Posts com a Tag ‘Independência do Brasil’
No Tempo da Independência | Projeto História | 2022
Prospecto da Fortaleza de São Joaquim, Rio Branco | Fonte: Fereira, 1971, p.67
O número 74 da Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História, da PUC/SP, traz a público o dossiê intitulado No Tempo da Independência. A revista, seguindo modernas políticas editorias, sempre com dois pareceristas às cegas, cujos pareceres são respeitados, dá sequência com novo dossiê, aberto a pluralidade teórica, regional e temática.
Abrimos o dossiê com o artigo de José Rogério Beier, pesquisador de pós-doutorado do Museu Paulista-USP, cujo título é Do sertão para o mar: o papel do Rio de Janeiro na “atlantização” da economia paulista nos tempos da Independência. Nele o autor busca refletir sobre a importância da praça mercantil do Rio de Janeiro no longo processo de “atlantização” da economia paulista, iniciado ainda em 1765, com a chamada restauração da capitania de São Paulo, mas que se viu grandemente impulsionado pela chegada da corte na então capital da América portuguesa em 1808. Nesse sentido, Beier busca relacionar a consolidação da lavoura canavieira exportadora na região do planalto paulista, a oeste da capital, à formação de um subsistema de comércio terrestre-marítimo responsável por comunicar as áreas produtoras até os portos de Santos e do Rio de Janeiro. Leia Mais
Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821-1823) | Hélio Franchini Neto
Hélio Franchini Neto | Imagem: Ateliê Editorial
Em meio às reflexões levantadas pelo bicentenário da Independência, é momento de voltarmos aos clássicos produzidos pela historiografia acerca do tema e, sobretudo, promover o diálogo destes com as interpretações mais recentes que reconstituem o processo de Independência por meio diferentes abordagens. Dentre as novas propostas de análise elaboradas nos últimos anos, cabe destacar Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil, 1821-1823, fruto da tese de doutorado em História elaborada por Helio Franchini Neto. Diplomata de carreira, o autor nos contempla com uma abordagem historiográfica que pretende inserir o componente militar no contexto da produção acadêmica que privilegia a reavaliação do processo de Independência do Brasil desde os conflitos ocorridos a partir de 1822.
A obra resenhada em questão conta com prefácio de Francisco Doratioto e é dividida em oito capítulos, acrescidos de conclusão, apêndice e bibliografia. Dentre muitos objetivos, é necessário salientar que o livro busca alertar o leitor, desde sua introdução, acerca de dois grandes aspectos. O primeiro deles versa sobre a necessidade de se romper com o mito de um processo de Independência feito de forma pacífica, destacando as dificuldades de se consolidar o projeto de Estado-nação após a emancipação. As bases para tal resistência nos levam a um segundo aspecto que o autor persegue ao longo de toda sua pesquisa: a importância dos contextos políticos regionais no processo de emancipação. A participação das diferentes regiões do território brasileiro nos conflitos é ponto primordial para o autor, ao caracterizar os diversos interesses que estavam em jogo durante o período no qual as localidades precisaram, então, optar pela adesão a um dos polos políticos que disputavam a centralidade do poder: Lisboa e Rio de Janeiro.
A pesquisa empírica desenvolvida pelo autor merece destaque. Com o intuito de recuperar os registros das batalhas ocorridas entre 1822 e 1823, Franchini Neto lança mão de um amplo conjunto de fontes, composto, entre outros acervos, por documentos presentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, além da documentação dos arquivos das Forças Armadas brasileiras, da Biblioteca Nacional, bem como o acervo do Arquivo Nacional. Além dessas fontes, cabe salientar que, buscando revelar os indícios de um processo de emancipação permeado pela instabilidade, a obra fornece ao leitor um levantamento primoroso sobre os conflitos e a mobilização militar do período por meio da imprensa e dos arquivos diplomáticos do Brasil, da França e da Áustria, por exemplo. O arcabouço de fontes foi também enriquecido com as correspondências diplomáticas referentes ao Reino Unido e aos Estados Unidos.
Vale ainda ressaltar que o trabalho com a documentação primária abarca também as regionalidades, trazendo à tona documentos importantes para a compreensão das realidades locais, contribuindo, assim, com as interpretações historiográficas que primam pela participação das províncias no processo político da Independência.
Ao longo do texto, o leitor tem acesso a um importante diálogo com pesquisas consolidadas que, no decurso dos anos, nortearam a historiografia sobre a problemática da Independência. Nas mais de seiscentas páginas da obra, evidencia-se o debate enriquecedor com autores primordiais para a compreensão do contexto, como José Murilo de Carvalho, Lucia Bastos, Marcello Basile, João Paulo Pimenta, Evaldo Cabral de Mello, István Jancsó, Hendrik Kraay, entre muitos outros estudiosos da área que igualmente merecem destaque. É em meio a essa ampla rede de historiadores que Franchini Neto se coloca a contribuir com a vasta produção acadêmica já existente na área, visando, sobretudo, ampliar as reflexões sobre a potencialidade do papel da guerra na manutenção da unidade territorial e política em um cenário repleto de conflitos.
No primeiro capítulo, intitulado “O Brasil de 1822”, o autor destaca o contexto histórico que precede o processo da Independência, e ressalta a ideia de uma pluralidade de projetos políticos para o Brasil naquele cenário, bem como as dificuldades de uma administração centralizada, apesar da vinda da corte em 1808 (Franchini Neto, 2019, p. 31). Um ponto importante do capítulo é trazer à tona a multiplicidade de vivências em todo o reino, fato que impactou a forma como as diferentes localidades lidavam com Lisboa. Para o autor, tal indicativo se faz essencial para compreender até mesmo as reações distintas das regiões após a proclamação. Em meio a tal reflexão, Franchini Neto aponta ainda a presença de certa heterogeneidade acerca dos debates sobre variados projetos políticos e sobre o futuro do reino naquele período (p. 47). Ao fim do capítulo, destaca-se que a diferença da experiência histórica em âmbito regional fez emergir também perspectivas díspares entre o norte e o sul do país com relação à disputa que se colocaria logo em seguida entre Rio de Janeiro e Lisboa.
Em “A Constituinte luso-brasileira”, segundo capítulo da obra, torna-se possível compreender os limites e as contradições do vintismo por meio das reflexões do autor, que exaltam, detalhadamente, as formas múltiplas pelas quais o movimento fora sentido e recebido no plano interno e internacional. Para essa última análise, é importante destacar o debate que se vislumbra no texto a partir do diálogo entre alguns importantes documentos da época, como os registrados na obra de Varnhagen, junto a diversos documentos diplomáticos, que ressaltam as divergências que permearam o movimento vintista. Tais fontes levantadas pelo autor nos apresentam, desse modo, uma narrativa que traduz os bastidores do vintismo pelos olhares de representantes diplomáticos e suas preocupações com a instabilidade política entre Brasil e Portugal. Entre os documentos investigados, as correspondências e ofícios obtidos em arquivos britânicos e americanos nos indicam nuances até então não problematizadas sobre este contexto (Franchini Neto, 2019, p. 66).
As divergências em torno da recepção do movimento no reino, explicitadas por Franchini Neto, se consolidam a partir da relação direta com o modo pelo qual as localidades interagiam com Lisboa e com o Rio de Janeiro. É nesse ponto da investigação que a Bahia emerge como pano de fundo e cenário profícuo para grandes discussões e conflitos, em meio ao processo de emancipação que iria se desenrolar nos meses posteriores. A Bahia, nesse sentido, consolida, nas premissas do autor, a ideia de heterogeneidade no seio das elites regionais, indicativo levantado frequentemente na obra. A mesma variação de comportamento também é visualizada no momento em que Franchini Neto discute o posicionamento dos deputados brasileiros nas cortes. Em meio a essa elite política, nesse sentido, evidenciavam-se dois grupos: os vintistas e os unitários. O pesquisador ressalta ainda que, dessa forma, pode-se compreender que, no processo de convocação das cortes e suas discussões, emergiam ali dois estados buscando legitimação política e a conquista das diferentes regiões do Brasil. As lideranças políticas ligadas a estes centros irão, sobretudo, requerer das províncias sua adesão e lealdade a um dos polos da disputa, o que o autor determina como a consolidação de uma “típica situação de guerra”, que permeou todo o processo de emancipação (Franchini Neto, 2019, p. 91).
Em suma, o segundo capítulo da obra indica que, a partir da dicotomia “regeneração” versus “recolonização”, tem-se então um acirrado conflito político e bélico que dará base à Independência do Brasil. Ademais, o processo de adesão, longe de ter sido fato consolidado desde o primeiro momento, se exibe como um “movimento pendular” diante de interesses e decisões políticas do Rio ou de Lisboa. Como assinala o autor, a adesão das províncias não teria sido, assim, um movimento homogêneo e automático, posto que muitas resistiam até mesmo às duas propostas vigentes, ou ainda não optavam por algum dos lados dessa disputa. Para o autor, o posicionamento diante dos dois projetos (Lisboa e Rio) muitas vezes evidenciou-se como uma demanda vinda de fora das províncias, revelando pressões externas, e não como uma opção advinda internamente.
Durante o segundo capítulo, o autor elabora de forma minuciosa as possíveis causas desses conflitos e seu real significado em meio ao movimento de restauração em Portugal que seria, na verdade, a quebra da estrutura de governo que estava centralizada no Rio de Janeiro e a recolocação de Lisboa como o único centro de poder (Franchini Neto, 2019, p. 92). Objetivando enfatizar as dificuldades de um projeto aglutinador por parte de d. Pedro, o autor também discorre sobre o processo de negociação do príncipe com as elites regionais no contexto interno e, ao mesmo tempo, com a esfera internacional, quando destaca, por exemplo, a posição do Reino Unido, da Prússia e da Áustria diante da causa brasileira na disputa pela proeminência política empreendida por Lisboa e Rio. Para além disso, é levantado outro ponto de importante reflexão na tentativa de extrapolar o debate historiográfico que se baseia no contraponto entre as teses do “nacionalismo de adoção” e do “sacrifício por interesses políticos” por parte do d. Pedro. À primeira interpretação, Franchini Neto atribui a construção do ideário de uma Independência pacífica. Contudo, apoiando-se, entre outros documentos, em ofícios militares diplomáticos e correspondências, o autor mobiliza uma perspectiva historiográfica que atesta o posicionamento e as decisões do príncipe regente diretamente ligadas aos conflitos com as cortes (p. 108).
É então no terceiro capítulo, “Uma rebelião armada”, que o autor se propõe a detalhar o contexto do Fico, ressaltando o clima de violência que marcou o período após esta data decisiva. Assim, o Fico, segundo Franchini Neto, seria não somente uma mera proclamação, mas também um ato político do qual resultou um conflito armado e mobilizações militares importantes em diferentes regiões do país (Franchini Neto, 2019, p. 143). O contexto violento e conflituoso de 1822 é reconstruído por meio de fontes importantes como as informações subsidiadas por correspondências oficiais escritas pelo coronel Malet, diplomata francês que transmitiu nuances do cenário conturbado que se montou no Rio de Janeiro. Além disso, o autor se baseia na análise dos impressos e das atas da Assembleia Constituinte para destacar os conflitos e a mobilização militar daquela quadra.
Ao estudar o processo de emancipação e a disputa entre Rio e Lisboa, a obra evidencia a necessidade do príncipe em angariar esforços para sua causa. Franchini Neto, ao indicar as localidades que se tornaram base para a resistência de d. Pedro, as chamadas “províncias coligadas”, acentua que, até mesmo onde ele parecia dispor de algum apoio político, demandou-se também um longo processo de negociação em torno das elites regionais em prol da manutenção de tal adesão à causa brasileira. Assim, em localidades como São Paulo e Minas Gerais, por exemplo, que afirmaram, naquele contexto, seu apoio à causa brasileira, notou-se certa oscilação nesse posicionamento em prol de d. Pedro. Tal fato, acentua o autor, demandou esforços intensos por parte do príncipe. Todavia, o capítulo demonstra que a base política de d. Pedro era, assim, pouco sólida, sobretudo pela existência de divergências internas nas províncias.
Ao caracterizar todo o processo político que levou à emancipação, o pesquisador aponta elementos que consolidaram o agravamento da situação política em 1822, levando à Independência do Brasil e ao estabelecimento do imperador. No entanto, mesmo após o rompimento, o Brasil ainda permanecia dividido, nas palavras do autor, caracterizando-se por “uma identidade ainda em construção”, o que levou a uma guerra que atingiu, sobretudo, as regionalidades (Franchini Neto, 2019, p. 216). O conflito movimentou as questões internas nas províncias, a partir também das demandas políticas regionais.
Nas demais províncias do reino do Brasil, situações conflitivas apareceram, dando conta da agitação política em que se encontrava o território português. Não existiu apenas uma tendência nesses territórios, ao contrário do que a historiografia tradicional aponta e qualifica como exemplo de uma brasilidade preexistente. (Franchini Neto, 2019, p. 189)
Desse modo, ao levantar documentos provenientes das juntas governativas, como diários, cartas e ofícios advindos de diversas localidades do reino, e a partir de indícios publicados no Diário do Governo de Lisboa, o autor demonstra uma série de desdobramentos políticos que ocorreram em diferentes províncias, que auxiliam na reconstrução dos cenários provinciais em torno da disputa entre Rio de Janeiro e Lisboa, mesmo após a efetiva emancipação.
