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Oralidade, Escrita e Poder no Império Romano / Politeia: História e Sociedade / 2016
O que espero, não é um discurso em forma, quer dizer,
defensivo e fechado em si mesmo, um discurso que procure
antes de mais esconjurar a crítica, mas uma apresentação
simples e modesta do trabalho realizado, das dificuldades
encontradas, dos problemas etc.
Bourdieu
Bourdieu, em 1987, na contramão da ordem estabelecida para a produção científica, afirmou que a apresentação dos resultados de uma pesquisa não deveria ser um show, mas um encontro de estudiosos dispostos ao diálogo. O temor e a ansiedade, neste sentido, tomam parte desse encontro. O que não significa elevar muros para evitar a crítica, pelo contrário, é preciso sair do conforto do pensamento conformado para produzir o novo. O dossiê, “Oralidade, escrita e poder no Império Romano”, balizado por esta perspectiva, apresenta algumas reflexões a fim de contribuir com o debate sobre o tema.
Sob a influência da Nova História Cultural, há uma produção historiográfica que privilegia a cultura escrita como objeto de estudo, em especial, os processos de recepção, apropriação e ressignificação. Entre os marxistas, principalmente os gramscianos, predominam as análises sobre a escrita e os modos de comunicação como instrumentos de controle social ou de hegemonia das classes dominantes. Dessas correntes surgiram variadas formulações teóricas para pensar a relação entre linguagem e poder, tal como se expressa nas abordagens aqui apresentadas.
O dossiê começa com o artigo de Ana Teresa Marques Gonçalves e Thiago Eustáquio Araújo Mota, “De Enéias indiges a Augusto divinizado: as temporalidades narrativas do épico e as predições do Fatum na Eneida de Virgílio”. A autora e o autor elaboram uma análise acurada da fonte, a partir de bibliografia especializada, para discutir como a produção escrita, durante o Principado, cumpriu importante papel na construção da legitimidade divina e ancestral dos governantes oriundos da Domus Iulia.
O artigo coloca em evidência o repertório de textos escritos que repercutiram, no Principado, a imagem do “divino ancestral Eneias” e sua vinculação com a casa de Otávio Augusto. Além de destacar autores e poetas como Tito Lívio, Dionísio de Halicarnasso e Ovídio, oferece uma boa reflexão sobre o registro da lenda troiana no Fórum de Augusto, na Ara Pacis e no Edifício de Eumachia.
Para analisar a Eneida, a autora e o autor discutem o sentido da divinização / consecratio no sistema religioso e político romano, bem como as temporalidades da narrativa, o fatum e o enlace entre o mito troiano e a história de Roma. Fica demonstrado que a consecratio beneficiava o Imperador vivo e buscava legitimidade na memória do morto; que a apoteose era culturalmente aceita entre cristãos e pagãos; que a divinização de Eneias, como ancestral de Otávio Augusto, contribuiu para a legitimação de um novo tipo de poder em Roma, o poder exercido pelo Princeps, além de servir como parâmetro para o culto aos “imperadores póstumos”. Tanto o epíteto indiges quanto o sentido da palavra herói, utilizados para caracterizar Enéias na obra de Virgílio, também ocupam espaço no artigo. A tradição clássica é retomada para explicar por que o Poeta empregou tais termos e preferiu indiges ao pius.
Enfim, é interessante notar como os mitos, preservadas por meio da oralidade, deram origem a textos escritos, elaborados dentro do rigor estético dos variados gêneros. O destino de Eneias e sua vinculação com a gens Iulia foi “objeto de grande investimento durante o principado,” e, sem dúvida, revela o uso da escrita e da oralidade em prol de um discurso político legitimador da domus Iulia.
No segundo artigo, “Josefo revisitado: interpretações historiográficas da obra de Flávio Josefo”, Alex Degan se propõe a realizar uma tarefa hercúlea e o faz com rigor, discutindo as interpretações contemporâneas da obra do historiador e as diversas leituras que dessas resultaram. O artigo está organizado de forma articulada em duas partes: os debates em torno de Flávio Josefo, enquanto historiador e fonte, e seu lugar dentro da tradição literária greco-romana e judaica.
Na primeira parte, Degan trata de evidenciar como as controvérsias religiosas e políticas contemporâneas influenciaram os estudos sobre Josefo. Das interpretações é possível verificar três linhas de análise: uma que considera a fonte importante, mas problemática em função das implicações políticas e ideológicas do historiador com a elite de Jerusalém e com os Flávios; outra que o desqualifica como fonte e historiador; uma mais atual, desenvolvida na virada do século XX, refletida na publicação dos trabalhos de Henry St. John Thackeray. Esta busca superar os juízos morais sobre Flávio Josefo e analisar as circunstâncias dos seus escritos.
Degan também chama a atenção para a composição da obra de Josefo e do seu contexto na região da Palestina, além de destacar os compromissos políticos do autor. Já na segunda parte do artigo, algumas questões são problematizadas, como as contribuições das obras de Josefo para a produção literária da segunda metade do século I d. C., seu diálogo com a tradição literária grecoromana e judaica e o público que pretendeu alcançar.
