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Rodeo: an animal history | Susan Nance
Talvez a mais significativa tese sobre os artefatos culturais do Oeste norte-americano tenha sido apresentada por Henry Nash Smith (2009), um dos fundadores do campo intelectual dos american studies. Smith promoveu um profundo debate sobre as raízes civilizatórias da cultura dos EUA, sendo cultuado como um dos mais influentes pesquisadores da tradicional escola historiográfica iniciada por Frederick Jackson Turner (Worster, 1992). O fascinante livro de Susan Nance (2020), Rodeo: an animal history, reforça essa tradição ao trilhar um novo caminho – original e instigante – para compreender os símbolos e mitos do Oeste a partir do papel histórico dos não humanos. O seu estudo privilegia os animais de rodeio, entendidos pela autora como representação sui generis desse arcabouço cultural. Enquanto Smith privilegiava as personagens humanas, Nance procurou descrever os não humanos. Na obra, a indústria cultural do rodeio se manifesta como a instituição responsável por manter vivos os mitos da fronteira e seus atributos: rusticidade, virilidade, independência, resiliência, entre outros. E, nesse sentido, a principal influência teórica é o trabalho do historiador Richard White (1991, 1994) nas escolhas dessa nova abordagem do Oeste.
Importante ressaltar que a experiência pessoal da autora com o mundo rural foi uma energia capital para a pesquisa. Essa subjetividade se apresenta na problematização dos rituais do rodeio, como celebração coletiva da conquista humana sobre o território e os não humanos. E, por racionalizar o rodeio como “comoditização” do Oeste e dos seus símbolos: autodeterminação, independência e liberdade. Esse é um argumento essencial, diluído nos seis capítulos do livro, no qual os não humanos desempenham um papel protagonista. Leia Mais
Indústria Cultural: uma introdução – DUARTE (AF)
DUARTE, Rodrigo. Indústria Cultural: uma introdução. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. (Coleção FGV de Bolso, Série Filosofia). Resenha de: MARINHO, Lucas Alves. Artefilosofia, Ouro Preto, n.10, abr., 2011.
Conformado, em seis curtos capítulos, aos propósitos da coleção que integra, destinada a “interessados em filosofia de uma forma geral [que] a partir de textos claros poderão ter acesso às grandes questões do pensamento filosófico”, o livro Indústria Cultural: uma introdução é exemplo de didatismo que segue bem de perto, sobretudo em seus quatro capítulos centrais, a exitosa sequência expositiva de Teoria Crítica da Indústria Cultural 1. O surgimento da Teoria Crítica da indústria cultural, segundo capítulo do livro, relata as mais importantes ocorrências relacionadas ao Instituto para a Pesquisa Social: desde seu surgimento em 1924 na Alemanha, às expensas de Felix Weil, como alternativa entre as diretrizes ideológicas da social democracia e do comunismo ortodoxo: a invasão do instituto em 1933, então sob a direção de Horkheimer, o exílio de seus integrantes e o prosseguimento das atividades junto à Columbia University, até a chegada de Adorno aos Estados Unidos em 1938. Naquele país, Adorno, juntamente com Horkheimer, reuniu as condições teóricas e vivenciais – o conhecimento dos mecanismos de produção e difusão cultural já industrialmente instalados, as reflexões sobre a ciência e personalidade burguesas, o acirramento do antissemitismo e o início da Segunda Guerra, bem como os aforismos Sobre o conceito da história, legados por Walter Benjamin – para elaboração da Dialética do Esclarecimento. Após essa aproximação histórica, segue-se uma breve explanação temática dos seguintes capítulos da obra sobre a dialética: “Conceito de Esclarecimento”, “Ulisses ou Mito e Esclarecimento”, “Juliette ou Esclarecimento e Moral”. Explanação que conduzirá o leitor ao, digamos, vestíbulo do cerne do livro: a