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A Inquisição em foco, dois séculos após sua extinção: Estruturas, personagens, vítimas e possibilidades de análise | Mnemosine Revista | 2021
The public hanging of witches in Scotland. Coloured engraving, 1678. Illustration: The Granger Collection/Alamy
O dossiê que aqui apresentamos à Revista Mnemosine é fruto de um convite feito aos organizadores pelos responsáveis pela Revista e foi proposto e pensado a partir dos esforços de reflexão em torno de uma data marcante para os estudos acerca do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Portugal: em 2021, comemorou-se os 200 anos de sua extinção, ocorrida por votação unânime das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação portuguesa em 31 de março de 1821, naquele alvorecer da monarquia constitucionalista lusa.
O encerramento das atividades inquisitoriais, após 285 anos de atuação e milhares de denúncias, confissões e processos, foi dos mais importantes desdobramentos da Revolução Liberal do Porto, ocorrida em 1820, e que teve ainda como uma de suas consequências, na outra franja do Atlântico, a independência do Brasil, em 1822 – data marcante da qual agora celebramos igualmente o bicentenário, apesar de outras independências que se fazem cada vez mais urgentes em nossa realidade – a dar fim aos mais de três séculos de dominação política portuguesa na América. Ventos de liberdade, cada um ao seu modo, que permitiam a Portugal e Brasil novos rumos e sonhos de progresso, sabemos bem, nem sempre concretizados. Leia Mais
Inquisição, justiça eclesiástica, religião e religiosidades na Época Moderna / Contraponto / 2020
O presente dossiê teve como ponto de partida uma reflexão sobre a atualidade dos estudos tocantes a Inquisição e aplicação da justiça eclesiástica ao longo da Época Moderna. Na proposta que apresentamos, com o título “Inquisição, justiça eclesiástica, religião e religiosidades na Época Moderna”, procuramos também que se integrassem estudos sobre formas de religiosidade consideradas, na época, heterodoxas e trajetórias dissidentes, bem como os mecanismos utilizados para as controlar e “disciplinar”. A adesão ao dossiê foi significativa e a diversidade de artigos recebidos espelha, em nosso entender, dois aspectos que merecem ser sublinhados. Em primeiro lugar, os contributos aqui congregados são representativos de diferentes momentos do percurso de investigação, correspondendo a primeiros esforços de reflexão no início de uma pós-graduação, até trabalhos elaborados no âmbito de investigações de doutorado e de pós-doutorado. Nesse sentido, a conclusão que podemos retirar é a de que as investigações nestas temáticas estão ativas e que os próximos anos serão de continuidade e até mesmo de renovação dos contributos.
Em segundo lugar, este dossiê contou com um vasto corpo de avaliadores externos – cerca de 65 – oriundos de múltiplas universidades americanas e europeias. A versão final dos trabalhos beneficiou, assim, de um profundo diálogo entre autores, editores e avaliadores. Parece-nos que esse aspecto deva ser sublinhado no contexto global em que nos encontramos. O processo de montagem e de elaboração coincidiu com o duro golpe que a pandemia trouxe para as nossas vidas. O diálogo contínuo e enriquecedor entre todos os envolvidos neste processo, bem como a persistência para superar os condicionamentos provocados por um mundo que, subitamente, se fechou, permitiu-nos chegar até aqui. Por essa razão estamos muito gratos a todos os autores, avaliadores e ao pessoal da Revista Contraponto, que possibilitaram fechar este dossiê.
Um dos blocos centrais do conjunto de artigos aqui apresentados é, sem dúvida, a ação da Inquisição no Mundo Moderno, em diferentes vertentes e perspectivas. Os estudos sobre a temática inquisitorial têm tido, ao longo das últimas décadas, muitas contribuições e novas leituras o que se traduz num amplo manancial de trabalhos académicos editados em vários países [1]. Os agentes do tribunal, a sua atuação nas sociedades extra europeias, os alvos da ação repressiva dos inquisidores, entre outros temas, têm despertado a análise dos investigadores [2]. Os artigos aqui reunidos mostram bem a importância da Inquisição Portuguesa enquanto instituição de vigilância e de punição em Portugal e nos territórios imperiais [3].
O primeiro texto deste dossiê apresenta uma reflexão sobre a atuação inquisitorial num dos seus espaços ultramarinos, os territórios africanos nos quais não se estabeleceu um tribunal, mas onde vários agentes do Santo Ofício, ou instituições eclesiásticas que com ele se associaram, procederam a um controlo e vigilância de todo o tipo de comportamentos que podiam ser considerados como delitos que se enquadravam dentro da jurisdição inquisitorial. A autora do artigo, Sonia Siqueira, apresenta-nos neste ensaio mais uma reflexão dentro da sua vasta e importante obra historiográfica. Os muitos textos que Siqueira foi publicando ao longo da sua trajetória acadêmica contribuíram para um melhor conhecimento das formas de atuação do Santo Ofício nos espaços coloniais [4], dando uma grande atenção aos aspectos jurídicos e aos procedimentos [5] do tribunal, mas também ao seu quadro de oficiais[6].
Como já referimos, os estudos que compõem este dossiê são diversificados, como se demonstra através do elenco dos mesmos. Gabriel Cardoso Bom apresenta uma reflexão sobre o contributo da historiografia italiana para os estudos sobre Inquisição, expondo as propostas metodológicas de Paolo Prodi e de Adriano Prosperi, as quais foram significativas para os avanços da temática. Depois desta primeira reflexão historiográfico-metodológica, Alécio Nunes Fernandes transporta-nos, com um olhar renovado, para os meandros da primeira visitação ao Brasil. O autor analisa, auxiliado pela elaboração de uma tabela de categorias delitivas, as circunstâncias que podiam servir de atenuantes no momento de se decretar uma sentença. Ainda dentro da análise do enquadramento jurídico do Santo Ofício, Isabela Miranda Corby analisa, no âmbito do seu projeto de doutoramento, as denúncias por crimes de feitiçaria que se conservam nos Cadernos do Promotor e referentes à região de Minas Gerais no século XVIII.
Os seguintes artigos focam-se na diversidade de delitos que caiam sob a alçada do Santo Ofício. Marcus Vinicius Reis explora o fascinante caso de Joana de Jesus, analisando, à luz da proposta teórica dos estudos de género, o processo inquisitorial que lhe foi movido pela Inquisição de Goa. Por seu turno, Monique Marques Nogueira Lima detém-se no universo dos escravos e nos “malefícios” que lhes eram atribuídos pela sociedade envolvente e pelo Santo Ofício e seus oficiais. O delito de proposições heréticas é abordado por Isabel Andrade dos Reis Valentim, através da revisitação do conhecido caso de Pedro de Rates Henequim. Por fim, Elaine da Silva Santos apresenta o percurso de um cristão-novo dos sertões do São Francisco às prisões do Santo Ofício.