Nesse contexto, torna-se árdua a tarefa de unir o povo em uma mesma identidade, apoiando uma só causa. Assim, é no quarto capítulo, denominado “A mobilização militar”, que autor redesenha a magnitude da mobilização militar que atuou no processo de consolidação da Independência, a partir de fontes que elucidam as operações da Marinha, assim como diversos dados contidos em escritos da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). O levantamento é rico em detalhes ao traduzir a estrutura do aparato militar que atuou em território brasileiro e, ao mesmo tempo, aponta a organização militar proveniente do outro lado do Atlântico, em meio ao contexto conflituoso que se estabeleceu após a emancipação. Nessa parte do texto, Franchini Neto nos contempla com tabelas e registros bastante completos que evidenciam o contingente de armamento vigente naquela ocasião (Franchini Neto, 2019, p. 245). É neste ponto do capítulo que o autor acentua uma discussão bastante oportuna acerca do conceito de “guerra” e do motivo de sua não utilização por parte do Rio de Janeiro e de Lisboa durante aquele período. A ausência de uso do vocábulo, no entanto, não exclui a existência de um conflito armado significativo durante o processo de Independência.
O capítulo “Guerra no centro estratégico: Bahia”, quinto da obra, nos permite dimensionar a importância dessa região durante os conflitos militares que emergem no processo de emancipação política e nos meses que se seguiram. A Bahia e, sobretudo, a figura de general Madeira, configuram-se como peças fundamentais na narrativa do autor para apresentar minuciosamente ao leitor como teria ocorrido o enfrentamento entre Lisboa e Rio de Janeiro. A partir da análise dessa região, Helio Franchini Neto consolida sua tese, que leva em conta o cenário de guerra que emerge no processo de emancipação. A obra exibe um levantamento baseado na releitura da historiografia sobre a Bahia e ancora-se em fontes como o jornal A Idade d’Ouro, além de ofícios dirigidos às cortes e panfletos manuscritos. Com posição estratégica entre as demais regiões do território e importância também no âmbito econômico, a Bahia se tornou o centro do conflito armado. Nessa perspectiva, ao elaborar o clima bélico durante o processo de adesão aos dois polos políticos, o autor faz questão de enfatizar a linha de pensamento que persegue por todo o texto: a importância das dissidências regionais diante do apoio à causa da Independência. Assim, naquela região as posições também não eram unânimes em favor de Lisboa ou do Rio. Panfletos do período corroboram a ideia de três grupos políticos distintos consolidando o contexto político que serviria de palco para o conflito armado (Franchini Neto, 2019, p. 290).
No sexto capítulo Franchini Neto apresenta “O teatro de operações Norte”, conduzindo o leitor a compreender que as operações militares nessa região nos comprovam o quanto a emancipação dependeu dos conflitos militares e das negociações regionais. Interessante destacar que, ao abordar as províncias separadamente no cenário de conflito armado, o autor deixa claro que os contextos regionais não se construíram de forma isolada, pois apresentavam relação direta com os acontecimentos do Rio de Janeiro e da Bahia, por exemplo. Desse modo, é notória a iniciativa da obra em dar voz às realidades regionais, incorporando- -as a um contexto conflituoso que atravessava todo o território.
Assim, ao elaborar sua análise sobre o longo processo que levou à incorporação de províncias como Piauí, Maranhão e Pará ao projeto político brasileiro de d. Pedro, o autor traz percepções bastante esclarecedoras, como a problematização acerca do fato de que incorporar uma região à causa brasileira não significou angariar sua total fidelidade dentro do conflito (Franchini Neto, 2019, p. 491). Além disso, na maioria das vezes, como cita o pesquisador, o posicionamento regional nasceu da necessidade de se adaptar às mudanças impostas na dinâmica política. Em algumas regiões, mesmo sem o vínculo com Lisboa, agora quebrado a partir dos conflitos armados, também era difícil constituir um vínculo sólido com o Rio de Janeiro (p. 519).
O sétimo capítulo tem como foco a Cisplatina e o processo de adesão à Independência do Brasil em meio a conflitos já existentes naquela região. Lisboa e Rio mantinham certo diálogo com a localidade, disputando apoio político. A manutenção da Cisplatina, como acentua o autor, seria fundamental para a consolidação do projeto político concebido por José Bonifácio para o império brasileiro. Diante do impasse, mais uma vez a solução tendia a ser o conflito militar. A composição do cenário de guerra naquela região, sobretudo por parte das forças militares portuguesas, que reagiram a partir da obrigação de se posicionar diante da política pendular do Rio e de Lisboa, foi amplamente discutida pelo autor por meio de ofícios e correspondências diplomáticas. Já no oitavo capítulo, centrado, sobretudo, em 1823, são demonstrados os percalços que envolveram todo o momento pós-guerra e o longo processo de reconhecimento da Independência do Brasil, entre perdas, ganhos e arranjos. A investigação de Franchini Neto elucida de que forma terminam esses conflitos em todo o território e reconstitui as principais negociações que envolveram a emancipação do Brasil, dando ênfase aos documentos diplomáticos e à atuação inglesa no processo de reconhecimento. Os combates, como acentua o autor, terminam em 1823. Todavia, é necessário enfatizar a existência de conflitos políticos posteriores que emanam do Rio de Janeiro, bem como a incidência de revoltas, sobretudo regionais, relacionadas ao apoio à Lisboa. A obra evidencia que Maranhão e Pará são exemplos da duração dessas contendas, que permanecerão vivas até meados de 1825, no momento de reconhecimento da Independência.
Seguindo para sua conclusão, o autor resgata questões importantes que permeiam toda a interpretação histórica que se contrapõe a uma ideia de emancipação pacífica. Para Franchini Neto, é necessário que todo o percurso conflituoso caracterizado na obra não seja visto simplesmente como o processo de Independência do Brasil, mas sim como um trajeto histórico que, entre tantos resultados possíveis, culminou, então, na emancipação. A obra acentua o cenário marcado pela instabilidade política e pela ausência de identidade nacional em meio ao caminho que levou à emancipação. Desse modo, Franchini Neto conjectura que a Independência fora então o resultado da disputa entre os dois polos, Rio e Lisboa, que conflitaram na tentativa de angariar alguns eixos principais: a Bahia, o Norte e a Cisplatina. Foram nesses cenários em que d. Pedro precisou ampliar sua adesão política, sobretudo diante das elites regionais, objetivando o reconhecimento de seu projeto político (Franchini Neto, 2019, p. 568).
Apoiando-se em autores cruciais que dão base ao debate sobre a historiografia da Independência, temática que apresenta vasta produção acadêmica, sua perspectiva historiográfica pretende inserir o componente militar no centro das discussões e aponta reavaliações históricas pertinentes sobre o período. Por meio de minucioso trabalho empírico, contemplando um amplo arcabouço de documentos, além de variados acervos, a obra recupera e traz à luz os registros das batalhas motivadas pela disputa entre Rio de Janeiro e Lisboa, destacando as dinâmicas regionais, e, ainda, acentuando a participação popular, ao enfatizar as dificuldades de adesão encontradas por d. Pedro.
Assim, na esteira dos estudos que emergem no momento do bicentenário da Independência do Brasil, a obra certamente contribui para a composição das interpretações historiográficas que buscam reavaliar o contexto da emancipação e seus desdobramentos. O livro de Helio Franchini Neto se destaca, entre outras características, por dialogar com interpretações consolidadas dentro da temática e, ao mesmo tempo, por conseguir, com êxito, inserir a mobilização militar que ocorreu entre 1822 e 1823 como elemento fundamental na construção do Estado-nação e na unidade territorial brasileira.
Referência
FRANCHINI NETO, Hélio. Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821- 1823). 1. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2019.
Resenhista
Karulliny Silverol Siqueira – Doutora em História Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Professora do Programa de Pós-Graduação em História e do Departamento de Arquivologia da Ufes, Brasil. E-mail: karulliny@yahoo.com.br
Referências desta Resenha
FRANCHINI NETO, Hélio. Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821-1823). Rio de Janeiro: Topbooks, 2019. Resenha de: SIQUEIRA, Karulliny Silverol. Entre conflitos e negociações: a Independência do Brasil sob a ótica do enfrentamento militar. Acervo. Rio de Janeiro, v. 35, n. 3, p. 1-9, set./dez. 2022. Acessar publicação original [DR]
Independência ou Morte! Tradições e modernidades | Modos – Revista de História da Arte | 2022
O presente dossiê parte das diferentes narrativas sobre a efeméride do bicentenário da Independência do Brasil – 1822-2022, em conexão com outros marcos históricos relacionados ao longo do tempo. O conjunto de artigos apresentados manejam diferentes histórias conectadas e cruzadas, em distintas escalas de leitura temporal e espacial, acerca da tradição e da modernidade no Brasil. Assunto prolixo, porém inesgotável, o evento histórico é tratado aqui como uma janela para a compreensão das relações entre passado e presente no campo da arte. Para isso, este número incorpora questionamentos sobre a produção artística, crítica e historiográfica dedicada às artes visuais e suas correlações com a polissemia da noção de independência, os inúmeros modos de ver e diversas práticas de olhar, assimetrias, centros e periferias da arte. Desde a pintura histórica e a escultura comemorativa à criação moderna e às intervenções contemporâneas, passando pelos tópicos de produção e circulação de imagens, lugares de exibição de obras, acervos e coleções. Está claro o interesse sobre a reflexão das múltiplas narrativas que moldam como percebemos, interpretamos e divulgamos o campo artístico e a obra de arte em torno dessa efeméride patriótica, entre imagens, memórias e ocultamentos.
Em O monumento do “guerreiro guarani”: o chafariz de Conceição de Mato Dentro e a memória da independência em Minas Gerais, Francislei Lima da Silva (2022), trata da inauguração, em 1825, durante as comemorações do quarto ano da independência e do império, no povoado de Conceição do Serro, Minas Gerais, de um chafariz coroado pela escultura de um indígena – “gênio do Brasil”. Para o autor, este monumento serviu para reforçar e inserir, no imaginário local, a ideia de adesão ao jovem Império que se conformava a partir da independência política em 1822. A presença do indígena alegorizado em gestos triunfantes e que enaltecia determinadas virtudes cívicas coexistia com as tensões e a violência imposta aos nativos que habitavam os campos de cerrado que davam nome ao lugar. Leia Mais
Independência do Brasil | João Paulo Pimenta
João Paulo Pimenta | Imagem: Instituto CPFL
O ano de 2022 acumula condições para se tornar intenso no campo político para o Brasil, pois além da crise institucional pela qual o país passa, teremos eleições para cargos executivos e legislativo em nível estadual e federal, as quais devem movimentar uma campanha eleitoral carregada de informações e narrativas que visam enaltecer ou destruir reputações sem se preocupar com a veracidade dos conteúdos apresentados. Contexto alimentado pelo crescimento de uma onda conservadora global, que ainda se sustenta e é liderada por uma “Nova Direita”1 , que procura se apropriar de eventos históricos para fazer uso ideológico baseados em conceitos, ideias e práticas próprias.
As duas concepções se relacionam neste período através das festividades ligadas ao bicentenário da independência política do Brasil, que ocorrerá em setembro. Fato, entretanto, que motiva também profissionais da área de história, que acabam forçados a revisitar os eventos de 1822 e a ampla bibliografia disponível sobre eles para expor novas conclusões ou reforçar consensos já conhecidos da área. Foi o caso de João Paulo Pimenta (2022)2 , que publicou no último janeiro “Independência do Brasil” pela Editora Contexto. Livro que pode ser consultado por outros pesquisadores da área ou meros curiosos, graças à sua variedade de temas e linguagem acessível. Leia Mais
Brasil em projetos: história dos sucessos políticos e planos de melhoramentos do reino. Da Ilustração portuguesa à Independência do Brasil | Jurandir Malerba
Toda administração e todo governo de negócios e de Estados carece de projetos. De planos elaborados com vistas a atingir determinados objetivos; definindo problemas, metas, estratégias e ações com níveis desejados de controle, autonomia e negociação capazes de garantir sua condução com êxito. Além de conhecê-los, é fundamental saber dos homens que os propõem e os executam. Em Brasil em projetos, Jurandir Malerba, professor titular de Teoria e Metodologia da História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, procura inventariar os projetos para o Brasil desde a Ilustração até a Independência, realizando uma síntese minuciosa que não trata apenas daqueles projetos, mas também da própria historiografia em torno deles, com uma escrita clara e acessível para os públicos leigo e universitário.
