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O Cinema em Portugal: Os Documentários Industriais de 1933 a 1985 – MARTINS (LH)
MARTINS, Paulo Miguel, O Cinema em Portugal: Os Documentários Industriais de 1933 a 1985. [Lisboa]: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2011. 318 pp. Resenha de: SAMPAIO, Sofia. Ler História, n.62, p. 199-206, 2012.
1 O documentário industrial tem suscitado pouco interesse como objeto de estudo académico. É conhecida a tendência, nos estudos de cinema, para privilegiar o filme de ficção – e, consequentemente, a longa-metragem – a par de modelos de análise autorais assentes na ideia do realizador como génio criador e do filme como obra de arte. Os resultados dessa tendência têm sido, por um lado, a constituição de um cânone de filmes e autores e, por outro, a bifurcação disciplinar (que, no mundo anglo-saxónico, se traduz na divisão entre film studies e film history) entre abordagens textuais, que sob a influência dos estudos literários sublinham as propriedades internas dos filmes, e abordagens contextuais, que procuram produzir uma história do cinema entendida quer como história das tecnologias e das técnicas cinematográficas quer como história dos autores e dos movimentos artísticos. De fora ou nas margens, ficam os filmes de não ficção, de curta e média metragem que, paradoxalmente, representam a maior fatia da produção cinematográfica mundial.
2 A partir de finais da década de 80, este cenário começou a mudar. A problematização do conceito de cânone e das conceções exclusivamente autorais do cinema (em parte, sob o impulso dos estudos culturais), veio permitir que uma série de filmes de «utilidade» – entre os quais os filmes industriais – fossem resgatados ao esquecimento. Igualmente importante foi o trabalho de preservação de filmes e organização de arquivos, que encontrou em tecnologias como a digitalização e a internet um renovado impulso. Na década de 90, cresceu o interesse pelos filmes «efémeros» (publicitários, educativos, industriais e amadores) e «órfãos» (i.e. filmes de arquivo não identificados ou negligenciados), dando origem a uma área de investigação que começou por ser marginal, mas que hoje é amplamente reconhecida: a título de exemplo, o congresso de 2012 da revista Screen foi dedicado aos «outros filmes» (um termo que não deixa de evocar a importância que o cânone continua a ter). Entre nós, a Cinemateca Portuguesa tem incluído na sua programação documentários não-ficcionais de curta e média duração, nomeadamente na rubrica regular «Abrir os Cofres».
3 É neste contexto que o livro de Paulo Miguel Martins deve ser lido. De cariz essencialmente informativo, o volume reúne, pela primeira vez, alguns dos dados mais importantes sobre os filmes industriais produzidos em Portugal entre o período de 1933 a 1985 – i.e. entre o início do Estado Novo (que coincidiu com a criação da Tobis Portuguesa) e a assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia. Como fontes primárias, Martins recorreu ao Arquivo Nacional da Imagem em Movimento (ANIM), aos arquivos da Torre do Tombo e da Biblioteca Nacional, bem como ao testemunho oral de realizadores e técnicos envolvidos na produção de alguns destes filmes.
4 O estudo divide-se em cinco secções ou capítulos, não numerados, mas que passo a enumerar por motivos de clareza. São eles: (1) «o filme como fonte histórica», em que o autor defende a importância dos filmes industriais como documentos históricos; (2) «traços gerais da história do cinema português», cujo propósito é «situar e contextualizar em traços gerais os documentários realizados em Portugal no conjunto da produção cinematográfica do País» (p. 47); (3) «o cinema documentário em Portugal», que faz uma introdução geral à história do documentário (não apenas em Portugal, como o título indica, mas no contexto internacional), terminando com uma subsecção sobre o documentário industrial; (4) «o documentário industrial português nas palavras dos próprios autores», em que o filme industrial português é analisado a partir dos dados compilados (alguns já referidos) e das entrevistas que o autor realizou a técnicos e realizadores; (5) por fim, «os filmes em análise», onde são discutidos cinco filmes industriais, nomeadamente: Bodas de Ouro da Empresa Fabril do Norte (1957); O Pão (1959/ 1964); Trabalho de um Povo (1959-1960); As Palavras e os Fios (1962); e Um Homem – Uma Obra (1971).
5 O ponto de partida desta investigação é uma conceção do cinema como «fonte de conhecimento» da realidade social (p. 9) e, consequentemente, «fonte de acesso ao passado» (pp. 14, 32, 34). Martins afirma em vários momentos que este acesso é sempre um acesso mediado (pp. 20, 30, 33, 186), mas isso não o impede de descrever o documentário, em geral, como um «retrato da realidade» (pp. 14, 17) e o documentário industrial, em particular, como um «retrato económico, sociológico e cultural das empresas» (p. 15) e, por extensão, da realidade socioeconómica do país numa determinada época (p. 9). Do mesmo modo, apesar de reconhecer que o passado é sempre apreendido através do presente (p. 21), o autor atribui aos filmes (e aos documentários industriais em particular) um valor histórico intrínseco, que os coloca ao nível de outros documentos históricos e que lhes confere um papel central no processo de formação de uma memória coletiva.