Os agentes do tribunal são também objeto de análise neste dossiê. Ana Paula Sena Gomide dedica-se a recriar a carreira do inquisidor Jorge Ferreira ao serviço do Santo Ofício de Goa. Luiz Fernando Lopes, através do estudo do rico fundo documental das habilitações do Santo Ofício, apresenta-nos uma proposta analítica e metodológica de estudo de processos de habilitação aprovados e rejeitados. As relações entre Inquisição e política são destacadas por Afrânio Jácome, através da figura do cardeal D. Nuno da Cunha de Ataíde, que chegou a ser Inquisidor-Geral. Por sua vez, Yllan de Mattos, traz-nos o detalhado estudo das intrincadas malhas que se tecem entre as administrações das estruturas diocesanas e a Inquisição [7], seguindo a trajectória de Giraldo José de Abranches na Amazônia colonial, o que permite fazer uma transição para um segundo bloco temático que compõe o nosso dossiê.
É bastante corrente a afirmação de que a historiografia que versa sobre o Império Português tenha dado pouca atenção aos estudos da Igreja [8] e, sobretudo, em nível de diocese, ao funcionamento jurídico-processual dos Auditórios Eclesiásticos (Tribunal Episcopal ou Juízo Eclesiástico), seja do ponto de vista institucional, seja no trato dos indivíduos que foram, direta ou indiretamente, atravessados por esta instituição. Tamanha afirmação se torna mais latente se a compararmos com as investigações que versam sobre Santo Ofício. Justifica-se, comumente, a dificuldade em localizar suas documentações produzidas e o acesso extremamente restrito, vinculados, ora sob a posse de arquivos privados, ora sob a posse das cúrias metropolitanas.
No entanto, apesar destas dificuldades, que, pouco a pouco, estão sendo transpostas, como bem sinalizou Jaime Gouveia [9], é notável o vertiginoso crescimento das pesquisas acerca desta temática. Uma prova disto é o projeto, em curso (2017 – 2021), Religião, administração e justiça eclesiástica no Império Português (1514- 1750) – ReligionAJE [10], coordenado pelo português José Pedro Paiva. Constituído por dezenas de historiadores africanos, americanos e europeus, numa interessante e profícua mescla entre novos e consagrados historiadores, cujo “[…] objetivo final é uma interpretação em escala global do impacto do episcopado no império”, amparados a partir das propostas metodológicas da connected history. Atrelados a este grandioso projeto, vários eventos e publicações foram e serão realizadas durante sua vigência, forjando, assim, um impacto indelével aos futuros investigadores. Ambicionados a revitalizar um campo de estudo que tem sido praticamente abandonado [11], a sua vitalidade, ainda que neste curto espaço de tempo, já pode ser sentida neste dossiê que ora apresentamos, mostrando que várias pesquisas sobre a temática se encontram em curso.
João Antônio Fonseca Lacerda Lima é quem assina o artigo: Cura das almas, da fé e de suas lavouras: A trajetória do Pe. Caetano Eleutério de Bastos nos bispados do Maranhão Grão-Pará (1694-1763). Propõe-se investigar a trajetória do Pe. Caetano Eleutério de Bastos enquanto clérigo e comissário do Santo Ofício nos bispados do Maranhão e Grão-Pará do século XVIII.
Pedrina Nunes Araújo em seu artigo, Todo sertão tem a Igreja que Deus (rei) dá: O Bispado do Maranhão e as ações eclesiásticas no Piauí do século XVIII, discute, balizada por uma documentação até então inédita, a dinâmica e o funcionamento da Igreja nos primórdios da anexação do Piauí à administração espiritual do bispado do Maranhão, tratando, por conseguinte, dos conflitos jurisdicionais com o bispado de Pernambuco – diocese que até então era responsável pela região do Piauí -, evidenciando, assim, o papel fundamental do bispo Dom Frei Manuel da Cruz na resolução das contendas e na consolidação desta região aos ímpetos maranhense. Temática essa que, ainda que tangencialmente discutida por Pollyanna Gouveia, sobretudo, em sua tese de doutoramento, permanece praticamente inexplorada.
Nas trilhas das investigações sobre o clero regular, as autoras Marcia Eliane de Souza e Mello e Rozane Barbosa Mesquisa, tratam da conflituosa relação entre as ordens regulares e o episcopado de Dom Bartolomeu do Pilar (1724 – 1733) – primeiro bispo do recém-criado bispado do Pará. A investigação que ora é apresentada, assenta-se na disputa jurisdicional acerca da realização de visitas pastorais em regiões de missões indígenas. As tensões entre as ordens regulares, capitaneadas pela Companhia de Jesus, e o mitra Dom Bartolomeu do Pilar, trazem ao relevo motivações e interpretações de diferentes matrizes dos sujeitos ávidos em alterar, ou permanecer, prerrogativas jurídicas há muito assentadas em prol de seus interesses e perceções.
No seu artigo, Patrícia Ferreira dos Santos analisa o Tribunal Eclesiástico de Mariana, do qual é especialista. A autora apresenta-nos os meios de administração, organização e funcionamento jurídico-processual desta diocese que, como as demais administrações eclesiásticas que constituíam o Império Português, estava inserida dentro da lógica do direito de padroado régio. Assim, busca-se apresentar, através do exercício cotidiano das querelas (exclusiva para eclesiásticos, pois possuíam imunidade de foro) e queixas (denúncias especificas), o espaço de ação exclusiva do Tribunal Episcopal que atuavam como dispositivos de identificação, e, por conseguinte, punição espiritual à dissensão através, geralmente, da excomunhão. Punição essa temida por todos, ou, pelo menos, por quase todos.
Por fim, Gilian Evaristo França Silva se propõe apresentar as práticas fúnebres e caritativas das irmandades religiosas inseridas na Prelazia de Cuiabá – capitania de Mato Grosso –, durante o século XVIII. A criação da administração eclesiástica de Cuiabá, assim como a prelazia de Goiás e as dioceses de Mariana e São Paulo, em meados do século XVIII, revela como essas instituições religiosas foram fundamentais para o disciplinamento social contra a dissensão e, principalmente para a expansão e delimitação de fronteiras no Império Português.
O último bloco de textos que compõem este dossiê diz respeito à temática das religiosidades e sensibilidades religiosas, em sentido lato, muitas delas consideradas como expressões heterodoxas no mundo pós-tridentino [12]. Em primeiro lugar encontramos dois artigos que se reportam a identidades religiosas fluídas. Regina Carvalho Ribeiro da Costa dedica-se ao período do Brasil holandês para apresentar o que designa por “disjuntivas judaicas”, pensando nas alianças que se podem criar num espaço multicultural, as quais superam, muitas vezes, as divergências da fé. Também o artigo de Jadson Ramos de Queiroz nos fala de uma trajetória de vida pouco linear, entre duas fés, neste caso o percurso do calvinista que chega ao território brasileiro, onde se converte ao catolicismo e acaba por ser batizado duas vezes. Transforma-se assim, num arquétipo de herege, caindo nas malhas punitivas da justiça eclesiástica e da inquisitorial.
Karina Fonseca Soares Resende apresenta um artigo de revisão historiográfica sobre um panfleto do século XVII, da autoria do pregador puritano Samuel Petto, e a imagem que nele é apresentada da figura da bruxa.
O texto seguinte, da autoria de Bruno Kawai Souto Maior de Melo, centra-se no movimento conhecido como “Jacobeia”, analisando as suas características e dinâmicas, ao longo do século XVIII, e prestando também uma atenção detalhada às trajetórias de alguns dos seus membros.
Fredson Pedro Martins aborda o problema do cruzamento do movimento de evangelização na região andina de inícios da Conquista com as concepções cosmológicas indígenas, através do estudo do conteúdo do Manuscrito de Huarochirí.
