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Rememorar a Independência de Sergipe / Revista do IHGSE / 2020
Rememorar a Independência de Sergipe: histórias, processos e experiências
A reunião de textos desta edição tem especial sentido de celebração de efeméride, palavra que, de forma simples e direta, alude ao ato comemorar acontecimento ou fato ocorrido em data específica. Contudo, mais do que a forma e a expressão com que o passado se faz presente para uma coletividade, as comemorações de fatos históricos são indissociáveis do ato de lembrar, identificando os significados que dão sentido e coerência a seu presente. Mas qual a finalidade das comemorações que envolvem datas históricas?
Não é novidade que as sociedades sempre comemoraram os referenciais de sua existência ao longo do tempo. Na Antiguidade, os feriados eram eventos valorizados, principalmente entre os romanos, que usavam esses momentos para celebrar acontecimentos importantes de guerra, honrar divindades ou mesmo festejar em homenagem a algum imperador falecido. Nas sociedades do Antigo Regime, etapas da vida dos monarcas e seus familiares, como nascimentos, casamentos, aniversários e falecimentos, eram motivo de celebração, sem falar no calendário frequentado por santos e fatos do catolicismo, a serem festejados no reino e nos domínios além-mar. Após a Revolução Francesa, que marca a modernidade política burguesa no Ocidente, o ato e a maneira de comemorar assumiram dimensões cívicas e institucionais laicizantes. No Brasil, as lutas de independência e a necessidade de comemoração simbólica da separação de Portugal, em 7 de setembro de 1822, assinalam a naturalização dessas celebrações justamente por remontarem ao nascimento político da nação e à pertinência da criação de tradição comemorativa e de mito na figura de D. Pedro I.
Datas importantes e sua celebração (uma vez que há episódios que devem ser lembrados. mas não comemorados) marcam a passagem do tempo com construções simbólicas que ressignificam momentos considerados relevantes em razão da ocorrência de lutas, conquistas, experiências ou traumas adquiridos ou por definirem nova condição. Nos documentos e comunicações oficiais do período imediato à independência, por exemplo, tornou-se comum registrar o número de anos passados desse fato, como demarcação de nova era, novo presente, nova realidade. Mas sua comemoração também pode significar o momento em que a sociedade se debruça sobre si e reflete sobre o acontecimento, que, convertido em símbolo e representação, contribui sobremaneira na elaboração de referenciais de identidade(s), processo que, embora orientado e disputado, flui no tempo e opera, por incursão seletiva no passado, a construção de consciência histórica, moldada pela percepção de singularidade / alteridade também histórica.
Pela interpretação de fragmentos do passado de que os historiadores dispõem em sua época, acrescidos do desafio de entender os valores de temporalidade que não é a sua, como num quebra-cabeça, vão se refazendo e trazendo atos, sentidos, trajetórias de sujeitos históricos e seus efeitos para a realidade presente. Cabe a esse profissional dar sentido a esse emaranhado e, assim, promover, para além da esfera individual, ressignificação da experiência vivida, que, por operação memorialística, passa a constituir repertório de elementos formativos de sentimento de coletividade. Tão importante quanto esse processo, é a dimensão física da memória captada por produtos criados em torno da celebração, como selos, bustos, discursos, cartazes, estátuas, músicas, hinos, convites, bandeiras, livros, vídeos, entrevistas, placas e exposições, que precisam ser entendidos em seu contexto original, uma vez que pretendem promover a apropriação social, simbólica e discursiva, do tempo e sua passagem.
Assim, a própria organização da celebração e sua efetivação também se tornam material para ser rememorado, o que revela a importância de se atentar não apenas para o que se comemora, mas também para maneira de lembrar o evento, correspondência e resultado dos projetos políticos e das relações de poder vigentes. François Pierre Nora, historiador e referência incontornável de teorização sobre os campos da memória social e coletiva, aponta o presente como gerador dos “instrumentos da comemoração, moldando-os conforme suas necessidades e especificidades, bem como a própria simultaneidade das efemérides assumem relevância nas relações políticas e no imaginário nacional” (apud Lisboa, 2008, p. 36).
