Aspectos do Império Português no Brasil / Revista Mosaico / 2014

A proposta do dossiê Aspectos do Império Português no Brasil tem como objetivo estimular o aprofundamento das reflexões no campo da história e da historiografia sobre o Império português no Atlântico Sul, através da compreensão a respeito da experiência colonial ocorrida especialmente na América Portuguesa, entre os séculos XVI e XIX.

Nas últimas duas décadas a historiografia sobre os impérios coloniais europeus tem passado por importantes reflexões e releituras, fruto do trabalho de estudiosos e pesquisadores que atuam nos mais variados centros de pesquisa e universidades situados na Europa, África, Ásia e Américas. A partir de então, o estudo sobre a expansão dos Impérios ibéricos e, sobretudo, os entrelaçamentos deste fenômeno com as transformações das sociedades no Novo Mundo sofreu o impacto promovido pelas recentes interpretações historiográficas, recolocando a temática dos impérios coloniais e, particularmente, do Império português, a partir de novas e variadas perspectivas. Assim, a compreensão renovada das formas de avaliar os diversos aspectos das colonizações modernas na América e na África portuguesas ocupa, atualmente, uma posição central na agenda dos estudiosos sobre o assunto.

No caso específico do Brasil, durante o chamado período colonial (que se estende, grosso modo, entre os séculos dezesseis e dezenove), trata-se de decifrar a história da expansão do Império português na América, em suas mais variadas vertentes, cuja consequência foi a constituição de um mundo novo, embalado por relações sociais complexas que definem as diversificadas estratégias pelos quais se assentaram os elementos fundamentais que marcaram os avanços da sociedade europeia ocidental moderna no interior dos sertões do continente americano.

Visando contribuir diretamente com este debate, cujos pressupostos têm estimulado a compreensão sobre a realidade do mundo moderno e contemporâneo, é que, por iniciativa dos editores a Revista Mosaico, colocamos o presente dossiê à disposição do público interessado no assunto.

O conjunto dos textos apresentados oferece a possibilidade de reflexões transversais que conectam aspectos distintos da história do Império português no Brasil. No primeiro artigo do dossiê Um lugar fora do mapa: a Colônia do Sacramento, Paulo Possamai reavalia a importância do papel e do lugar da Colônia do Sacramento no processo de colonização da região platina no contexto da América portuguesa, ultrapassando e problematizando as fronteiras de uma interpretação da história do Brasil fundamentada essencialmente na perspectiva dos Estados nacionais.

No segundo artigo, Culto Mariano no nordeste de Minas: uma herança do Império português nas representações dos romeiros da festa de Nossa Senhora da Abadia do Andrequicé, Maria Célia da Silva Gonçalves e Margareth Vetis Zaganelli tratam da perpetuação da identidade do homem do sertão através da expressão de sua religiosidade no nordeste de Minas Gerais, durante o século XIX. Através do estudo das representações associadas aos milagres atribuídos à Nossa Senhora da Abadia no vilarejo Andrequicé, festeiros e fiéis são percebidos como os guardiões da memória e da história local.

O terceiro texto, Deserções e privilégios: a guerra ao sul da América, retoma o ponto de partida geográfico do primeiro, para tratar de outro assunto: diante das novas diretrizes de organização e defesa militar inauguradas na segunda metade do século XVIII, Christiane Figueiredo estuda as resistências ao recrutamento militar no Brasil, durante as guerras que tiveram lugar no sul do continente americano. Ao fazê-lo, põe em evidência não apenas os limites dos poderes da Coroa portuguesa nos espaços coloniais, como também as estratégias adotadas pelos atores da sociedade colonial assentada, em sua escala local, em modelos de organização corporativos.

Mas a compreensão do Império português no Brasil passa pela percepção de suas dimensões oceânicas, cujos entrelaçamentos sociais e culturais transcendem o quadro de uma história interpretada tão somente a partir de suas fronteiras e limites territoriais. Assim, a importância do continente africano ilumina as reflexões do quarto artigo do dossiê. Em Jogo de reis: política internacional do Reino do Congo no Atlântico entre os séculos XVI e XVII, Frederico Ferreira apresenta a trajetória de contatos diplomáticos envolvendo embaixadores do Reino do Congo com portugueses, holandeses, espanhóis e representantes da Igreja Católica, revelando a necessidade de se estudar as interconexões entre os povos do Atlântico, ampliando o horizonte de debates ligados às histórias nacionais e / ou regionais.