Por fim, o artigo de Daniel Sepúlveda oferece uma reflexão sobre o conceito de confessionalização, articulando com as formas de implementação da ortodoxia católica na Modernidade, bem como com os mecanismos de segregação e de racismo que se desenvolveram ao longo da Época Moderna.
Como podemos ver, trata-se de um dossiê plural, rico em investigações de arquivo e em balanços e reinterpretações historiográficas, um bom exemplo de que os investigadores continuam ativos e produzindo conhecimento, mesmo em “tempos sombrios” – para utilizar uma expressão cara a filósofa Hanna Arendt – e desafiantes.
Notas
1. Uma síntese da produção historiográfica sobre Inquisição publicada no Brasil, com uma contabilização de teses e dissertações, pode ser encontrada em: ASSIS, Angelo Adriano Faria de. “No interior do labirinto, o olho do vulcão: Revisitar os estudos inquisitoriais no Brasil e vislumbrar o futuro que tecemos”, Revista Ultramares, Alagoas, vol. 1, nº 7, p. 10-33, 2015.
2. Não é este o espaço para elencar os múltiplos contributos que têm surgido sobre a temática nos últimos anos. No tocante à Inquisição portuguesa, veja-se, por exemplo a análise de: MARCOCCI, Giuseppe. “Toward a history of Portuguese Inquisition: Trends in Modern Historiography”, Revue de l’histoire des religions, Paris, vol. 3, p. 355-393, 2010.
3. Sobre a atuação da Inquisição em contexto colonial veja-se: MARCOCCI, Giuseppe. “A fé de um império: a Inquisição no mundo português de Quinhentos”, Revista de História, São Paulo, nº 164, p. 65-100, 2011. Para compreender o funcionamento da Inquisição Portuguesa numa perspectiva diacrónica é fundamental a síntese de: MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição Portuguesa, 1536-1821, Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013. Um estudo que trouxe uma visão comparada da instituição e que marcou a historiografia posterior é o de: BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
4. Veja-se, neste particular, o estudo pioneiro que apresentava um estimulante quadro da inserção da Inquisição no Brasil Colônia: SIQUEIRA, Sonia Aparecida. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial, São Paulo, Ática, 1978.
5. Para este conhecimento contribuiu a publicação por Sonia Siqueira dos textos dos regimentos do Santo Ofício português. Sobre isso, consultar: SIQUEIRA, Sonia Aparecida. Os Regimentos da Inquisição. In. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. º392, p. 495-1020, 1992.
6. O resultado da sua tese de doutoramento, defendida na USP em finais dos anos 60 do século XX, acabou por ser publicado apenas em 2013, materializando como um grande afresco do pensamento da autora sobre o Santo Ofício. SIQUEIRA, Sonia Aparecida. O Momento da Inquisição. João Pessoa: Editora Universitária, 2013.
7. Temática que tem sido destacada por vários autores e que tem, sem dúvida, nas obras de José Pedro Paiva um contributo de notável importância. Veja-se, por exemplo: PAIVA, José Pedro. Baluartes da fé e da disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1750), Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011.
8. Referimos as investigações de pesquisas regionais que trazem uma visão mais especifica do objeto. Tendo em vista que as extensões territoriais “[…] foram, sem dúvida, um elemento importante a exigir adaptações em relação às formas tradicionais do exercício da governação eclesiástica”. Sobre a consideração acerca dos trabalhos que trazem visões genéricas da história da Igreja na colônia. MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça. Parochos imperfeitos: Justiça Eclesiástica e desvio do clero no Maranhão Colonial. Tese. Programa de Pós-graduação em História. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2011, p. 20. A respeito da citação: SOUZA, Evergton Sales. Estruturas eclesiásticas da monarquia portuguesa. A igreja diocesana. In: XAVIER, Ângela Barreto; PALOMO, Frederico; STUMPF, Roberta. Monarquias ibéricas em perspectiva comparada (Sécs. XVI-XVIII). Lisboa: ICS, 2018, p. 516.
9. “A ideia dominante é a de que a maior parte desses fundos documentais se perdeu, pouco ou nada existindo que permita reconstituir a ação dos dispositivos judiciais de parte significativa das dioceses de Portugal e de seu império ultramarino. Há de reconhecer, todavia, que a natureza privada dos arquivos onde foram depositados esses espólios, a deficiente e, na maior parte dos casos, inexistente, catalogação dos documentos, faz crer que o panorama não seja tão sombrio e que parte das fontes cujo paradeiro, até hoje, se desconhece, seja dada a conhecer no futuro”. GOUVEIA, Jaime. “O Tribunal Episcopal de Portalegre, 1780 – 1835”. Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra, Coimbra, vol.31, 1, p. 61-102, 2018, p. 61.
10. Projeto PTDC / HAR-HIS / 28719 / 2017. https: / / www.uc.pt / fluc / religionAJE
11. Para ficarmos com as próprias palavras postas na apresentação do projeto Religião, administração e justiça eclesiástica no Império Português (1514-1750) – ReligionAJE, em seu endereço eletrônico.
12. Veja-se as reflexões apresentadas em BETHENCOURT, Francisco. Rejeições e polémicas. In: MARQUES, João Francisco; GOUVEIA, António Camões. História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, Vol. 2, p. 49-94.
Belém, Teresina, Lisboa, 11 de setembro de 2020.
Antonio Otaviano Vieira Junior
Ferdinand Almeida de Moura Filho
Susana Bastos Mateus
VIEIRA JUNIOR, Antonio Otaviano; MOURA FILHO, Ferdinand Almeida de; MATEUS, Susana Bastos. Apresentação. Contraponto, Teresina, v. 9, n. 1, jan / jun, 2020. Acessar publicação original [DR]
Os papéis da Inquisição. Conservação e dispersão na Europa, América e Ásia / Revista de Fontes / 2018
O legado documental das Inquisições: reflexões sobre a sobrevivência dos arquivos do Santo Ofício.
Falar do património documental legado pelos diferentes processos de abolição dos tribunais inquisitoriais ibéricos e romano significa algo de muito diverso dependendo das historiografias que dele se ocupam. Os cartórios dos Conselhos de Portugal e de Espanha tiveram maior fortuna que o arquivo da Congregação do Santo Ofício de Roma, o qual perdeu muito do seu acervo durante as suas deslocações. Não obstante, os cenários são contrastantes: os três tribunais peninsulares portugueses conservaram a sua documentação, enquanto que o de Goa foi destruído. Quanto aos tribunais que dependiam do Consejo de Madrid, quase todos viram os seus fundos desaparecer, com excepções notáveis como os de Cuenca, Toledo, Canárias e o tribunal do México, com jurisdição sobre parte da América espanhola e Filipinas.