Em um momento histórico dramático, marcado por uma pandemia global, há uma pergunta que é constantemente feita na imprensa e nos círculos intelectuais brasileiros: o governo Bolsonaro tem um projeto para o Brasil? Não poucos analistas apontam a existência de um plano autoritário em curso, de esgarçamento social, de favorecimento a políticas armamentistas, de privatização de ativos e empresas estatais, de retirada de direitos sociais e trabalhistas em consonância com uma agenda neoliberal que valoriza a exportação de commodities e o capital financeiro. E uma palavra que surge em muitos diagnósticos é retrocesso. Seria este o projeto de Bolsonaro, um governo à serviço do atraso e do conservadorismo? Para responder a estas perguntas, conhecer projetos políticos do passado pode ser um bom caminho. Leia Mais
Brasil em projetos. História dos sucessos políticos e planos de melhoramento do reino. Da ilustração portuguesa à Independência do Brasil | Jurandir Malerba
Na noite de 22 de agosto de 2022, a pouco mais de 40 dias para a eleição presidencial no Brasil, o pior presidente que o país já teve em toda a sua história participou de uma entrevista no Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, para falar sobre sua candidatura à reeleição. À parte o fato nada desprezível de que deveria estar respondendo política e judicialmente pelos seus desmandos e não em campanha, a entrevista mostrou exatamente aquilo que dele se esperava após quatro anos de desgoverno: uma enxurrada de mentiras, distorções e dissimulações, ouvida por uma dupla de entrevistadores passivos que em momento algum confrontou de modo sério e efetivo a absurda realidade paralela desenhada à sua frente em tempo real. Ainda assim, a costumeira fala balbuciante, desconexa e destemperada do pior presidente-candidato que o Brasil jamais mereceu, quando examinada com atenção, demonstra algo que parece não existir, mas está ali, pulsando com força e, literalmente, brutalidade: um projeto para o país Leia Mais
Escrevendo a história do futuro: a leitura do passado no processo de independência do Brasil | Cristiane A. C. dos Santos
Cristiane Alves Camacho dos Santos | Foto: LabMundi-USP |
O livro de Cristiane Camacho dos Santos, adaptação de sua dissertação de mestrado (SANTOS, 2010), se propõe a identificar e analisar a utilização política de leituras sobre o passado da colonização portuguesa da América mobilizadas nos debates travados na imprensa luso-americana, entre 1821 e 1822. A autora argumenta que dentre os diversos sentidos atribuídos à colonização portuguesa da América, seu entendimento como empresa “exploradora” e “opressiva” balizou algumas das alternativas disponíveis aos agentes políticos durante o esfacelamento da unidade da monarquia portuguesa. E, em sendo assim, delineou os limites daquilo que era percebido como possível para alguns dos projetos políticos voltados ao futuro da América portuguesa, dentre os quais a ruptura política com Portugal e a independência do Brasil. Essa experiência do tempo, prossegue a autora, ocorreu concomitantemente à politização da identidade coletiva daqueles entendidos, gradualmente, como “brasileiros”. Em suma, trata-se da conversão do passado da colonização portuguesa da América em instrumento político de sustentação de projetos que inseriram a independência do Brasil no horizonte do possível, dando os contornos para a politização de uma nova identidade coletiva.
O livro é estruturado em três capítulos balizados por uma introdução e um epílogo. O primeiro capítulo versa sobre a experiência do tempo durante a crise do Antigo Regime em Portugal vivenciada por diferentes identidades políticas da América portuguesa. Nesse capítulo, ressalta a constituição da história luso-americana como uma parte específica e complementar da monarquia lusa, entre os séculos XVI e XVIII, a nova dignidade adquirida pelo território português da América com a transferência da Coroa em 1808 e sua correspondente inauguração de novas expectativas. No bojo dos acontecimentos ensejados pelo início da dissolução dos impérios ibéricos, constitui-se uma oposição semântica entre “colônia” e “nação” que encontrava respaldo concreto nas experiências engendradas a partir de 1808 e que delineavam a percepção de um “novo tempo” (SANTOS, 2017, 151-152). O capítulo dois debruça-se sobre as disputas semânticas acerca da presença portuguesa na América, cuja lógica de complementariedade, vigente no reformismo ilustrado, perde sua estabilidade na percepção contemporânea da valorização dos territórios americanos no início do século XIX. Neste capítulo analisa, a partir de cotejamento historiográfico, a importância da imprensa periódica na delimitação dos espaços públicos em 1821, seu potencial para investigações sobre identidades políticas em período de profunda transformação e, por fim, como a colonização portuguesa da América subsidiou a representação de certa unidade desses territórios, embora fosse cenário para disputas semânticas ambíguas. O terceiro e último capítulo, baseado em sólida análise documental, fornece respaldo à hipótese do uso político do passado durante o esfacelamento das condições de reciprocidade e compatibilidade entre Portugal e a América portuguesa, sobretudo a partir da conjuntura ensejada pelos decretos das Cortes de Lisboa de setembro de 1821. Aponta que o mês de dezembro daquele ano demarcou, nos periódicos analisados, a conversão do topos dos “trezentos anos de opressão” em leitura difundida do passado da colonização portuguesa da América como denúncia das arbitrariedades associadas à condição colonial (SANTOS, 2017, 199). Essa significação da experiência, exprimida nos jornais, tensionava identidades coletivas divididas entre “metropolitanos” e “colonos”, desdobradas, posteriormente, na oposição entre “portugueses” e “brasileiros”. Essa forma discursiva, portanto, sintetizava trezentos anos de história – sinal de encurtamento da experiência – sobre o denominador comum da “opressão” vinculada à condição colonial, cuja manutenção era, paulatinamente, associada aos interesses de portugueses peninsulares.
Em termos de método, Santos procede a uma análise de evocações do passado mobilizadas por diferentes impressos das províncias do Rio de Janeiro, Pará, Bahia e Pernambuco – com ênfase na primeira – que deram os contornos a diferentes características e aspectos dos usos políticos do passado pelos periodistas. A intenção da autora é inferir uma experiência do tempo a partir de elaborações e interpretações do passado que, exprimidas em jornais, integraram o debate político de múltiplos grupos e indivíduos da América portuguesa. Do ponto de vista teórico, Santos qualifica essas formulações sobre o passado como fontes capazes de indicar a tensão entre a experiência e a expectativa dos atores políticos, ou seja, permitem diagnosticar um certo passado e futuro presentes que desempenharam a função de guias parciais das atuações políticas. Além disso, concebe que a organização da tensão entre um conjunto de sentidos atribuídos a um passado e às perspectivas abertas de um futuro parcialmente novo contribuíram para a definição e politização de uma nova identidade coletiva, a “brasileira”, e a recomposição de outras preexistentes.
Por essas razões, Santos articula-se a diferentes campos historiográficos reunidos, principalmente, sob o escopo de uma teoria do tempo histórico e das identidades políticas coletivas. A principal teoria a subsidiar atualmente pesquisas sobre a experiência do tempo histórico é, direta ou indiretamente, tributária dos escritos do historiador alemão Reinhart Koselleck. De acordo com Koselleck, o tempo histórico é o produto da tensão, estabelecida na modernidade, entre experiência e expectativa, tensão que permite interpretar o entrelaçamento interno entre o passado e o futuro cuja dinâmica baliza as histórias vislumbradas pelos agentes sociais como sendo possíveis (KOSELLECK, 2006, 305-327). Em segundo lugar, outra tradição historiográfica à qual a autora se vincula refere-se à consolidada utilização de periódicos, ou jornais, como fontes históricas capazes de traduzir e produzir fenômenos políticos no passado (MOREL; BARROS, 2003, 11-50). Em terceiro lugar, Santos parte de premissas acerca da criação e transformação de diferentes identidades políticas elaboradas por autores como Tulio Halperín Donghi (DONGHI, 2015), José Carlos Chiaramonte (CHIARAMONTE, 1997), István Jancsó (JANCSÓ; PIMENTA, 2000) e João Paulo G. Pimenta (PIMENTA, 2015). Por fim, no relativo ao debate sobre as diferenças entre o Estado e a nação, adere às perspectivas adotadas por Anthony Smith (SMITH, 1997), em oposição à Eric J. Hobsbawm (HOBSBAWM, 1990), ao definir que o Estado não teria sido um demiurgo da nação, esta última seria o resultado da recombinação de elementos preexistentes – recordações históricas partilhadas, mitos de origem comuns, elementos culturais diversos, associação a um determinado território e etc. – que, em determinado momento histórico, teriam sido “outorgados” como sinais diferenciadores de uma nacionalidade (SANTOS, 2017, 210-213).
Essa arquitetura teórica e metodológica, informada por ampla historiografia, permitiu que os periódicos fossem considerados como vetores simbólicos das disputas políticas, portadores de discursos sobre o passado que, ao organizar seus significados, delimitaram o futuro possível da ação política, então conduzida por agentes cuja identidade coletiva era simultaneamente reposicionada mediante a sua experiência temporal. Esse complexo processo correspondia às dialéticas conflituosas da formação do Estado e da nação concomitantes à modificação do estatuto e da qualidade da História, doravante entendida como capaz de legitimar projetos políticos. Observando-se a sua trajetória de pesquisa, Santos associa-se diretamente ao ambiente intelectual ensejado pelo projeto coletivo denominado Formação do Estado e da nação, organizado no início dos anos 2000 e coordenado pelo Prof. Dr. István Jancsó, no Departamento de História da Universidade de São Paulo.
Embora o resultado atingido pela autora seja louvável, sobretudo em função de seu rigor teórico e analítico, algumas questões permaneceram irresolutas. A primeira delas refere-se a um aspecto cronológico relativo à dialética entre Estado e nação. De acordo com Santos, a independência do Brasil inaugurou o período de construção do Estado nacional, o qual, segundo afirma, prolongou-se de modo conflituoso até a década de 1850 (SANTOS, 2017, 208). Qual teria sido, então, o marco histórico a delimitar o fim do caráter “conflituoso” da relação entre o Estado e a nação? A importante demonstração de que a história colonial não foi o desenvolvimento natural da nação – ou de que a independência não foi seu resultado obrigatório -, mas sim parcialmente produto do manejo político do tempo, uma construção simbólica durante o acirramento das incompatibilidades de grupos da monarquia portuguesa, deixa em aberto a questão do corpo social. Noutros termos, os contornos iniciais da identidade política coletiva nacional “brasileira”, delineada nas trepidações políticas dos anos de 1821 e 1822, não buscou integrar a totalidade da população e, desse modo, aponta para uma das condições de compatibilidade entre a formação dos “brasileiros” e a manutenção reinventada da escravidão após a independência. Seria pertinente especificar os conjuntos sociais abarcados por esse uso político do tempo para, assim, diagnosticar os excluídos de uma identidade seletiva emergente que provavelmente condicionaria diversos conflitos entre o Estado e a nação. Por fim, observo que a ausência da incorporação da dissertação de mestrado de Rafael Fanni (FANNI, 2015), elaborada após a dissertação de Santos e antes de sua readaptação em livro – e que é abertamente tributária da interpretação de Cristiane Camacho dos Santos -, prejudicou a possibilidade de aprofundar o rigor e expandir a envergadura das constatações da autora.
Teórica e metodologicamente bem estruturado, o livro de Cristiane Camacho dos Santos representa uma contribuição historiográfica importante aos estudiosos da história social do tempo e da formação do Estado e da nação do Brasil. Um estudo acadêmico que, embora concentrado em cronologia curta, é capaz de demonstrar a espessura temporal subjacente aos discursos políticos veiculados em jornais durante o processo de independência do Brasil. Em suma, e utilizando o vocabulário de Koselleck, trata-se de uma boa demonstração acadêmica da interrelação entre a temporalização da política e politização do tempo devidamente mediadas por identidades políticas coletivas, cuja investigação é plenamente realizável através de periódicos contemporâneos.[1]
Nota
1. Esta resenha foi concebida durante os debates do núcleo de pesquisa “História do Tempo: teoria e metodologia”. <http://labmundi.fflch.usp.br/historia-do-tempo> Agradeço a Edú T. Levati pela correspondência das citações.
Referências
CHIARAMONTE, Jose Carlos. “La formacion de los Estados nacionales en Iberoamerica”. In: Boletin del Instituto de Historia Argentina y Americana Dr. Emilio Ravignani, 3ª serie, 1º semestre de 1997.
DONGHI, Tulio Halperin. Revolucao e guerra: formacao de uma elite dirigente na Argentina criolla. Sao Paulo: Hucitec, 2015.
FANNI, Rafael. Temporalizacao dos discursos politicos no processo de Independencia do Brasil (1820-1822). 164 p. 2015. Dissertacao (Mestrado em Historia Social) – FFLCH, USP, Sao Paulo.
HOBSBAWM, Eric J. Nacoes e nacionalismos desde 1780. Rio de Janeiro: Terra e Paz, 1990.
JANCSO, Istvan; PIMENTA, Joao Paulo G. “Pecas de um mosaico: ou apontamentos para o estudo da emergencia da identidade nacional brasileira”. In: Revista de Historia da Ideias. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, v. 21, 2000, p.389-440.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuicao a semântica dos tempos historicos. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Contraponto, 2006.
MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro de. “O raiar da imprensa no horizonte do Brasil”. In: Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do seculo XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.11-50.
PIMENTA, Joao Paulo G. A independencia do Brasil e a experiencia hispano-americana (1808-1822). Sao Paulo: Hucitec , 2015.
SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a historia do futuro: a leitura do passado no processo de independencia do Brasil. Sao Paulo: Alameda, 2017.
SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a historia do futuro: a leitura do passado no processo de independencia do Brasil. 186 p. 2010. Dissertacao (Mestrado em Historia Social) – FFLCH, USP, Sao Paulo.
SMITH, Anthony. A identidade nacional. Lisboa: Gradiva, 1997.
Thomáz Fortunato – Departamento de História da Universidade de São Paulo – São Paulo, SP, Brasil. Mestrando em História Social pela Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial e do grupo Temporalidad (Iberconceptos). Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. E-mail: thomaz.fortunato@usp.br
SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a história do futuro: a leitura do passado no processo de independência do Brasil. São Paulo: Alameda, 2017. Resenha de: FORTUNATO, Thomáz. A politização do tempo histórico na Independência do Brasil1. Almanack, Guarulhos, n.27, 2021. Acessar publicação original [DR]
Maria Graham: Uma inglesa na independência do Brasil | Denise Porto
Fazer uma resenha é um ato de amor. De crença, de prazer.
É ler um trabalho ou um livro e jogar seus sonhos para um monte de sentimentos, de imagens, boas e ruins.
É imaginar-se em um outro local.