6 Na segunda secção, Martins elabora um panorama geral da história do cinema em Portugal, década a década, desde as suas origens até 1985. Num registo predominantemente descritivo, são-nos oferecidos elementos sobre a formação e evolução do campo cinematográfico português: a rápida ascensão e falência de empresas de produção e distribuição (o que revela a extrema volatilidade do meio); a natureza e o número das salas de exibição; as revistas de divulgação especializadas; os jornais de atualidades; os principais realizadores e os seus filmes; a criação de legislação e de instituições de apoio (estatais e privadas); os prémios e os festivais de cinema. São muitas e preciosas as informações recolhidas e apresentadas; no entanto, o pendor generalista e a proliferação de pormenores (que não distingue entre o que é e o que não é diretamente pertinente para o tema) impedem o aprofundamento das questões relativas ao documentário industrial, que aparecem dispersas, sem o destaque e o tratamento que merecem. A título de exemplo, a análise comparativa do número de salas em Lisboa, Porto, Madrid e Milão, nas décadas de 1910, 1920 e 1930 (pp. 62-64) apresenta dados que são interessantes por si só, mas cujo contributo para o tópico da investigação não é claro. Por outro lado, temas como a relação do documentário com a Campanha Nacional de Educação de Adultos, a organização de festivais temáticos (pp. 95-96), os dois Planos de Fomento e o II Congresso dos Economistas e da Indústria Portuguesa (pp. 81-82) justificariam maior desenvolvimento. Dizer que os dois últimos se mostraram favoráveis ao documentário industrial, sem uma análise mais detalhada, parece-me simultaneamente óbvio e pouco elucidativo. No geral, a secção cumpre a função de contextualização; no entanto, a síntese que apresenta acaba por reproduzir uma série de ideias feitas que carecem de adequada fundamentação empírica, bibliográfica e/ou teórica (é o caso da ideia de «divórcio» entre o cinema português e o público, ou da noção de que os fundos europeus para o cinema «nem sempre foram aproveitados», p. 104).
7 O capítulo seguinte prossegue no mesmo registo, repetindo muito do que foi dito, agora a propósito do género documentário, que o autor insiste ser uma «fonte de conhecimento e informação» (pp. 107, 119). Na última parte, a subsecção intitulada «documentários industriais», é finalmente definido o âmbito da investigação, nomeadamente: os documentários industriais do período sonoro (entre 1933 e 1985) com uma duração de 6 a 20 minutos, incluindo filmes sobre artesanato, mas excluindo filmes sobre o contexto colonial, tendo sido identificados um total de trezentos e dez filmes (pp. 120-121). Munindo-se de elementos predominantemente quantitativos, Martins discute os anos de maior produção de filmes industriais, as empresas cinematográficas e os realizadores mais prolíferos, assim como as indústrias mais retratadas (classificadas por atividade económica). A quantidade de informação reunida e disponibilizada impressiona pela positiva. A análise, porém, fica aquém das expectativas, sendo notória a inclinação para se estabelecerem correspondências diretas entre tendências económicas e os filmes produzidos – como quando se conclui que «há uma forte relação entre as empresas mais representadas em determinada década e o género de atividade económica sobre a qual mais se investia nessa altura» (p. 140). Um dos exemplos que o autor dá – a incidência de documentários sobre as indústrias vidreiras e cimenteiras na década de 40, uma época de grandes obras públicas (p. 134) – não convence. Este número corresponde apenas a cinco filmes em dez anos, tendo sido largamente ultrapassado na década de 60. Para além do desenvolvimento económico setorial, haveria que considerar outros fatores, tais como a dinâmica das próprias empresas e desenvolvimentos ao nível do campo cinematográfico.
