, como os princípios da proveniência e da organicidade dos documentos de arquivo: trata-se do pouco conhecido fenômeno da dissociação.

“Cada vez mais, obras de arte, artefatos arqueopaleontológicos, antiguidades, fauna/flora e obras bibliográficas são subtraídas, furtadas ou roubadas de seus lugares de salvaguarda para que sejam empregadas no mercado internacional…”. Este tema abordado por Rodrigo Christofoletti e Nathan Agostinho é de suma importância e remete-nos à reflexão sobre os sistemas de segurança das instituições de guarda de bens culturais. Leiam Tráfico ilícito de bens culturais: uma reflexão sobre a incidência do furto de patrimônio bibliográfico raro no Brasil.

Pablo Antonio Salvador Vasquez e Maria Luiza Emi Nagai são autores que nos apresentam a Contribuição da tecnologia de ionização gama na recuperação de acervos do patrimônio cultural, a partir de revisão bibliográfica e de exposição de práticas realizadas pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). Um alento em meio às sombras.

Isis Baldini escreve ensaio em que arrola dados comparativos de diferentes fontes, de vários sinistros ocorridos no mundo, e no Brasil, em particular, chamando a atenção para o aumento significativo desses eventos nas instituições de patrimônio cultural. Suas análises são também baseadas em ocorrências experimentadas em sua vida profissional, com as quais ela se deparou “com inúmeras situações de emergências, sendo que algumas vieram a público, pela sua própria magnanimidade do evento, e outras não”.

Ainda dentro do tema do dossiê, esta edição nº 11 oferece aos seus leitores a oportunidade de acesso inédito em nossa língua pátria, ao excelente artigo do canadense Jean Tétreault, gentilmente cedido e autorizado pelo periódico Jornal da Associação Canadense para a Conservação e Restauro (J.CAC). Trata-se de verdadeira obra de referência sobre o assunto.

A subseção Autor(a) convidado(a) traz excelente texto coletivo que nos oferece a oportunidade de conhecermos Waldisa Rússio, sob a perspectiva apontada pelos complexos trabalhos de organização do arquivo pessoal dessa importantíssima museóloga brasileira. A assinatura é coletiva e multidisciplinar: Viviane Panelli Sarraf, Paula Talib Assad, Karoliny Aparecida de Lima Borges, Sophia Oliveira Novaes, Guilherme Lassabia Godoy, Carlos Augusto de Oliveira e Lia Cazumi Yokoyama Emi. O título do artigo é Museus, Arquivos Pessoais e Memórias Coletivas – uma análise baseada na experiência de sistematização do Fundo Waldisa Rússio no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Tanto conteúdo de primeira qualidade é para encher de alegria e de orgulho a instituição e os editores da Revista do Arquivo.

Intérpretes do Acervo

Karoline Santana Moreira, assistente social e pedagoga, Katherine Cosby, historiadora e Joyce A. Martirani, comunicadora social. Pesquisadoras, cujos interesses abrangem distintas áreas do conhecimento e a busca por dados e contextos que agregam veracidade às suas respectivas linhas de pesquisa, tendo em comum a singularidade da presença no (do) Arquivo do Estado de São Paulo.

Prata da Casa

Desta vez, não é um setor em destaque, mas uma atividade coadjuvante e silenciosa para resguardar o trabalho dos diversos setores e fazeres técnicos de uma instituição arquivística. Convidamos o leitor a conhecer um pouco das estratégias utilizadas por profissionais responsáveis pela coordenação dos trabalhos de gerenciamento de riscos no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Vitrine

Os dramas para quem quer pesquisar arquivos da televisão brasileira; a riqueza dos documentos cartoriais para a escrita da História; a falta de visão patrimonial para manutenção de arquivos escolares e crônica de memórias de uma garagem. Esses são grandes assuntos tratados no formato ligeiro desta seção, assinados, respectivamente, por Eduardo Amando de Barros Filho, Mara Danusa Bezerra, Priscila Kaufmann Corrêa e Isaura Bonavita.

Arquivo em Imagens

O inverso (perverso) da preservação. O título já nos incita a um mergulho em imagens do “lado B” da preservação. Para quem tem sensibilidade e apreço pelo patrimônio cultural, são imagens chocantes, como uma arte em estado degenerado.

Memórias na Pandemia

Oferecemos duas distintas expressões do impacto da “pandemia” em nós. Camila Brandi, que condensou suas sensações relacionadas ao cotidiano do(s) arquivo(s), no exato dia 19 de junho; e Isaura Bonavita, em sua crônica lírica desaguada na poesia de Cora Coralina.

Atentem. Comentem. Critiquem!

Notas

1. Ver: http://michaelis.uol.com.br/busca?id=kLNdM

2. Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro de Bens Culturais (a sigla ICCROM é a original do Inglês)

Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano VII, N. 11, out., 2020. Acessar publicação original [DR]

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O Governo dos negócios: comércio, instituições e seus agentes entre os séculos XVIII e XIX / Varia História / 2020

A investigação sobre as origens do direito dos comerciantes, os debates em torno de sua datação mais ou menos recuada no tempo, as pesquisas das primeiras citações nas obras dos juristas do século XVI, ocuparam durante muito tempo os historiadores entre a Idade Média e a Era Moderna. O desafio era identificar o momento em que um mundo à parte teria sido criado e o comércio teria ganho uma relativa autonomia em relação a outras esferas da vida social, estruturando assim suas próprias instituições e ditando suas próprias regras. Essa investigação sobre as origens foi sem dúvida incentivada pelo desejo de legitimação das elites comerciais que, sobretudo no século XVIII e em várias situações na Europa e para além dela, manifestou-se de maneira particularmente urgente nos contextos frequentemente ferozes de disputas políticas dentro dos governos. Seus argumentos em torno da irredutível especificidade do universo do comércio e da necessidade de garantir-lhe um lugar privilegiado encontrou um público atento e sensível entre os historiadores contemporâneos, nutrido pela experiência atual da chamada “autonomia” de esfera econômica em relação a outros domínios da vida social.

Algumas pesquisas fundamentais contribuíram, nos últimos anos, para mudar essa situação e abriram caminho para questionamentos mais aprofundados. Por um lado, todo um ramo de estudos sobre o que podemos definir como “os léxicos econômicos” das sociedades medievais e modernas lançou uma nova luz sobre as relações entre economia, direito, religião, que mostraram sua estreita conexão. Nos trabalhos de Bartolomé Clavero (1991) ou de Giacomo Todeschini (2002) trata-se menos de identificar as raízes religiosas da economia do que mostrar em que medida os dois domínios são construídos com o mesmo material, pois seus conceitos estão baseados nos mesmos princípios. As palavras contrato, troca, dívida, crédito, juro… estão carregadas dessa pluralidade de significados devido a seu caráter anfíbio, em que toda separação entre questões materiais e questões morais ou jurídicas seria paradoxal. Nesse contexto, toda “autonomia” ou especificidade irredutível do campo econômico mostra seu caráter anacrônico; e a pesquisa sobre a “cultura do negócio” se abre a uma pluralidade de domínios frequentemente inesperados.

Outro movimento que contribuiu para “libertar” a esfera econômica dos limites que tinham sido construídos em torno dela foi a maior atenção em relação a um tema aparentemente técnico, o dos modos de resolução de conflitos e do procedimento judicial seguido nos tribunais dedicados aos casos comerciais (AGO; CERUTTI, 1999). O terreno era delicado porque, como acabamos de mencionar, o direito e a justiça eram os domínios em que a busca pela originalidade na esfera econômica era mais desenvolvida. O direito em vigor nos tribunais que lidavam com esses casos era visto como um ramo separado do direito, mesmo em períodos em que essa separação não estava prevista e nem era buscada pelos contemporâneos. Essa abordagem limitou a compreensão dos princípios que regiam esses procedimentos judiciais, cujas características – a brevidade, os custos mitigados, a ausência de advogados, importância das provas escritas, etc. – estavam relacionadas principalmente às exigências do comércio. Trata-se de um daqueles casos em que o resultado de um processo reconstrói, no sentido contrário, sua própria história. De fato, é sabido que o próprio conceito de ius mercatorum apareceu na verdade tardiamente, em pleno século XVI: anteriormente, as bibliotecas dos juristas falavam apenas de clérigos, professores, aprendizes, camponeses, soldados, viúvas, menores, e a condição jurídica do comerciante era difícil de distinguir daquela que caracterizava o grupo de pessoas que gozavam do mesmo regime de derrogação. Na mesma ordem de ideias, algumas décadas atrás alguns autores alertaram para perspectivas demasiado estreitas que tendiam a confinar o ius mercatorum em um espaço dedicado, negligenciando assim as relações que o vinculavam aos direitos e privilégios que uniam, na Idade Média, as diferentes figuras da itinerância.

E, de fato, na origem dessa nova consideração do lugar do mundo do comércio nas configurações sociais dos diferentes países, havia também uma constatação importante: o fato de que o procedimento judicial seguido por um grande número de tribunais de comércio durante toda a Era Moderna tinha uma tradição antiga e estava longe de se limitar apenas aos comerciantes. O procedimento sumário – como era denominado em uma pluralidade de situações territoriais (CERUTTI, 2003) – era aquele ao qual tinham direito diferentes figuras sociais que compartilhavam uma debilidade específica, uma relativa incompetência das normas locais relacionada tanto à fragilidade de seus estatutos (e de sua capacidade de agir diretamente na justiça; viúvas, menores, etc.) quanto à mobilidade no território (comerciantes, soldados, peregrinos, empregados, etc.). A justiça sumária também era chamada de justiça para “os miseráveis”, isto é, os estrangeiros, os pobres, as viúvas, os menores, os órfãos, os camponeses, os soldados, os empregados, os peregrinos e, finalmente, os comerciantes. A “sumária” era, portanto, o procedimento que poderia ser administrado pontualmente por certo número de tribunais, para além daqueles destinados aos atos comerciais. No caso do Estado da Saboia, por exemplo (do qual tratou minha própria pesquisa), o rito sumário era aquele seguido pelo Senado do Piemonte para resolver os assuntos das viúvas e dos menores, ou ainda aquele seguido pelo Vigário para resolver os diferendos relativos aos empregados. Tal procedimento permitia o acesso direto à justiça (sem seus advogados, sem seus custos) por parte de uma população que compartilhava uma fragilidade devida a uma menor inscrição social. Esse procedimento deve ser inscrito, de fato, no quadro mais geral das justiças “derrogatórias” das formalidades do processo, caracterizadas por um arbitrium procedendi (MECCARELLI, 1998); se, no caso dos procedimentos inquisitoriais, por exemplo, o rito sumário remete à maior liberdade do juiz, livre da figura iudicii, no contexto judicial dos tribunais comerciais o arbitrium se traduzia pela maior possibilidade de ação das partes, expressa, aliás, na fórmula consagrada: ser “juiz em seu próprio processo”.

No entanto, reinserir a justiça dos comerciantes no panorama das justiças urbanas significa, ao mesmo tempo, ocultar sua irredutível originalidade e revelar a riqueza da cultura jurídica dessas sociedades da Era Moderna. Assim, somos confrontados a esse pluralismo jurídico que caracterizou uma parte da nossa história e, portanto, às condições de convivência, dentro da mesma sociedade, de várias maneiras de conceber o justo e de administrá-lo.[1]

Várias ideias de justiça podiam coexistir no mesmo espaço e no mesmo lugar, que podiam ser moduladas em função das fisionomias sociais do público ao qual essas justiças se dirigiam. Isso nos introduz à dialética existente nessas sociedades modernas entre diferentes fontes de direito, bem como entre diferentes tradições jurídicas que compunham a construção heterogênea do direito comum. Em relação à justiça comum, a “sumária” nos introduz a uma articulação diferente da relação entre caso e série; entre fatos e direitos; e finalmente aos diferentes elementos que constituem a gramática do vínculo social vigente no campo judicial.

Finalmente, o último ponto de inflexão que abriu uma nova consideração sobre o lugar ocupado pelo mundo do comércio nas sociedades da era moderna, colocando em discussão, mais uma vez, a suposta “autonomia”, foi inaugurado por esses trabalhos que reivindicavam sua filiação à economia neoinstitucionalista.[2] Como se sabe, a reflexão enfocou o papel desempenhado por uma pluralidade de instituições (mais ou menos formalizadas, das corporações aos tribunais, aos Consulados, aos árbitros privados…) na construção de relações de confiança e na produção de certificações capazes de reduzir a incerteza das trocas, ocorrendo em sociedades caracterizadas por sistemas de informação muito incompletos. A consideração das características próprias às economias e aos mercados da Era Moderna e das condições de incerteza em que as trocas aconteciam abriu caminho para uma nova atenção em relação a esse panorama institucional que, muito longe de ser apenas o cenário dessas trocas, tinha desempenhado claramente um papel essencial em sua realização.