E essa crença me acompanha no trabalho de Denise G. Porto quando nele descreve a inglesa que aqui viveu na cidade colonial, observando e sentindo as ruas com o cotidiano da cidade, conhecendo ricos e pobres, vivendo na floresta ou vivendo no palácio da Quinta da Boa Vista. Um prazer também quando tomamos conhecimento quanto aos documentos oficiais sobre a Guerra da independência no Nordeste, principalmente na Bahia e Maranhão. Leia Mais
A independência do Brasil e a experiência hispano-americana (1808-1822) | João Paulo Pimenta
A desagregação dos impérios espanhol e português é objeto de vastíssima bibliografia. Vinculado a esse assunto, a independência das colônias americanas é um dos temas de estudo marcado por uma infinidade de debates historiográficos importantes. No caso específico do Brasil, um desses importantes temas historiográficos refere-se à dicotomia continuidade/descontinuidade com o passado colonial. Outros pontos importantes relacionam-se com a problemática da manutenção da unidade e com o debate sobre a recolonização do Brasil. A historiografia é abrangente, e boa parte dessas discussões remete ao século XIX.
O livro de João Paulo Pimenta, A independência do Brasil e a experiência hispano-americana (1808-1822), é mais um trabalho importante que surge nesse vasto conjunto bibliográfico. O livro propõe uma mirada significativamente insinuante ao tratar esse momento histórico de uma perspectiva ampla, que insere diversos espaços e atores em um cenário maior de profundas redefinições. Esses espaços e atores são aqueles vinculados à “crise e dissolução do Império espanhol na América” e aos envolvidos diretamente na realidade luso-americana.
Pimenta procura estudar como a experiência hispano-americana condicionou a trajetória política dos sujeitos na América portuguesa num contexto mundial turbulento, marcado pela guerra na Europa e pela fragilização dos controles metropolitanos sobre as colônias americanas. Em seus termos,
as transformações políticas em curso na América espanhola durante a crise e dissolução do Antigo Regime constituíram um espaço de experiência para o universo político luso-americano, em grande medida responsável pelas condições gerais de projeção e consecução de horizontes de expectativas na América portuguesa, dos quais resultou um Brasil independente de Portugal, nacional, soberano, monárquico e escravista” (p. 31)
Nessa passagem, estão sublinhadas as duas categorias históricas concebidas por Reinhart Koselleck, a categoria de “espaço de experiência” e a de “horizonte de expectativas”. De fato, ao longo do livro, é possível notar grande unidade narrativa que demonstra como o universo de crise do império espanhol constituiu-se como um espaço de experiência para que os atores vinculados diretamente ao mundo luso-americano pudessem projetar um horizonte de expectativas para o império português. Em diversos momentos do livro, a associação é evidente, como, para citar apenas um exemplo, no caso da Revolução Pernambucana de 1817, quando a experiência hispano-americana explodiu internamente no espaço político luso-americano.
Organizado em quatro capítulos que seguem a lógica dos acontecimentos internacionais entre 1808 e 1822, Pimenta acompanha as vicissitudes que marcaram os impérios espanhol e português, ambos afetados diretamente pelo curso das guerras napoleônicas e por um ambiente revolucionário que facultava a mobilização e a propagação de ideias de transformação. A leitura do livro permite o entendimento de que o Brasil se inseria num contexto marcadamente revolucionário na qual a proximidade com os acontecimentos da América espanhola era determinante para a atuação dos sujeitos – fossem eles apoiadores da Corte joanina ou críticos dela.
No primeiro capítulo, intitulado “A América ibérica e a crise das monarquias (1808-1809)”, tem-se uma compreensão da situação crítica vivida por Portugal e Espanha e da aproximação das experiências desses dois países, que combatiam o mesmo inimigo. A integração econômica entre diversas partes do império português e a América hispânica, especialmente as relações comerciais com o Rio da Prata, e os acontecimentos revolucionários que se iniciam com a invasão napoleônica das metrópoles ibéricas oferecem as bases para a atuação da política externa da Corte joanina. Com o colapso das metrópoles ibéricas, Pimenta expõe as reações hostis na América espanhola ao novo governante francês e o surgimento de diversos projetos para enfrentar a crise, com ênfase para o “projeto carlotista”, que impulsionou disputas em diversos pontos do continente, como no Alto Peru (p. 74-75).
Esse primeiro capítulo apresenta passagens importantes que contextualizam a crise do início de século XIX na América e na Europa, com destaque para a ação da Grã-Bretanha, numa clara tentativa de inserir os acontecimentos americanos na chamda Era das Revoluções. O momento revolucionário fica evidente no fracasso do projeto carlotista incentivado pela Corte do Rio de Janeiro, que pretendia a fidelidade da América espanhola a um parente – Carlota Joaquina – do rei espanhol destronado. Nas palavras do autor, tal projeto
encontrava o mesmo obstáculo que qualquer outro encontraria: a impossibilidade de obtenção de uma unanimidade dentro de uma unidade em profunda crise de legitimidade e de representação política como era o Império espanhol, e que agora conhecia a explosão conflituosa de sua natural diversidade. Vimos como o ocaso dos tradicionais vínculos de coesão nacional fazia surgir dilemas e contradições sem solução, convertendo-se em revolucionário até mesmo aquilo que se pretendia conservador. Ao propor uma manutenção – que era ao mesmo tempo uma substituição – desses vínculos por meio da preservação da dinastia, o projeto carlotista tampouco escaparia a essas armadilhas. (p. 84)
O capítulo 2, “O Brasil e o início das revoluções hispano-americanas (1810-1813)”, apresenta a monarquia portuguesa já consolidada no Rio de Janeiro. Sua ideia central é simples. À medida que se aprofunda na América hispânica, a crise do colonialismo espanhol teria condicionado a política na América portuguesa. De acordo com Pimenta, foi crucial para o governo de D. João acompanhar de perto as notícias da parte convulsionada da América espanhola, especialmente porque, como já referido, os contatos entre uma parte e outra dos domínios ibéricos – muitos dos quais comerciais – eram frequentes, e o perigo de contágio, real. Uma vez mais, compreende-se por que o espaço de experiências das colônias espanholas constituiu-se como um horizonte de expectativas para a política joanina. Isso explicaria três elementos muito importantes abordados no capítulo. O primeiro diz respeito à intensa correspondência entre América e Europa travada pelas autoridades portuguesas. O segundo, à repercussão dos acontecimentos internacionais nos jornais que circulavam no Brasil, especialmente Gazeta do Rio de Janeiro, Idade do Ouro do Brasil e Correio Brasiliense. Por fim, à política interna do governo joanino como, por exemplo, os silêncios e lacunas nas notícias da Gazeta do Rio de Janeiro, a censura a periódicos e a perseguição feita pela Intendência Geral de Polícia do Rio de Janeiro aos franceses – inimigos naturais na Europa – e espanhóis – possíveis inimigos e vizinhos na América. Eles poderiam divulgar ideias perigosas e revolucionárias, segundo o ponto de vista das autoridades. Por isso, conclui Pimenta, “a situação dos domínios espanhóis claramente punha em xeque a própria possibilidade de sustentação da monarquia como regime político. O que notadamente não poderia deixar de dizer respeito ao Brasil, ainda mais porque tudo isso se passava em territórios a ele contíguos” (p. 186).
No terceiro capítulo, denominado “O Brasil e a restauração hispano-americana (1814-1819)”, tem-se um enfoque mais preciso na situação dos países ibéricos no contexto da nova ordem pós-napoleônica. O cenário de turbulência da América hispânica, marcada pela guerra civil – objeto de denúncia do Correio Brasiliense – e o acompanhamento e a atuação do governo de D. João frente à situação dramática dos vizinhos são dois pontos que o autor consegue muito bem correlacionar. Nesse contexto, as peças de um xadrez revolucionário se movimentam no tabuleiro do espaço Atlântico, tanto do lado de cá, na América, quanto do lado de lá, na Europa, com a nova ordem sendo construída a partir do Congresso de Viena. O difícil jogo de aproximação que se constrói entre os governos de Portugal e Espanha nesse contexto, a ameaça à segurança interna ao império português, as tensões geradas pelo governo de Buenos Aires e pela atuação de Artigas, a necessidade de proteção às fronteiras e a invasão da Província Oriental, tudo isso chama a atenção do leitor para a complexidade do quadro que se apresentava para o universo político português. Nesse sentido, cumpre destacar dois pontos: a caso da localidade de Marabitanas, às margens do rio Negro, na Amazônia, e a atuação de Lecor na Província Oriental. No que se refere ao primeiro ponto, destaca-se a proteção às fronteiras dos domínios portugueses em uma localidade distante do Rio de Janeiro. O aparente isolamento não esconde as intensas comunicações feitas pelo comandante do posto militar de Marabitanas, Pedro Miguel Ferreira Barreto, com o governador do Rio Negro, bem como a necessidade de negociações entre os portugueses nessa fronteira e os revolucionários na Venezuela. Com relação à Província Oriental, destaca-se o modo como atuou o militar Carlos Frederico Lecor na consolidação dos interesses portugueses na região sul do Brasil. Todo esse cenário de turbulências, guerra civil e ameaças de revolução preocupavam a Corte joanina, especialmente após o movimento revolucionário de 1817 em Pernambuco. Justificava-se, desse modo, o acompanhamento das transformações no mundo hispano-americano. Como escreve Pimenta, “o ano de 1817 agregou a um conhecido quadro de medos, tensões e descontentamentos um novo componente: a revolução, que agora se concretizava não somente na vizinhança, mas também no interior do Reino Unido, em Portugal e no Brasil”.
O momento crítico entre os anos de 1820 e 1822 é o assunto do último capítulo, “A Independência do Brasil e a América”. Esse capítulo representa uma continuidade com a tese central da pesquisa de Pimenta, qual seja, a de que a experiência da América espanhola conformou o universo político do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e também a experiência histórica dos partidários da independência do Brasil. Apesar disso, não houve uma determinação mecânica dos ritmos e caminhos entre o que ocorria nas independências da América hispânica e no Brasil. Nas palavras do autor, a experiência hispano-americana
desfrutará [no momento de crise final dos impérios ibéricos] de condições especialmente favoráveis de amplificação no mundo português, amadurecida e publicizada em proporções até então inéditas. Após ter introduzido, durante os anos anteriores, elementos determinantes para as modalidades desde então assumidas pelos projetos de futuro formulados no universo político luso-americano, essa experiência continuará a ser metabolizada no contexto vintista, para fazer despontar uma solução progressivamente hegemônica para a crise portuguesa, cuja perpetuação será o ‘motor’ da própria independência e constituição do Brasil como Estado autônomo, nacional e soberano.
A crise manifestada pela experiência hispano-americana e suas implicações para o universo político do Reino Unido se manifestará em diversos assuntos, como os debates acerca da permanência de D. João no Brasil e a incorporação da Província Cisplatina ao Reino Unido. A Revolução do Porto e a reunião das Cortes de Lisboa, episódios que acentuaram as diferenças entre os interesses portugueses e os do Brasil, são analisados de modo integrado ao quadro de ruptura definitiva que ocorria em diversos pontos da Américas espanhola. A crise apresenta aos brasileiros um leque de alternativas temerárias. Entre elas estavam a guerra civil – que no plano linguístico expressava-se pelos termos anarquia e revolução – e a independência.
Ao final da leitura, uma certeza. A de que é imprescindível inserir os acontecimentos ocorridos na América no quadro mais amplo da Era das Revoluções. Sem dúvida, as ocorrências estudadas por Pimenta podem ser classificadas como revolucionárias porque “tanto Portugal e Espanha quanto seus respectivos impérios ultramarinos integram uma mesma conjuntura política e econômica mundial, marcada pelo avanço do Império de Napoleão e sua subsequente submissão aos padrões reacionários legitimistas da Santa Aliança, bem como pela emergência da Grã-Bretanha na condição de potência hegemônica, alavancada pelo seu pioneirismo no desenvolvimento de padrões industriais de produção capitalista” (p. 462). A leitura do livro, sem dúvida, permite perceber essa perspectiva ampla.
Agregando valor aos grandes temas historiográficos sobre a independência do Brasil, o livro de João Paulo Pimenta será referência para qualquer estudo que revisite o processo de independência do Brasil quebrando as grades de ferro do nacionalismo metodológico.
Marco Aurélio dos Santos – Departamento de História da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: marcoholtz@uol.com.br
PIMENTA, João Paulo. A independência do Brasil e a experiênciaamericana (1808-1822). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2015. Resenha de: SANTOS, Marco Aurélio dos. A independência das Américas na era das revoluções. Almanack, Guarulhos, n.12, p. 214-217, jan./abr., 2016.
Guerra Literária: panfletos da Independência (1820-1823) – CARVALHO e. al (VH)
CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lúcia; BASILLE, Marcelo (Orgs). Guerra Literária: panfletos da Independência (1820-23). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. GASPAR, Tarcísio de Souza. Guerra Literária: panfletos da Independência (1820-23). Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 57, Set./ Dez. 2015.
A confluência de novas tecnologias de comunicação – as chamadas redes sociais – com velhas insatisfações políticas tem modificado, disseminado e talvez potenciado o debate e a mobilização política no Brasil e noutras partes do globo, e contribuído para a ocorrência de movimentos como a Primavera Árabe e os protestos de junho de 2013 no Brasil. É impossível prever o futuro dessa interação. Mas o seu passado, isto é, o da correlação entre a efervescência de ideias e de manifestações públicas de opinião e a deflagração de conflitos políticos de grande escala, foi historicamente consagrado. Nos últimos séculos, momentos de crise coincidiram quase sempre com a proliferação de falas, de textos e de outras expressões do pensamento. Alterações políticas trouxeram consigo furor comunicativo. Ou, antes disso, a popularização de conceitos ocasionou modificações no vocabulário e nas estruturas políticas.