terceira seção do segundo capítulo, A crítica à indústria cultural no contexto da Dialética do Esclareci- mento, onde estão inseridos destacadamente os excursos constituintes da Dialética do Esclarecimento mais afeitos ao propósito de Indústria Cultural: uma introdução, aqueles sobre a “Indústria Cultural”, modelo liberal, e sobre o “Antissemitismo”, modelo autoritário das sociedades tardocapitalistas ; ambos vinculados, por uma articulação magistral, à semicultura, condição subjetiva da perpetuação de tais modelos. Vamos ao cerne do livro: Trata-se do capítulo terceiro, Os operadores da indústria cultural segundo a crítica de Horkheimer e Adorno, onde são desvelados os “procedimentos típicos da indústria cultural […] os quais se constituem também como critérios de identificação não apenas de suas práticas, mas, eventualmente, até mesmo dos seus produtos mais típicos” –; eis exatamente o que se quer dizer com operadores. Estes perfazem cinco referências básicas que explicitam, com bastante clareza e objetividade, as estratégias repressoras da indústria cultural: a manipulação retroativa – corresponder minimamente às expectativas dos consumidores (expectativas previamente enxovalhadas pela própria indústria cultural) enquanto impõe padrões de consumo, de comportamento moral e político comprometidos com a perpetuação do status quo ; a usurpação do esquematismo – antecipação estandardizada e reles, até a quase absoluta previsibilidade, das possibilidades interpretativas (individuadoras) de seus produtos; a domesticação do estilo – correlato produtivo daquela usurpação do esquematismo receptivo, que reproduz a desproporção real existente entre todo (mundo administrado) e parte (indivíduo) no interior dos produtos da indústria cultural pela sobreposição artificial, estereotipada, por isso violentamente coercitiva, de clichês in- vestidos de universalidade; a despotencialização do trágico – correlato antropológico da relação coercitiva entre todo e parte nos produtos da indústria cultural que interdita ao sujeito (parte) qualquer possibilidade de individuação, de resistência afirmativa, experiência e expressão do sofrimento (encarnação da negatividade) para além do mundo ad- ministrado (todo); tudo isso posto sob um disfarce – o fetichismo das mercadorias culturais – que sobrevaloriza seus produtos, oferecendo-os como “nobres” mercadorias pretensamente distanciadas do mercado dos gêneros utilizáveis, para escamotear exatamente suas danosas implicações sociais.
Depois da sucinta e segura apresentação do caráter regressivo dos produtos da indústria cultural a partir desses cinco tópicos básicos, o autor tematiza, no capítulo quarto, as Retomadas do tema da indústria cultural na obra de Adorno. Ele destaca duas obras do último período do pensamento do filósofo, Teoria Estética e Sem modelo: pequena estética, em busca de adições críticas relevantes ao tema da indústria cultural posteriores à publicação de Dialética do Esclarecimento, quais sejam: a reflexão adorniana sobre a histórica apropriação mercantilizada e desvigorada de conceitos da arte autônoma pela indústria cultural, que o autor ilustrará referindo-se aos conceitos de estilo e catarse ; e aquelas reflexões que atualizam, no livro Sem modelo: pequena estética, “as tendências predominantes na indústria cultural” pós- Dialética do Esclarecimento. Ele aponta, por um lado, no surgimento e consolidação da televisão como medium maximamente invasivo, a hipertrofia da estratégia cinematográfica de reduplicação e naturalização do mundo para reprodução simples do espírito; por outro lado, no desenvolvi- mento histórico de formas alternativas de cinema, a possibilidade de um cinema libertário que tematizasse diretamente, ou seja, que recuperasse objetivamente o modo imagético (assim como a pintura para o modo visível e a música para o modo auditivo) da experiência.