Juntos, portanto, esses diferentes movimentos – a consideração das relações existentes entre direito, religião, economia e mercado; a consideração das modalidades de resolução de conflitos e da variedade de instituições que foram criadas e convocadas para garantir o sucesso das transações – mudaram definitivamente o nosso conhecimento do mundo do comércio e, de maneira mais geral, do funcionamento da economia da Era Moderna.

A coletânea de ensaios que se segue é uma excelente prova do novo momento que se abriu para esses estudos. Cada um dos seis artigos aborda um tema que evocamos. O ensaio de Guillermina del Valle Pavón nos mostra como o campo da economia e o da devoção se encontraram e se reforçaram mutuamente; as práticas de crédito adotadas pelos grandes comerciantes da Cidade do México no fim do século XVIII baseavam-se na criação de “capellanías”, portanto, de fundações religiosas, cujos bens constituíam meios de construção de redes úteis para o comércio. Em outras palavras, o terreno do investimento financeiro e o do investimento devocional estão estreitamente ligados, manifestando assim “a articulação complexa que existia entre a cultura católica e a reprodução social das redes de negócios no Antigo Regime novo-hispânico”.[3] Mais uma vez, trata-se menos de destacar comportamentos “oportunistas” por parte das pessoas no comércio do que enfatizar as imbricações de culturas familiares, comerciais e devocionais nessas sociedades da Era Moderna, o que torna anacrônico qualquer leitura disciplinar desses três domínios.

Por outro lado, duas das contribuições abordam um tema cuja importância acabamos de mensurar, o das formas institucionais que eram componentes essenciais do funcionamento do comércio em uma pluralidade de situações sociais. O ensaio de Javier Kraselsky, que traça as vicissitudes do Consulado de Comércio de Buenos Aires entre os séculos XVIII e XIX, mostra a importância dessa instituição na definição das políticas da coroa desde o início e depois dos governos revolucionários; enquanto o caso das corporações lusitanas analisado por Miguel Dantas da Cruz destaca o papel ativo que essas desempenharam no panorama urbano mesmo depois do terremoto de 1755 e pelo menos até as primeiras décadas do século XIX (contra a imagem corrente da decadência que teriam sofrido instituições que a historiografia frequentemente pintou como conservadoras e hostis a qualquer avanço do comércio e da indústria).

Finalmente, os ensaios de Andréa Slemian e Cláudia Chaves enfrentam o tema das modalidades de resolução dos conflitos comerciais, das instituições responsáveis por esses fins e das relações entre os sistemas judiciais que essas propõem e a oferta jurisdicional mais ampla. No centro dessas pesquisas estão os árbitros que garantiam uma justiça “laica” para os diferendos comerciais no Portugal do século XVIII, propondo, assim, os princípios de uma justiça “entre pares”; e, por outro lado, a Real Junta de Comércio do Império Luso-Brasileiro, cuja produção jurisprudencial é objeto de uma análise inovadora.

Cada um desses ensaios é, em suma, uma contribuição essencial para esta nova consideração do lugar do comércio e da vida econômica que contribuiu decisivamente para questionar não apenas o passado das sociedades da Era Moderna, mas também o nosso presente.

Notas

  1. A mais recente elaboração é de HERZOG (no prelo).
  2. A referência obrigatória é o trabalho de NORTH (1990).
  3. Trad. livre: “la compleja articulación que había entre la cultura católica y la reproducción social de las redes de negocios en el Antiguo Régimen novohispano”.

Referências

AGO, Renata; CERUTTI, Simona. Procedure di giustizia. Quaderni Storici, v. 101, n. 2, p. 307-314, 1999. [ Links ]

CERUTTI, Simona. Giustizia sommaria. Pratiche e ideali di giustizia in una società di Ancien Regime (Torino XVIII secolo). Milão: Feltrinelli, 2003. [ Links ]

CLAVERO, Bartolomé. Antidora. Antropología Católica de la Economía Moderna. Milão: Giuffrè, 1991. [ Links ]

HERZOG, Tamar. Legal Pluralism. In: MIROW, Matthew; URIBE, Víctor (Eds.). A Companion to the Legal History of Latin America. Leiden: Brill (no prelo). [ Links ]

MECARELLI, Massimo. Arbitrium. Un aspetto sistematico degli ordinamenti giuridici in età di diritto comune. Milão: Giuffré, 1998. [ Links ]

NORTH, Douglass. Institutions, institutional change and economic performance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. [ Links ]

TODESCHINI, Giacomo. I Mercanti e il tempio. La società cristiana e il circolo virtuoso della ricchezza fra Medioevo ed età moderna. Bolonha: Il Mulino, 2002. [ Links ]

Simona Cerutti – LaDéHiS (Laboratoire de Démographie et Histoire Sociale), Paris, France. E-mail: simona.cerutti@ehess.fr http: / / orcid.org / 0000-0001-7427-7430

Tradução: Alexandre Agabiti Fernandez


CERUTTI, Simona. Trad. Alexandre Agabiti Fernandez. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.36, n.72, set. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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História, democracia e instituições / Estudos Históricos / 2018

As atuais discussões a respeito do funcionamento das instituições nacionais e da qualidade da democracia brasileira motivaram a definição do presente tema da Revista Estudos Históricos, que se dedica a reflexões sobre História, democracia e instituições. A abrangência e importância do tema fez com que recebêssemos artigos refletindo sobre os mais variados temas, a partir de perspectivas bem distintas. Assim, neste número, contamos com textos sobre feminismo e participação das mulheres nas instituições, sobre distintas concepções de democracia na primeira metade do século XX, a partir do ponto de vista de juristas, sobre o processo de redemocratização brasileira na década de 1980 e as disputas em torno da noção de democracia, além de texto sobre o funcionamento do sistema de Justiça criminal brasileiro. Dessa forma, publicamos artigos que cobrem diferentes épocas da histórica republicana brasileira.

O artigo que abre este número da Revista trata de uma Uma história social do feminismo: diálogos de um campo político brasileiro (1917-1937), no qual Glaucia Cristina Candian Fraccaro contribui para reflexões sobre o feminismo – campo de disputas internacionais –, a partir da ótica do mundo do trabalho. Ao longo do artigo, Fraccaro enfatiza a luta das mulheres trabalhadoras por direitos e sua pouca representatividade nas instituições governamentais. O segundo artigo, A democracia em debate: juristas baianos e a resistência ao regime varguista (1930-1945), de Diego Rafael Ambrosini, busca analisar diferentes noções em circulação a respeito da ideia de democracia nas décadas de 1930 e 1940, especialmente a partir da perspectiva da produção intelectual de juristas que atuavam no Instituto dos Advogados da Bahia.

O texto que segue, de Daniel Barbosa Andrade de Faria, analisa o incidente acontecido logo após a manifestação contra o Plano Cruzado II, conhecido como “badernaço”, refletindo sobre as disputas em torno da noção de democracia, fundamentado na documentação do acervo da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. Pesquisando sobre a mesma época, Fernando Roque Fernandes analisa o debate parlamentar em torno da Constituição de 1988, no que concerne à pauta da cidadania indígena, quando democracia, cidadania e direitos humanos estavam na agenda de discussões para pensar a “nova democracia” brasileira. Por fim, o artigo de Flávia Cristina Soares e Ludmila Ribeiro que oferece um balanço bibliográfico sobre o funcionamento do sistema criminal brasileiro, registrando o descompasso entre os ideais da democracia e o pragmatismo do funcionamento das instituições de Justiça.

Fechando o dossiê, o número apresenta a entrevista realizada com o cientista político João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), sobre a história e a atuação política das Forças Armadas brasileiras. Além de narrar sua trajetória acadêmica, com início na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Martins Filho registra o percurso de suas pesquisas sobre a instituição militar, tendo início na atuação política do Exército durante o período ditatorial brasileiro.

Este número é dedicado a Dulce Pandolfi, Luciana Heymann, Monica Kornis e Verena Alberti, acadêmicas fundamentais na história do CPDOC e da Revista Estudos Históricos.

Angela Moreira Domingues da Silva – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editora da Revista Estudos Históricos.

Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos.

Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos.

Os editores.


SILVA, Angela Moreira Domingues da; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.31, n.63, jan. / abr. 2018. Acessar publicação original [DR]

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Controle social e resistência: instituições, historicidade e efeitos / Tempo Amazônico / 2018

É com satisfação que apresentamos a edição da Revista Tempo Amazônico, revista eletrônica semestral da seção Amapá da Associação Nacional de em História (ANPUH / AP). Esforçando-se para dar conta da multiplicidade dos estudos de história social, exploramos através de um Dossiê com o tema “Controle social e resistência: instituições, historicidade e efeitos”, incorporando diversas abordagens e problemáticas versando sobre educação, religião, raça, identidade e resistência, itens frequentes na agenda de estudo sobre controle social, entendido na definição de Anthony Giddens & Philip W. Sutton (2017) como o conjunto de mecanismos formais e informais empregados para gerenciar os efeitos das práticas coletivas com vistas à produção de conformidade. Nesse sentido, podemos identificar quatro seções na presente edição: a educação como projeto; a questão da relação entre educação e religião; educação e mídia; identidade, resistência e desvio social, para enfim concluirmos como a questão humana em sentido lato. Como pensar nossa história social com e para além das instituições sociais? Com essa indagação convidamos os leitores a refletir sobre os artigos desse volume.

Iniciamos com a apresentação de dois artigos que compõem um largo espectro espaço-temporal para mostrar que a educação implica na elaboração de um projeto político e social. Com o artigo “A Inglaterra Elisabetana (1558-1603): propostas revisionistas para o ensino de História”, de Giovana Eloá Mantovani Mulza, contextualiza-se a convergência entre reforma política e religiosa no período elisabetano como chave para a compreensão e ensino dessa questão transversal, com vistas ao tratamento didático do período em questão. De outro lado, a questão do projeto político na educação ganha abordagem com base no atual contexto brasileiro, no artigo “A racionalidade neoliberal na reforma do Ensino Médio da rede pública do Estado da Paraíba: uma análise do Programa de Educação Integral”, de Maria Eduarda Pereira Leite, que discute a efetividade da ideia de integralidade na educação, tendo em vista a lógica neoliberal que permeia a prática estatal, de modo a identificar uma dissociação entre aquilo que se prevê e aquilo que de fato se provê.

Abrindo a segunda seção, sobre educação e religião, temos o artigo intitulado “Ensino religioso e educação à distância: análises e reflexões de um estudo de caso de formação continuada no Amapá”, de autoria de Alysson Brabo Antero e Marcos Vinícius de Freitas Reis, no qual é tratada a formação continuada mediada por tecnologia na área de ensino religioso, destacando a relação entre religião e laicidade para a prevenção à intolerância. O artigo seguinte, de autoria de Marinete Furtado Carvalho Silva, intitulado “O ensino religioso e sua importância no contexto escolar”, retoma a questão da relação entre educação e religião no ambiente escolar, lançando luz sobre a legislação atinente, destacando a rejeição ao proselitismo e a promoção de valores morais que transcendam o escopo confessional.

A terceira seção se inicia com importante abordagem sobre a relação entre as mídias na educação e sua mediação com vistas à promoção da relação ensino-aprendizagem, em artigo de autoria de Gleidson José Monteiro Salheb, intitulado “Midiatização & mediação na educação: aproximações teórico-conceituais”. A educação “com” e “sobre” as novas tecnologias são passo fundamental para a superação das desigualdades de acesso às informações tendo como base o senso crítico e a busca pela emancipação no contexto da sociedade da informação. Prosseguimos com a temática em tela no artigo seguinte, “Mídia e suicídio: prevenção e posvenção na era digital”, de Luana Izabel da Silva Nunes e Diego Saimon de Souza Abrantes, cujo tema é o tratamento midiático dispensado ao fenômeno do suicídio e suas implicações sociais. A exposição dos artigos dessa seção evidencia a ambiguidade que paira sobre a relação entre os meios digitais e a educação enquanto processo formativo, entre a emancipação e anomia social.