A monumental obra em questão, dividida em quatro grossos volumes, expõe uma dessas felizes – e raras – combinações entre proliferação da palavra e efervescência política na história brasileira. Organizada por três grandes nomes de nossa historiografia política, a coleção de panfletos da Independência traz boa parte do que se escreveu e se discutiu publicamente no Brasil ao longo de um curto, porém, crucial período, no qual transformações políticas decisivas se sucederam em ritmo acelerado. O movimento liberal do Porto, em agosto de 1820, foi o estopim de tensões impactantes no mundo luso-brasileiro, suscitadoras da produção de expressivo conjunto de panfletos manuscritos e impressos, que alimentaram o debate envolvido na constitucionalização do reino lusitano, nas eleições e nos debates das Cortes, na emancipação brasileira e na afirmação inicial do novo Estado americano. Em obra pretérita, intitulada Às armas, cidadãos! (2012), os organizadores já haviam dado à luz 32 panfletos manuscritos redigidos entre 1820 e 1823. Agora, em Guerra Literária: panfletos da Independência, completam a coleção com a parte mais robusta do acervo, composta pelos folhetos políticos impressos à mesma época, num total de 362 panfletos.
Coligida em diferentes instituições, ao longo de décadas de pesquisa acumulada por seus organizadores, a edição crítica dos panfletos é um colosso documental. Seu impacto na historiografia interessada na independência e na história do pensamento político brasileiro na primeira metade do século XIX promete ser expressivo, tanto por facilitar o acesso a documentos importantes, quanto por revelar fontes pouco utilizadas ou desconhecidas. Os impressos informam sobre a formação de uma incipiente esfera pública de discussão política, que incluiu “periodiqueiros”, jornalistas, membros das elites coimbrã e brasiliense, bacharéis, militares, religiosos, letrados e leitores diversos e se estendeu, pela oralidade, até grupos populares e iletrados. Esse lastro social do processo constitucional e independentista apenas recentemente começou a ser descortinado por nossa historiografia. A obra interessa ainda por se coadunar a diferentes perspectivas da história política em voga, como as que perseguem conceitos (sob influência de R. Koselleck),linguagens (inspirada em autores como J. G. A. Pocock e Q. Skinner) e culturas políticas. Essa historiografia, mais afeita às expressões populares e ordinárias do pensamento político, de preferência aos cânones e aos registros oficiais, tem reconstituído formas de pensar, de agir e de se exprimir em embates ou processos políticos, historicamente situados.
Guerra Literária cumpre bem os requisitos de uma obra de referência. Os volumes estão ordenados por gêneros literários e, no interior desses, os panfletos se dispõem em ordem cronológica anual. A opção pelo gênero textual adequa-se às características da documentação. Datados apenas com o ano de publicação, os folhetos não se prestam a sequenciamento cronológico preciso. Tampouco poderiam ter sido organizados por autor, haja vista a ocorrência comum do anonimato e do pseudônimo. Os dois primeiros tomos, compostos por cartas (v. 1) e por análises, reflexões e projetos de teor especulativo (v. 2), são mais homogêneos. O terceiro e o quarto englobam tipos distintos: sermões, orações, discursos, diálogos, catecismos, dicionários, manifestos, proclamações, representações, protestos, apelos e elogios (v. 3); e poesias, relatos, exposições, memórias, notícias e narrações (v. 4). Nesse volume ainda constam os folhetos políticos impressos na Cisplatina, então parte do Reino Unido. Os organizadores contribuíram com uma introdução geral à coleção e outras específicas a cada volume. Os panfletos platinos tiveram introdução especializada, redigida por Ana Frega. O leitor conta ainda com cronologia do período, índices onomásticos, notas biográficas e o rol das tipografias envolvidas.
Os impressos eram “literatura de circunstância” que almejava comunicar-se com o grande público. A oralidade impregnou textos em forma de diálogo, orações, catecismos, entre outras. Cabia fazer circular o “novo vocabulário político”, valendo-se de técnicas retóricas e de artifícios literários. Os panfletos tomaram as ruas. A leitura em voz alta e a rede de murmurações e de boatos levaram o conteúdo de discursos e de comunicações escritas àqueles que não sabiam ler. Baratos e acessíveis, os escritos de circunstância serviam, como se disse à época, ao entretenimento dos que não podiam pagar entrada no teatro. Num contexto de agitação política, foram instrumentos fundamentais de participação e de mobilização. Possibilitaram a intervenção do homem comum no espaço público. Disseminaram notícias e informações políticas, tornando-as de domínio público. Popularizaram, em frequência inédita no Brasil, os conceitos políticos oriundos da Ilustração e do contexto revolucionário que desestruturou o Antigo Regime (v. 1, p. 12-16).
Apesar do clima de liberdade de expressão e de participação política, manifestada inclusive através do voto, as heranças coloniais daquela sociedade escravista restringiram e, no limite, inviabilizaram essa esfera pública. Nos panfletos relativos à situação brasileira, a escravidão metaforizava o despotismo e a tirania. A princípio, a constituição deveria estipular “os direitos do cidadão livre”, distinguindo-o do “escravo de tantos senhores”. Em seguida, a postura recolonizadora adotada pelas Cortes transformou-se numa tentativa de escravização, “como se fôssemos um punhado de miseráveis escravos sujeitos à discrição e capricho de seus senhores, e não um Reino aliado mais poderoso e com mais recursos do que o mesmo Portugal” (v. 2, p. 110-123). Um poema feminino que se acredita ter sido escrito por menina baiana de 13 anos indagou: “Justos céus, de que nos servem/Bases da Constituição/Se a lusa tropa só quer/Impor-nos a escravidão” (v. 4, p. 263).
A independência garantiu a alforria política das elites regionais, antes submetidas à metrópole europeia. Como discursou posteriormente o deputado Lino Coutinho, “o Brasil quebrou os ferros da escravidão e separou-se do reino e se pôs no estado de independência”. Mas não estendeu esse “estado” à massa de africanos e de descendentes submetidos ao cativeiro doméstico, desprovida do foro de cidadania, privada do acesso à educação formal e alheia, portanto, aos conteúdos da cultura escrita e do debate político letrado. Segundo José Bonifácio, “nossa independência não é mais do que aquela de um filho que se emancipa”. Em 1822 apenas uma parte da ex-colônia se emancipou ou, em termos kantianos, atingiu sua maioridade política. Faltou que o mesmo ocorresse à outra parte, cuja razão, desprovida de uso público, ainda forceja por libertar-se da escravidão.
Tarcísio de Souza Gaspar – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais. Campus Muzambinho. Estrada de Muzambinho, km 35, Bairro Morro Preto, Muzambinho, MG, 37.890-000, Brasil. tarcisio.gaspar@gmail.com.
Foices e Facões. A Batalha do Jenipapo | Bernardo Aurélio e Caio Oliveira; Dois de Julho: a Bahia na Independência do Brasil | Maurício Pestana
A leitura em conjunto e a comparação entre as obras de Bernardo Aurélio e Caio Oliveira e de Maurício Pestana levantam, de forma enfática, a questão da adaptação da historiografia brasileira para uma linguagem ainda pouco convencional na abordagem da história da Independência do Brasil: a das Histórias em Quadrinhos. Ambas possuem propostas semelhantes, ou seja, enaltecer, preservar e trazer à tona episódios de lutas locais ocorridos durante o processo de Independência – o ‘Dois de Julho baiano’ e a piauiense ‘Batalha do Jenipapo’ –, com pouca afirmação no imaginário histórico fora de seus estados de origem. Os governos dos dois estados figuram nas duas produções, tendo a Secretaria da Cultura baiana publicado e editado Dois de Julho: A Bahia na Independência do Brasil, e a Fundação Cultural do Estado Piauí patrocinado Foices e Facões. A Batalha do Jenipapo. Neste último, inclusive, há um prefácio de Wellington Dias, governador do Piauí à época do lançamento. No entanto, enquanto em Dois de Julho percebe-se a intenção de uma leitura rápida e de extremo didatismo, Foices e Facões se destaca como um trabalho mais denso e de liberdade autoral.
Esse tipo de adaptação não é algo novo. Da Colônia ao Império – um Brasil para inglês ver (1983), de Lilia Schwarcz em parceria com o cartunista Miguel Paiva, se tornou obra referencial neste campo. Mais recentemente, Schwarcz voltou a explorar essa linguagem em D. João carioca: a corte portuguesa chega ao Brasil (2008), em colaboração com o ilustrador Spacca, e em História do Brasil em Quadrinhos: chegada da Família Real – Dia do Fico – Independência (2008), roteirizada por Jota Silvestre e Edson Rossato, e ilustrada por Laudo, a Independência foi novamente quadrinizada. Evidente que propostas, formas e conteúdos diferem bastante de uma obra acadêmica para um enredo de HQ. Este último, geralmente, tende a enfocar essencialmente tramas e conflitos entre personagens, situando o seu desenvolvimento em um tempo curto, como o dos eventos. Uma narrativa dramatizada baseada em indivíduos. Algo que na ciência histórica se assemelha a mais tradicional história política em sua roupagem oitocentista. O rigor científico tende a ser muito menor, havendo bastante liberdade criativa na construção de um enredo funcional, compromisso primordial da HQ.
No entanto, essa linguagem, caracteristicamente mais artística e ficcional, não deve ser tida como completamente descompassada e incongruente com a produção acadêmica. É possível constatar, numa aparentemente descompromissada dramatização em quadrinhos, maneiras de expor ou levar o leitor a intuir sobre questões atuais na historiografia, havendo assim um potencial de divulgação considerável nesse tipo de adaptação. Vale a pena, portanto, uma discussão acerca das soluções narrativas utilizadas pelos autores para a adaptação de conteúdos mais frequentemente trabalhados pela historiografia, neste caso, a Independência.
Em Dois de Julho, Maurício Pestana – jornalista e cartunista – desenvolve sua obra em trinta e quatro páginas, o que sugere certa compactação do conteúdo quando comparada com as mais de duzentas páginas de Foices e Facões, produzidas pelo roteirista – e também historiador – Bernardo Aurélio e pelo desenhista Caio Oliveira. A solução narrativa apresentada por Pestana consiste na utilização de uma personagem narradora, a garota Hamalli, como interlocutora entre os eventos passados e o leitor. Dessa maneira, existem duas linhas temporais distintas na obra: o presente, onde a presença e voz de Hamalli norteiam e expõem os acontecimentos que culminam no ‘Dois de Julho’ baiano, sobreposto ao passado mudo das ilustrações, que servem como acessório ao discurso da narradora. Em outras palavras, um passado condensado por um discurso sintético do presente.
Não se trata de um recurso original, podendo ser identificado em outros títulos, como, por exemplo, na obra de Silvestre e Rossato, acima mencionada. O problema desse expediente é afastar o leitor da visão do passado como um processo dinâmico, múltiplo em suas possibilidades e em constante (re)construção. De fato, acaba por apresentar o objeto histórico em quadros fixos e estáticos, cuja única função é ilustrar e confirmar o que a personagem do presente, portanto, extemporânea ao passado histórico, tem a dizer sobre ele.
Logo, na obra de Pestana, o passado é absolutamente imóvel, determinado e obedece a um devir inevitável, encapsulado nesses quadros estáticos, sem maior espaço para apresentar mais e diversas nuances de si mesmo. A própria característica sequencial dos quadrinhos se torna pouco efetiva, pois a única continuidade de ação é a da fala narradora, que ambientada fora das ilustrações do passado histórico, deixam estas últimas como uma espécie de fotografias colocadas em série, mas sem maiores progressões de ação quadro a quadro. Configura-se, assim, um objeto histórico mudo, apresentado em flashes fixos, paralisados, recortados de seu contexto e mais aprisionados pelos enquadramentos do que se utilizando deles para se desenvolver.
De maneira oposta, Aurélio e Oliveira aproveitam as duas centenas de páginas para deixar a trama – o passado – , se construir por si, sem a intervenção e tutela de uma linha temporal do presente. Não há uma diretriz extemporânea para determinar o desenvolvimento da ação, sendo sintomático como essa liberdade concedida ao passado, que se constrói através de um roteiro mais denso, resulta em maior sofisticação tanto no enredo quanto no conteúdo histórico exposto.