O nome híbrido, Flavius Josephus, é lembrado como expressão da natureza da sua obra, que “equilibra, mistura e reconcilia tradições.” Há ainda o cuidado em pontuar as singularidades dos escritos, sem perder de vista sua inserção numa tradição que inclui Fílon de Alexandria, a versão dos LXX, Políbio e Tucídides. Neste sentido, Degan afirma que Josefo preservou elementos gregos e judaicos, mas produziu uma obra original, pois inovou com a ação da providência divina e a noção de povo eleito em suas histórias. Fica posto que os escritos de Josefo foram marcados pelas relações que ele estabeleceu com o poder, tanto quanto as interpretações de sua obra foram influenciadas pelos conflitos ideológicos contemporâneos.
O terceiro artigo, “As relações entre escrita e oralidade na obra de Apuleio de Madaura”, de Sônia Regina Rebel de Araújo, desloca o debate da Palestina para a Província da África, revelando um Império Romano dilatado e culturalmente diverso. A autora analisa duas obras de Apuleio – Apologia e O Asno de Ouro – para demonstrar a importância da erudição oriunda dos livros e a articulação entre o oral e o escrito na África pertencente ao Império, no século II d.C. Seus estudos estão estruturados a partir do arcabouço teórico da literatura comparada e História.
Apuleio é apresentado como um homem erudito, nascido na cidade de Madaura, província da África, que estudou retórica em Cartago, escreveu diversas obras e respondeu um processo criminal em 159 d.C. Ele foi acusado de praticar magia para seduzir uma viúva rica e de envenenar seu filho. Este fato é narrado em Apologia, obra que reproduz o discurso de autodefesa de Apuleio, pronunciado no tribunal de Sabratha diante o procônsul da África, Cláudio Máximo.
Ao analisar a Apologia, Araújo evidencia que Apuleio usou duas estratégias para se defender, articulando o oral e o escrito. Primeiro, buscou distanciar-se dos seus detratores, qualificando-os como bárbaro, apresentando-se como um filósofo culto e lendo cartas e livros em voz alta no tribunal. Segundo, recorreu ao seu repertório de erudição para demonstrar que era da mesma estirpe intelectual do magistrado romano que o julgava, Claudio Máximo.
Já no estudo sobre o Asno de Ouro, Araújo restringe sua análise ao livro XI do romance e discute “a função da narrativa sobre o culto de Ísis e a longa iniciação de Lúcio [personagem central] neste culto e a seguir no de Osíris.” Ao fazê-lo, privilegia temas como cidadania e escravidão, religio e superstitio, cultos estrangeiros e magia. A autora reflete sobre a importância da erudição em Apuleio e como o romance denota uma posição ideológica sobre a condição do escravo, a magia e os cultos oficiais no Império Romano.
O artigo que encerra o dossiê, “A escrita, a oralidade e a construção do poder eclesiástico no Orbis Romanorum”, coloca em discussão a habilidade do episcopado em apropriar-se, de forma sui generis, da tradição literária pagã e criar formas de comunicação oral para construir a hegemonia da Igreja cristã na Antiguidade tardia. O corpus da pesquisa é constituído por um conjunto de discursos produzidos por bispos influentes de distintas regiões do Império e é analisado a partir do referencial teórico de Pierre Bourdieu.
A análise da documentação rompe com cânones há muito estabelecidos, pois torna evidente que a unidade da Igreja cristã primitiva é um mito elaborado no âmbito da religião, que a definição de uma ortodoxia produziu campos de disputa e que um Império dividido entre cristãos e pagãos é mais uma projeção das contendas modernas do que uma realidade dos séculos IV e V d.C. Contudo, a elite intelectual da Igreja, formada por seus bispos mais eruditos, recorreu a estratégias variadas para formular e divulgar a doutrina, fixar uma identidade para o “fiel” e criar um sistema de interpretação do mundo legítimo e dominante.
O artigo, organizado em três partes, aborda a tradicional educação romana, a ação do episcopado e o uso que este grupo fez da erudição pagã em benefício da “nova fé”. Fica posto que as formas literárias tradicionais foram adaptadas para acomodar o conteúdo cristão e que os bispos criaram recursos para apresentar os interesses particulares da Igreja como universais e comuns aos diversos grupos sociais no Império Romano, convertendo complexas formulações doutrinárias escritas em expressões orais acessíveis, como os hinos e homilias.
O artigo ainda destaca o trabalho de alguns bispos na afirmação do poder eclesiástico e na formulação de uma imagem singular do cristão, por meio de sermões, epistolas oficiais e textos exegéticos. A crônica de Eusébio de Cesareia, o episódio envolvendo Ambrósio de Milão e Teodósio, além da publicação da lei escolar – promulgada por Juliano e censurada por Gregório Nazianzeno – são excelentes expressões do quanto o episcopado soube utilizar a cultura letrada em prol da Igreja universal.
Por fim, os artigos aqui apresentados são resultado de pesquisas desenvolvidas até o ano de 2013 e, sem dúvida, desde então muito se produziu. Contudo, optamos por manter o dossiê tal como escrito à época por considerar que os textos disponibilizados são parte dos primeiros estudos realizados no Brasil sobre escrita e oralidade no Império Romano.
Marcia Santos Lemos– Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) E-mail: marcialemos.uesb@gmail.com
LEMOS, Marcia Santos. Apresentação. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v.16, n. 1, 2016. Acessar publicação original [DR]