Por fim, na quarta seção, abrigamos artigos que versam sobre questões sociais pungentes na realidade nacional. O artigo coletivo de Kerllyo Barbosa Maciel, Marinete Furtado Carvalho da Silva e Paula Iara de Abreu da Trindade, chamado “Ladrões de Marabaixo: narrativa poética de resistência, memória e identidade cultural”. Aqui as práticas artísticas da cultura popular são pensadas como formas de resistência ante as relações de poder instituídas. A seguir, Haroldo Paulo Camara Medeiros nos traz a reflexão sobre o desvio social abordando o tráfico de drogas. O artigo “Mulas pretas: os inimigos de um país”, articula a relação entre o fenômeno do tráfico e a questão racial como elementos constitutivos de um biopoder sobre corpos negros e uma necropolítica de exclusão social e repressão contra uma população marginalizada e estigmatizada sob o argumento racial. O objetivo político dessa conjunção entre política e raça reside na manutenção da desigualdade social e do status quo. Diretamente conectado a esse tema, o artigo de Juliano Zancanelo Rezende, “Serviço social e questão racial: uma relação ainda a ser melhor ativada”, destaca a necessidade premente de integrar a atuação dos profissionais do Serviço Social no ativo combate ao racismo no exercício profissional e nas relações sociais. Concluímos o presente volume com o artigo de Juliano Bueno Acuña, intitulado “A desumanização: o problema da razão em Nietzsche e Horkheimer”, que sintetiza a necessidade urgente em destacar a dimensão humana das relações sociais, com Nietzsche apontando para o problema da negação do corpo enquanto vida na perspectiva da razão instrumental, e com Horkheimer indicando a necessidade de nos contrapormos ao processo de “coisificação” do homem – nesse sentido, portanto, devemos transbordar nossa humanidade vigente.

Samuel Correa Duarte – Bacharel em Sociologia e Mestre em Ciência Política pela UFMG, Mestre em Planejamento e Desenvolvimento Territorial pela PUC-Goiás, Doutorando em Sociologia pela UECE. Professor da área de Ciências Sociais na UFMA.


DUARTE, Samuel Correa. Apresentação. Tempo Amazônico, Macapá, v.5, n.2, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Poderes, Instituições e Redes Políticas na América Portuguesa / Crítica Histórica / 2017

Para alguns indivíduos, o período colonial ficou no passado, momento em que D. João VI retornava ao reino lusitano e possibilitava que seu rebento, D. Pedro I, aliado com as elites fluminenses, concretizava a emancipação política em 1822. De lá para cá o Brasil vivenciou duas monarquias, algumas ditaduras, curtos momentos de democracia, tentativas e concretudes de golpes políticos e experiências presidencialistas catastróficas. E o passado? Sempre assombrando o presente… seja para relembrar que nada mudou ou para rememorar aquilo que não se concretizou. Alguns exemplos…

Segundo Bárbara Libório e Tai Nalon, os estabelecimentos que em pleno século XXI ainda usam o trabalho escravo são perenes. De acordo com os jornalistas, no ano de 2015, houve uma investigação em 257 empresas através de 143 ações policiais de fiscalização contra o trabalho escravo, culminando em uma identificação de 1.010 indivíduos que poderiam ser enquadrados nas características desse tipo de utilização de mão de obra1. Para combater tal condição, a PEC 438 trazia uma perseguição rígida àqueles que ainda usavam deste tipo de prática, culminando, inclusive, na expropriação das terras que seriam destinadas a programas sociais.

Ainda que tal emenda não saísse do papel, em pleno 2017, o governo do presidente Michel Temer surpreendeu a todos, causando uma espécie de motim nas redes sociais, pois visando agradar a banca ruralista no senado, alterou as regras de fiscalização do trabalho escravo que restringia esta classificação como resultado das limitações de locomoção dos trabalhos e não às práticas de trabalhos extenuantes e sem remuneração adequada. Além disso, impedia a divulgação pública dos estabelecimentos desse tipo de prática e obrigava que a fiscalização só poderia ser feita com a intervenção policial. Diante das críticas e manifestações sociais que eclodiram em diversos espaços virtuais, o governo teve que recuar da medida, acatando o que havia sido determinado em outros expedientes judiciais.

Como se não bastasse, algum tempo depois, a juíza Luislinda Valois, Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e ex-ministra dos Direitos Humanos do mesmo governo em tela, protocolava um pedido ao governo federal para incorporação da gratificação à sua aposentaria enquanto magistrada dos valores adquiridos como ministra do governo, somando a importância de R$ 62 mil reais mensais, muito além do teto permitido pelo INSS. Como justificativa, comparava as suas condições de trabalho análogas à escravidão, tendo em vista que os já R$ 31 mil reais de aposentadoria que recebia não a permitiam sobreviver com dignidade. Tal postura levou a uma crítica sagaz de todo jornalismo brasileiro e mídias sociais, corroborando com notas de repúdio de várias comunidades do movimento negro brasileiro repudiando a postura da magistrada que além de “afrontar a dignidade da população negra, a posição da ministra é um atestado cabal da falta de compromisso com o combate ao racismo e com verdadeira cidadania de negros e negras” [2].

Esses casos, como tantos outros envolvendo a perseguição à grupos LGBT, intolerância religiosa, restrições à política de aborto, sem falar nos casos envolvendo alianças políticas, formação de redes de poder e perfeita sincronia entre os poderes legislativo, judiciário e executivo, apontam para uma longa duração dos aspectos do mundo colonial na sociedade brasileira contemporânea. As práxis coloniais nunca estiveram tão presentes nas rodas de discussão, conversas de bar, panfletagem nas redes sociais e no cotidiano do brasileiro. Para os alagoanos e pernambucanos, especialmente 2017, viu-se emergir a rememoração dos efeitos e uma análise do que poderia ter sido a insurreição de 1817. O bicentenário do movimento republicano da elite pernambucana de 1817, insatisfeitas com o modelo agrário e excludente do governo português joanino, se para os moradores no atual Estado de Alagoas representou as possibilidades de se emancipar frente à égide do governo da Capitania de Pernambuco [3] e dar existência a um conjunto de identidades em constante metamorfose dicotômica à elite que a dominava; para os pernambucanos era a uma tentativa de protagonismo no cenário político colonial, mas sufocado por uma violenta repressão e novas posturas político-econômicas de D. João VI para as antigas “Capitanias do Norte” [4].

E o mundo colonial mais uma vez vinha à lume no debate social… Emancipação por traição? Os pernambucanos queriam um federalismo para quem? A comarca das Alagoas já tinha condições de autonomia? Os impeditivos impostos à elite da antiga donataria de Duarte Coelho não foram excessivos? Questões que não se esgotam em eventos, documentos e reflexões…

Em contrapartida, entre os historiadores, aqueles que sempre tem o papel de lembrar do passado, segundo muitos teóricos da área e a população em geral, a América Portuguesa, como assim prefiro chamar, nunca saiu de cena. Sempre esteve ali, no dia a dia dos brasileiros a partir das dificuldades sofridas pela população de cor em conquistas de direitos sociais, nas coerções exercidas pelas religiões católicas e protestantes condenando práticas e comportamentos sociais, ou pelas alianças políticas de vereadores, deputados e todas as classes de políticos que sempre buscam vilipendiar a massa populacional. A coroa portuguesa, no sentido coletivo mesmo, só se transferia de lugar ao longo dos modelos políticos, e ganhava vários indivíduos em busca da consolidação do poder e saque dos recursos econômicos produzidos por aqueles que constroem o país.

A historiografia colonial tentou explicar tais fenômenos, essencialmente políticos, Antigo Sistema Colonial [5], Modo de Produção Escravista Colonial [6], Antigo Regime nos Trópicos [7], Monarquia Pluricontinental [8] e, mais recentemente, Um Reino e suas Repúblicas [9]! Vários conceitos para uma só dinâmica. Mas na essência duas questões se sobressaem: de um lado, as tentativas de controle desenfreado pela monarquia portuguesa sobre seus espaços americanos, visando não só a sua consolidação político-econômica no cenário moderno europeu ainda que demonstrasse uma imensa dependência financeira destes mesmos espaços, diferentemente do que ocorreu com suas congêneres monarquias; e por outro lado, as manifestações locais e do cotidiano dos moradores separados por um oceano vastíssimo e que permitia, por conta da inexistência da presença física deste mesmo monarca, em experimentar condições de autonomia, liberalidade e sobrevivências fluídas, complexas, dinâmicas e não encarceradas em um único modelo, mas variáveis nas diferentes espacialidades, temporalidades e das necessidades dos diversos grupos nele cotejados.

Essas duas características foram perfeitamente costuradas por outras duas condições indeléveis e essenciais para a construção do poder: a escravidão e o catolicismo. O modelo religioso imposto pela monarquia portuguesa solidificou costumes e construiu práticas comportamentais que reforçassem o poder régio, não no aspecto centralizador, como muito se pensou, mas em um domínio imaginário, num corpo presente ainda que ausente, condição chamada por Ernst Kantorowicz de corpus mysticum [10]. E, por mais incrível que possa parecer, a escravidão, onipresente em todos os ambientes daquela sociedade, não entrava em choque com tais questões. Como bem frisou Stuart Schwartz, antes de mais nada esta era uma Sociedade Mercantil Escravista [11], tendo em vista a utilização deste tipo de mão de obra ser a grande responsável pelas estratificações sociais, pelo desenvolvimento das condições econômicas, pela classificação de distinções sociais e, acima de tudo, pela demarcação de diferença entre uns e outros.

Dependência econômica, criatividade das gentes, escravidão e catolicismo. Quatro elementos presentes no continuum brasílico do Quinhentos aos tempos atuais… É o mundo colonial no presente ou presente no mundo colonial? Causando-nos uma estranha sensação de nunca termos saído dessa condição… e saímos?

Enfim, o presente dossiê “Poderes, Instituições e Redes Políticas na América Portuguesa” buscou aprofundar este debate, onde o poder, as suas instituições e seus agentes passam a ser compreendidos na imbricada malha escravista, nas necessidades econômicas dos seres, nas determinações eclesiásticas e nas visões de mundo apreendidas pelos homens que cruzaram o Atlântico. Mas do que delegadas pelas composições políticas e institucionais do reino, nas conquistas as especificidades locais e a natureza enraizada dos personagens (colonos e agentes) forjaram peculiaridades de poder, malhas administrativas e estruturas de justiça própria, adaptadas à ordem e aos interesses daqueles que conduziam o cotidiano colonial em prol da manutenção do poder, soberania e autoridade régia. São essas questões que interessam e ajudam a compreender uma outra experiência, mais dinâmica, complexa e permeadas de vicissitudes e particulares.

O dossiê consta de cinco artigos e mais uma análise documental.  Hugo André Flores Fernandes Araújo em O aprimoramento da governabilidade no Estado do Brasil durante a segunda metade do século XVII: regimentos, jurisdições e poderes se debruça na análise sobre o principal centro administrativo e político na América portuguesa até a segunda metade do Século XVIII. Sua compreensão é de um Estado do Brasil marcado por sobreposição de poderes que tinham a necessidade constante de aprimoramento de jurisdição. Com uma conquista ainda em consolidação, o governo lusitano através de seus agentes buscava uma gestão dos espaços muitas vezes marcados pela fragmentação e outros centros interligados. Por fim, o texto também vislumbra as mudanças administrativas implementadas após expulsão dos batavos e a instituição do Conselho Ultramarino, bem como os receios no que tange a criação da Repartição Sul e o provimento de ofícios regulados por agentes monárquicos.

Fabiano Vilaça dos Santos em Governadores e capitães-generais do Estado do Maranhão e Grão-Pará e do Estado do Grão-Pará e Maranhão (1702 a 1780): trajetórias comparadas se envereda por um outro domínio português no Atlântico, o Extremo Norte. Muitas vezes compreendido como autônomo e com suas particularidades, o Estado do Maranhão e Grão Pará constitui-se como uma peça chave na política colonial portuguesa, sendo assim, o autor investiga os perfis sociais e as carreiras dos Governadores encaminhados para representar o monarca em grande parte do século XVIII. Homens solteiros, naturais de Lisboa, alguns familiares do Santo Ofício, formados em Coimbra, militares e com uma vasta relação social com indivíduos entre os mares. O autor percebe a ilha da Madeira como um lugar de passagem anterior destes agentes e uma grande circularidade destes governadores por outros espaços de poder. Na prática, ainda que com perfis parecidos, o autor apresenta as diferenças entre os ministros régios na primeira e na segunda metade do século XVIII.

