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Impérios e imperialismos / Tempo / 2005
O termo “império”, derivado do latim imperium, é muito antigo. Em suas origens romanas, designava um poder pessoal de escopo extremamente vasto, civil e militar, de embasamento religioso mas que a cada vez exigia uma lei do povo romano (lex curiata de imperio); tal poder passou dos reis de Roma aos magistrados republicanos que lhes sucederam. Ainda sob a República, apareceu também a designação imperator, aplicável a um general aclamado por suas tropas (como magistrado dotado de um comando militar, tratava-se de alguém investido do imperium). No final da República e ao longo dos dois primeiros séculos imperiais, isto é, entre o século I a.C. e o século II d.C., já se nota, em função em primeiro lugar da emergência do poder e dos exércitos privados na época das guerras civis que deram cabo da República, uma evolução semântica de ambos os termos: de diversos modos (por exemplo ao se falar, sob o imperador Augusto, de termini imperii para designar as fronteiras do mundo romano), imperium, sem perder sua denotação republicana, passou a designar também o território dominado por Roma, marcado por uma hierarquização do espaço derivada da conquista, com a Itália no centro. Concomitantemente, imperator adquiriu contornos mais próximos ao que hoje entendemos por imperador, ou seja, o governante à frente de um império.
“Império” como atributo de uma pessoa aparece, em nosso dossiê, longo tempo após a queda do Império Romano ocidental e numa conotação já marcada por elaborações medievais, no artigo de Eduardo Romero de Oliveira voltado para Portugal e o Brasil no período 1772-1824. A noção de um “império civil” como poder do rei de Portugal, detentor do direito absoluto de moderar e dirigir as ações de todos os elementos a ele submetidos de um modo favorável à utilidade comum dos cidadãos (idéia que remete ao jusnaturalismo), aplicava-se ao monarca nas discussões da segunda metade do século XVIII – o que não impedia que “Império Português” também designasse um território unitário mas hierarquizado: nas palavras de Oliveira, “um sistema político-administrativo que reunia todos os domínios ultramarinos ( como províncias detentoras de iguais privilégios – e o reino de Portugal, caracterizado como ‘entreposto comercial’ e ‘centro político da unidade do império’ “.
“Imperialismo”, em comparação com “império” e “imperador”, é termo muito mais recente no tocante ao seu aparecimento no vocabulário das línguas modernas. Num primeiro momento, a palavra, de cunho descritivo, é criada no século XIX, expressando sobretudo uma política ativa de conquista e subordinação de territórios por parte da Inglaterra e da França, avanço imperial impulsionado pela expansão do capitalismo nesses países e apoiado pela suposição de uma missão civilizadora que deveriam cumprir. O termo teria sua primeira incidência em 1832 numa acepção diferente, como a doutrina dos partidários do regime imperial. Sua incorporação oficial à língua francesa dataria aproximadamente de 1880. Em português, sua primeira citação dicionarizada dataria de 1874.
Note-se que, uma vez surgidos e firmados em suas formas de uso mais habituais, todos estes termos passaram a aplicar-se, indiscriminadamente, a períodos e processos históricos muito variados. É assim que se fala, por exemplo, do Império de Alexandre, o Grande, que antecedeu a expansão do Império Romano, e também do Império Egípcio sob o Reino Novo (séculos XVI-XII a.C.), de diversos impérios mesopotâmicos, etc. – além, claro está, de numerosos impérios posteriores ao de Roma (Impérios Mongol, Otomano, Russo, Britânico, etc.). A palavra imperialismo, por sua vez, passou a utilizar-se em forma corrente para designar quaisquer processos de dominação de uma entidade política sobre outras. Embora isto desagradasse aos marxistas mais ortodoxos – havendo sempre quem invariavelmente censurasse o uso de “imperialismo” exceto para designar, na linha de Lênin, a etapa superior e última do capitalismo (financeiro) –, no início da década de 1960 lia-se, por exemplo, um “Que sais-je?” cuja primeira versão fora publicada em 1949, Les impérialismes antiques, de Jean-Rémy Palanque, para quem o imperialismo (termo que, segundo ele, possui uma nuance pejorativa) ocorre cada vez que “um Estado procure absorver outros em si mesmo, ou estender-se sobre territórios desorganizados” (p. 7) – noção descritiva que contém um preconceito favorável aos assim chamados “povos civilizados”, já que, ao falar de “territórios desorganizados”, Palanque se referia, não a territórios vazios de população mas, sim, a territórios politicamente ordenados em tribos ou chefias (no sentido do termo chiefdoms do vocabulário antropológico de língua inglesa), entidades não estatais que nada têm, entretanto, de “desorganizadas”.