Mas o que se comemora em 8 de julho, feriado para os sergipanos? Há 200 anos ocorria a emancipação da capitania de Sergipe, que, por intricado processo político, lutou para conquistar e confirmar sua independência. A autonomia oficial tem sua origem nas transformações administrativas da primeira década do século XIX, postas em vigor pelo governo de D. João VI (que, supõe-se, ocupa espaço afetivo na história sergipana), quando o monarca e sua Corte se fixaram no Brasil, a partir de 1808, e, ainda, na conjuntura revolucionária do conturbado contexto europeu oitocentista. A especificidade da análise desse processo se insere no entrelaçamento de duas lutas concomitantes por autonomia: a da capitania, para sair da tutela administrativa e da exploração econômica e tributária da capitania da Bahia; e a da colônia, em meio a seu dilema entre projetos políticos liberais das Cortes portuguesas ou construção de um país independente liderado por D. Pedro I.
Mais do que dar destaque e mostrar como a Independência ocorreu nas “partes” da América Portuguesa, trata-se de fundamental contribuição intelectual para melhorar o conhecimento sobre a nossa separação de Portugal e reavaliar a construção do Brasil, enquanto corpo político autônomo, por perspectiva local, confirmando a sempre necessária refutação da difusão de dita “história nacional” contada a partir do eixo sul do país, que não conhece outros espaços, outras experiências, outras gentes. Acredita-se fortemente que a análise da experiência histórica da autonomia da capitania de Sergipe evidencia a pertinência de buscar a compreensão das dinâmicas políticas como formadoras de identidades sociais e regionais e seu papel na construção do Estado nacional brasileiro, com todos os seus dilemas, dificuldades e traços, que ajudaram a compor quem nós somos e como compreendemos essa árida, mas criativa, trajetória.
Este dossiê reúne, relembradas de forma qualificada, abordagens de pesquisadores sobre essa experiência. O artigo que abre o conjunto de textos, intitulado Comemoração do primeiro centenário da emancipação política de Sergipe: Um olhar a partir das revistas do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE), de Cristiano Ferronato, Maristela Andrade e Patrícia Batista, apresenta reflexões de investigação realizada sobre o processo de construção da memória coletiva do povo sergipano a partir da organização da comemoração de data cívica 8 de julho, ocorrida no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe – IHGSE, em 1920.
O historiador Wanderlei de Oliveira Menezes problematiza em seu artigo a carta régia de 8 de julho de 1820, explorando o significado de independência e a sujeição administrativa da Capitania de Sergipe à Bahia, por meio da análise das relações de dependência administrativa entre as duas capitanias do período entre 1763 e 1820, e percorrendo as nomeações dos capitães-mores (governadores), autoridade mais afetada com a subalternidade administrativa, para sugerir entendimento da carta régia como mecanismo de fortalecimento do poder central da monarquia portuguesa em detrimento dos interesses regionais da Bahia.
No artigo Memorável dia 8: os significados da prisão de um Governador, da fuga do malvado Vigário e da trama de um Coronel corrompido (Sergipe, 1820-23), o historiador Anderson Pereira dos Santos analisa a articulação entre a prisão do Governador Carlos Burlamaqui, a fuga do Vigário da Freguesia de N. Sra. do Socorro de Cotinguiba, Antônio José Gonçalves de Figueiredo, e a trama do Coronel José de Barros Pimentel, com o objetivo de evidenciar a multiplicidade de posições políticas e de interesses pessoais em jogo no difícil processo de consolidação da autonomia de Sergipe. Por essa via de reflexão, argumenta que a identidade sergipense foi ressignificada e que a autonomia local se conecta com diferentes conjunturas dentro e fora do Império Português.