Mônica da Silva Ribeiro em Trajetórias Administrativas da Capitania do Rio de Janeiro (1710-1763) analisa alguns personagens encaminhados para o Rio de Janeiro antes da instituição do lugar como o novo eixo político econômico da América Portuguesa, ainda que na prática, após as descobertas dos veios de ouro nas Capitanias das Minas, a localidade já havia se tornado a principal praça das conquistas lusitanas. A compreensão do perfil dos ministros do rei em seus domínios americanos auxilia na apreensão do modelo de colonização escolhidos pela monarquia portuguesa, bem como identifica como a estrutura administrativa se moldava às conjunturas e às necessidades dos modos de governar da coroa lusitana.

Nara Maria de Paula Tinoco em Gabriel Fernandes Aleixo: Trajetória e Ascensão nas Minas Gerais (1720-1757) insere-se no debate historiográfico sobre trajetórias administrativas que investiga o caminho percorrido entre São Paulo, Santos e Minas Gerais de um agente régio. Seu personagem, que pleiteou a habilitação da ordem de Cristo, foi escrivão da Ouvidoria de Vila Rica de Ouro Preto, sendo um indivíduo importante na região por gerenciar contratos, dízimos, pagamentos de soldos e controle de terras. As trajetórias administrativas, com verniz de história social, possibilitam um descortinar dos homens que buscavam todos os meios para se solidificar na sociedade colonial.

Anne Karolline Campos Mendonça em As Facetas Jurídicas de um Homem Subalternizado. Alagoas Colonial, 1755 se debruçou sobre a justiça na Comarca das Alagoas em meados no século XVIII. Partindo do conceito de negociação, a autora identifica os limites e as restrições do aparelho judicial moderno, através do caso de Lázaro Coelho de Eça. Tal personagem imbricado em uma rede de relações de força, de ideologia de gratidão, recompensa de serventias e fundamentação dos direitos de conquista, visa através da justiça remediar sua condição. Sua história permite identificar a trajetória de alguns grupos “inferiores” na sociedade colonial e sua relação com a justiça, tendo em vista de remeter aos grupos de índios da aldeia de Urucu (Alagoas do Norte) e abrir o debate sobre o “estatuto de cor” naquela sociedade.

Por fim, Alex Rolim Machado na seção Documentação traz à lume Cinco Documentos para a História das Alagoas – Contribuição para os Estudos Demográficos, Econômicos, Geográficos e Administrativos, 1749-1814 uma análise de alguns conjuntos primários imprescindíveis para se pensar Alagoas enquanto região subordinada à Capitania de Pernambuco. Tais conjuntos são 1) a Informação Geral da Capitania de Pernambuco; 2) a ordem do Governador e Capitão General Luiz Diogo Lobo da Silva em seu último ano de Governo (1756-1763); 3) os ofícios de Justiça e Fazenda de várias Capitanias, Comarcas e Vilas do Brasil Colonial, feito em 1767, a pedido do Marquês de Lavradio, na Bahia; 4) a Ideia da População da Capitania de Pernambuco; e 5) as Notas Corográficas sobre a Comarca das Alagoas em 1814. Os documentos auxiliam no preenchimento de lacunas interpretativas sobre a parte sul da Capitania de Pernambuco, bem como os moradores se relacionaram com sua sede e com o centro administrativo e político português.

Enfim, é um conjunto de artigos e fontes que possibilitam ao historiador – e a qualquer indivíduo – entender mais do que as permanências e rupturas do mundo colonial nos tempos contemporâneos, mas acima de tudo, compreender a complexidade daquelas centúrias bem como as particularidades que marcavam cada uma das conquistas – do Maranhão às Minas Gerais. Os textos são costurados pelo viés da História Política e História Social da Administração que entendem a imbricação das questões econômicas, mentais, sociais e religiosas para compor o mundo político. Quem sabe assim, podemos melhor analisar as condições que vivenciamos na atualidade e buscamos alternativas outras para mudanças de status quo atual. Boa leitura.

Comarca das Alagoas, Massayó, novembro / 2017

Notas

1. LIBÓRIO, Bárbara & NALON, Tai. “Sem Regulação, PEC do Trabalho Escravo está Parada há 2 anos no Senado”, 13 / 05 / 2015. Disponível em Acessado em 28 nov 2017 às 7h04min.

2. Congresso em Foco. “Ministra que Comparou Salário de R$ 31 mil a trabalho escravo não representa os negros, diz movimento”, 04 / 11 / 2017. Disponível em acessado em 28 nov 2017 às 7h40min.

3. COSTA, Craveiro. A Emancipação Política das Alagoas. Maceió: Secretaria de Estado dos Negócios de Educação e Cultura, 1967; BRANDÃO, Moreno. O Centenário da Emancipação de Alagoas. Maceió: Catavento, 2004; CAVALCANTI, Rosiane Rodrigues. Bicentenário em Prosa: 200 anos de Alagoas. Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2017.

4. MELLO, Evaldo Cabral de. A Outra Independência – O Federalismo Pernambucano de 1817 a 1824. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004; MOURÃO, Gonçalo de Mello. A Revolução de 1817 e a História do Brasil. Belo Horizonte, 1996; BUYERS, Ann Marie. “Em Defesa da Honra: a Emancipação de Alagoas no Imaginário Institucional” In: Crítica Histórica. Maceió: Centro de Pesquisa e Documentação Histórica, Volume 1, Nº 2, jul-dez, 2010.

5. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Publifolha, 2000; NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 2005.

6. CARDOSO, Ciro Flamarion. “Sobre los modos de Produción Colonial en America” In: SANTIGO, Théo (Org.) America Colonial: Ensaios. Rio de Janeiro, 1975.

7. BICALHO, Maria Fernanda Baptista; FRAGOSO, João; & GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a Dinâmica Imperial Portuguesa (Séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

8. FRAGOSO, João e SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de (Orgs.). Monarquia Pluricontinental e a Governança da Terra no Ultramar Atlântico Luso. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.

9. FRAGOSO, João e MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Orgs.) Um Reino e Suas Repúblicas no Atlântico: Comunicações Políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos Séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

10. KANTOROWICZ, Ernst. Os Dois Corpos do Rei – Um Estudo sobre a Teologia Política Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

11. SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos – Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Antonio Filipe Pereira Caetano – Professor Associado 1 – Universidade Federal de Alagoas Coordenador Grupo de Estudos América Colonial – GEAC


CAETANO, Antonio Filipe Pereira. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 8, n. 16, dezembro, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Liberalismo: intelectuais e instituições no Brasil / Faces de Clio / 2017

A 5ª edição da revista Faces de Clio, publicação discente vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora, possui como dossiê temático Liberalismo: intelectuais e instituições no Brasil. Congrega-se, nesta publicação, pesquisadores que trabalham o arcabouço político e ideológico liberal em diversas variantes e diferentes contextos históricos. A proposta é pensar formas de atuação de intelectuais que compartilharam desse aporte ideológico, bem como a aplicação dessas ideias em instituições brasileiras.

Contamos, nesta publicação, com a colaboração de doutores, doutorandos e mestres, formados em diferentes universidades do país nos cursos de História, Ciência Política e Artes Cênicas, o que demonstra a interação e divulgação do conhecimento que perpassa a revista. Formam o dossiê três artigos que se referem ao contexto do século XIX, e três que tratam do século XX. Há, também, quatro artigos livres.

Frederico Antônio Ferreira analisa a atuação do consulado brasileiro em Luanda entre as décadas de 1850 e 1860, no combate ao tráfico de pessoas escravizadas com vistas à construção de um Brasil “civilizado”. Outro estudo sobre escravidão no século XIX é o artigo de Wender Souza, que compreende a chamada “acomodação de ideias” no Brasil, pensando, dessa forma, as ideias econômicas liberais e a forma segundo a qual essas ideias refletiram nos assuntos políticos, especificamente no que se refere à instituição da escravidão.

Ainda sobre o oitocentos, contamos com o artigo de Estevão de Melo Marcondes Luz, que analisa o periódico O Homem Social, publicado na cidade de Mariana, entre os anos de 1832 e 1833. O livro é um material importante para a compreensão de diversas manifestações liberais no Brasil do século XIX, como a liberdade de imprensa e a construção de uma esfera pública.

Sobre o século XX, contamos com o artigo de Camila Oliveira do Valle. Ela aborda os “Três Poderes”, de acordo com autores como John Locke, Montesquieu, Hamilton, Madison e Jay, sob a ideia de que houve combinação de poderes – que interagem entre si – influenciando a concepção da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Juliana Martins Alves, por sua vez, trabalha o Manifesto Mineiro de 1943 como um documento representativo do fracionamento das elites no Brasil nesse contexto histórico, diante das discussões sobre o Estado autoritário-corporativo e sobre o projeto político do Estado Novo.

Ademais, há o trabalho de Lívia Freitas Pinto Silva Soares, no qual a autora analisa as propostas e os diagnósticos dos agentes que organizaram e geriram a assistência social na cidade do Rio de Janeiro, com o propósito de recuperar os modelos institucionais de amparo social e avaliar as práticas médico-assistenciais que se destacaram durante os primeiros anos do século XX no Brasil.

Esta edição também contempla trabalhos que não se referem à temática do dossiê, e que estão classificados como artigos livres. Nessa seção, a pesquisadora Camila Silva Gonçalves Figueiredo analisa, em seu artigo, o processo de monitoramento realizado pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), instituição de caráter estatal que controlava, entre outros elementos, os movimentos políticos de esquerda no país. Por meio dessa análise, a pesquisadora apresenta uma visão do Estado sobre esses investigados.

Emilla Grizende Garcia aborda, em seu trabalho, aspectos teórico-metodológicos presentes na telenovela O Bem Amado, veiculada pela Rede Globo de Televisão, considerando a potencialidade desse produto cultural como fonte histórica de destacada importância. Como exemplo, têm-se a possibilidade de conhecimento sobre contextos políticos e culturais brasileiros.

Gustavo Oliveira Fonseca busca compreender o desenvolvimento da malha urbana na vila de São Bento do Tamanduá (atualmente conhecida como Itapecerica, Minas Gerais) entre os séculos XVIII e XIX. Para isso, analisa registros administrativos produzidos pelas atividades da Igreja Católica, além de outras instituições, como as associações devocionais leigas. Thiago Herzog analisa a obra Panorama do Teatro Brasileiro, de Sábato Magaldi, para compreender relações de força e poder presentes nesse campo da dramaturgia, como estratégias, disputas, entre outros fatores.

Agradecemos imensamente pela equipe multidisciplinar, formada por colegas dedicados e competentes em suas atribuições, que contribuiu para que esta edição fosse publicada.

Agradecemos, também, aos pesquisadores que confiaram seus trabalhos à revista, promovendo a divulgação científica no meio acadêmico.

Ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora, nosso agradecimento pelo apoio e divulgação.

Boa leitura a todos!

Janeiro de 2017

Leonardo Bassoli

Angelo Flavia Salles Ferro


BASSOLI, Leonardo; FERRO, Angelo Flavia Salles. Editorial. Faces de Clio, Juiz de Fora, v.3, n.5, jan. / jun., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Elites e instituições no Brasil Império | Escrita da História | 2016

No primeiro semestre de 2016 a Revista Escrita da História – REH publicou o dossiê intitulado “Elites e Instituições no Brasil Colonial”. Nesta nova edição, de número seis, damos sequência à discussão anterior, avançando sobre o período Imperial. Reunimos diferentes trabalhos que abordam, à sua maneira, os problemas envolvidos na organização institucional e na atuação política das elites imperiais no Brasil. Temos um fio aglutinador que perpassa os trabalhos que integram o dossiê. Trata-se da construção do Estado nacional no Brasil, problema que demanda respostas de diferentes níveis, tal como a diversidade de abordagens dos textos que compõem a presente edição.

José Augusto dos Santos Alves, doutor em História e Teoria das Ideias pela Universidade Nova de Lisboa (UNL), analisa no artigo que abre o dossiê um documento pouco citado pela historiografia brasileira: as Cartas políticas de Americus. O autor aborda uma série de problemas propostos e discutidos nas Cartas políticas, avançando sobre temas de enorme relevância no início do XIX: opinião pública, constituição, delimitação dos poderes, publicidade, modernidade e/ou antigo regime, legitimidade, leis, liberdade de imprensa, em suma, o exercício do poder em toda sua complexidade. Segundo o próprio autor da carta, sua “teoria de governo”. Dessa forma, José Augusto permite ingressarmos no tema do dossiê por meio das discussões conceituais envoltas nos projetos políticos presentes na primeira metade do XIX no Brasil, projetos que de uma forma ou de outra afetavam as práticas e a organização institucional do país. Leia Mais

Elites e instituições no Brasil colonial | Escrita da História | 2016

A nova edição da Revista Escrita da História – REH, de número cinco, é composta pelo dossiê Elites e instituições no Brasil colonial, que reúne quatro trabalhos de jovens que buscam, cada qual a seu modo, relacionar as trajetórias de setores das elites coloniais às transformações políticas e econômicas da sociedade colonial. Percorrem-se os espaços mais diversos da colônia, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, para mostrar como, em cada contexto, respeitadas as devidas particularidades, as elites locais se articulavam, se apropriavam das prerrogativas das câmaras municipais, e se relacionavam com as autoridades régias, defendendo seus interesses e integrando-se ao Império português.