Note-se que a coisa não se limitou à difusão de vocábulos como os mencionados: império, imperialismo. Como, no dizer de Adam Schaff, “a História se reescreve sem cessar” a partir de um presente mutável, houve também intercâmbios de interpretações e de enfoques teóricos entre estudiosos de casos e períodos muito diversos entre si. Quando, por exemplo, o historiador Moses I. Finley mostra que o imperialismo ateniense do século V a.C. favorecia de diversos modos os elementos mais pobres da pólis de Atenas e, portanto, imperialismo e democracia tinham, naquele caso, estreitos vínculos, é duvidoso que chegasse a uma tal visão em total independência da afirmação de Lênin sobre o papel do imperialismo europeu do final do século XIX e início do século XX no “apaziguamento” dos setores populares metropolitanos, ou no estímulo ao oportunismo em setores operários dos países centrais que se beneficiavam com os frutos da expansão imperialista, ou das considerações de Rosa Luxemburgo acerca da tensa relação entre as fronteiras internas e externas, exemplificada com a imposição pelo império ateniense da forma democrática às cidades subjugadas, o que garantia, não o favorecimento dos pobres dessas cidades mas, sim, um melhor controle por Atenas e, portanto, os interesses especificamente atenienses.
Outro exemplo de intercâmbios assim, nós o temos em texto de nosso dossiê: o artigo que Norma Musco Mendes, Regina Maria da Cunha Bustamante e Jorge Davidson consagram à experiência imperialista romana vista em suas teorias e práticas. O artigo em questão assume crítica recentemente oposta ao eurocentrismo da tradição historiográfica predominante até meados do século XX, a qual, sob o influxo do imperialismo contemporâneo, tinha uma concepção unilateral da romanização como aculturação imposta às províncias, nas quais as populações indígenas, culturalmente inferiores aos romanos (pelo menos na parte ocidental do Império), simplesmente se deixaram ganhar por uma cultura superior. Tal crítica foi desenvolvida por uma corrente chamada “teoria pós-colonial” dos estudos da romanização, que proclamou sua dívida para com o pensamento crítico surgido em áreas do Terceiro Mundo na fase da descolonização, ou posteriormente a esta. No novo modo de ver, a romanização foi avenida de mão dupla, uma relação entre os padrões culturais romanos e a diversidade cultural provincial, numa dinâmica de negociação bidirecional.
Num instigante escrito sobre o Grupo de Historiadores do Partido Comunista Britânico (Eric Hobsbawm, E. P. Thompson e tantos outros), inserido em coletânea sua de 1987, Gertrude Himmelfarb, inteligente historiadora liberal estadunidense, critica tais historiadores, incluindo na crítica aqueles que deixaram o partido, seja logo após a crise húngara – que pôs fim ao auge (1946-1956) desse corpo de especialistas como algo dotado de coesão formal, um “Coletivo” (Collective) no seio daquela organização partidária –, seja posteriormente, pelo fato de terem demorado muito, em seus escritos e em especial na revista Past and Present (fundada em 1952), a abordar o stalinismo como tema (na revista, isto aconteceu pela primeira vez só em 1979) e evitado escrever explicitamente e em detalhe sobre sua experiência partidária, a União Soviética e sua própria trajetória como historiadores marxistas.
