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Bicentenário das Independências da América Latina / Estudos Ibero-Americanos / 2010
O ano de 2010 marca o bicentenário da deflagração dos movimentos pela independência na América espanhola. Um observador menos atento poderia dizer “na América Latina”, para aí incluir também o Brasil. Temos, porém, bons argumentos para dizer que o Brasil é um caso à parte, inclusive no que respeita ao seu processo de emancipação política. A propósito, para aqueles que compartilham da ideia de que a deflagração do processo de independência no Brasil pode ser datada de 1808, com a vinda da família real, as comemorações da independência no Brasil começaram efetivamente há dois anos. E com qual alarde! Esse “acontecimento histórico” foi não apenas ensejo de um sem número de atividades acadêmicas, de congressos e publicações, mas também ocupou grande espaço na mídia e na agenda de governo, ministerial e diplomática. Quem não concorda que espere por 2022!
Esse furor comemorativo não é novo, data pelo menos da década de 1980, quando a história-disciplina foi sensivelmente tocada com essa mudança de perspectiva, da história à memória. A celebração atual de acontecimentos “históricos” seminais no sentido da construção (o uso, a manipulação, o abuso) da memória sempre existiu; porém, a maneira como é feita em nossos dias, começou a ser praticada e teorizada a partir da década de 1980 pela historiografia francesa da geração do bicentenário da revolução. Para uma historiografia fortemente conservadora, muito incensada pelos historiadores brasileiros até hoje, importa menos a história (que é experiência vivida, mudança, transformação) do que a comemoração (que é memória, representação, reiteração seletiva, preservação). De modo que essa perspectiva fez-se conveniente tanto para os policy makers (vide o afã com que os agentes de Estado assumem entusiasticamente a celebração das efemérides) como para a grande mídia, que incorporou as efemérides em seu calendário – basta lembrarmos como a mídia e os governos apropriaram-se de 1808. Outro fator para o estardalhaço comemorativo é o contexto histórico em que vivemos, marcado pela mercantilização de todas as esferas e relações humanas, tornando a própria história mais uma mercadoria nas prateleiras ao acesso do grande público. As efemérides, e o que se veicula em torno delas, constituem consciências.
De modo que, nos próximos quinze anos, haverá muita comemoração aqui e acolá pela América Latina adentro e afora (posto que na Europa e nos Estados Unidos essas datas redondas também não passam em branco). E se devêssemos apontar pelo menos um aspecto positivo das efemérides diríamos que, junto com toda publicidade e uso político, elas acabam fomentando a boa reflexão acadêmica. A produção deste dossiê temático da Revista Estudos Ibero-Americanos caminha neste sentido, de acrescentar uma contribuição ao debate dos processos de independência na América Latina.
O assunto é vastíssimo e por certo que estes Organizadores não tiveram qualquer pretensão de “esgotar” o tema. Mesmo que optássemos por um recorte mais específico – por exemplo, regional –, lacunas sempre permanecerão. Por isso, definimos nossa estratégia de constituir este dossiê a partir de uma perspectiva continental, cara especialmente à historiografia brasileira, ainda carente de produção significativa e em chave comparada do processo brasileiro com o do mundo hispano-americano.
Neste dossiê “comemorativo”, motivado por uma efeméride, chama a atenção que nenhum dos ensaios reunidos tenha foco na questão da memória, mas sim da História – propriamente dita. Abre-se o volume com uma análise “ao telescópio”, em perspectiva comparada, das revoluções de Independência da América Latina, por Stefan Rinke e Frederik Schulze (Universidade Livre de Berlim). Os sucessos na Grã Colômbia são abordados por Marixa Lasso (Case Western Reserve University, EUA), a partir das questões racial e nacional. Christon Archer (Universidade de Calgary, Canadá) discute a questão das forças armadas no cenário mexicano. A região platina é contemplada em dois artigos, que depositam muita ênfase na participação popular nos movimentos de independência, escritos por Raúl O. Fradkin (Universidad Nacional de Luján e da Universidad de Buenos Aires) e Gabriel Di Meglio (Universidad de Buenos Aires-Conicet). Justo Cuño Bonito (Universidad Pablo de Olavide, Espanha) aborda aspectos do processo político em Cartagena de las Índias, a partir do julgamento de Don Governador Gabriel Torres de Velasco. Por fim, dois aspectos do caso brasileiro são oferecidos nos artigos de Luiz Geraldo Silva (UFPR), em co-autoria com João Paulo Pimenta (USP), e Valdei Lopes Araújo (UFOP). Os Organizadores assinam um balanço deste conjunto no final do volume, que traz ainda resenha da coletânea organizada por Ivana Frasquet e Andréa Slemian, De las independencias iberoamericanas a los estados nacionales (1810-1850), assinada por Alex Jacques da Costa.
Há um universo de temas relativos aos processos de independência na América Latina a serem pesquisados e debatidos e, por certo, não caberiam todos eles em um único volume. Temos aí, contudo, mais umas duas décadas para comemorar deste modo, publicando e discutindo material de ponta da historiografia. Outros dossiês temáticos virão.
Hendrik Kraay – Departamento de História Universidade de Calgary
Jurandir Malerba – Departamento de História Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Os Organizadores
KRAAY, Hendrik; MALERBA, Jurandir. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 36, n. 1, jul. / dez., 2010. Acessar publicação original [DR]