O artigo que inaugura o dossiê recebe o título O papel das elites locais na criação de vilas na porção meridional da América portuguesa (séc. XVI-XVIII): o caso da capitania de São Vicente. Trata-se de uma síntese da pesquisa de doutorado do autor, Fernando V. Aguiar Ribeiro, defendida recentemente junto ao Programa de PósGraduação em História Econômica da Universidade de São Paulo. Ao longo do texto, é feita uma análise do papel das elites políticas paulistas no processo de criação de vilas no planalto da capitania de São Paulo ao longo dos séculos XVI, XVII e grande parte do século XVIII. Procura-se demonstrar que, ao contrário do que ocorria em outras regiões, grande parte das vilas paulistas coloniais foram criadas por iniciativa de setores específicos das próprias elites locais, normalmente por aqueles indivíduos que ocupavam postos periféricos na Câmara Municipal de São Paulo. O estudo evidencia que o acesso à cúpula dessa instituição era condição essencial para garantir a posse da terra na região, e por isso os ocupantes de postos periféricos na administração local acabavam edificando, ao longo do planalto, outras estruturas político-administrativas, onde poderiam ocupar postos centrais e, a partir deles, garantir seu acesso a terra, gozar de maior prestígio e controlar todas as prerrogativas inerentes às câmaras municipais coloniais. Leia Mais

Instituições e ensino de História / Revista Eletrônica História em Reflexão / 2014

Em 2014, diversos eventos e periódicos direcionaram seus trabalhos aos 50 anos do golpe de Estado de 1964, a Revolução Redentora para os defensores do golpe. Para este número, os editores da Revista Eletrônica História em Reflexão acharam por bem dedicar o dossiê a trabalhos que versassem sobre a temática Instituições e ensino de História, ainda não contemplada pela Revista com um dossiê.

Os trabalhos publicados na área do ensino de História, grosso modo, parecem ter dois objetivos principais: a produção de um conhecimento para contribuir com o enriquecimento teórico-metodológico da formação do professor e, consequentemente, refletir nas aulas de História das escolas brasileiras com um enfoque crítico-propositivo; um conhecimento retrospectivo sobre as formas e funções do conhecimento histórico praticadas pelas instituições de ensino, com um enfoque analítico sobre uma memória, que a própria História institucionalizada ajudou a produzir. Esses dois tipos de trabalhos fizeram-se presentes nos artigos do dossiê Instituições e ensino de História.

A quantidade de dissertações na área de ensino defendidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História da UFGD é ainda relativamente pequena. Apesar dessa pouca expressividade, as preocupações voltadas ao ensino da história são crescentes nos debates entre professores e pesquisadores. Algumas dissertações e teses que abordaram o ensino em uma perspectiva histórica foram desenvolvidos também nos Programa de Pós-Graduação em Educação da UFGD e da UFMS.

Para este número da Revista, foi recebida uma quantidade expressiva de trabalhos na temática de ensino de História. Os artigos foram encaminhados para pareceristas da área, de diversas regiões do Brasil, e o resultado das avaliações surpreenderam. A grande maioria dos trabalhos foi reprovada, indicando um nível de exigência, maturação e profissionalização da área do ensino de História. Uma exigência comum dos pareceristas foi a necessidade de se contemplar a bibliografia existente sobre o assunto tratado para, a partir daí, ponderar a contribuição do conhecimento produzido.

Em agosto de 2014, durante o XVI Encontro Estadual da ANPUH / MS, realizado em Aquidauana, foi gratificante observarmos a riqueza da produção historiográfica desenvolvida no estado, bem como o alentado intercâmbio que as diversas Instituições de Ensino Superior locais vêm estabelecendo com os diversos programas institucionais, regionais, nacionais e sul-americanos, voltados para a pesquisa e o ensino de história. E, nesse sentido, ganha relevância o avanço no estudo de temas e segmentos sociais definidores de identidades locais, por meio de recortes regionais específicos que, em geral, estão ausentes ou são secundarizados pela historiografia “brasileira”, centrada no eixo São Paulo-Rio de Janeiro.

Essa situação representa, ao mesmo tempo, estímulo e maior responsabilidade para os veículos de divulgação dos trabalhos acadêmicos produzidos, seja no âmbito dos programas acadêmicos ou individualmente, por profissionais, sobretudo da área de História, vinculados à pesquisa e ensino.

O presente número da Revista Eletrônica História em Reflexão assume, mais uma vez, a responsabilidade de dar ao público parte dessa produção. O conjunto de artigos selecionados, contemplando o trabalho de docentes e discentes de pós-graduação (mestrandos e doutorandos) e egressos da graduação, repercute, pelo menos em parte, o atual momento historiográfico vivenciado, sobretudo, no estado de Mato Grosso do Sul.

Os artigos aprovados para o dossiê iniciam-se com a contribuição de José Carlos Ziliani e Rosemeire de Lourdes Monteiro Ziliani, A relação educação e trabalho no sul de Mato Grosso nas formulações de Melo e Silva, que apresenta o resultado de uma pesquisa concluída na interface história e educação. O texto apresenta uma análise sobre a conformação do sujeito para o trabalho moderno, na fronteira sul de Mato Grosso, na primeira metade do século passado, conforme as produções do jurista Melo e Silva. Como operadores de análise, utilizaram-se os conceitos de “processos de subjetivação” e de “dispositivo de escolarização”, inscritos na perspectiva pós-estruturalista. Ao criticar os hábitos, valores e práticas sociais do homem local, os textos tornam visíveis as tecnologias de dominação e as do eu colocadas em jogo. A solução apontada nos textos volta-se à instituição de escolas primárias e pré-vocacionais, onde as crianças, desde a mais tenra idade, seriam compostas e disciplinadas para se fixarem ao aparelho de produção moderno.

O trabalho de Jorge Luiz Veloso da Silva Filho e Ricardo de Aguiar Pacheco, Museu do Mamulengo na sala de aula: proposição de jogos educativos como recurso didático no ensino de História, tem como objetivo a proposição de jogos educativos que utilizam o acervo do Museu do Mamulengo (localizado na cidade de Olinda-PE) como recurso didático para o ensino de História. Para a pesquisa de campo e confecção dos jogos, foram utilizados referenciais teóricos ligados ao ensino de História, ao campo do Patrimônio e da Museologia. No campo da Pedagogia, buscaram-se referências sobre o uso de jogos no meio escolar, além de informações obtidas junto ao setor educativo do Museu e a professores que visitavam a instituição. Neste estudo, concluiu-se que a proposição dos jogos é uma forma de aproximar a instituição escolar do Museu do Mamulengo, pois, quando utilizados nas aulas de História, constituem um instrumento para preparar a visitação e potencializar a experiência pedagógica que ocorre no museu.

O debate sobre a diversidade étnico-racial e o ensino de História foi contemplado no trabalho Reeducação das relações raciais e Ensino de História: reflexões teórico-metodológicas sobre processos de formação docente em lugar de fronteiras, de autoria de Lourival dos Santos e Maria Aparecida Lima dos Santos. A discussão realizada aborda o campo de pesquisas sobre o ensino de História como lugar de fronteira, no qual são articulados instrumentais teóricos da educação e da história, e as questões apontadas pelas investigações em educação étnico-racial que consideram centralmente a incorporação de saberes distintos em currículos adequados às realidades locais. Diante da tarefa de formar professores de História, apresentam-se reflexões tecidas e os saberes construídos no encontro de referenciais de ambos os campos de pesquisa. Conclui-se que a problemática da reeducação étnico-racial pode ser um caminho frutífero para se equacionar o distanciamento entre os eventos do passado e questões do presente, princípio fundamental para a História como disciplina escolar e central para o desenvolvimento do pensamento histórico.

Tiago Alinor Hoissa Benfica apresenta um fragmento de sua pesquisa de doutorado, com o título Elevar a educação: a gestação do campo histórico na Universidade pública em Aquidauana (década de 1970). O texto trata da implantação do campo histórico em Aquidauana na Universidade pública, que ocorreu junto às atividades do curso de Estudos Sociais, a partir da ativação do CPA, unidade da UEMT, no período em que houve a primeira grande expansão do ensino superior em Mato Grosso como parte de um conjunto de obras modernizadoras e, no âmbito nacional, as políticas públicas educacionais do contexto da Lei 5.692 / 71. Os Centros Pedagógicos da UEMT tinham o papel de garantir a existência de um quadro de professores formados dentro da legislação da época. Nesse contexto, o artigo aborda as forças e estratégias utilizadas na criação do CPA, a arregimentação de professores, os avanços e recuos do campo histórico em Aquidauana, tendo em vista o papel iniciativa dos agentes do campo e a relação de dependência do campo histórico com a Instituição.

A seção dos artigos livres inicia-se com o trabalho de Giuslane Francisca da Silva e Sérgio da Silva Machado Júnior, ao abordar O discurso em Michel Foucault, por meio do qual são apresentados e discutidos alguns princípios que envolvem a concepção de discurso em Michel Foucault. Tendo em vista ser o discurso um acontecimento histórico, esboça-se como se dá sua construção dentro desse contexto, sobretudo atrelado às relações de poder que permeiam a sociedade. Considerando que, para Foucault, a produção do discurso não se dá de maneira aleatória, os autores se propõem a refletir sobre a produção discursiva enfatizando os mecanismos que atuam como procedimentos de controle dessa construção, considerando que não são todos os sujeitos que possuem acesso a sua produção.

João Pedro Ribeiro Pereira e Jérri Roberto Marin propuseram-se a analisar os discursos, a militância de José Octávio Guizzo e as suas propostas para a construção da identidade sul-mato-grossense no artigo José Octávio Guizzo e a construção da identidade sul mato-grossense. Guizzo foi um ativista cultural e um político de considerável notoriedade em Mato Grosso e em Mato Grosso do Sul durante as décadas entre 1960 e 1980, sendo o primeiro presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul. O conjunto de sua obra revela a preocupação em criar uma identidade para o novo estado a partir da eleição de elementos comuns que singularizariam a região. Como intelectual, preocupou-se em pesquisar os aspectos culturais, sobretudo a música, o folclore e o cinema. Neste sentido, o objetivo é desconstruir e desmantelar os seus discursos, promovendo o estabelecimento de uma nova forma de dizer e de ver o regional.

Um dos temas mais latentes neste ano entre os historiadores, a ditadura militar, está presente no artigo de Luiz Carlos Pais, Retorno ao golpe militar de 1964 e o caso dos presos políticos de São Sebastião do Paraíso (MG). Este artigo propõe um retorno ao Golpe Militar de 1964 ao tomar como referência o caso da prisão de um grupo de 15 cidadãos de São Sebastião do Paraíso, tradicional polo da cafeicultura do Sudoeste de Minas. O grupo foi transportado em condições desumanas para presídios de Belo Horizonte, distante 500 quilômetros da cidade em que moravam com suas famílias e onde eram conhecidos como trabalhadores honrados. Alguns dos presos haviam pertencido ao então extinto partido comunista, outros eram trabalhistas, socialistas ou simpatizantes dos discursos reformistas do Presidente João Goulart. Os fatos históricos foram produzidos a partir de depoimentos recolhidos, cópias de processos obtidos nos arquivos do Fórum da cidade, jornais da época, documentos disponíveis no acervo do extinto Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais. Constatou-se que entre os motivos das referidas prisões estão a trajetória de resistência trabalhista, iniciada ainda na Era Vargas, quando houve a fundação de uma federação sindical trabalhista que assustou as velhas oligarquias da cidade, a fundação do comitê local do partido comunista, em 1946, a militância em favor do Movimento da Paz Mundial, em 1952, finalizando com a implacável ação de militares agentes da repressão política que agiram em favor das elites locais.

