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Influência dos Estados Unidos: Mundo e Brasil / Tempo / 2008
O presente dossiê partiu do desconcerto diante de um evidente paradoxo: a inquestionável influência dos Estados Unidos no mundo, e no Brasil em particular, de um lado, e o desinteresse e o conseqüente lento desenvolvimento dos estudos de história dos Estados Unidos nas universidades brasileiras, de outro. Parte desse descompasso deve-se certamente ao acesso restrito à produção historiográfica estadunidense, ao desinteresse das editoras especializadas e ao alto custo das traduções. A escassez de material bibliográfico em português, por sua vez, dificulta o ensino de história dos Estados Unidos nos cursos de graduação e faz com que a história desse país não seja privilegiada nos programas de História das Américas, cuja ênfase, em geral, é posta na história da América Latina, concedendo-se, inclusive, pouca atenção à dinâmica das relações interamericanas.
Com o objetivo de estimular discussões sobre essa história tão desconhecida quanto estereotipada, reunimos nesse dossiê artigos de quatro autores norte-americanos e de uma brasileira, acompanhados por uma entrevista com a atual presidente da American Historical Association (AHA). No conjunto, eles ajudam a visualizar linhas de investigação e reflexão muito distantes tanto de uma historiografia nacionalista dominante até os anos 1950 e marcada pelas idéias do consenso interno e da excepcionalidade da experiência norte-americana, produzida por norte-americanos, quanto de uma historiografia brasileira sobre os Estados Unidos, que igualmente elide a diversidade e os conflitos sociais e políticos, ao valorizar a continuidade de traços negativos e perversos de suas políticas internas e externas. Já é hora de superar esses paradigmas que sustentam uma cultura histórica e um imaginário sobre os Estados Unidos que não convidam à reflexão e à pesquisa.
O artigo de Mae Ngai trata de imigração e controle de fronteiras, tema fundamental da história norte-americana e uma das questões mais candentes no debate político, posto que associada à discussão da identidade nacional desde a fundação da nação. O período recoberto pelo artigo é o dos anos 1921 a 1965, quando teve vigência uma legislação que estabelecia quotas para imigrantes segundo a nacionalidade. A autora demonstra o quanto essa política imigratória se fez acompanhar do reforço do controle das fronteiras terrestres, especialmente a do sul, e da deportação de imigrantes considerados ilegais, cujo número se elevou de modo extraordinário, justamente em função da importante mudança conceitual que se operou então. Atingindo indivíduos já inseridos na sociedade muitas vezes por longo tempo, a deportação e sua revisão, implementadas de modo diferenciado de acordo com a nacionalidade, envolvia avaliações sobre adequação social e aptidão para a cidadania, ou seja, critérios qualitativos supostamente superados pelo princípio numérico que regia a política em vigor. Ao recuperar o debate político sobre princípios e direitos que a revisão da lei suscitou, a autora nos dá acesso aos conflitos vividos pela sociedade norte-americana naquele contexto.
No segundo artigo, Gary Gerstle articula guerra e imaginário político norte-americano, ao analisar produções cinematográficas e o sucesso editorial de obras que se dedicaram a recuperar, nos anos 1990, as duas guerras mais populares da história norte-americana: a Guerra Civil e a Segunda Guerra Mundial. O autor percebe o investimento de figuras como o diretor Spielberg e o historiador Sthephan Ambrose em filmes e séries como “O resgate do soldado Ryan” e Band of Brothers como parte do movimento de reconciliação dos liberais com o nacionalismo, depois do trauma do Vietnã. Através da figura do soldado-cidadão, central nessas narrativas épicas, busca-se realçar sua disposição cívica e moral, valorizada em geral pelos conservadores, de modo a novamente associar a guerra ao sentido de missão e virtudes democráticas.
Os artigos de David Chappell e Jessica Graham relacionam ideologia, religião e relações raciais. O primeiro enfoca o pensamento de líderes do movimento pelos direitos civis, refutando a tese, muito difundida, de que Martin Luther King Jr. tenha adotado uma perspectiva gradualista nessa matéria, o que o colocaria num pólo oposto ao de outros líderes negros considerados radicais, que rejeitaram qualquer projeto de integração ou acomodação com a América branca. Chappell demonstra, valendo-se de grande erudição, que o evangelismo profético estava na base da desobediência civil pregada por King e outros líderes negros que, ao contrário dos liberais, tinham uma visão extremamente negativa da natureza humana e da ordem social. Não comungavam, portanto, da idéia de que a discriminação racial, por sua disfunção e irracionalidade, teria seus dias irremediavelmente contados, considerando que a redenção dessa ordem só poderia advir da ação dos próprios negros. A ênfase do autor no poder mobilizador do discurso profético parece irrefutável, dada a disciplina e a firmeza demonstradas pelas massas negras na luta pelos direitos civis que, por fim, obrigou o governo a agir, tornando ilegal a segregação racial.
Jessica Graham se vale do boxe, esporte muito popular e carregado de forte simbolismo relacionado à nação, para apontar mudanças nas sensibilidades coletivas nos Estados Unidos decorrentes da ascensão do nazismo. Analisando a clara mudança na disposição do público em relação ao boxeador negro Joe Louis por ocasião das duas lutas que travou contra o alemão Max Schmeling em 1936 e 1938, a autora percebe um desgaste do paradigma racialista e maior abertura para inclusão do negro na comunidade nacional imaginada na segunda metade da década de 1930.
Representando os estudos norte-americanos no Brasil, Mary Anne Junqueira retrocede ao século XIX para recuperar um episódio muito pouco conhecido: a primeira expedição de circunavegação de caráter científico lançada pela Marinha dos Estados Unidos em 1838. Mary Junqueira mostra-nos que a então jovem nação norte-americana, antes mesmo de consolidar suas fronteiras terrestres, já se lançava nos mares, revelando não só suas ambições no terreno econômico, militar e geopolítico, mas também a preocupação em construir sua hegemonia no campo científico e cultural. A expedição apresenta-se assim como um empreendimento de múltiplas faces. Além do grande feito de constatar que a Antártida era um continente separado, de mapear costas e inúmeras rotas marítimas, a expedição coletou um número elevadíssimo de artefatos culturais, espécimes da fauna, da flora, amostras de minerais e, o que é muito significativo, constituiu uma rede de contatos entre atores-chave neste intercâmbio internacional: oficiais, diplomatas, cientistas, missionários. Desse modo, a autora nos ensina que muito antes da virada do século XIX para o XX – momento costumeiramente assinalado como início da extroversão dos Estados Unidos –, esse país já procurava firmar seus interesses globais frente às potências européias.
Por fim, a entrevista com Barbara Weinstein, a primeira “brazilianista” a assumir a presidência da AHA, centenária associação de historiadores dos Estados Unidos, descortina o universo extremamente plural de interesses e tendências da historiografia estadunidense, valorizando o intercâmbio com historiadores de outros países, particularmente o Brasil.
Cecília da Silva Azevedo – Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: ceciliasa@uol.com.br
AZEVEDO, Cecília da Silva Apresentação. Tempo. Niterói, v.13, n.25, 2008. Acessar publicação original [DR]