O quinto capítulo propõe aprofundar a atualização da interpretação crítica dos fenômenos da indústria cultural a partir das “ferramentas conceituais legadas por Horkheimer e Adorno”. Ocasião para uma frutuosa apresentação das posições de Ulrich Beck e Scott Lash, às quais o autor recorre para bem delimitar (histórica e geopoliticamente) seu objeto, a globalização – período de virulento triunfo de empreendedores transnacionais (sobremaneira intensificado nas duas últimas décadas do século XX, quando os rendimentos de capital cresceram 59%, contra apenas 2% dos rendimentos oriundos do trabalho, e a produção mundial saltara de 4 para 23 trilhões de dólares) em detrimento do operariado organizado nos moldes da modernidade clássica, os “perdedores” (nesse mesmo período o número de pobres aumentara em 20%) inexoravelmente suplantados por uma classe média qualificada, informatizada, “vencedora da reflexividade” ao lado das quatro centenas de bilionários detentores de mais da metade de toda a riqueza produzida pela humanidade. O autor não se furta a lhes impingir (às posições de Beck e Lash) sólidas emendas críticas quanto às supostas implicações culturais da globalização – no fundo mais uma versão daquele ingênuo, gracioso (porque apressado) borboletear pós-moderno onde tudo são dinâmicos fragmentos dispostos a vigorosas alternativas simbióticas que confirmariam a “liberdade das pessoas no tocante à ‘escolha’ de opções que a indústria cultural apresenta”. Ridículo como dizer: “Nem mesmo sob tortura me farão preferir Bob Dylan a Noel Rosa. Portanto, sou livre.” Rodrigo Duarte insiste, contra esse otimismo fácil, a-dialético, na vocação marcadamente totalitária da indústria cultural globalizada, cuja matriz tecnológica, a digitalização, mais que democratizar fluxos imagéticos, teria permitido intensificar, “capilarizando” na mesma medida da internacionalização e concentração histórica do capital, a coercitividade e analgesia das mercadorias culturais.
No que apresentamos até aqui, ou seja, do segundo ao quinto capítulo, tem-se o esforço fundamental do autor: a apresentação do “modo mais simples e direto […] do quadro conceitual apropriado para se compreender os fenômenos audiovisuais reunidos sob a rubrica de ‘cultura de massas’”.
Mencionemos, por fim, os dois capítulos de cunho prevalentemente histórico do livro. As origens históricas da cultura de massas, capítulo primeiro, relato utilíssimo da constituição e consolidação histórica da “cultura de massas” segundo dois movimentos complementares: a disponibilização (e massificação) do público acompanhando a progressiva distinção entre tempo de trabalho e tempo de lazer; e a progressiva concentração do capital privado no ramo do entretenimento, assenhorando-se desse tempo livre – dos Music Hall a Hollywood. E o capítulo sexto que narra o desenrolar – usual- mente servil a projetos políticos autoritários – da Indústria Cultural no Brasil, desde as primeiras transmissões radiofônicas e confecções cinematográficas “artesanais” da segunda década do século XX; passando pelo estabelecimento industrial desses media durante o Estado Novo; até sua conformação definitiva, com o advento da televisão e sagração sistemática da TV Globo, não por acaso, a partir de 1964. O autor ensaia, em seguida, nas mais bem-sucedidas fórmulas desse mais bem-sucedido conglomerado da indústria cultural brasileira (a telenovela e o telejornal) um arguto reconhecimento daqueles referi- dos “operadores” (a manipulação retroativa, a usurpação do esquematismo, a domesticação do estilo, a despotencialização do trágico, o fetichismo das mercadorias culturais) acrescidos de um mecanismo original: certa “vocação filantrópica” – tutela dúbia atinente à parcela mais desassistida da população pela promoção regular de campanhas para arrecadação de fundos e prestação de serviços básicos em lugar do Estado – típico do modelo da indústria cultural brasileira. Indústria Cultural: uma introdução assim cumpre (e ultrapassa) seus desígnios didáticos.
Nota
1 DUARTE, Rodrigo. Teoria Crítica da Indústria Cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003(coleção Humanitas).
Lucas Alves Marinho