Foices e Facões, além de dar voz aos personagens – alguns históricos outros ficcionais –, apresenta tramas que se desenvolvem concomitantemente, em diferentes núcleos, de forma semelhante a uma novela. Isso permite, por exemplo, uma maior aproximação da ‘Batalha do Jenipapo’ com a mais conhecida progressão de eventos do centro-sul, cujo ápice é tradicionalmente visto como sendo o grito de D. Pedro. Os dois eventos são alinhados no início da história, dando uma ideia de complementaridade entre eles. Ao contrário, a rigidez narrativa de Dois de Julho lida de maneira mais conflituosa com os eventos mais próximos à Corte. Não há representação gráfica do grito, cujas menções diretas são reduzidas a passagens textuais. “Um campo de batalha. Mortos, feridos e muita desolação. Bem diferente da cena de um imperador gritando ‘Independência ou morte’…O cenário da guerra foi Salvador. Vésperas do 2 de julho de 1823, quando o Brasil ficou, de fato, independente de Portugal” (p.5). Nota-se na passagem a oposição entre as duas datas, como em uma disputa para determinar qual é a mais exata ou significativa para demarcar a Independência em perspectiva nacional. E não se torna forçoso extrair daí um ufanismo regionalista, deslocando a primazia do cenário do Centro-Sul, mas apenas para substituí-la pelo Nordeste. Se há na historiografia acadêmica obras que privilegiam espacialmente os arredores da Corte, estabelecendo um elo direto entre, por exemplo, a Inconfidência Mineira e o 7 de setembro, que muitos historiadores das últimas décadas vêm evitado explicitamente, de forma análoga aqui temos que, para Pestana,
Lembrar o 2 de julho, dia da Independência da Bahia, de fato, é trazer de volta a maior vitória do povo brasileiro e pouco estudada fora da Bahia, mesmo sendo a data de fato da Independência do Brasil, uma batalha vencida por negros, indígenas e brancos que antes mesmo do início dos conflitos já tinham histórico de luta por liberdade. É só analisarmos rebeliões de negros (escravos, libertos e livres), que em 1798, aliando-se também a brancos liberais inspirados na Revolução Francesa, iniciaram em Salvador uma luta por liberdade conhecida como a Revolta dos Búzios, reprimida violentamente. Alguns anos depois, essa mesma população negra se juntaria a indígenas e brancos com esses ideais libertários e se alistariam maciçamente no exército pacificador que combateria os portugueses em solo baiano (p.6).
De forma mais sutil, Foices e Facões inicia com o convencional grito em 1822, mas logo avança para o Piauí, em 1823, levando o leitor a intuir que tanto a Batalha do Jenipapo quanto os acontecimentos em São Paulo são duas eventuais cristas de uma mesma onda, ou processo. Há, desse modo, uma aproximação com a historiografia da Independência mais atual, pois, ao contrário de Dois de Julho – onde majoritariamente eventos são listados um em seguida do outro, como se obedecessem a uma ordem lógica –, a noção de um processo que se desenvolve para além da ação individual e prenhe de possibilidades se faz presente.
Esse resultado só é possível, novamente, pela maleabilidade do roteiro. Ao comportar subtramas, contendo diferentes núcleos de personagens de diversas origens e estratos sociais, o enredo de Foices e facões tende a dimensionar um halo de ação que ultrapassa o indivíduo, perpassando todas essas subtramas e inserindo-as num conflito numa perspectiva mais conjuntural. A Independência não se torna uma ação sob a regência de alguns personagens, mas pelo contrário, o soldado reinol, a família de camponeses, o latifundiário, membros da elite favorável à Corte do Rio de Janeiro, todos eles estão, em suas ações, em uma relação mais dialética com esse processo. A Independência torna-se uma espécie de personagem oculta, mas imprescindível, que se faz presente como a fonte e linha mestra de todos os conflitos e ações dos indivíduos presentes na trama.
As duas obras simplificam, em determinados momentos e em maior ou menor grau, o sentido dos confrontos que lhes dão os respectivos títulos, apresentando-os como uma simples oposição entre portugueses e brasileiros, sem maiores considerações acerca dessas duas categorias identitárias – muito matizadas pela historiografia na última década – bem como da natureza de suas origens. Nesse ponto, verifica-se em ambas as obras a reiteração de um persistente lugar-comum que assume que, à época, os dois termos estivessem profundamente consolidados, imunes a qualquer questionamento, resultando, portanto, em identidades plenamente distintas. Sobretudo em Dois de Julho, o português não é apenas oposto ao brasileiro, mas frequentemente a outras identidades mais locais. Assim, lemos que “os cachoeiranos venceram e aprisionaram os integrantes das escunas e todo o armamento dos portugueses… É bom lembrar que em matéria de armamento, era brutal a diferença entre brasileiros e portugueses” (p.13).
Em Foices e Facões, a excessiva dicotomização identitária também se faz presente, sobretudo nos diálogos entre as personagens: “prenderam o padre lá na vila…prenderam ele porque era português. Vão acabar prendendo o Januário por causa das besteira que ele anda dizendo” (p.95). O mencionado personagem Januário é um caso em que as fronteiras entre as duas identidades se tornam mais tênues. Trata-se de um latifundiário estabelecido no Piauí, que apoia a manutenção do Reino Unido português e, por conseguinte, os esforços do Major Fidié, governador geral designado por D. João VI para uma campanha de consolidação do poder da Coroa sobre a capitania. Ao leitor, ainda que isso não seja explícito no texto, ele se encaixa como morador tradicional de Campo Maior, não podendo ser chamado de português na conotação de ser um recém-chegado e estranho à terra, apesar de sua origem além-mar. “Sou português, sou cidadão. Quando me casei com você filha desta vila, tive filhos brasileiros. Exijo proteção” (p.97). Algumas páginas antes, um membro da elite piauiense e articulador da adesão da província a Corte do Rio de Janeiro diz:
Deixe-me lhe contar uma coisa Dr. Cândido: este navio acaba de chegar da Inglaterra. Portugal quer a volta do pacto colonial…Meu pai, que era português, me contou com satisfação dos acontecimentos de 1808, quando abriram os portos para as nações amigas depois que a corte portuguesa chegou aqui. Já imaginou os prejuízos desse retrocesso. (p.41)
Ainda que todas as passagens individualmente denotem que o “ser português” provém essencialmente da origem europeia dos indivíduos – concepção já desconstruída pela historiografia –, a leitura delas na sequência fragiliza essa ideia. O local de nascimento passa a dividir importância com a orientação política e interesses no futuro incerto da união entre os dois reinos. O pai português que defende a abertura dos portos e gera um filho separatista contradiz a ideia de uma fidelidade ao território português, supostamente inata aos nascidos na Europa. Por outro lado, um reinol de nascimento, mas plenamente integrado no Piauí, vê-se dividido por uma lógica dualista que suplanta seu pertencimento à província. Por fim, o soldado Luis, português de nascimento, e inicialmente a serviço de Fidié, encerra a história desertando e se estabelecendo junto a uma família de camponeses em Campo Maior. Portanto, é possível ao leitor intuir que o par identitário português/brasileiro não era, à época, estanque, e dependia mais ou igualmente de uma opção política do que o local de nascimento; também não se fazia presente em qualquer situação, mas era evocado, sobretudo, por conjunturas específicas no interior do processo de Independência, podendo ser agregado, entrar em confronto, ou simplesmente coexistir com outras identidades.
Mais uma vez, essa diferença entre as duas obras perpassa a maneira como seus roteiros são desenvolvidos. Em Dois de Julho, o passado mais imobilizado pela voz de uma personagem do presente tende a não ser mostrado como detentor de múltiplas possibilidades, mas apenas como o que teria inevitavelmente ocorrido. E nesse escopo teleológico, a separação entre português e brasileiro cabe aparentemente sem maiores problemas. No entanto, o roteiro de Foices e Facões, que permite a visualização de um passado em construção, através da ótica e da relação entre diversos indivíduos, permite o questionamento dessa distinção de identidades, embora não a sustente explicitamente.
Logo, não é necessariamente a linguagem dos quadrinhos um suporte insuficiente ou contrário à transposição do conteúdo científico da historiografia. O alcance e os limites da narrativa de uma HQ variam de acordo com a inventividade do autor em sua capacidade, claro, de aproveitar inspirações de conteúdos formais, neste caso, advindos da historiografia acadêmica. Cabe a este relacionar as possibilidades de uma história desenvolvida através da progressão quadro a quadro com o tipo de conteúdo a ser adaptado. No caso da historiografia, de maneira semelhante ao já citado Da Colônia ao Imperio – um Brasil para inglês ver, Foices e Facões demonstra ser possível apresentar conjunturas e processos através de um enredo amplo contendo diversas subtramas se desenvolvendo em um mesmo roteiro. No entanto, a utilização do narrador fora do passado de que se fala, como é notado em Dois de Julho, apresenta maior risco de um discurso teleológico. O esforço de fugir de uma transposição mecânica, explorar os limites da composição de um roteiro, é fundamental para a descoberta de novas maneiras de unir de modo mais eficaz HQs e historiografia.
Luis Otávio Vieira – Graduando em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP – São Paulo/Brasil). E-mail: luis_vieira_mail@yahoo.com.br
AURÉLIO, Bernardo; OLIVEIRA, Caio. Foices e Facões. A Batalha do Jenipapo. Teresina: Núcleo de Quadrinhos do Piauí, 2009. PESTANA, Maurício. Dois de Julho: a Bahia na Independência do Brasil. Salvador: FPC/SecultBa, 2013. Resenha de: VIEIRA, Luis Otávio. A Independência em quadrinhos: formas de se contar história (s). Almanack, Guarulhos, n.6, p. 158-162, jul./dez., 2013.
Às armas, cidadãos! Panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823) | José Murilo de Carvalho e Lucia Maria Bastos Pereira das Neves
O recém-lançado Às armas, cidadãos!, organizado por José Murilo de Carvalho, Lúcia Bastos e Marcello Basile, vem se juntar a um conjunto de importantes, ainda que escassos, trabalhos de edição crítica de documentos sobre a independência do Brasil, que resultaram em coletâneas, antologias e coleções de textos fundamentais da época. Tal conjunto a que me refiro é composto tanto pela organização de documentos produzidos pelos órgãos oficiais (das Cortes de Lisboa às juntas governativas provinciais e câmaras municipais, passando pelo reinado de D. João VI e a regência de D. Pedro no Rio de Janeiro), quanto por séries de periódicos e obras reunidas de personalidades envolvidas diretamente no processo de constitucionalização do reino luso- americano e sua subsequente emancipação política. Alguns desses títulos, sobretudo aqueles dedicados a documentos de caráter oficial, foram concebidos no âmbito das comemorações do centenário e sesquicentenário da independência do Brasil, a exemplos da obra Documentos para a História da Independência, publicado pela Biblioteca Nacional em 1923, e dos volumes de As Câmaras Municipais e a Independência e As Juntas Governativas e a Independência, ambos publicados pelo Arquivo Nacional em 1973.
As edições críticas e reuniões de fac-símiles publicadas nos últimos anos destacam-se por acompanharem a urgência da promoção de obras que estimulem o debate historiográfico em torno dos temas da construção do Estado e da nação, assim como do surgimento da imprensa e da gestação da opinião pública no Brasil. Nesse sentido, sobressaem as publicações fac-similadas do Correio Braziliense, coordenada por Alberto Dines (2001), do Revérbero Constitucional Fluminense, organizada por Marcello e Cybelle de Ipanema (2005), d’O Patriota, organizada por Lorelai Kury (2007), bem como a reunião da obra de Cipriano Barata, Sentinela da Liberdade e outros escritos, realizada por Marco Morel (2008). Ainda sobre os periódicos, vale lembrar de uma outra leva de edições críticas ensaiada nos anos quarenta pela editora Zelio Valverde; dentre suas publicações destacam-se as organizações do Tamoyo, por Caio Prado Jr. (1944) e da Malagueta, por Helio Vianna (1945).
Pode-se dizer que Às armas, cidadãos!, – aguardado pelos historiadores dedicados ao tema da independência, desde a divulgação do projeto por seus organizadores nos seminários do CEO/PRONEX – segue a tendência acima esboçada. Embora o livro se restrinja aos panfletos manuscritos – um total de 32, “sem dúvida amostra pequena dos papelinhos que circularam na época” (p.22), admitem os autores no texto de apresentação – não deixa de ser uma iniciativa importante frente a um cenário editorial que pouco investe nesse tipo de publicação. Provavelmente, as editoras entendem que os custos de produção e distribuição não sejam rentáveis para o mercado editorial brasileiro, comprometendo, portanto, o alcance de projetos voltados às obras de referência. Em Às armas cidadãos!, a timidez na seleção dos panfletos, não incluindo no volume os impressos que circularam à época em maior quantidade e com número de páginas bem superior aos “papelinhos” manuscritos, deve ser salientada não em detrimento do trabalho realizado – claro, de altíssimo nível e cujo recorte é bem justificado pelos autores, como veremos mais à frente –, mas pelo fato de os panfletos impressos da independência serem ainda de difícil acesso para historiadores de várias partes do país e também estrangeiros.
Assim, deve ser sublinhado que as historiografias a respeito das independências ibero americanas, incluindo evidentemente o Brasil, passam por uma profunda revisão de seus marcos estritamente nacionais concebendo a realidade dos antigos impérios ibéricos em suas múltiplas identidades, inseridas numa mesma unidade conjuntural revolucionária internacional e em íntima relação com contextos políticos e intelectuais diversificados e em interação entre si. Tal perspectiva tem uma consequência de mão dupla. Se por um lado a independência do Brasil tem sido abordada menos em função de sua suposta excepcionalidade em relação aos demais movimentos políticos do período, por outro lado, o interesse pelos desdobramentos históricos em seus diversos quadrantes regionais motivam perspectivas comparativas e visões de conjunto que ampliam a demanda por acesso às fontes primárias e produção de obras de referência.
Uma boa parte dos panfletos impressos remanescentes, assim como ocorre com os manuscritos selecionados em Às armas cidadãos!, também são originários da Bahia, do Rio de Janeiro e de Portugal. Não obstante, há registros de panfletos publicados em outros lugares onde existiram tipografias no período, como em Pernambuco e na Cisplatina. Quanto aos da Bahia e do Rio de Janeiro, estes se encontram em maior volume no acervo da Seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional e, ao que consta, não foram microfilmados ou digitalizados, como no caso dos periódicos da época, já disponíveis, não totalmente, mas em quantidade razoável, para consulta no site da instituição. Os panfletos impressos chamam a atenção por suas formas variadas: cartas, catecismos políticos, diálogos, discursos, manifestos, memórias, projetos, relatos, orações, entre outros. Alguns já foram incluídos em O Debate político no processo da Independência, organizado por Raymundo Faoro em 1972, e outros podem ser encontrados disponíveis em formato PDF nos sites do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e da Biblioteca Nacional de Portugal. Frente a um panorama acanhado, e por não encontrar nenhuma referência explícita no livro de que o projeto de publicação dos panfletos terá continuidade, não poderia deixar de manifestar o incentivo aos organizadores de Às armas, cidadãos! a persistirem com o projeto de publicação dos panfletos da independência estendendo a pesquisa aos impressos e completando, assim, uma lacuna deixada neste volume.