A autora contrasta tal atitude com a de “eminentes historiadores franceses” que enfrentaram, “séria e honestamente”, tanto suas experiências prévias no Partido Comunista quanto as implicações da História marxista. Entre os “eminentes historiadores” em questão, ela cita François Furet – isto é, um intelectual que renegou todo o seu passado não somente de membro do Partido Comunista Francês como também de marxista e, mais em geral, de homem de esquerda; e que, no contexto da comemoração do bicentenário da Revolução Francesa, em 1989, bem como nos anos seguintes, dedicou-se a “desconstruir” a própria noção de ter ocorrido uma revolução burguesa na França, ou mesmo a possibilidade efetiva de revoluções sociais de qualquer tipo, tornando-se notoriamente, com Pierre Nora, François Rosanvallon e Marc Augé, um dos líderes do neoconservadorismo em sua vertente francesa, mediante a proposta de uma teoria do “consenso” francês em torno da necessidade da economia de mercado para a democracia.
Não há, de fato (e ainda bem!), semelhança entre as trajetórias dos ex-membros do “Grupo” e intelectuais como estes – o que deve ser dito em louvor dos primeiros. Deveras lamentáveis teriam sido, acreditamos, outras coisas: ver os ex-membros do Grupo convertidos à defesa da “liberdade” e da “democracia” em forma abstrata e coerente com a tradição filosófica do individualismo burguês, à maneira de Hannah Arendt, que com tanta freqüência gostava de refugiar-se na pólis grega como forma de não se ver obrigada a enfrentar problemas socioeconômicos contemporâneos incômodos; ou, talvez, aderindo a “alternativas” que não o são, como por exemplo aquela, paramarxista, da “teoria da ação comunicativa” de Jürgen Habermas.
Continuam existindo, felizmente, historiadores que, como Pierre Vilar, recentemente falecido, não aderiram, nem ao pós-modernismo, nem ao neoconservadorismo, menos ainda à noção proclamada por Margaret Thatcher de que “não há alternativa” ao neoliberalismo: autores que persistem na opinião de que a oposição, no sistema capitalista, entre os interesses do capital e os interesses do trabalho, na situação atual, continua a ser o grande drama de nosso mundo. Pensadores, portanto, que não aceitam o veto do “pensamento único” neoconservador a conceitos como o de imperialismo – em alguma das suas versões marxistas ou, mais em geral, de esquerda – ou o de exploração, nem falam de uma “ideologização do debate” (numa oposição, curiosamente anacrônica diante das discussões da segunda metade do século XX, entre ideologia e… verdade, ciência, objetividade?!) cada vez que um tema assim surja num ambiente acadêmico.
Esta posição, consistente e coerente, bem como uma ilustração de como se apresentam, hoje em dia, em dois de seus melhores especialistas de longa tradição acadêmica, os debates de esquerda (os neoconservadores de plantão, utilizando um dos chavões que usam quando procuram evacuar o debate politizado, diriam “de extrema esquerda”) em torno do tema do imperialismo, estão representadas em nosso dossiê pelos magníficos panoramas da História do Tempo Presente, ou História Imediata, elaborados por Pablo González Casanova, ex-reitor da Universidade Nacional Autônoma do México, e Samir Amin, tendo como fulcro o conceito de imperialismo. Em textos preparados para exposição oral, cada um deles aborda, com a largueza de vistas e o espírito de síntese facultados por décadas de intimidade com o tema, a quantas anda o imperialismo estes tempos de radical internacionalização do capital. Fazem-no numa perspectiva altamente politizada – como já notara Jean-Rémy Palanque em 1949, “imperialismo” é noção disfórica, de forte conotação pejorativa –, com grande veemência e incontestável autoridade intelectual.
Ciro Flamarion Cardoso – Professor titular do Departamento de História da UFF.
Virgínia Fontes – Professora do Programa de Pós-Graduação em História da UFF.
CARDOSO, Ciro Flamarion; FONTES, Virgínia. Apresentação. Tempo. Niterói, v.9, n.18, jan. / jun., 2005. Acessar publicação original [DR]