Roberto Mauro da Silva Fernandes trata das Adstrigências e frinchas entre comerciantes brasileiros e bolivianos numa zona de fronteira: os liames e as desconexões acerca do Estado e do território em Corumbá / MS, com o objetivo de analisar as interações espaciais decorrentes das territorialidades estabelecidas entre os comerciantes bolivianos e brasileiros em Corumbá / MS, que juntamente com Ladário / MS (Brasil) e Puerto Quijarro e Puerto Suarez (Bolívia), compõem a Zona de Fronteira Bolívia / Brasil, no estado de Mato Grosso do Sul. Especificamente, buscamse as relações conflituosas inerentes ao uso de um território dotado de flexibilidades que ultrapassam os “limites” do Estado-nação e as normas jurídicas que estabelecem as “marcas” estatais. Para obtenção do que se propõe a discutir, utiliza-se levantamento bibliográfico sobre áreas de fronteira e realiza-se um trabalho de campo que consistiu em entrevistar aqueles que estão diretamente envolvidos nas atividades de comércio.

Por último, esta edição traz a contribuição de um dos fundadores da Revista Eletrônica História em Reflexão, Leandro Baller. Trata-se da tradução da entrevista feita com Ramón Fogel, denominada Breves perspectivas histórico-sociais nas relações entre Brasil e Paraguai. A entrevista foi produzida no mês de dezembro de 2006 em Assunção-PY, no momento em que Leandro realizava trabalho de campo para a pesquisa em nível de mestrado que desempenhava junto à UFGD.

Com a edição de mais esse volume, a REHR, cumprindo sua precípua tarefa de divulgação acadêmica, espera fomentar, mais e mais, o diálogo entre pesquisadores e demais interessados no conhecimento histórico.

Joana Neves

Tiago Alinor Hoissa Benfica

São Paulo-Aquidauana, janeiro de 2015.


BENFICA, Tiago Alinor Hoissa; NEVES, Joana. Apresentação. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 8, n. 16, jul. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Ensino de História da Educação no espaço luso-brasileiro: Percursos institucionais, Currículos – Manuais Disciplinares / Cadernos de História da Educação / 2014

Este dossiê configura-se como um desdobramento das atividades desenvolvidas no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Disciplina História da Educação (Gepedhe), com quatro artigos que comunicam resultados de estudos e pesquisas recentemente desenvolvidas por cinco pesquisadores brasileiros que se vinculam ao referido Grupo, provenientes de diferentes universidades brasileiras. Além disso, há dois artigos, redigidos por três pesquisadores vinculados a duas universidades portuguesas, Universidade de Lisboa e Universidade do Porto, que complementam o presente dossiê.

O quadro de estudos e pesquisas em torno da temática do Ensino de História da Educação tem se avolumado no âmbito da História da Educação, seja no âmbito nacional, mas, também, em âmbito internacional, sendo este dossiê uma colaboração que se soma as demais, em um esforço de contribuir para a consolidação de uma área que se julga essencial desenvolver no rol de investigações da área de História da Educação.

Neste dossiê, os artigos que o integram abordam o ensino de História da Educação, pela via de seus percursos institucionais, curriculares e dos manuais utilizados. Para efeito de sua organização, optou-se por apresentar os artigos conforme a ordem alfabética do nome de seus autores, conforme será apresentado a seguir.

O primeiro artigo foi redigido pelos professores doutores Betânia de Oliveira Laterza Ribeiro e Sauloéber Tarsio de Souza, da Universidade Federal de Uberlândia. Sob o título, “Educação de mulheres nas páginas de manuais de História da Educação (1930–1970)”, eles apresentam uma discussão sobre a historiografia educacional brasileira, tendo como enfoque o modelo de educação feminina presente nas páginas de manuais amplamente utilizados no ensino de história da educação no século XX. Foram examinados seis manuais utilizados sobretudo em cursos de formação docente e especialmente difundidos entre normalistas e alunas dos institutos de educação e dos cursos de Pedagogia.

Carlos Monarcha, da Universidade Estadual Paulista, redigiu o segundo artigo apresentado neste dossiê, com o título “Um autor polígrafo. Um manual insólito. Raul Briquet e História da Educação: evolução do pensamento educacional”, no qual estudou as circunstâncias de produção de História da educação: evolução do pensamento educacional, manual de ensino publicado por Raul Briquet em 1946, professor da cadeira Educação Nacional do curso de Sociologia e Política da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo.

O terceiro artigo, intitulado “As ideias de Rousseau nos manuais de História da Educação com autores estrangeiros publicados no Brasil (1939-2010), foi redigido por Décio Gatti Júnior que analisou doze obras de grande repercussão no país, nas quais os autores dos manuais didáticos analisados não poucas vezes se manifestaram favoravelmente ou desfavoravelmente ao pensamento de Rousseau, com a constatação de que apenas uma pequena parte dos manuais teve êxito no estabelecimento de relações entre as ideias políticas, educacionais e pedagógicas em Rousseau. Uma parte considerável privilegiou o pensamento rousseauniano como precursor do desenvolvimento futuro da psicologia do desenvolvimento humano, com destaque para a psique infantil.

Por fim, algumas obras foram muito críticas em relação as ideias educativas de Rousseau e as ideias liberais de modo geral, o que se deve ao corte analítico enviesado por forte crítica ideológica, seja a do espectro católico tradicional ou a do espectro comunista.

O quarto artigo, intitulado “O espaço curricular da História da Educação na Faculdade de Letras do Porto (1961-2013)”, redigido por Luís Alberto Marques Alves e Carla Luísa Santos Moreira, da Universidade do Porto, no qual constataram que a História da Educação na Faculdade de Letras do Porto percorreu um caminho longo, desde a sua integração no curso de Ciências Pedagógicas até ao seu regresso na atualidade.

Em seguida, Maria Helena Camara Bastos, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, apresenta o quinto artigo deste dossiê que se intitula “Maria Lúcia de Arruda Aranha e a História da Educação”, analisa a produção, circulação e apropriação do manual de autoria de Maria Lúcia de Arruda Aranha, intitulado História da Educação, abordando a trajetória da autora e sua inserção no campo educacional; a história da obra – da materialidade ao conteúdo, da edição à circulação; e a contribuição para a disciplina.

Por fim, há o sexto e último artigo, escrito por Maria João Mogarro, da Universidade de Lisboa, intitulado “O ensino da História da Educação na Universidade de Lisboa (1950-2013)”, no qual procedeu a análise do espaço ocupado pela História da Educação na Universidade de Lisboa, na segunda metade do século XX e nos anos iniciais deste século, sendo que atualmente, é ministrada no Instituto de Educação, fazendo parte da licenciatura, do Mestrado em Ensino (que configura institucionalmente a legislação que consagrou o chamado processo de Bolonha, em 2007) e é oferecida também como um mestrado e um programa de doutoramento específicos, tendo construído um campo claramente definido de atuação.

Convida-se os colegas da área de História da Educação no Brasil e no exterior para a leitura deste dossiê vinculado ao tema Ensino de História da Educação, com a esperança de ser uma contribuição que some aos esforços de estudos e pesquisas que se tem visto atualmente, no sentido de permitir a melhor compreensão dos lugares institucionais e das formas tomadas pelo conteúdo da disciplina História da Educação.

Décio Gatti Júnior – Organizador


GATTI JÚNIOR, Décio. Apresentação. Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 13, n.2, jul. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

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História da saúde e das doenças: protagonistas e instituições / Territórios & Fronteiras / 2013

O dossiê “História da saúde e das doenças: protagonistas e instituições”, da Revista Territórios & Fronteiras, do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, reúne trabalhos de estudiosos de diversas procedências institucionais. Radicados profissionalmente no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Distrito Federal, Goiás, Minas Gerais e São Paulo, os autores refletem sobre a temática, utilizando-se de distintos recortes espaço-temporais e de perspectivas teórico-metodológicas e fontes diferenciadas.

Desde aproximadamente a década de 1970, que o campo da História da saúde e das doenças ganhou projeção, em especial com os trabalhos de Jean-Pierre Peter, Jacques Le Goff, Philippe Áries, Jean Delumeau e Jean-Charles Sournia1, que chamaram a atenção para a importância do corpo – em todas as suas manifestações. Para Jacques Le Goff, esse interesse deveu-se ao fato de as doenças não estarem ligadas apenas a uma história dos progressos científicos e tecnológicos, mas por pertencerem “à história profunda dos saberes e das práticas ligadas às estruturas sociais, às instituições, às representações” 2.

As doenças devem ser entendidas como fenômenos inteligíveis apenas em um contexto biossocial historicamente determinado, e regulado pelas condições do ambiente3; sua eliminação sempre fez parte das preocupações de homens e mulheres, em todas as civilizações, quaisquer que tenham sido as representações produzidas sobre elas4.

Fatos e acontecimentos associados às doenças produzem uma historicidade que se diferencia nas diversas temporalidades e espacialidades. Assim, a aplicação da perspectiva histórica para o estudo das doenças pode auxiliar na compreensão das estruturas de poder e dos comportamentos humanos de uma determinada época, possibilitando a análise das ações dos diferentes grupos sociais. O binômio saúde-doença não pode, evidentemente, ser interpretado da mesma maneira ao longo das diferentes épocas, pois as sociedades apresentam particularidades que distinguem esse fenômeno. Se na Antiguidade existiu a crença de que as doenças eram enviadas aos homens pelos deuses como castigo por suas faltas, foi também durante esse largo período histórico que surgiram as primeiras formulações de que as doenças eram provocadas por fatores naturais, a exemplo de Hipócrates (século IV a.C). O médico grego recomendava que os fatores ambientais fossem conhecidos tanto para averiguar as causas da propagação das doenças, quanto para melhor determinar as ações a serem adotadas face à manifestação de alguma enfermidade.

Durante a Idade Média vigorou a idéia de que as práticas mágicas e religiosas eram fatores determinantes para a manifestação das doenças; no entanto, os médicos do medievo também difundiram o conceito de contaminação e a necessidade da quarentena como forma de contenção da propagação de epidemias. Nas faculdades medievais de medicina conviviam os ensinamentos de Hipócrates, os de Galeno e de alguns médicos do mundo árabe. Abordando o contexto dos séculos XIII e XIV, o artigo de Dulce O. Amarante dos Santos, “Saúde e enfermidades femininas nos escritos médicos (séculos XIII e XIV)”, aborda a produção do conhecimento médico sobre doenças próprias das mulheres, mais especificamente daquelas associadas aos órgãos ligados à reprodução. Para tanto, a autora analisou dois textos medievais importantes: De secretis mulierum, atribuído ao Pseudo Alberto Magno, que analisa os mistérios que envolvem o processo da reprodução humana, e o Thesaurus pauperum, atribuído ao físico Pedro Hispano, um receituário de practica medica para todas as doenças, dirigido aos praticantes leigos.5

Durante os séculos XVII e XVIII, o conhecimento médico e científico avançou consideravelmente. Em especial, no Setecentos, saúde e aumento da população estavam relacionados ao aumento da riqueza e do poder do Estado. Desse modo, governantes se esforçavam para organizar estatísticas que pudessem servir de fontes para propostas políticas e econômicas que aumentassem a riqueza e o poder do Estado. O crescimento das cidades promoveu uma série de ações políticas e médicas, provocando a emergência da medicina do estado alemã, da medicina urbana francesa e da medicina do trabalho inglesa. Neste período, e tratando da produção colonial luso-brasileira, se insere o estudo de Jean Luiz Neves Abreu, “Tratados e construção do saber médico: alguns aspectos dos paratextos nos impressos de medicina lusobrasileiros – século XVIII”. Em seu artigo, Abreu identifica os princípios e finalidades que a medicina assumia no Setecentos, e, através da análise de prefácios e preâmbulos de livros de medicina publicados ao longo do século XVIII, aponta para sua condição de difusores e legitimadores do saber médico deste período. 6

Ao longo do século XVIII e século XIX, inúmeras foram as viagens realizadas por naturalistas, botânicos, zoólogos e médicos, que a serviço de seus Estados europeus de origem, detiveram-se na sistematização de conhecimentos sobre o meio ambiente, as doenças e os costumes de outros povos. No artigo “Raça, clima e doença: a viagem de Alphonse Rendu para o Brasil (1844-45)”, Rosa Helena Girão de Moraes analisa as idéias do médico francês Alphonse Rendu, inserindo-as num debate mais amplo, que não se restringia às Academias de Ciências e de Medicina do período, na medida em que chamaram também a atenção dos políticos e intelectuais.7