No artigo seguinte, Bandeiras, mitos e história nos sertões da América portuguesa, José Roberto Bonome e Fernando Lemes, retomam o movimento dos bandeirantes paulistas associando-o ao processo de expansão econômica e às lutas ligadas ao imaginário, no interior de um universo cultural permeado por mitos indígenas, que envolvia, ao mesmo tempo, disputas políticas e ideológicas e a expectativa de enriquecimento rápido, num mundo de enfrentamento e aventura nos sertões desconhecidos da América portuguesa.

Em seguida, a importância da cidade colonial é destacada no estudo de Avanete Pereira Sousa em Trânsitos mercantis de uma cidade capital (Salvador, séc. XVIII). Importante núcleo urbano na Bahia do século XVIII e espaço privilegiado no processo de organização política, administrativa e econômica da América portuguesa, Salvador constitui-se em importante centro de convergência e articulação regional, mesmo após a perda da condição de capital da colônia, em 1763, com a ascensão do Rio de Janeiro. Neste aspecto, o texto ressalta a centralidade de Salvador ao dominar uma extensa rede de transações mercantis, demonstrando que a conectividade da cidade com os diferentes espaços se dá essencialmente através do campo econômico.

No último texto do dossiê, A “Vida da Madre Jacinta de São José”: uma reflexão em torno dos modelos hagiográficos, William de Souza Martins analisa o manuscrito «Vida da Madre Jacinta de São José» onde o frade carmelita João dos Santos registra as atividades de Jacinta Rodrigues Aires, nome de batismo de uma importante beata que viveu no Rio de Janeiro no século XVIII. Além de comparar relatos distintos sobre as atividades de Jacinta, o autor discute elementos ligados às narrativas de esquemas hagiográficos que ocupavam papel de peso nos escritos de vida de Jacinta e de outras mulheres que viviam nas regiões coloniais ou na Europa durante o século XVIII.

Os artigos livres que acompanham o dossiê tratam de temas distintos, mas igualmente interessantes. No primeiro deles, Quilombos brasileiros: alguns aspectos da trajetória dos negros no Brasil, Giselda Shirley da Silva e Vandeir José da Silva propõem pensar sobre as comunidades remanescentes de quilombos na contemporaneidade buscando entender historicamente a questão dos quilombos no Brasil e a sua reconfiguração a partir da Constituição de 1988. No artigo seguinte, Lila Spadoni e Ludimila Machado Jorge, no artigo Efeitos da estruturação da memória coletiva sobre a implicação pessoal: responsabilização por crimes cometidos no período da ditadura militar, procuram demonstrar, a partir de um estudo experimental, a influencia da estruturação da memória sobre a implicação pessoal relativa a acontecimentos contemporâneos na história do Brasil, como, no caso em questão, o periódo da ditadura militar. A análise dos resultados põe em cheque a suposta imunidade brasileira às tentações totalitárias ou sobre o preparo das gerações atuais para defender a democracia. Finalmente, Cláudia Glênia de Freitas, no último artigo da série, Uma abordagem teórica sobre a globalização e o Estado Nação, comenta aspectos teóricos sobre o processo de globalização, com ênfase nos aspectos jurídicos e sociais, indicando os modos através dos quais esse paradigma globalizador vem sendo incorporado pelo Estado Nação que, por sua vez, encontra-se, atualmente, em progressivo declínio.

Esperamos que os textos apresentados neste dossiê possam alargar a reflexão e o debate nos campos da história e da historiografia do Brasil e do Império português no Atlântico Sul. Desejamos a todos uma boa leitura!

Fernando Lobo Lemes – Professor Doutor. Universidade Estadual de Goiás – UEG

Christiane Figueiredo Pagano de Mello – Professora Doutora. Universidade Federal de Ouro Preto | UFOP Editores deste número


LEMES, Fernando Lobo; MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.7, n.2, jul. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

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