Passadas essas observações iniciais dediquemo-nos à análise do conteúdo do livro propriamente dito. Os 32 panfletos manuscritos transcritos e analisados pelos organizadores no texto de “Introdução” pertencem ao acervo do Arquivo Histórico do Itamaraty sob a classificação Coleções Especiais, “Documentos do Ministério anterior a 1822”, Independência, capitania da Bahia, capitania do Rio de Janeiro e diversos (documentos avulsos) (p.21-22). Os documentos reunidos foram numerados e divididos em quatro partes correspondentes aos locais onde foram produzidos: Bahia, Rio de Janeiro, Portugal e os de origem não identificada. Quanto ao critério de seleção dos manuscritos, os organizadores reafirmam a opção pelos papéis que “contivessem crítica ou sátira política, tivessem ou não sido colados em paredes, postes ou nos muros das igrejas” (p.23), portanto, excluindo os escritos oficiais encontrados nas pastas do arquivo, à exceção de uma proclamação, a qual comentaremos abaixo. Uma “Nota editorial” informa que todos os documentos foram transcritos atualizando-se a ortografia, mantendo-se a pontuação original da época e corrigindo-se a grafia quando necessário. Além do mais, foram inseridas notas explicativas sobre indivíduos, datas, expressões e termos típicos citados nos panfletos, que auxiliam na compreensão da conjuntura e do vocabulário político do período. Por fim, um outro suporte à leitura dos documentos selecionados é a excelente “Cronologia” incluída no final do livro, na qual os eventos ocorridos na Bahia e no Rio de Janeiro ganham maior destaque.
Cada transcrição é antecedida da reprodução do original, de modo a manter no texto “o sabor de época” (p.33) e, assim, convidar o leitor a dimensionar como tais panfletos eram expostos e debatidos pelo público. A esse respeito, destaco dois panfletos da Bahia. O primeiro, de número 14, intitulado Meu Amigo, apesar de não mencionar o ano de redação, possui um registro informando o dia em que foi arrancado, 14 de fevereiro. Tal registro é um sinal explícito de que muitos “folhetos” eram afixados em locais públicos das cidades a fim de dar ampla divulgação aos projetos e ideias surgidas no bojo dos debates sobre a constitucionalização do reino o que, fatalmente, os tornavam alvos do controle dos órgãos de governos locais que temiam as agitações populares. Aqui, percebemos como os espaços de sociabilidades eram invadidos por práticas representativas de uma nova ordem política.
O outro panfleto, de número 12, é o único de caráter oficial incluído no livro, como já dito. Os organizadores justificam sua incorporação pelo fato de ele ter sido divulgado à moda dos bandos do Antigo Regime. Trata-se de uma proclamação redigida em 1823 pelo brigadeiro Inácio Luís Madeira de Melo, governador das armas da Bahia que, ao constatar a “Província revolucionada”, declarava seu estado de sítio, bloqueava a capital transformando-a em “Praça de Guerra” e determinava sob seu nome todas as competências e poderes da Lei. Tudo isso era levado ao público, segundo o brigadeiro, ao “Som de Caixas pelas ruas e praças públicas” da cidade a fim de fazer chegar a notícia a todos, de modo que “ninguém possa alegar ignorância” (p.97). Neste caso, de forma aparentemente contraditória, o uso de uma forma de comunicação, como o som dos bandos, não significa pura e simplesmente a reprodução de práticas políticas típicas do Antigo Regime, mas a sujeição dessa forma às pressões exercidas pela reconfiguração da funcionalidade dos espaços públicos. Portanto, ambos os panfletos são amostras do quanto as formas de interação social e política se transformavam naquele período, sobretudo porque amplas camadas da população eram expostas ao debate público, embora o alcance dessas práticas entre os sujeitos sociais ainda necessite ser melhor investigado, possibilitando a “intervenção do indivíduo comum na condução dos destinos coletivos” (p.9), e assim permitindo que as opiniões ganhassem força.
É sob este aspecto que os organizadores de Às armas, cidadãos! justificam a publicação dos panfletos manuscritos e, ao mesmo tempo, traçam a distinção de linguagem destes em relação aos impressos. Os panfletos, sejam manuscritos ou impressos, “transformaram-se em instrumentos eficazes de promoção do debate e, mais ainda, da ampliação de seu alcance, graças à prática de leitura coletiva em voz alta” (p.9), não obstante o estilo mais simples dos folhetos manuscritos chamem a atenção. Dentre outras coisas, caracterizavam-se por motivações mais imediatas e voltadas a despertar as emoções de uma audiência motivando antipatias em relação a determinadas personalidades ou convocando a população à ação política direta. Um dos alvos prediletos dos panfletários era Tomás Vilanova Portugal, ministro de D. João VI, defensor da manutenção da Corte no Brasil e opositor radical dos revolucionários do Porto. No “Panfleto 23”, o ministro encabeçava a lista de nomes de pessoas que deviam ser presas na intenção dos eleitores do novo governo do Rio de Janeiro que circulou em 1821. E no “Panfleto 24”, num poema sem data, seu autor, “um Amante da Pátria”, recomenda ao ministro que ele fizesse chegar ao rei aquele ultimato em versos: “Assina a Constituição / Não te faças singular, / Olha que a teus vizinhos / Já se tem feito assinar. / Isto não só é bastante, / Deves deixar o Brasil, / Se não virás em breve / A sofrer desgostos mil.” (p.170).
Já os impressos, via de regra, destacam-se por desenvolver argumentos e interpretações mais complexas e buscarem, com certo grau de didatismo político, esclarecer e/ou convencer a opinião pública a se posicionar a favor ou contra determinado princípio ou projeto político em debate. A linguagem dos panfletos manuscritos é, com frequência, mais violenta e contundente, as vezes grosseira, como ocorre no “Panfleto 26”, em que o autor de um poema português relata a entrada em Lisboa, após viagem ao Brasil, de William Carr Beresford, militar britânico que comandou o exército português na luta contra os franceses e que exerceu durante a regência um grande poder. Já no título, o sarcasmo: “Obra nova intitulada entrada do careca pela barra”. E na sequência, insultos direcionados ao militar e aos brasileiros: “Tornastes a voltar filho da Puta / Do País das araras, e coqueiros / Oh mal haja os Bananas Brasileiros / Que vivo te deixaram nessa luta” (p.182). Esse tipo de afronta, em certo sentido, contrasta com a prudência com que falavam e agiam boa parte das vezes os redatores dos periódicos e panfletos impressos, em sua maioria, homens instruídos – negociantes, bacharéis, clérigos e militares. Para os organizadores, esse fato se explica em parte pela origem popular dos papéis manuscritos e pela precária liberdade de imprensa vigente à época, que proibia a veiculação de certas informações nas tipografias oficiais e particulares (p.24).
Nesse sentido, em Às armas, cidadãos! os aspectos formais que distinguem os panfletos também são representativos das assimetrias sociais existentes entre os partícipes do movimento político, pois “se os panfletos impressos da mesma época revelam intenso debate político entre letrados em torno dos grandes problemas do momento, os manuscritos sobressaem pela revelação das ruas na ‘guerra literária’ da constitucionalização e da independência” (p.31). Ao sublinhar tais diferenças o livro abre um diálogo com as pesquisas dedicadas à amplitude social dos envolvidos nesse processo histórico, o que é bastante louvável. Por outro lado, a não inclusão dos panfletos impressos, como ressaltamos ao longo da resenha, prejudica uma visão de conjunto sobre a documentação e a amplitude de outros temas por ela suscitados. De todo modo, Às armas, cidadãos! apresenta resultados já expressivos, mas quiçá pode ser considerado ainda em desenvolvimento.
Rafael Fanni – Mestrando em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP – São Paulo/Brasil) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), E-mail: rafaelfanni@usp.br
CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das; BASILE, Marcello Otávio de Neri Campos (Orgs.). Às armas, cidadãos! Panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823). São Paulo / Belo Horizonte: Companhia das Letras / Editora UFMG, 2012. FANNI, Rafael. A força da opinião: panfletos manuscritos na independência do Brasil. Almanack, Guarulhos, n.5, p. 199-202, jan./jun., 2013.
Política Racial, Estado e Forças Armadas na época da Independência: Bahia/ 1790-1850 | Hendrik Kraay
Em recente ensaio publicado na imprensa brasileira, o historiador Luiz Felipe de Alencastro, tratando do “Livro Branco da Defesa Nacional”, lançado em 2012 pelo governo brasileiro, declarou taxativamente: “a discriminação racial não escrita (…) exclui negros e mulatos do alto oficialato das Três Armas”. Voltado a apresentar os números e as reflexões sobre planejamentos e estratégias para a Defesa do país, o “Livro Branco”, anota o historiador, inova pelo tratamento conjunto dos assuntos relativos às Forças Armadas e à diplomacia no Brasil, mas permanece, por outro lado, calado, no registro de um conhecido silêncio: a recusa em abordar a questão racial nas Armas, e a sua impermeabilidade à pauta das políticas afirmativas.
Se iniciássemos por sua conclusão a resenha do livro de Hendrik Kraay, poderíamos partir, seguramente, do mesmo ponto a que chega Alencastro. Nas palavras do historiador canadense, afinal: “(…) a abolição da discriminação racial formal nas Forças Armadas, um processo concluído na década de 1830 com o estabelecimento da Guarda Nacional e o fim da discriminação racial no recrutamento para o Exército, tornou menos possível a política baseada na cor” (p.379-380).
A complexa tradução histórica dessa formulação que aproxima períodos mediados por quase duas centenas de anos, Hendrik Kraay a promove numa obra de extenso fôlego, escrita no final da década de 1990, mas só há um ano apresentada em edição brasileira. O fato não impediu, porém, que desde a sua elaboração a riqueza do trabalho venha sendo amplamente conhecida e consultada pelos estudiosos interessados no tema e no período cobertos pela pesquisa.
Curiosamente, o tempo de espera da sua chegada ao público de língua portuguesa correu a favor da consolidação, na historiografia brasileira, de novas alternativas de interpretação a abordagens tradicionais no exame de temas como a Independência, a formação do Estado, ou a política nas camadas populares no Brasil. Alternativas que se juntaram, por outro lado, à elaboração das categorias “raça” e “cor” como motivos de uma já sólida tradição de estudos históricos sobre a escravidão no Brasil, tradição que se confunde com o processo de profissionalização da área no país, desde as últimas décadas do século passado.
Política Racial, Estado e Forças Armadas na época da Independência (Bahia 1790-1850) é, assim, um livro de muitos temas, como o confessa seu próprio autor. A bem dizer, é um livro de todos aqueles temas. E a escolha das Forças Armadas como objeto privilegiado em torno do qual seu estudo se organiza deve-se ao fato de que, em palavras do próprio Kraay, “nenhum outro setor do Estado penetrou tão fundo na sociedade”, oferecendo ao pesquisador a oportunidade de estudá-la ali onde ela não é composta “nem de escravos, nem de senhores”.
Dessa maneira, o estudo proposto das relações sociais e políticas marcadas pela hierarquia de corte racial desloca o cerne da análise do binômio senhor-escravo, ao mesmo tempo em que funciona como elemento articulador de toda a rede de temas que acusam a presença inescapável de sua sombra, ou seja, o peso da ordem escravista manifestando-se nas sutilezas dos seus diversos desdobramentos. Assumindo essa perspectiva, o autor ademais reconhece a complexa trama de interações por meio das quais um conjunto de elementos sociais como classe, status e origem interferem com a cor para a produção das diferenças entre as pessoas, dentro e fora de suas organizações.
Igualmente atravessados, assim, pela “questão racial”, e radicados no exame da dinâmica do Exército baiano entre 1790 e 1850, três são os principais temas que a obra descortina: a nova história militar, a formação do Estado brasileiro na “era da independência”, e a política popular.
Em tese defendida no ano de 1995 na Universidade do Texas, Hendrik Kraay sinalizava desde o título a abordagem escolhida para o tratamento característico da história militar em sua obra. “Soldiers, officers and society” traduz textualmente a pretensão de o historiador ultrapassar as narrativas das estratégias de guerra, dos procedimentos militares ou o tom laudatório das campanhas e de seus heróis, típicos dos trabalhos sobre a corporação – muitos deles produzidos por militares – até bem perto de fins do século XX. Kraay, ele mesmo, tratou do assunto juntamente com Victor Izecksohn, Celso Castro e outros em “Nova História Militar Brasileira” (FGV, 2004).
Nessa linha, a original história das milícias coloniais baianas produzida por Kraay é interpelada pelo interesse da disposição racialmente segregada dessa instituição auxiliar do Exército. O significado da discriminação oficial que separava os regimentos de brancos, pardos e pretos tornava a milícia, especialmente para esses últimos, numa fundamental agência de prestígio e de status pessoal, dado o elemento de diferenciação por ela representado numa sociedade em que a pobreza e a escravidão tinham cor marcante. Não por acaso, a perda da distinção por parte dos oficiais pretos da milícia (os famosos Henriques), com o fim da corporação em 1831 e sua substituição pela Guarda Nacional, lançou-os a uma feroz crítica do Estado em termos raciais. E sua frustração com o exercício da proclamada igualdade liberal formal – que extinguia os batalhões segregados – culminou no expressivo envolvimento dos ex-Henriques na revolta da Sabinada, em 1837.