Numa Europa em que predominavam os estudos que atribuíam o funcionamento do corpo às leis da física e da química, surgiram também diferentes propostas para a cura, como a do médico escocês John Brown (1735–88), para quem todas as doenças seriam provocadas por estimulação excessiva ou deficiente. Para curá-las, Brown prescrevia doses muito altas de sedativos e estimulantes, provocando danos e polêmica. Opondo-se a esta orientação terapêutica, surgiu a homeopatia, que propunha que os sintomas de um paciente deveriam ser tratados com drogas que produzissem os mesmos sintomas, mas com a aplicação de dosagens mínimas. Em “Medicina intuitiva, homeopatia e espiritismo na Revista Espírita de Allan Kardec – 1858-1869”, Beatriz Teixeira Weber, com base nas edições da Revue Spirite – Journal d’Etudes Psychologiques, entre 1858 e 1869 − período em que a revista foi dirigida por Allan Kardec −, analisa os pressupostos do espiritismo e da homeopatia, confrontando-os nas várias correntes de pensamento existentes na Europa da segunda metade do século XIX, priorizando os aspectos relacionados ao processo de adoecimento e de cura. 8

Apesar dos intensos debates e avanços, houve pouca mudança na prática clínica no Oitocentos, como se pode constatar na continuidade da sangria e da purga. As mudanças mais substanciais emergiram ao final do século, especialmente com Pasteur (1822-95) e sua revolucionária teoria microbiana. Contemplando este período, o artigo intitulado “A saúde dos escravos na Bahia Oitocentista através do Hospital da Misericórdia”, de Maria Renilda Nery Barreto e Tânia Salgado Pimenta, analisa as condições de saúde da população escrava em Salvador, na primeira metade do século XIX, identificando quais as doenças que mais acometiam esta população, e explorando as possíveis associações entre elas e as condições de trabalho a que estavam submetidos. Tendo como fontes os registros de entradas e de saídas de doentes internados no Hospital da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, as autoras avaliam, ainda, o impacto da epidemia de cólera de 1855 sobre esta população. 9

Também com o olhar direcionado para a saúde da população escrava, Paulo Roberto Staudt Moreira, em “Ingênuas mortes negras: doenças e óbitos dos filhos de ventre livre (Porto Alegre – 1871 / 1888)”, trata de dois temas ainda pouco explorados do universo escravista: a infância e a saúde. Enfocando o período de 1871 a 1888, o artigo se detém na análise das condições de saúde das crianças geradas por ventre escravo após a Lei Rio Branco, de 28 de setembro de 1871, identificando as doenças que as acometiam com maior freqüência.10

Dilene Raimundo do Nascimento e Matheus Alves Duarte da Silva, em “A peste bubônica no Rio de Janeiro e as estratégias públicas no seu combate (1900- 1906)”, analisam os relatórios da Diretoria Geral de Saúde Pública e do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, a fim de identificar as estratégias adotadas pelo poder público para o combate da epidemia de peste bubônica, ocorrida na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX, que consistiram na reformulação das leis sanitárias e no saneamento da Capital Federal. 11

Abordando tema ainda pouco contemplado pela historiografia brasileira, Kaori Kodama e Magali Romero Sá, em “Saúde, imigração e circulação de conhecimentos: Japão e Brasil nas relações científicas no período entre-guerras”, apresentam os intercâmbios havidos entre cientistas japoneses e brasileiros e as relações que podem ser estabelecidas entre os fluxos de imigração japonesa e algumas das políticas internacionais de saúde. Kodama e Sá referem a existência de uma agenda comum entre brasileiros e japoneses representantes da Liga das Nações, o que permitiu lançar luz sobre alguns dos problemas de saúde pública associados ao deslocamento de grandes contingentes pelo mundo, especialmente aqueles relacionados à ancilostomíase.12

O presente dossiê, ao contemplar diferentes sociedades e épocas, constitui-se em amostra da vitalidade dos estudos de História da saúde e das doenças que vêm sendo desenvolvidos no Brasil, os quais, não apenas têm ampliado significativamente as análises sobre saberes e práticas de cura, discursos científicos, instituições e políticas públicas, representações e percepções sociais das doenças, como também as perspectivas teórico-metodológicas do campo. Os oito artigos aqui apresentados filiam-se a esta tendência atual das investigações da área da História da saúde e das doenças, privilegiando a discussão sobre os papéis desempenhados por certos protagonistas – alguns deles esquecidos ou pouco valorizados pela historiografia –, e sobre a atuação de instituições – européias ou brasileiras –, para a adoção ou difusão de determinadas concepções e práticas.

Notas

1 REVEL, Jacques e PETER, Jean-Pierre. O corpo: o homem doente e sua história. In LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre Nora (org). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1988. LE GOFF, Jacques (org). As doenças têm história. Lisboa: Terramar, 1985.; ARIÈS, Philippe. O homem perante a morte I. Portugal: Editora Europa América, 1988.; DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300-1800. Uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.; SOURNIA, JeanCharles. História da medicina. Instituto Piaget, sd.

2 LE GOFF, Jacques. As doenças têm história. p. 8.

3 ROSEN, George. Da polícia médica à medicina social. Rio de Janeiro: Graal, 1980. p. 47.

4 PORTER, Roy. Das tripas coração: uma breve história da medicina. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2004. p. 13.

5 Da mesma autora, recomenda-se ver: SANTOS, Dulce O. Amarante dos. O percurso intelectual do físico Pedro Hispano (século XIII). In: GONÇALVES, Ana Teresa M. et al.(Orgs.). Escritas da História. Goiânia: Ed. da UCG, 2004. p.129-145; SANTOS, Dulce O. A. Aproximações à medicina monástica em Portugal na Idade Média. História (São Paulo. Online), v. 31, p. 47-64, 2012; SANTOS, Dulce O. A; FAGUNDES, M. D. C. Saúde e dietética na medicina preventiva medieval: o Regimento de saúde de Pedro Hispano. História, Ciências, Saúde-Manguinhos (Impresso), v. 17- 2, p. 333-342, 2010.

6 Ver, também, do mesmo autor, Higiene e conservação da saúde no pensamento médico luso-brasileiro do século XVIII. Asclepio. Revista de Historia de la Medicina y de la Ciencia, 2010, vol. LXII, nº 1, enero-junio, págs. 225-250. Sobre temática similar, ver a tese de doutoramento de Leny Caselli Anzai, defendida em 2004 no Programa de Pós-graduação em História da UnB, “Doenças e práticas de cura. O olhar de Alexandre Rodrigues Ferreira” (prelo). Neste estudo, a autora analisa o manuscrito “Enfermidades endêmicas da capitania de Mato Grosso”, do naturalista Rodrigues Ferreira e, em especial, no capítulo II, trata dos manuais médicos que serviram de fonte para o naturalista em seu trabalho sobre as doenças que encontrou na Amazônia. Anzai analisou também apresentações e prefácios de publicações utilizadas pelo naturalista, com o intuito de destacar o estágio do conhecimento médico à época, e o alcance dos manuais médicos. Destacou a ação do médico Antonio Nunes Ribeiro Sanches, que pregava a necessidade de se enviar bolsistas ao exterior, por conta do Estado, para estudar em centros prestigiados com o objetivo de formar quadros técnicos e intelectuais necessários ao desenvolvimento do país. Em seu “Tratado da conservação da saúde dos povos”, Sanches chamava a atenção para aspectos relacionados à higienização das cidades, que deveria ser promovida pelo Estado, esclarecendo que, sem isso, de nada valeria toda a ciência da medicina; a essa ação do poder público denominou “medicina política”. Tratando da mesma temática, recomendamos a leitura de FLECK, Eliane Cristina Deckmann; POLETTO, Roberto. ‘En este libro no hallo cosa que se oponga a los dogmas de nuestra Santa Fe ni a las buenas costumbres’: um estudo sobre dedicatórias, prólogos e censuras em tratados de cirurgia e de medicina do Setecentos. Varia História (UFMG. Impresso), v. 29, 2013, p. 125-142. E, ainda, o artigo de FLECK, Eliane Cristina Deckmann; POLETTO, Roberto. Circulação e produção de saberes e práticas científicas na América meridional no século XVIII: uma análise do manuscrito Materia Medica Misionera de Pedro Montenegro (1710). História, Ciências, Saúde-Manguinhos (Impresso), v. 19, p. 1121-1138, 2012, no qual os autores revelam que alguns missionários jesuítas dedicados às artes de curar, como o irmão Montenegro, não se limitaram à adoção de teorias médicas e procedimentos terapêuticos vigentes à época e difundidos através dos manuais médicos, realizando uma série de experimentalismos que visavam sua comprovação ou contestação. Os catálogos de botânica médica, os tratados médico-cirúrgicos e os receituários, que resultaram da sistematização de suas observações e experiências, apontam para a produção de novos conhecimentos médicos e farmacêuticos, condição fundamental para a conformação de uma original cultura científica na América hispânica colonial.

7 Da mesma autora, ver também: A geografia médica e as expedições francesas para o Brasil: uma descrição da estação naval do Brasil e da Prata (1868-1870). História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v.14, n.1, p. 39-62, jan.-mar. 2007. Também Flávio C. Edler debruçou-se sobre o relatório da viagem realizada pelo médico francês Alphonse Rendu ao Brasil, entre 1844 e 1845, em artigo intitulado De olho no Brasil: a geografia médica e a viagem de Alphonse Rendu, publicado na Revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, vol.8, supl. 2001, p. 925-943. De acordo com Edler, a obra evidencia a posição estratégica que o Império brasileiro veio a ocupar no programa de pesquisa orientado pelo paradigma etiológico ambientalista, e sua inserção em uma segunda fase da geografia médica, inaugurada a partir da criação dos Archives de Médecine Navale, na década de 1860.

8Sobre a constituição do espiritismo no Brasil, e particularmente, no Rio de Janeiro, ver: GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. Nesta publicação, o autor afirma que, no Brasil, o espiritismo se subordinou ao monopólio de cura conquistado pela medicina, aliando-se ao poder policial para garantir, no campo “religioso”, seu papel privilegiado em relação ao baixo espiritismo, à macumba, ao candomblé, ou seja, aos cultos de origem africana em geral. Sobre a introdução da homeopatia no Rio Grande do Sul, recomenda-se a leitura do artigo de Beatriz Teixeira Weber, Estratégias homeopáticas: a Liga Homeopática do Rio Grande do Sul nos anos 1940-1950, publicado na Revista História Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n.2, abr.-jun. 2011, p. 291-302.

9 De acordo com Jaime Rodrigues, as moléstias que atingiam os africanos e seus descendentes na América, tais como a febre amarela e o cólera, provocaram pouca discussão intelectual entre os médicos brasileiros do século XIX e início do XX: “Nas poucas vezes em que essas doenças suscitaram debates, se tratava de discussões muito menos significativas do ponto de vista biológico e muito menos politizadas no meio médico”. Ver mais em RODRIGUES, Jaime. Reflexões sobre tráfico de africanos, doenças e relações sociais. História e Perspectivas, Uberlândia (47): 15-34, jul. / dez. 2012. Recomenda-se também a leitura de PÔRTO, Ângela. O sistema de saúde do escravo no Brasil do século XIX: doenças, instituições e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2006. v, 13, n. 4, p. 1019-1027; BARRETO, Maria Renilda Nery. Assistência ao nascimento na Bahia oitocentista. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.15, n.4, out.- dez. 2008, p. 901-925. Recomenda-se ainda aos interessados o livro História da saúde na Bahia: instituições e patrimônio arquitetônico (1808-1958), organizado pelas historiadoras Christiane Maria Cruz de Souza e Maria Renilda Nery Barreto, que revela aos leitores como a Bahia construiu sua rede de assistência à saúde da população, materializada em instituições públicas, privadas, de caridade, filantrópicas, de investigação e de difusão científica. O livro foi editado pela Fiocruz e Manole, e é de 2011. Outro estudo é o que consta da edição especial da Revista História, Ciências, Saúde-Manguinhos vol.19 supl.1 Rio de Janeiro Dec. 2012, cujo tema é “Saúde e Escravidão”, organizado por Tânia Salgado Pimenta, Kaori Kodama e Flávio Gomes, que reúne trabalhos de historiadores da escravidão e da saúde, que se utilizam de diferentes abordagens teóricas e metodológicas e de fontes originais ou já conhecidas, reinterpretando-as sob novos ângulos.