Tema bastante original se encontra no texto A composição gráfica dos impressos informacionais em Sergipe Imperial, de Germana Gonçalves de Araújo, Jeane Santana e Vicent Bernardo Alves Santos, em que se examina o modo de produção técnico-artístico utilizado na produção impressa dos suportes de comunicação e de expressão literária. Esse estudo contribui para a história da tipografia no Brasil, da educação e da imprensa sergipana do século XIX no Sergipe Imperial. Fundamentado em pesquisa bibliográfica e documental em acervos físicos (arquivos públicos e particulares) e na hemeroteca digital da Fundação Biblioteca Nacional, permite conhecer aspectos compositivos gráficos de periódicos e da informação impressa da época, fundamental para o conhecimento da produção de periódicos em Sergipe.
No texto intitulado Juntas de Governo Provincial no processo de Independência: conflitos e disputas em torno de noções de autonomia e autoridade militar (Bahia 1821-1823), Edna Maria Matos Antônio e Antônio Cleber da Conceição Lemos exploram o significado da montagem das Juntas de Governo no quadro da instalação de instituições liberais como peça de reforma política do liberalismo português em seu esforço de transformar a sociedade lusa, sem deixar de dialogar com tradição absolutista (religiosa e política). A partir da análise da experiência da Junta da Província da Bahia, focalizam as dificuldades de seu estabelecimento e funcionamento captadas no complicado relacionamento com o comando militar naquela Província no momento de intenso conflito político na dinâmica da transição de domínio colonial para autonomia nacional.
Este dossiê reitera a oportunidade e a importância de se construir conhecimento atualizado e reflexão histórica crítica sobre evento especial, como o da comemoração dos 200 anos da Independência de Sergipe, notadamente quando sua veiculação se dá através da revista do Instituo Histórico e Geográfico de Sergipe, que corajosamente mantém o espírito da missão pensada por intelectuais sergipanos, no já distante ano de 1912, de “verificar, coligir, arquivar e publicar os documentos, crônicas e memórias relativas às datas históricas (…) do Brasil e especialmente de Sergipe” [2] . É oportunidade excepcional de conhecer ou reconhecer os vários aspectos que envolvem a compreensão da ação / agentes políticos atuantes naquele contexto e suas escolhas, através da abordagem por diferentes campos de investigação, perspectivas de análise, espaços e problemas imbricados nas independências e seu aprendizado. Fica evidente, ainda, a importância das datas conformadoras da memória social e atuantes na construção de referenciais de pertencimento e comunhão de um passado, que, alicerçado em história e memória, alimentando uma festa que amálgama política, identidade e liberdade.
Notas
2. Revista do IHGSE, Aracaju, Ano I (1913) | 1º Trimestre. Disponível em https: / / seer.ufs.br / index.php / rihgse / issue / view / 869.
Aracaju, maio de 2020.
Referências
ANTONIO, Edna Maria Matos. A “independência do solo que habitamos”: poder, autonomia e cultura política na construção do Império brasileiro. Sergipe (1750-1831). São Paulo / UNESP; Cultura acadêmica, 2012.
LAVABRE, Marie-Claire. La commémoration: mémoire de la mémoire? http: / / bbf.enssib.fr / consulter / bbf-2014-03-0026-002. Acesso em 13 / 05 / 2020.
LISBOA, Karen Macknow. Comemorações, Memória, História e Identidade. In: RODRIGUES, Jaime (Org.). A Universidade Federal de São Paulo aos 75 Anos: ensaios sobre história e memória. Ed. FAP-UNIFESP, 2008. Disponível em http: / / books.scielo.org / id / hnbsg. Acesso em 13 / 05 / 2020
Edna Maria Matos Antônio – Doutora em História e Cultura pela UNESP. Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe e pesquisadora de História do Brasil Colonial e Imperial, com ênfase em poder e relações sociais; Coordenadora Titular do Programa de Mestrado em História da UFS.
ANTÔNIO, Edna Maria Matos. Apresentação. Revista do IHGSE. Aracaju, n.50, v.1, 2020. Acessar publicação original [DR]