O dissemelhante destino dos cartórios inquisitoriais não gerou o mesmo tipo de respostas nos vários países. Os estudos sobre as inquisições reflectiram, em larga medida, as prioridades das sociedades liberais nascentes, bem como, por seu turno, imperativos etiológicos das novas nações americanas. No entanto, as historiografias oitocentistas, apesar dos caminhos autónomos que trilharam, das fontes que os particularismos nacionais e intelectuais convocaram para apreciar o fenómeno histórico do Santo Ofício, não deixaram de convergir em topoi comuns. Temas como a censura, o atraso cultural ou a dissidência geraram inquietações reflexivas, cujas respostas procuraram os estudiosos encontrar em documentos que mais directamente ilustraram a manifestação persecutória / repressiva dos tribunais, como as listas de autos-da-fé ou, sobretudo, os processos inquisitoriais. Com efeito, esta tipologia de fonte adquiriu uma projecção transversal às diferentes historiografias, que fomentaram práticas de edições integrais de processos e contribuíram para uma tendencial centralidade dos mesmos no apreciar da fenomenologia inquisitorial. Uma das consequências da preponderância desta documentação foi, provavelmente, o relativo atraso que gerou quanto à dissociação da função persecutória / penal do tribunal e ao seu reconhecimento enquanto instituição, cujo funcionamento implicava uma variedade de tramitações burocráticas para além do auto judicial em si mesmo, as quais se manifestavam em outras tipologias documentais.
Ao invés, a necessidade de olhar para a documentação procedente dos cartórios inquisitoriais de forma ampla, promovendo um esforço de sistematização e de inventariação dos fundos remanescentes, teve um forte impulso em contextos historiográficos como o espanhol, onde as lacunas documentais afectavam vários dos tribunais peninsulares e americanos. Com efeito, a historiografia espanhola registou um aturado esforço de reflexão relativo a este legado patrimonial, mas também à constituição e organização dos cartórios inquisitoriais [1]. Não é, seguramente, uma coincidência que a consagração dos “estudos inquisitoriais [2] ” enquanto área disciplinar teorizada tenha ocorrido em Espanha, país em que um quadro documental profundamente lacunar obrigou os seus historiadores, num momento histórico particular [3], a diversificar o seu olhar para a Inquisição e as suas fontes de conhecimento. Foi a recusa de uma leitura particularista (atomizada), dividida em tribunais, dos editores da Historia de la Inquisición en España y América, e a opção de uma narrativa que revelasse a Inquisição no seu “sistema orgánico de sincronías” e “como proceso global” que permitiu que o Santo Ofício fosse encarado enquanto instituição, enquanto – diríamos hoje – realidade sistémica. É por demais significativo que a expressão institucional da consagração dessa área disciplinar – o Centro de Estudios Inquisitoriales, criado em 1980 e o Instituto de Historia de la Inquisición, fundado em 1985 [4] – não tenha nunca tido o seu paralelo em países como o México ou Portugal, onde os cartórios peninsulares se conservaram num estado de invejável integridade, mas não se verifica qualquer tradição historiográfica que reclame essa filiação intelectual.
Sintomaticamente, a evolução dos arquivos inquisitoriais, na sua organização interna, nos seus silêncios ou lacunas, são inquietações que permaneceram, em grande medida, à margem dos percursos historiográficos devedores de contextos de hiper-abundância documental [5]. Em Portugal, como no México, os vazios documentais não foram tidos como suficientemente significativos para gerar inquéritos sistemáticos à questão da ausência enquanto expressão de uma problemática, quer de evolução orgânica e de prioridades institucionais, quer custodial [6]. O quadro visível de abastança informativa contribuiu, desta forma, para emprestar à lacuna o valor de um natural desaparecimento ocasionado pela passagem do tempo, atrasando a possibilidade do seu estudo enquanto fruto de uma escolha, de uma perda ou de uma espoliação pela acção de agentes concretos e, portanto, da identificação desses mesmos momentos [7].
Este dossier pretende ser um contributo para o conhecimento das atitudes institucionais, sociais e culturais sobre o património documental inquisitorial que possibilite uma releitura dos “fundos inquisitoriais” à luz da sua constituição – isto é, da conservação dos antigos cartórios dos tribunais –, mas também dos canais de dispersão que promoveram a divisão do que seriam, no início, unidades sistemicamente integradas.
O estudo das lacunas documentais enquanto via para a reconstituição da organização dos cartórios inquisitoriais [8] faz com que o historiador deva conferir especial atenção, não só ao período que compreende o processo de encerramento dos tribunais entre os finais do século XVIII e primeira trintena de anos do século XIX, mas também às décadas que se seguiram à sua extinção, quando as inquisições passaram a ser objecto de curiosidade histórica. Devido aos sentimentos de animadversão que suscitou, mas também à fidelidade de quantos haviam participado do múnus inquisitorial, latu sensu, o ocaso do Santo Ofício fez-se acompanhar de uma dispersão dos papéis inquisitoriais, mais célere que o cumprimento das normativas régias em vista à sua conversão, primeiro, e acomodação, depois [9]. Entre o afã de quem invadia as instalações do Santo Ofício para destruir, pilhar ou observar e o zelo de quem procurava manter o segredo e por isso subtraía (preservava) ou destruía, a extinção dos tribunais converteu os seus antigos documentos, devido à ineficácia da sua própria conservação, em curiosidades históricas que alimentaram um comércio de papéis destinados a enriquecer bibliotecas públicas ou particulares. Paralelamente, mesmo onde a supressão dos tribunais decorreu sem tumultos ou sobressaltos, a lenta execução das normativas oficiais não impediu a divisão do património documental do Santo Ofício, que permaneceria repartido em diferentes depósitos, formando-se núcleos progressivamente olvidados à medida que os fundos primaciais dos tribunais se assumiam enquanto tais perante novas gerações de estudiosos [10]; ou, mesmo, quando uma visão patrimonialista da documentação por parte dos seus responsáveis motivou a abertura de canais “eruditos” de dispersão transnacionais [11].
A reconstituição destes canais de dispersão é, hoje, fundamental, para se atingir um conhecimento mais consolidado da estrutura dos cartórios inquisitoriais no momento da supressão dos tribunais e, por conseguinte, da sua progressão enquanto instituição. Sendo certo que os tribunais do Santo Ofício conheceram períodos de maior ou menor organização dos seus cartórios, o conhecimento das opções institucionais tomadas durante o seu período de vigência, das suas necessidades e prioridades é um desígnio que exige uma compreensão das vias de sofisticação do aparelho inquisitorial, nomeadamente, a partir das necessidades de criação de séries documentais específicas para cada função ou tarefa. A vida da instituição, plasmada através dos registos escritos dos procedimentos inquisitoriais, foi confrontada com exigências impostas pela mudança dos tempos e das mentalidades, o que obriga a que a evolução do arquivo, na sua inovação, mas sobretudo nas suas lacunas – para além das perdas ocasionadas por conflitos ou desastres naturais – seja forçosamente entendida como o resultado de uma vontade, seja esta institucional, ideológica ou de outra ordem [12]. É este mapa de maturação institucional que o estudo dos processos de conservação, em articulação com os canais de dispersão, permitirá ilustrar. Por este motivo, os organizadores deste dossier desafiaram estudiosos de diferentes tribunais a olhar para além dos núcleos documentais reunidos nos arquivos nacionais, onde tendencialmente foram acomodados os antigos cartórios dos tribunais, e analisar os processos de constituição de fundos inquisitoriais paralelos ou a circulação de documentação dispersa e a sua ulterior incorporação em bibliotecas ou arquivos. Este desafio, foi primeiramente concretizado no Workshop internacional “Os papéis da Inquisição: conservação e dispersão na Europa, América e Ásia”, realizado na Universidade Católica Portuguesa a 25 de Junho de 2018 em co-organização pelo Centro de Estudos de História Religiosa, pela Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste e por El Colégio de México. É agora acolhido pela Revista de Fontes na sua versão escrita.