10 Do mesmo autor, ver: MOREIRA, Paulo R. S. Com ela tem vivido sempre como o cão com o gato. Alforria, maternidade e gênero na fronteira meridional. In: FARIAS, Juliana, GOMES, Flávio; XAVIER, Giovana. (Org.). Histórias das mulheres negras: condição feminina, escravidão e pós-emancipação no Brasil, séculos XVIII ao XX. 1ª ed. Rio de Janeiro: Selo Negro, 2012. p. 149-171. Tratando, também, desse tema, mas para Minas Gerais, vale destacar a pesquisa de pós-doutoramento realizada por Heloisa Maria Teixeira, intitulada “Entre a escravidão e a liberdade: as alforrias em Mariana no século XIX (1840-1888)”, desenvolvida em 2013, no Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, e, ainda, contemplando a situação em Mato Grosso, a Dissertação de Mestrado intitulada Filhos livres de mulheres escravas (Cuiabá: 1871 a 1888), defendida por Nancy de Almeida Araújo, junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UFMT, em 2001. Por abarcar o mesmo recorte temporal e tratar da morte e da mortalidade infantil e, em especial, das concepções a respeito da infância dos homens do século XIX nas cidades do sudeste, recomenda-se ver também: VAILATTI, Luiz Lima. A morte menina. Infância e morte infantil no Brasil dos Oitocentos (Rio de Janeiro e São Paulo). São Paulo: Alameda, 2010, em especial a abordagem que faz da emergência de um discurso moderno, médico-cientificizante e aburguesado a partir da década de 1850. Ver também o estudo realizado por Jorge Prata de Souza, A mão-de-obra de menores: escravos, libertos e livres nas instituições do Império. In: SOUSA, Jorge Prata de. Escravidão: ofícios e liberdade. Rio de Janeiro: APERJ, 1999, que se detém na análise dos efeitos do discurso higienista sobre as políticas de inserção da mão-de-obra infantil durante o período do Império.

11 O artigo em questão se propõe complementar estudos já realizados sobre as epidemias que grassaram no Rio de Janeiro nos anos que se seguiram à Proclamação da República. O estudo dialoga com os trabalhos de Sidney Chalhoub e Jaime Benchimol, que abordaram a campanha de saneamento comandada por Oswaldo Cruz, e a de erradicação da varíola e da febre amarela. Sobre a temática, recomendase a leitura do artigo de NASCIMENTO, D. R.; DUARTE Matheus. À caça aos ratos. Revista de História (Rio de Janeiro), v. 67, p. 33-37, 2011.

12 Sobre esta temática ver mais em: BENCHIMOL, Jaime Larry; SÁ, Magali Romero; KODAMA, Kaori (org.). Cerejeiras e cafezais: relações médico-científicas entre Brasil e Japão e a saga de Hydeyo Noguchi. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2009. Trata-se de estudo que aborda o intercâmbio científico associado a grandes fluxos migratórios e reconstitui a trajetória de cientistas japoneses em missões de pesquisa no Brasil no início do século XX, destacando as contribuições relevantes que esse intercâmbio trouxe para ambos os países. Como contribuição aos estudos sobre imigração japonesa, recomendamos a dissertação de mestrado defendida por Aldina Cássia Fernandes da Silva no Programa de Pós-graduação em História da UFMT em 2004, Nas trilhas da memória: uma colônia japonesa no norte de Mato Grosso – Gleba Rio Ferro (1950 – 1960). Neste estudo, Fernandes da Silva trata: da venda, na década de 1950, de uma grande área de terras devolutas em Mato Grosso para várias colonizadoras particulares; do discurso do governo estadual para atrair colonos japoneses; da luta dos imigrantes japoneses para se adequarem às condições da região norte do estado de Mato Grosso.

Eliane Cristina Deckmann Fleck – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: ecdfleck@terra.com.br

Leny Caselli Anzai – Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: l.caselli.anzai@terra.com.br


FLECK, Eliane Cristina Deckmann; ANZAI, Leny Caselli. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.6, n.2, ago / dez, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Militares, milicianos e policiais: instituições, representações e práticas / História Unisinos / 2012

O dossiê Militares, milicianos e policiais: instituições, representações e práticas reúne trabalhos cujo objeto são instituições militares e policiais no Brasil dos séculos XIX e início do XX, ou seus agentes, milicianos, guardas nacionais, praças da força policial e policiais da força pública. Em ambos os casos, tratam-se de textos que muito se distanciam das antigas histórias institucionais autocentradas e, nesse sentido, os seis artigos aqui reunidos podem ser vistos como amostra das pesquisas recentes sobre história militar e história da polícia feitas no Brasil, dois campos de estudo que vêm ganhando relevo nas últimas décadas, com o crescimento do número de publicações, dissertações e teses produzidas.

Embasada em sólidas pesquisas empíricas, a historiografia recente tem demonstrado outras faces dessas instituições que não as repressoras ou de “controle social”. Como é sabido, defini-las como tal não ajuda a explicá-las, pois a própria noção de “controle social” ao se expandir perdeu muito de seu poder explicativo. Nessas duas áreas de pesquisa, quando afastamos o foco dos projetos e discursos oficiais e nos aproximamos mais das práticas dos agentes, as instituições militares e policiais aparecem bem menos homogêneas do que nos acostumamos a acreditar que seriam. Vistas por meio dos indivíduos que as moldam nas suas relações de poder local, práticas e interações cotidianas, tais instituições disciplinares mostram suas dificuldades em se fazerem disciplinadoras para o público interno e externo. Nesse sentido, torna-se cada vez mais relevante o estudo de como essas instituições funcionavam localmente e como seus membros se relacionavam com outros grupos sociais. Estudos locais baseados em sólida pesquisa empírica e no diálogo com a historiografia permitem a análise comparativa do funcionamento de instituições nacionais em diferentes regiões, no caso das instituições militares imperiais, ou de instituições policiais provinciais e estaduais com objetivos semelhantes, mas organizações distintas dentro do território nacional.

Em que pese o crescimento da produção, da qual os autores reunidos neste dossiê constituem alguns dos principais representantes, a história da polícia, ou das polícias, no Brasil ainda tem muito campo a ser desbravado. A descoberta da riqueza da documentação policial para o estudo das condições de vida e da cultura populares desde os anos 1980, na esteira do deslumbramento com outros documentos da Justiça criminal, principalmente os processos crime, não implicou no aprofundamento do estudo da instituição que produzia essa documentação. Deste modo, embora as pesquisas venham se avolumando e se consolidando, ainda existem muitas lacunas a preencher em termos de estudos acadêmicos sobre a história do policiamento no Brasil, o que é grave se considerarmos que, ao menos nas décadas iniciais da República, era a polícia a face mais visível do Estado no contato com a população. Daí a relevância de artigos como os que tomam polícia e policiais por objeto nesta revista.

No Brasil a história militar, além de enfrentar os mesmos preconceitos que em outros países, também contou com a repulsa de muitos historiadores por lembrar nosso passado recente de ditadura militar. Contudo, a documentação existente sobre as forças armadas e a polícia é muito rica pra ser ignorada ou ser analisada somente através do viés do controle e da repressão. Conhecer melhor essas instituições e, principalmente, as pessoas que as compuseram é o principal objetivos dos artigos que aqui serão apresentados.

Este dossiê se inicia com o artigo de Luiz Guilherme Scaldaferi Moreira, que faz uma análise da bibliografia dedicada à história militar, do clássico Clausewitz a mais recente produção francesa e a anglo-saxônica, destacando as obras de André Corvisier e John Keegan. O autor discorre sobre as críticas da Escola dos Anais à história militar, pejorativamente chamada de “história batalha” que, justamente para fugir desse estereótipo, se chamou “nova história militar”, mais voltada à história social e cultural, que à descrição das batalhas ou a análise da estratégia. Moreira também ressalta que os estudos ligados à Nova História militar por vezes se aproximam bastante da antropologia e da sociologia e, frequentemente, estão relacionados à proclamada volta da narrativa.

Já o texto de Fernanda Claudia Pandolfi, intitulado “Política, imprensa e a participação dos militares na abdicação”, nas suas palavras, “pretende, especificamente, analisar como e por que os militares se uniram aos grupos liberais em oposição ao governo de D. Pedro I, focalizando nos acontecimentos que imediatamente precederam a abdicação. Sua tese principal será a de que a aliança entre militares e grupos liberais em 1831 somente foi possível devido à expansão do ‘espaço público’ na cidade no Rio de Janeiro, processo este em que a imprensa teve um papel fundamental, ao se transformar em lócus privilegiado das disputas políticas”.

O artigo de Luís Augusto Farinatti trata, principalmente, da relação de compadrio existente na estrutura das milícias nos inícios do século XIX na localidade de Alegrete, no Rio Grande do Sul. Na análise do autor, os oficiais milicianos eram verdadeiros “campeões de batismo”, qualificação que demonstra o quanto eram reconhecidos como protetores pela sociedade local. De fato, o poder dos oficiais de milícias era muito grande, pois: “Eles tinham a possibilidade de proteger aliados e escolher desafetos para onerar com as necessidades da guerra”.

O texto de Miquéias Henrique Mugge analisa a busca da inserção social de elementos que queriam se destacar dentre os imigrantes alemães em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. O autor apresenta dados que mostram uma realidade local muito particular, quando comparada a outros estudos locais. Em São Leopoldo, a maioria dos oficiais de milícia ocupava-se de profissões urbanas e tal como o apontado por Farinatti no seu estudo de caso sobre a história de Alegrete, também ali eram importantes as relações de compadrio que ligavam os oficiais aos seus clientes.

No texto “[…] que de polícia só tem o título, constando apenas de pobres crianças” Caiuá Al-Alam trata sobre a reorganização da polícia provincial no Rio Grande do Sul após a Guerra do Paraguai. A partir da análise de documentação variada, desde relatórios de Presidentes de Província e correspondências entre autoridades policiais até processos criminais nos quais policiais estiveram envolvidos, o autor mostra as dificuldades dos governantes em obter recursos humanos e materiais para o policiamento, bem como em impor disciplina aos policiais. Além disso, naquele contexto, os ex-combatentes do Paraguai haviam se tornado um problema administrativo e criminal para as autoridades, na medida em que capitalizavam sua experiência de participação na guerra como justificativa para a deslegitimação e desobediência à autoridade dos policiais.

Os artigos de André Rosemberg e Luís Antonio Francisco de Souza estudam a Força Pública do Estado de São Paulo nos primórdios da República.

Rosemberg analisa a organização da polícia paulista entre 1889 e 1894 e os desafios que se colocavam à instituição e seus agentes num contexto política e socialmente conflituoso onde, conforme o autor, convivia-se com temporalidades diversas: às expectativas republicanas estavam imbricadas permanências de uma herança escravista ainda plenamente arraigada nas relações sociais. Centrado no protagonismo dos policiais como produtores do policiamento, o que constitui uma das marcas da historiografia mais atual sobre polícia, o artigo mostra a importância do caráter militar assumido pela Força Pública do Estado de São Paulo nos anos iniciais da República e as permanências na instituição de práticas características do regime anterior, apesar dos discursos modernizantes republicanos.

O texto de Souza analisa um período posterior ao estudado por Rosemberg, quando o militarismo acabou por se converter em ideologia da Força Pública de São Paulo, ou pelo menos de seus superiores, a partir da contratação da Missão Francesa em 1906 para prestação de treinamento militar e disciplina para os policiais paulistas. A documentação interna da Força Pública mostra as vicissitudes e contradições da disciplina militar: ela não conseguia conter a indisciplina e as irregularidades na base da corporação – como a análise das práticas policiais cotidianas revela – mas, por outro lado, criou um espírito de corpo que dificultava a punição da violência cometida por seus soldados fora dos marcos da instituição e contra as pessoas comuns. Tais atos eram reprimidos com medidas administrativas, de forma que, dentro dessa lógica, deserções eram faltas mais graves do que violências contra a população.

O dossiê conta também com a resenha do livro “Homens e Armas. Recrutamento Militar no Brasil Século XIX”, produzida por Vítor Izecksohn; e na seção Notas de pesquisa com o texto “Contando policiais: os registros de pessoal como fonte”, de Cláudia Mauch.

Para finalizar, agradecemos aos editores da História Unisinos a oportunidade que nos foi proporcionada de organizar este dossiê, e aos pareceristas pelas suas contribuições. Acreditamos que a reunião de artigos sobre história militar e história da polícia possa contribuir para a aproximação e o diálogo entre esses dois campos de pesquisa em processo de consolidação no Brasil.

Cláudia Mauch

Paulo César Possamai

Organizadores do Dossiê


MAUCH, Cláudia; POSSAMAI, Paulo César. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.16, n.3., setembro / dezembro, 2012. Acessar publicação original [DR]

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