8 Estes aspetos acabam por emergir nas duas últimas secções que constituem (juntamente com a subsecção que as precede) a parte mais importante e original deste estudo. Com a entrevista a doze realizadores e técnicos e a análise de cinco filmes, o autor acede a um nível de análise que lhe permite, por exemplo, corrigir afirmações generalizantes (p. 179). Entramos no domínio das relações entre cineastas (produtores e realizadores), as entidades estatais e privadas que encomendavam os filmes e os organismos supervisores, e eventualmente controladores, como o SNI. Baseando-se nas entrevistas que realizou (cujo guião nos é fornecido, em anexo), Martins caracteriza os diferentes processos de encomenda, os objetivos das empresas/instituições contratantes, os modos de produção (duração do processo, margem de manobra criativa, seleção da equipa e acesso ao equipamento) e algumas questões de foro laboral (contratação, orçamentos, carreiras profissionais). O último capítulo retoma e, nalguns casos aprofunda, esta caracterização. Com o auxílio de uma grelha de análise (que consta do anexo) e recorrendo pontualmente às entrevistas para ilustrar um ou outro pormenor, o autor discute cinco documentários industriais em relação a cada um dos seguintes parâmetros: recursos estéticos e técnicos mobilizados; contexto; objetivos; significado e impacto causado (p. 188). Este nível de análise consegue colocar em evidência a variedade que caracteriza o documentário industrial (designadamente, no que diz respeito a objetivos, estética, circuitos de distribuição e exibição). Um dos estudos de casos – o documentário Trabalho de um Povo (1959-60), uma encomenda do SNI e da Inspeção Superior do Plano de Fomento que visava a divulgação do II Plano de Fomento Nacional – vem demonstrar a importância de fazer acompanhar as análises de conteúdo dos filmes com outros documentos históricos. Através do material consultado (disponibilizado nos anexos) – que inclui o contrato firmado entre o SNI e o produtor, a correspondência oficial entre os principais intervenientes, o guião anotado por um dos inspetores do Plano de Fomento, e o registo do percurso de exibição do filme – o autor consegue retirar conclusões mais sustentadas e, consequentemente, mais convincentes. A análise comparativa entre o guião do filme e os comentários do responsável pela encomenda revela-se particularmente útil na difícil tarefa que é compreender de que forma fatores como a entidade contratante e os constrangimentos orçamentais interferem na composição final de um filme.
9 O Cinema em Portugal é um estudo de cariz essencialmente informativo que tem o mérito de reunir, pela primeira vez e num único volume, dados sobre o documentário industrial que, para além de escassos, têm estado dispersos e fora do alcance dos investigadores. É de louvar o esforço, inédito no nosso país, de levantamento e inventariação do filme industrial, que faz desta obra uma referência obrigatória para investigações futuras. Porém, a tendência para pormenores irrelevantes, para a repetição (frequentemente sinalizada pelo autor – cf. p. 114, p. 115) e, em menor grau, para a duplicação de dados (o quadro nº 17 é repetido no anexo B.1. – pp. 148 e 250), sugere que o texto teria beneficiado de uma revisão mais atenta. Do ponto de vista analítico, teria sido mais frutífero (para a investigação) e estimulante (para a leitura) um envolvimento mais direto, desde as primeiras páginas, com o tópico de análise. É dececionante verificar que as partes mais importantes do livro – a subsecção sobre o documentário industrial e as duas últimas secções – representam apenas um terço (pp. 120-221) da totalidade das páginas. Do mesmo modo, o nivelamento de diferentes camadas de informação faz com que alguns dos contributos mais valiosos não tenham a força e o destaque que mereciam.
10 Se o livro é forte em conteúdo informativo, é consideravelmente mais fraco em termos teóricos e analíticos. A escolha dos cinco documentários a analisar reflete problemas deste tipo. O corpus de análise, que inclui filmes posteriores a 1957 e anteriores a 1971, deixa de fora grande parte do período em estudo. A justificação do autor – que os autores destes filmes eram vivos à data, podendo ser entrevistados – é pouco convincente, até porque, não obstante o título da penúltima secção, são poucas «as palavras dos próprios autores» a que temos acesso (e quando temos, pouco acrescentam ao que vem sendo dito). Não há dúvida que o critério decisivo foi um critério artístico, e não histórico: todos os filmes foram escolhidos por serem «documentários indicados pelos próprios cineastas e críticos do cinema como os mais representativos de diferentes décadas e de diferentes realizadores» (p. 185). Daí a exclusão do trabalho de Maria Luísa Bívar, a realizadora que mais documentários industriais produziu, mas que Martins não considera um caso paradigmático (p. 149). Daí, também, outros enfoques analíticos: o papel que os documentários industriais desempenharam como terreno de experimentação para os cineastas do «novo cinema»; a importância atribuída (sobretudo na primeira parte) às salas de cinema convencionais, em detrimento de outros públicos e circuitos de exibição (ex. Casas do Povo, cineclubes, escolas, sanatórios, igrejas, as próprias empresas, que Martins, de resto, refere, mas não desenvolve – pp. 89-90, 126, 206); e a sobrevalorização de dois dos muitos usos a que o filme industrial se prestava, nomeadamente, o prestígio e a construção de uma memória coletiva, cujas ramificações e implicações sociais não são suficientemente exploradas.