O dossier consta de sete contributos, referentes aos fundos documentais das várias inquisições modernas na Europa e na América. O primeiro texto, da autoria de Bruno Lopes e Fernanda Olival, centra-se na documentação produzida pelo fisco da Inquisição e conservada na Biblioteca Pública e no Arquivo Distrital de Évora. Os autores procuram traçar a história custodial destes documentos e a sua relação com outros fundos documentais semelhantes, procurando aferir a importância desta documentação para o estudo do funcionamento do tribunal inquisitorial.
Bruno Feitler encetou, no seu artigo, uma difícil investigação sobre as peculiaridades e ritmos de um cartório desaparecido, pertencente ao único tribunal português que funcionou em território não europeu. Identificando os momentos fundamentais que afectaram a integridade do arquivo da Inquisição de Goa até à sua extinção definitiva, o autor proporciona uma panorâmica do que terá sido a estrutura do cartório nos momentos mais próximos à sua destruição, bem como, contexto dessa orgânica, o material remanescente, hoje custodiado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
À semelhança do primeiro artigo, elaborado por Bruno Lopes e Fernanda Olival, o terceiro contributo centra-se também, essencialmente, na documentação de natureza fiscal produzida pela Inquisição. Trata-se do caso do tribunal de Valencia. Enrique e José María Cruselles Gómez, Irene Manclús Cuñat e María José Carbonell Boria analisam as dinâmicas de dispersão dos fundos inquisitoriais valencianos, apresentando os documentos que se encontram dispersos por vários arquivos da cidade.
Andrea Cicerchia centra-se na Congregação romana através da análise de um documento produzido num contexto muito particular. Elaborando uma minuciosa análise e transcrição de uma minuta de inventário elaborada no âmbito da república romana de 1849, o autor apresenta uma descrição do que seria o arquivo da Congregação naquela data, bem como as formas de organização dos papéis do Santo Ofício romano, num momento em que as inquisições ibéricas tinham já sido abolidas.
No seu artigo, Gabriel Torres Puga apresenta-nos uma questão presente nas realidades americanas e europeias da Inquisição espanhola: a escolha entre manter o segredo ou preservar o arquivo em momentos críticos. O estudo apresenta-nos um quadro geral e comparativo das atitudes dos ministros do Santo Ofício quanto à gestão dos papéis inquisitoriais, quer no que diz respeito à sua recuperação, quer quanto à preservação do segredo de que se esperava serem alvo. Numa incursão por vários arquivos inquisitoriais, o autor apresenta uma reflexão sobre um aspecto menos estudado da preservação dos cartórios inquisitoriais: a intervenção dos seus próprios responsáveis e a possibilidade de que eles mesmos tivessem tido alguma responsabilidade na destruição do seus respectivos arquivos.
Jaqueline Vassallo alerta para um outro nível de dispersão, decorrido a nível local, de acervos que não foram alvo da mesma atitude por parte dos poderes centrais no momento de extinção dos tribunais: os arquivos das comisarías das periferias dos distritos inquisitoriais, nomeadamente, o caso das regiões do Río de La Plata e do Tucumán. Numa aproximação ao interesse e atenção das elites letradas para com o passado inquisitorial da sua sociedade, a autora revela-nos rastos de papéis inquisitoriais em bibliotecas e arquivos da cidade de Córdoba.
Com Gerardo Lara Cisneros alarga-se a reflexão a uma outra instituição de controlo da fé e dos costumes presente no território da Nova Espanha, o chamado “Provisorato de Indios y Chinos”, integrado na estrutura de funcionamento do arcebispado do México e direccionado para a vigilância das práticas supersticiosas e idolátricas dos indígenas. O autor apresenta os traços gerais de funcionamento da instituição, procurando também dar-nos algumas pistas para a reconstituição do seu arquivo, apesar das perdas significativas que este sofreu.
Notas
1. Veja-se, a este respeito, os trabalhos de Jean Pierre Dedieu. “Les causes de la foi de l’Inquisition de Tolède (1483-1820): Essai statistique”. Mélanges de la Casa de Velázquez, 14 (1978), pp. 143-171; Jaime Contreras e Gustav Henningsen. “Forty-four thousand cases of the Spanish Inquisition (1540-1700): analysis of a historical data bank”. In: J. A. Tedeschi, G. Henningsen e C. Amiel (ed.). The Inquisition in early modern Europe: studies on sources and methods. Dekalb: Northern Illinois University Press, 1986, pp. 100-129; Virgilio Pinto Crespo, Dimas Pérez Ramírez e Manuel Ballesteros Gaibrois no capítulo “Fuentes y tecnicas del conocimiento historico del Santo Oficio”. In: J. Pérez Villanueva e B. Escandell Bonet (dir.). Historia de la Inquisición en España y América, vol. I. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos y Centro de Estudios Inquisitoriales, 1984, pp. 58 e 135.
2. Termo assumido, por exemplo, por José Antonio Escudero. “Instituto de Historia de la Inquisición”. In: J. A.. Escudero. Estudios sobre la Inquisición. Madrid: Marcial Pons / Colegio Universitario de Segovia, 2005 [1986], p. 61; também Joaquín Pérez Villanueva. “La historiografía de la Inquisición española”. In: J. Pérez Villanueva e B. Escandell Bonet (dir.). Historia de la Inquisición, op. cit., vol. I, p. 6.
3. Em J. Pérez Villanueva, a leitura sobre o fenómeno inquisitorial acompanha uma reflexão mais alargada acerca das atitudes transversais ao ser humano de relação com a dissidência e a diferença. Com esta perspectiva, o autor alude à “experiencia historica de gran intensidad” vivida pela sua geração, a qual deveria situar os historiadores “en terrreno de mayor penetración y tolerancia, de mejor entendimiento para juzgar, y de más moderado criterio para interpretar y comprender”. Pérez Villanueva, que escreveria adiante que as leituras históricas do Santo Ofício constituíam um óptimo barómetro do clima intelectual, ideológico e político de cada tempo, manifesta um claro compromisso ético com esta obra, amadurecida durante os primeiros anos da Espanha da transição democrática. Joaquín Pérez Villanueva. “La historiografía de la Inquisición española”, op. cit., pp. 3 e 23.
4. Joaquín Pérez Villanueva. “El Centro de Estudios Inquisitoriales”. Arbor, 484 (Abril 1986), pp. 173-182; José Antonio Escudero. “Instituto de Historia de la Inquisición”, op. cit., pp. 61-63.
5. Para o atraso sobre a história dos arquivos inquisitoriais em Portugal alertara já, na esteira de Fernanda Ribeiro, Nelson Vaquinhas. Os autores de História da Inquisição Portuguesa, por seu turno, apontaram a enganadora aparência de completude dos acervos documentais procedentes dos tribunais peninsulares, um contexto de abundância que consideravam ter sido prejudicial ao estudo do Santo Ofício no seu conjunto. Nelson Vaquinhas. Da comunicação ao sistema de informação. O Santo Ofício e o Algarve (1700-1750). Lisboa: Colibri / CIDEHUS-UÉ, 2010, p. 10; Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva. História da Inquisição Portuguesa (1536-1821). Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013, p. 12.