Os oficiais do Exército baiano surpreendido por Kraay, por sua vez, estão longe das cenas das batalhas. O estudo bem documentado de suas trajetórias pessoais e familiares revela, à maneira da prosopografia, uma história a partir da qual é possível observar como o processo de profissionalização do Exército é consentâneo com a formação de um oficial funcionário público, proprietário modesto, crescentemente dependente das rendas do Estado e submetido ao seu estrito controle. Esse processo é fortemente induzido por uma máquina de Estado cuja força centralizada se manifesta a partir da década de 1840, num cenário claramente distinto daquele em que, no fim do período colonial, senhores e altos oficiais se confundiam no topo da hierarquia das Forças Armadas. Nota relevante acerca de um e de outro perfil dos oficiais, os documentos a respeito de suas carreiras não fazem qualquer menção de sua cor. Supunham-se todos brancos, na verdade; quando menos, na provocativa expressão de Donald Pierson, “brancos da Bahia”.
Essa pirâmide, encimada por alvos baianos, compunha-se na base pelos soldados da tropa. Em sua maioria recrutados à força entre livres ou libertos, brancos ou pardos, esses homens não gozavam do benefício de um acesso abreviado aos postos mais elevados da corporação – reservados aos cadetes, filhos de oficiais. A forma violenta de seu ingresso no Exército expunha a sempre encenada disputa entre as autoridades públicas, os pobres elegíveis e seus patrões: ser recrutado significava, portanto, perder a batalha nas tramas do patronato ou, pior, não poder contar com qualquer proteção. A característica ambigüidade dessa situação política levou o autor a afirmar que os pobres livres, beneficiários desse quadro, “encaravam o patronato como uma maneira natural, necessária e até mesmo ‘boa’ de organizar a sociedade” (p.288). Uma vez recrutados, porém, as desonrosas punições corporais a que estavam sujeitos lhes recordavam que a sua condição de vida era forjada com molde não inteiramente diferente daquele com que eram marcados os escravos.
Em resposta, os mecanismos de que se valiam os soldados para afirmar a sua liberdade incluíam deserções regulares ou o refúgio temporário na rede dos vínculos que não desatavam com a comunidade mais ampla. Foram, afinal, os espaços ainda não fechados entre o quartel e a rua no fim do período colonial que permitiram as duplas profissões de soldados e sargentos que, também artesãos e alfaiates, manifestaram vigorosa desafeição ao Trono em conspiração de pardos delatada por pretos da milícia na cidade da Bahia, em 1798. Dessa maneira, entre recrutamentos e deserções, punições e indultos, o quartel, assinala Kraay, funcionava como “uma porta giratória através da qual os soldados passavam regularmente” (p.117). Tratava-se de um equilíbrio dinâmico entre a ação do Exército à cata da sujeição dos “vadios” e a iniciativa dos pobres, livres ou libertos, em busca de um patrão que lhes valesse (ainda que esse patrão fosse, por fim, o próprio Estado armado).
Ao longo do período estudado na obra, a história é também de significativas mudanças nas fileiras, ao lado de inquietantes permanências. Tal como entre os oficiais – sobretudo após a criação de um Exército Nacional na década de 1840 – o perfil do soldado se conforma sob o peso de um controle mais estrito do Estado, de maior dependência à ocupação militar. A intensa politização provocada pelos conflitos de Independência resultou num crescente “escurecimento” das tropas – que contavam, inclusive, escravos recrutados – e a desmobilização do Exército envolvido nessa guerra implicou a dispensa de batalhões em que a presença expressiva de homens de cor era vista como elemento decisivo de graves ameaças à ordem, como aquela que o Batalhão dos Periquitos protagonizou em motim estourado em Salvador no ano de 1824, ainda no desenrolar dos sucessos da Independência da Bahia. Aos recrutas, portanto, o Estado pós-Regresso (1838) suprimiu o espaço para duplas atividades, o direito a licenças e baixas, e restringiu seu contato com o mundo exterior à caserna. Mas manteve, apesar de sua progressiva perda de legitimidade, a forma coerciva do recrutamento e o padrão da disciplina corporal, forçando os soldados a também manter atualizada a teia de favores que, nas palavras contrariadas do então Presidente da Bahia, “hoje tudo invade, e desfigura” (p.287).
A noção de Estado que emerge da obra de Kraay em meio a esse conjunto de transformações não é, ele salienta, a do “Estado autônomo que Raimundo Faoro e Eul-Soo Pang enxergaram como sendo primordial à história luso-brasileira”. Em seu lugar, o autor “enfatiza as íntimas conexões entre o Estado e a classe dominante” (p.18). Poder-se-ia dizer a esse respeito, em suma, que ao longo do período a classe senhorial baiana deixou de estar no controle direto das Forças Armadas – ocupando seus mais altos postos numa corporação de caráter local – para se beneficiar da segurança propiciada por um Exército nacionalizado por obra da força do Estado, então livre dos focos de rebeliões. Essa formulação tal como elaborada supõe, portanto, um importante trânsito na dinâmica do Estado, de um Império ao outro. Kraay o explica, sobretudo, a partir das evidências de seus resultados na estrutura do Exército e no perfil de seus integrantes. A relevância dessa explicação, porém, não afasta, antes mesmo sublinha, a importância de outra que dê conta das formas como esse trânsito de um modelo de Estado ao outro representou a efetiva construção de um Estado Nacional no Brasil.
Arriscaríamos dizer que as íntimas conexões entre o Estado e a classe dominante sugeridas por Kraay carecem, na obra, de uma maior diferenciação dos seus termos. No amplo quadro da política institucional que recobre e produz as mudanças no Exército claramente apresentadas no livro, as “classes senhoriais” resumem a “sociedade” em geral frente à qual o perfil do Estado é discutido. Por sua vez, os liberais expressivamente citados como responsáveis pela reforma do Exército entre as décadas de 1820-30 não dialogam, nas páginas do trabalho, com adversários conservadores mais distintamente apresentados. A própria narrativa de um Estado como máquina burocrática em construção a partir do Regresso não é objeto da atenção detida e específica do autor, naquilo que ela interessaria em demonstrar como se forjou uma identificação das classes – e não só dominantes – com a figura de uma administração política que superou a pátria local como eixo de funcionamento e que fixou as condições para o surgimento de instituições e carreiras nacionais, como as do próprio Exército. Afinal, como suposto na formulação antes apresentada, o trânsito entre aparelhos de Estado distintos deve mais à “era da Independência” do que à Independência como tal; o que é o mesmo que dizer que a Independência por si não formou o Estado nacional, premissa, aliás, que o autor reconhece.
Mas se a Independência – ou Independências, pois “não há uma narrativa única e linear da Independência brasileira” (p.371) – não formou definitivamente o Estado, ela assentou as bases de uma nova ordem política que foi particularmente explorada pelos militares. Modulando a imagem de revolução conservadora atribuída por F.W.O. Morton ao movimento de Independência no Brasil, Kraay identifica os elementos sociais de uma revolução no conjunto de desafios que movimentos políticos impulsionados por soldados e oficiais do Exército e da milícia lançaram à ordem vigente a partir da década de 1820. Nesse particular, a nova posição assumida por esses atores tinha especial relação com a circulação de pautas, termos e com a cultura política que a vigência de uma Constituição pós-revoluções liberais permitiu que se formasse.
Os motins militares contra o regime de disciplina ou contra práticas arbitrárias das autoridades do Estado – destacada a Revolta dos Periquitos, em 1824; a expressiva participação de ex-integrantes da milícia preta na Sabinada, em 1837; ou ainda as diversas estratégias de “negociação e conflito” de que os homens das fileiras do Exército dispunham para fazer política e remediar a sua condição, todo esse processo evidencia o “Estado feito por baixo” que Kraay elege como um dos objetos de seu interesse. A relevância do reconhecimento de uma política de caráter popular no século XIX, renovando constantemente os horizontes de uma “segunda independência”, faz Kraay acenar para uma tradição historiográfica brasileira, inspirado na qual ele diz:
os soldados (e seus aliados na sociedade civil) reformularam o Exército, assim como – para usar um exemplo mais familiar aos historiadores do Brasil – as ações dos escravos em suas relações cotidianas com seus senhores transformaram a escravidão (p.106).
Assim, unindo os temas centrais da discussão enfrentada pelo autor em sua obra, a comparação feita no início dessas notas entre as frases de Alencastro e de Kraay cobra sentido, no fim, com uma breve referência a Karl Marx e o seu “Sobre a Questão Judaica” (Boitempo, 2010). Nesse trabalho, Marx, polemizando com Bruno Bauer acerca dos direitos políticos dos judeus na Alemanha do século XIX, promove sua seminal distinção entre “emancipação política” e “emancipação humana”. Com ela, poderíamos dizer, retomando o fio das profundas transformações havidas na estrutura do Exército brasileiro, que a reforma liberal que, em 1831, extingue as milícias racialmente segregadas e as substitui por uma Guarda Nacional racialmente “cega”, em nome da igualdade formal entre as pessoas, essa reforma representa a emancipação política dos cidadãos brasileiros em relação às suas diferenças de cor. Tal como na defesa por Bauer da emancipação dos alemães frente às suas distinções religiosas, o Estado brasileiro emancipava politicamente seus cidadãos, vale dizer, declarava-os livres e iguais, abstratamente, nos limites de sua cidadania. Essa emancipação, porém, não convenceu Francisco Xavier Bigode, ex-Tenente Coronel da milícia preta, extinta em 1831. Para ele, a igualdade diante da lei era “sem significado, a menos que ela reconhecesse as distinções raciais que a legislação colonial havia incorporado” (p.340).
Marx diria que a emancipação política eleva abstratamente os indivíduos de suas diferenças de castas e crenças, que ela os torna iguais formalmente, mas, não sendo emancipação humana, permite que suas diferenças concretas sigam agindo à sua maneira. Vale dizer, sigam à maneira das ordens sócio-políticas e econômicas que as produzem. Assim, nas palavras de Hendrik Kraay, nesse quadro “as afirmações de igualdade caíam em ouvidos ensurdecidos por atitudes profundamente arraigadas” (p.164). De fato, lembremos, não poderia ser diferente: o Império não tinha ainda o seu Livro Branco.
Douglas Guimarães Leite – Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF-Niterói/Brasil). E-mail: douglas.leite@gmail.com
KRAAY, Hendrik. Política Racial, Estado e Forças Armadas na época da Independência: Bahia, 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2011. Resenha de: LEITE, Douglas Guimarães. A cor da política: carreira, identidade racial e formação do Estado nacional no Exército baiano do entre-impérios (1790-1850). Almanack, Guarulhos, n.4, p. 154-158, jul./dez., 2012.
A Independência brasileira: novas dimensões | Jurandir Malerba
Em meio aos preparativos para a comemoração dos 200 anos da vinda da corte portuguesa para o Brasil, surge no mercado editorial a A Independência brasileira: novas dimensões. Organizado por Jurandir Malerba, o livro é um convite à reflexão sobre um momento crucial da nossa história. Há muito a historiografia sobre o período colonial vem sendo revista por novas teses que compartilham perspectivas inovadoras e dialogam com o que há de mais recente no meio historiográfico internacional. Os artigos da coletânea, originalmente apresentados no seminário New Approaches to Brazilian Independence, em 2003, na Universidade de Oxford, são o resultado de pesquisas de uma nova geração de historiadores sobre o tema. Seu subtítulo (Novas dimensões) visa tanto sublinhar o valor de uma obra que marcou época organizada, em 1972, por Carlos Guilherme Mota , quanto distanciar-se de seus pressupostos e métodos de abordagem histórica.
O instigante artigo de Jorge Pedreira, Economia e política na explicação da Independência do Brasil, abre a primeira parte do livro. Ao discutir os argumentos de uma historiografia “clássica” sobre o tema, contesta as interpretações de Fernando Novais e de Carlos Guilherme Mota, baseadas na crise do antigo sistema colonial, uma vez que, segundo o autor, o império luso-brasileiro conheceu uma notável expansão comercial em sua fase final. O conceito de vulnerabilidade já utilizado por Valentim Alexandre em Os sentidos do império aplica-se, segundo Pedreira, para designar aquela conjuntura complexa e mutante, pois nada indicava que o sistema colonial estivesse condenado à desintegração. Analisa as convulsões políticas que abalaram Portugal, a transmigração do rei e da corte para o Brasil, a abertura dos portos, o tratado de 1810, o isolamento do grupo mercantil no Reino. Tais fatores teriam gerado um conjunto impreciso de idéias, assim como projetos de “regeneração nacional”. A análise do espaço de convergência entre os interesses dos corpos mercantis de Lisboa e do Porto e as perspectivas políticas de uma importante facção das cortes constituintes levam-no a concluir que, apesar da relevância das questões econômicas, a dinâmica que desembocou na secessão do Brasil teve um caráter essencialmente político. Leia Mais
A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da política, 1798-1822 – LYRA (RBH)[
LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da política, 1798-1822. Prefácio de Izabel Andrade Marson. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994. 256p. Resenha de: OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.14, n.28, p.2268-270, 1994.
Cecília Helena de Salles Oliveira – Universidade de São Paulo.
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