11 Apesar de proclamar o filme industrial como uma fonte histórica e de acesso à realidade, Martins acaba por abraçar uma visão estetizante do filme industrial, que radica na noção (tendencialmente a-histórica) do cinema como arte. Esta é, aliás, a surpreendente conclusão que o autor retira no final da quarta secção – que «o cinema é uma arte» (p. 183) – uma secção que, pelo contrário, colocara em evidência as densas relações sociais – pessoais e profissionais; materiais e simbólicas; formais e informais – que tornaram possível a produção destes filmes. Contrariando a tendência teórica dos estudos mais recentes sobre o filme industrial, o autor acaba por convergir com perspetivas autorais que tendem a valorizar o documentário industrial pelo seu contributo, sobretudo ao nível formal, para o cânone ficcional, ou a ver em alguns destes filmes os contornos de um novo cânone (em ambos os casos, a grande referência de Martins é, sem dúvida, o «novo cinema» dos anos 50 e 60).
12 Na base destas opções e confusões teóricas está também um entendimento pouco sofisticado da relação entre cinema e história, arte e realidade – um tema complexo que tem feito correr rios de tinta. A defesa do valor histórico dos filmes não é nenhuma novidade (esteve, por exemplo, na base da formação de instituições como as cinematecas e os arquivos de imagem), e é relativamente consensual. Mais difícil é aferir como é que este valor histórico se manifesta nos filmes: leituras simplistas, que procuram estabelecer correspondências diretas ou relações de causa-efeito entre os filmes e a realidade/ história, têm hoje pouca credibilidade. No entanto, Martins facilmente resvala para este tipo de leitura, por exemplo, quando pretende ver nos filmes analisados reflexos das políticas económicas vigentes (p. 192) ou, de forma mais geral, retratos de uma época. Não podemos esquecer que, para além de submetidos a uma ordem ficcional e narrativa (como qualquer filme), os documentários industriais são moldados por fins, se não abertamente publicitários, pelo menos manifestamente promocionais (daí o descrédito a que gerações de historiadores os tinham votado). Uma das formas mais interessantes de contornar este problema é através da atenção ao que não é incluído – as ausências e lacunas do filme, que Martins, a dada altura, também refere (p. 221), mas às quais não dá a devida importância nas suas análises.
13 Por fim, ao fazer coincidir «realidade» e «passado» (incorrendo num certo essencialismo), Martins tende para uma conceção do documentário industrial como um «lugar de memória» (p. 30). O que o documentário industrial foi, na sua época, confunde-se com o que o documentário industrial é, na nossa – segundo o autor, um garante de acesso, a cada visionamento, a um passado que ficou preservado em filme (p. 19). De um ponto de vista teórico, teria sido útil separar estes dois momentos de receção, a fim de preservar uma das características mais importantes do filme industrial: o seu profundo enraizamento no «presente». Como vários autores têm vindo a demonstrar (veja-se o trabalho de Vinzenz Hediger, Patrick Vonderau e Thomas Elsaesser), os filmes industriais foram produzidos para responder a necessidades específicas e imediatas, encontrando-se presos a determinada ocasião, objetivo e destinatário – a tríade Auftrag–Anlass–Addressat1, que se sobrepõe ao autor, e que cabe ao investigador recuperar, identificar e teorizar. O Cinema em Portugal toca em muitos destes aspetos (o livro de Hediger e Vonderau é citado), mas não de forma aprofundada, sistemática e teoricamente consequente.
14 A questão do que estes filmes representam hoje, para nós, fica igualmente por equacionar. Martins concentra os seus esforços numa discussão relativamente longa (pp. 22- 30) sobre o cinema e a memória coletiva (estranhamente explicada à luz da memória individual), deixando de fora um problema, a meu ver, mais interessante: como compreender que, numa época como a nossa, descrita como pós-industrial, o filme industrial venha a despertar a atenção de críticos e espectadores? Ou seja, como compreender que, no contexto atual de pós-industrialização, a memória coletiva se venha a congregar em torno de uma memória industrial? Ao lançar as bases para a cartografia do que tem sido, até agora, um vasto «território não cartografado»2, não há dúvida de que o livro de Paulo Miguel Martins representa um bom ponto de partida para a resolução destas e de outras questões, sendo a sua leitura, também por esta razão, de recomendar
Notas
1 O termo é de Thomas Elsaesser, em ‘Archives and Archeologies: The Place of Non-Fiction Film in Cont (…)
2 A expressão é de Vinzenz Hediger e Patrick Vonderau, na introdução a Films that Work, p. 10.
Sofia Sampaio – Investigadora de pós doutoramento do CRIA, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. Pesquisa sobre a indústria cultural, o cinema, com enfoque nas questões do turismo. E-mail: psrss@iscte.pt