6. Apenas o caso da Inquisição de Goa gerou várias aproximações ao problema da sua documentação, motivando a preparação de inventários de fundos de arquivo, bem como a de colectâneas documentais, mas também esforços destinados a suprir a ausência dos fundos inquisitoriais “clássicos” e estudos sobre a documentação proveniente do arquivo. Contudo, estamos a falar de respostas que reagem a um quadro de precariedade documental derivada da perda do cartório do tribunal de Goa após a sua extinção em 1812, à semelhança do que encontramos também na Colômbia, onde se procurou superar o vazio deixado pelo desaparecimento do seu cartório através da reunião de documentos localizados no Archivo Histórico Nacional de Madrid. Veja-se António Baião. A Inquisição de Goa. Correspondência dos Inquisidores da Índia (1569-1630), vol. II. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930; Miguel Rodrigues Lourenço. Macau e a Inquisição nos Séculos XVI e XVII. Documentos. Lisboa / Macau: Centro Científico e Cultural de Macau / IP / Fundação Macau, 2012 (2 vols); Carmen Tereza Coelho Moreno (coord.). “Inquisição de Goa. Inventário Analítico”. Anais da Biblioteca Nacional, 120 (2000), pp. 7-272; José Alberto Rodrigues da Silva Tavim. “A Inquisição no Oriente (século XVI e primeira metade do século XVII): algumas perspectivas”. Mare Liberum, 15 (Junho de 1998), pp. 17-31; Bruno Feitler. “João Delgado Figueira e o Reportorio da Inquisição de Goa: Uma base de dados. Problemas metodológicos”. Anais de História de Além-Mar, 13 (2012), pp. 531-537, assim como o estudo integrado neste dossier. De referir, ainda, a base de dados sobre uma das principais fontes para o estudo do Santo Ofício de Goa, o Reportorio de João Delgado Figueira de 1623, executada sob a sua coordenação. Disponível em http: / / www.i-m.mx / reportorio / reportorio / home.html (acesso a 19 de Setembro de 2018). Anna María Splendiani, José Enrique Sánchez Bohórquez y Emma Cecilia Luque de Salazar. Cincuenta Años de Inquisición en Cartagena de Indias, Santa Fé de Bogotá: Centro Editorial Javeriano / Instituto Colombiano de Cultura Hispánica, 1997 (4 vols.).
7. Entre os estudos que, em Portugal, procuraram abordar o legado documental do Santo Ofício vejam-se Pedro A. d’Azevedo e António Baião. “Cartorios do Santo Officio”. In: O Archivo da Torre do Tombo. Sua Historia, Corpos que o compõem e organisação. Lisboa: Annaes da Academia de Estudos Livres, 1905, pp. 62-71; Maria Teresa Geraldes-Barbosa. “Les Archives de l’Inquisition Portugaise”. In: Mélanges offerts par ses confrères étrangers à Charles Braibant. Bruxelas: Comité des Mélanges Braibant, 1959, 163-173; Charles Amiel. “Les archives de l’Inquisition portugaise. Regards et réflexions”. Arquivos do Centro Cultural Português de Paris, 14 (1979), pp. 421-443; Maria do Carmo Jasmins Dias Farinha. Os Arquivos da Inquisição. Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1990; Francisco Bethencourt. “Les sources de l’Inquisition portugaise: évaluation critique et méthodes de recherche”. In: L’Inquisizione Romana in Italia nell’Età Moderna. Archivi, problemi di metodo e nuove ricerche. Atti del seminario internazionale. Trieste, 18-20 maggio 1988. Roma: Ministero per i Beni Culturali e Ambientali / Ufficio Centrale per i Beni Archivistici, 1991, pp. 357-367; Fernanda Olival. “Archivi e Serie Documentarie: Portogallo”. In: A. Prosperi (dir.). Dizionario Storico dell’Inquisizione, vol. I, Pisa: Edizioni della Normale, 2010, pp. 86-87.
8. Apesar de normativas de sentido uniformizador para a organização dos arquivos, estudos como o de Bruno Feitler a respeito do cartório da Inquisição de Goa mostram que a personalidade ou a praxis individual de cada oficial dos tribunais conduziram a resultados diferenciados. Cf. Bruno Feitler. “João Delgado Figueira e o Reportorio da Inquisição de Goa”, op. cit., p. 534. Sobre os esforços promovidos pelos inquisidores-gerais de Espanha para a uniformização dos arquivos dos diferentes tribunais veja-se Virgilio Pinto Crespo. “Archivos Nacionales Españoles”. In: J. Pérez Villanueva e B. Escandell Bonet (dir.). Historia de la Inquisición en España y América, op. cit., pp. 66-70.
9. Vejam-se, a este respeito, René Millar Carvacho. “El archivo del Santo Oficio de Lima y la documentación inquisitorial existente en Chile”. Revista de la Inquisición, 6 (1997), pp. 101-116; Gabriel Torres Puga. “Conservación y pérdida de los archivos de la Inquisición en la América española: México, Cartagena y Lima”. In: J. Vassallo, M. Rodrigues Lourenço e S. Bastos Mateus (coord.). Inquisiciones. Dimensiones comparadas (siglos XVI-XIX). Córdoba: Editorial Brujas, 2017, pp. 45-62.
10. Pedro Pinto. “Fora do Secreto”. Um contributo para o conhecimento da documentação do Tribunal do Santo Ofício em arquivos e bibliotecas de Portugal (no prelo pelo Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa).
11. No caso do México, alguns processos e volumes inquisitoriais dispersaram-se após o seu arresto pelo governo, em 1861.O general Vicente Riva Palacio, a quem se deve, em boa medida, a sobrevivência do arquivo durante a guerra da Reforma (1862-1867) conservou em seu poder meia centena de volumes que, afortunadamente, se foram reintegrados. No entanto, é muito provável que o próprio Riva Palacio tenha emprestado ou até mesmo oferecido alguns volumes ou processos a outros eruditos, incluindo o célebre historiador da Inquisição espanhola, Henry Charles Lea. José Ortiz Monasterio, “Avatares del archivo de la Inquisición de México”. Boletín del Archivo General de la Nación, 5 (2003), pp. 93-110.
12. Para uma problematização sobre os silêncios nos arquivos como condicionantes da memória histórica, veja-se Rodney G. S. Carter. “Of Things Said and Unsaid: Power, Archival Silences, and Power in Silence”. Archivaria. The Journal of the Association of Canadian Archivists, 61 (Spring 2006), pp. 215-233. https: / / archivaria.ca / archivar / index.php / archivaria / article / view / 12541 / 13687 (acesso a 30 de Setembro de 2018).
Miguel Rodrigues Lourenço – Universidade Nova de Lisboa, Faculade de Ciências Sociais e Humanas, CHAM – Centro de Humanidades, Lisboa, Portugal. Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), Lisboa, Portugal. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, Lisboa, Portugal. E-mail: mjlour@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0002-0432-3240
Susana Bastos Mateus – Universidade de Évora, Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS), Évora, Portugal. Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), Lisboa, Portugal. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, Lisboa, Portugal. E-mail: mateus.susana@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0001-5350-100X
Gabriel Torres Puga – El Colegio de México, Centro de Estudios Históricos (CEH), México, DF, México. E-mail: gtorres@colmex.mx https: / / orcid.org / 0000-0002-5616-777X
LOURENÇO, Miguel Rodrigues; MATEUS, Susana Bastos; PUGA, Gabriel Torres. Apresentação. Revista de Fontes. Guarulhos, v.5, n.9, 2018. Acessar publicação original [DR]
Inquisição, Poder e Sociedade / Politeia: História e Sociedade / 2011
Por 285 anos, entre 1536 e 1821, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Portugal foi responsável pela perseguição a mais de 40 mil pessoas em todo o império luso, que compreendia terras da metrópole, ilhas do Atlântico (Açores, Madeira, Cabo Verde, São Tomé), várias regiões da África (a costa ocidental, do Marrocos ao Cabo da Boa Esperança, além de Angola e Moçambique), o Brasil, localidades na Índia (Goa, Cochim) e no extremo Oriente (Macau, Malaca, Nagasaki). Homens e mulheres foram investigados e condenados por crimes contra a fé (judaísmo, maometismo, protestantismo, molinismo, deísmo, libertinismo, críticas aos dogmas etc.) ou contra os costumes e a moral cristã (bigamia, sodomia, feitiçaria, solicitação). As sentenças, em sua maioria lidas publicamente em autos-de-fé, variavam de acordo com o grau de gravidade imputado pelos juízes inquisidores aos delitos cometidos. Cerca de dois mil indivíduos foram condenados à morte na fogueira e a um número muito maior foram impostas penas como a obrigação de ouvir missas, o açoite, o degredo, o confisco dos bens, o uso de hábito penitencial, a prisão perpétua, dentre outras. A documentação resultante desses procedimentos adotados pelo Tribunal do Santo Ofício de Lisboa – processos inquisitoriais e de habilitações, correspondências enviadas e recebidas, denúncias e confissões, cadernos do promotor, de nefandos e de solicitantes etc. – se constitui em registros valiosos para pesquisadores de diversas áreas das ciências humanas pois, a partir dela, é possível, como nos lembra Maria do Carmo Jasmins Dias Farinha, estudar temas relacionados a conflitos sociais, dificuldades econômicas, movimento marítimos, produção literária, censura, arquitetura urbana, toponímia, dentre outros aspectos da vida social dos territórios submetidos ao domínio lusitano.
Apresentamos ao público da Revista Politeia o dossiê Inquisição, poder e sociedade, composto por seis artigos de pesquisadores brasileiros que, a partir da investigação do acervo documental dos cartórios inquisitoriais, se ocupam da história do Santo Ofício português e, especificamente, das ações desta instituição no Brasil entre os séculos XVI e XVIII. O conjunto de textos apresentado é uma importante contribuição para a compreensão da Inquisição portuguesa, de sua dinâmica, funcionamento e historiografia. Reunimos aqui episódios que contam um pouco da história da América portuguesa: alguns trabalhos exploram aspectos relacionados ao cotidiano, às práticas e ideias de coletividades, como os judeus e cristãos-novos que se deslocaram para terras brasileiras; outros se dedicam a acompanhar a trajetória de indivíduos singulares que foram, de algum modo, atingidos pela Inquisição – homens célebres, como Antônio Vieira, ou obscuros, como um certo João de Moraes Montesinhos ou, outro, Alexandre Henriques, moradores da Bahia e das Minas Gerais – que, denunciados, atravessaram o Atlântico, se apresentaram ao Tribunal do Santo Ofício e conheceram os cárceres de Lisboa. Alguns artigos se concentram nas relações de poder que se afirmavam por meio das ações relacionadas à Inquisição – o papel de visitadores e familiares, os denunciantes que agiam motivados pelo desejo de atingir adversários políticos –; outros focam as tentativas do Santo Ofício em controlar a conduta moral e as práticas culturais de homens e mulheres submetidos à Coroa portuguesa.
O primeiro artigo, escrito por Angelo Adriano Faria de Assis, professor de História do Brasil Colonial da Universidade Federal de Viçosa, intitulado “Menorá de mil braços: variações do criptojudaísmo no mundo português” discute a sobrevivência da fé judaica após o decreto real que, em 1497, determinou a expulsão dos judeus de Portugal e, a seguir, a conversão compulsória ao cristianismo daqueles que permaneceram nas terras do reino. Angelo Assis destaca alguns processos inquisitoriais que tiveram por motivação denúncias contra pessoas acusadas de práticas identificadas com a crença judaica, como o respeito ao shabat, as restrições alimentares, o jejum em datas significativas do calendário judeu, as bênçãos e orações etc. O texto adota como ponto de partida a importância da menorá – um candelabro de vários braços, que ostentavam velas que deveriam ficar permanentemente acesas – no mobiliário dos templos judaicos para ressaltar as estratégias adotadas por várias famílias de cristãos novos com o intuito de assegurar a continuidade das práticas religiosas e culturais que lhes conferiam identidade. Assim como as chamas da menorá deveriam se mostrar sempre acesas, também estes cristãos novos se imbuíram da missão de manter permanentemente acesa a chama da fé, mesmo nos momentos em que esta crença foi transformada em ato herético e passível de perseguição e condenação pelos inquisidores do Santo Ofício.
“Terceira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil: Capitanias do Sul, 1627-1628” é o segundo artigo desse dossiê, de autoria de Ana Margarida Santos Pereira, doutoranda da Universidade de Amsterdã. O texto aborda um dos mecanismos pelos quais a Inquisição se fazia presente nos diferentes territórios, mesmo os mais distantes, do império português: a visitação. O Brasil foi alvo de uma primeira visitação em fins do século XVI, ocasião em que o visitador percorreu cidades da Bahia e de Pernambuco. Uma segunda visitação do Santo Ofício se faria presente em terras da Bahia em 1618. A terceira visitação, que se efetiva nos anos de 1627 e 1628, foi a primeira que alcançou as “partes” do Sul, atingindo localidades como o Rio de Janeiro, São Paulo, São Vicente, Santos e Vitória. Essa visitação, embora tenha se constituído em objeto de estudos por José Gonçalves Salvador e Lina Gorenstein, ainda é pouco conhecida e divulgada pelos pesquisadores da Inquisição. A abordagem de Ana Margarida Pereira, tomando como exemplo paradigmático a figura de Luís Pires da Veiga, o personagem principal da terceira Visitação, trata de diferentes aspectos relacionados à atuação dos visitadores: as pompas e solenidades que, em cada localidade, deveriam ser oferecidas ao visitador, os procedimentos adotados para o recebimento de denúncias e confissões, as penalidades impostas aos acusados, dentre outros. A autora enfatiza certa ambiguidade inerente à figura do visitador: pelas pompas que o acompanham e pela autoridade para ditar sentenças, ele é, indiscutivelmente, uma figura de poder; porém, é uma figura que pode ter este poder questionado pelas elites locais – moradores transformados em alvos da ação do visitador poderiam encaminhar à Inquisição denúncias contra o que fosse julgado como “abusos” do agente inquisitorial; em sentido contrário, o visitador também poderia ser alvo de denúncias por “complacência” (permitir que seus acompanhantes viajassem em companhia de “mancebas”, manter contatos demasiado amistosos com cristãos-novos, travar conversações com mulheres mundanas etc.). A autora destaca ainda que a visitação também oferecia, a seus agentes, a oportunidade de realização de negócios privados: visitadores aproveitavam as viagens a diferentes partes do reino luso para adquirir escravos, ouro e outras mercadorias de valor, o que implicava o aprofundamento dos contatos com mercadores que, não raro, eram cristãos-novos.
“Bernardo Vieira Ravasco e a Inquisição de Lisboa”, de autoria de Marco Antônio Nunes da Silva, professor de História Moderna da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, é um artigo construído a partir dos “cadernos do Promotor” da Inquisição portuguesa do século XVII. Na hierarquia burocrática inquisitorial, o promotor era o responsável pela apresentação das acusações contra os denunciados por práticas contra a fé e contra a Igreja. Em seus cadernos eram reunidas denúncias oriundas tanto das visitações como de denúncias formais apresentadas por diferentes agentes do poder até delações apresentadas por correspondências simples, encaminhadas por pessoas de condição obscura. A maioria destas denúncias jamais se transformou em processo inquisitorial; algumas foram objeto de investigações que não acarretaram a constituição de processo, outras sequer foram investigadas, delas restando apenas os registros no “caderno do Promotor”. Dentre as várias denúncias que figuram nestes cadernos, Marco Antônio da Silva se detém na análise daquelas que mencionam um personagem relevante na cena política da Bahia – e do Brasil – colonial: Bernardo Vieira Ravasco, que, durante 57 anos, ao longo do século XVII, ocupou o cargo de secretário do Estado do Brasil, imediatamente abaixo do Governador Geral. O autor, a partir destas anotações dos “cadernos”, analisa o papel desempenhado pela Inquisição em meio às intensas disputas pelos postos de prestígio e poder no Estado colonial. Bernardo Vieira Ravasco, além de ter sido secretário do Estado e ter se tornado alvo de investigações por parte da Inquisição, teve o seu nome envolvido em episódios relacionados a uma conspiração contra o próprio Governador Geral e ao assassinato do alcaide de Salvador; Bernardo Ravasco era, ainda, irmão do célebre Antônio Vieira, personagem também citado nos “cadernos do Promotor”, de intensos e conhecidos conflitos com a Inquisição de Lisboa.
Ainda numa incursão pelo século XVII e tendo como personagem central um membro do clero luso-brasileiro, “Ventura e desventuras de um mercedário sodomita em Belém do Pará pós-Filipino”, do professor Luiz Mott da Universidade Federal da Bahia, trata da vida material e do cotidiano de um convento na Amazônia portuguesa. Dentre os milhares de processos inquisitoriais que ajudam a compor o formidável acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Luiz Mott concentra sua atenção em um, constituído contra o prelado e comendador do convento da Ordem de Nossa Senhora das Mercês (Real, Celestial e Militar Ordem de Nossa Senhora das Mercês e Redenção dos Cativos) em Belém, no ano de 1656. Denunciado por praticar o “abominável” crime de sodomia, Frei Lucas de Souza seria preso, interrogado, encaminhado para o Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, amargaria 14 meses no cárcere e seria, finalmente, condenado a dez anos de degredo nas galés de Sua Majestade. Este processo – além de outros analisados, que envolvem acusações contra os supostos amantes de Frei Lucas de Souza – serve para o autor analisar a trajetória da Ordem de Nossa Senhora das Mercês em territórios da América portuguesa, as disputas pelos postos superiores no interior das ordens religiosas, além dos elementos que caracterizavam a vida cotidiana e os códigos de comportamento e conduta dos homens e mulheres aos quais a Igreja ambicionava orientar e vigiar.
O quinto artigo, intitulado “‘Sapatos ao mato’: o sentimento de ‘um triste homem que vem preso’ pelo Santo Ofício” é resultado de uma pesquisa desenvolvida por Suzana Maria de Sousa Santos Severs, professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Suzana Severs também se dedica a um processo particular para, a partir dele, lançar novas luzes sobre o funcionamento da Inquisição portuguesa em terras coloniais. A autora destaca a trajetória de um indivíduo destituído de qualquer notoriedade, morador da capitania de Minas Gerais, negociante e cristão novo, filho, irmão e cunhado de negociantes e cristãos novos que, acusado de criptojudaísmo, seria preso e encaminhado aos cárceres da Inquisição em Lisboa, onde permaneceria por nove meses até a definição de sua pena. Suzana Severs concentra sua atenção em um documento, escrito pelo próprio punho do denunciado, no qual este apresenta detalhes de sua viagem, sob a custódia de um Familiar do Santo Ofício, desde as Minas de Ribeira do Carmo – atual cidade mineira de Mariana –, onde morava, até o porto do Rio de Janeiro, quando seria embarcado nas galés rumo a Lisboa. O objetivo do acusado, ao redigir tal documento, era, claramente, o de denunciar os abusos, os maus-tratos e os sofrimentos de que foi vítima enquanto sob a guarda do Familiar designado para escoltá-lo até o Rio de Janeiro; para a autora, tal documento cumpre o relevante papel de resgatar os sentimentos e a subjetividade de um prisioneiro e, ao mesmo tempo, revela detalhes que conferem uma dimensão profundamente humana às ações e expectativas dos homens – agentes do Santo Ofício ou personagens a ele submetidos – que viveram em épocas e territórios controlados pela Inquisição.
O último texto que compõe este dossiê, “Movido pela loucura ou pela fé: trajetória de Alexandre Henriques”, de autoria dessa organizadora, apresenta a saga de um cristão novo, português, que chega ao Brasil no início do século XVIII com destino a Minas Gerais, com pretensões de enriquecer por meio da mineração, e retorna a Portugal como prisioneiro do Santo Ofício, dando entrada no Palácio dos Estaus em março de 1735. Antes de ser encaminhado à prisão de Lisboa, porém, Alexandre foi recolhido e permaneceu internado, considerado louco, no Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Salvador. Os documentos inquisitoriais relativos a este personagem mostram a sua condição principal: tratava-se de um desviante, de um indivíduo que manifestava enunciados incompatíveis com a ordem afirmada pela hierarquia eclesiástica. E as hesitações das autoridades inquisitoriais face às tentativas de classificação deste indivíduo – louco ou herético? – revelam um dos traços essenciais da Inquisição: a busca pela afirmação da ordem mediante a perseguição, o banimento e a aniquilação do outro, do diferente.
O presente dossiê reúne, portanto, diferentes trabalhos relativos à presença e atuação dos agentes do Santo Ofício português, sobretudo suas ações em diversas partes da América portuguesa, em especial na Bahia. Não pretende exaurir qualquer um dos aspectos abordados ao longo dos ensaios, mas simplesmente contribuir para um melhor entendimento dessa instituição e, acima de tudo, colaborar e incentivar novas pesquisas nesta área.
Agradeço à Diretoria Executiva da Revista Politeia pela oportunidade e possibilidade de reunião desses ensaios. E agradeço, especialmente, os / as articulistas que, generosamente, concordaram em divulgar seus relevantes trabalhos de pesquisa por meio deste dossiê o qual tive a honra de coordenar.
Grayce Mayre Bonfim Souza – Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) Doutora em História Social pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) E-mail: graycebs@yahoo.com.br
SOUZA, Grayce Mayre Bonfim. Apresentação. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista , v.11, n. 1, 2011. Acessar publicação original [DR]