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Political Thought in Portugal and Its Empire/ c. 1500-1800 | Pedro Cardim e Nuno Gonçalo Monteiro
Pedro Cardim e Nuno Gonçalo Monteiro | Imagens: Goodreads Goodreads
1A publicação deste livro é, sem dúvida, um acontecimento editorial que merece ser assinalado. Trata-se de uma seleção criteriosa de textos fundadores do pensamento político em Portugal na era moderna (c. 1500-1800), precedida de uma cuidada e esclarecedora introdução de enquadramento interpretativo que também serve para justificar a razão e a oportunidade da sua tradução e publicação em língua inglesa. A introdução e organização editorial do livro são de autoria de Pedro Cardim e Nuno Gonçalo Monteiro que, deste modo, acrescentam às suas importantes contribuições de análise histórica do período em apreço um relevante serviço de divulgação de fontes primárias que apenas têm estado acessíveis, na sua quase generalidade, a leitores de língua portuguesa. A tradução e edição crítica de tais textos fundadores possibilita, a um público internacional alargado, o conhecimento de alguns dos principais protagonistas do debate político em Portugal nos séculos XVI a XVIII, da sua articulação ou diálogo (implícito ou explícito) com autores de referência no quadro europeu e da especificidade dos problemas de ordem institucional, social e política que emergem no contexto da monarquia portuguesa e do seu espaço imperial.
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The First World Empire: Portugal/ War and Military Revolution | Heler Carvalhal, André Murteira e Roger Lee de Jesus
Croquis do sítio e ordem de batalha de Alcântara diante de Lisboa, por mar e terra. Detalhe de capa de “The First World Empire: Portugal, War and Military Revolution” | Imagem: Wikipedia
Contra o vento. Portugal, o império e a maré anticolonial (1945-1960) – VALENTIM (LH)
VALENTIM, Alexandre. Contra o vento. Portugal, o império e a maré anticolonial (1945-1960). Lisboa: Círculo de Leitores, 2017, 840 pp. Resenha de: NASCIMENTO, Augusto. Ler História, v.73, p. 257-261, 2018.
1 Contra o vento, um de três livros sobre “um tempo mais longo” do império português, foca a resistência do governo de Salazar à descolonização entre 1945 e 1960. De uma perspectiva comparativa e global, esta excelente narrativa histórica do mundo em tempos de descolonização equaciona os condicionalismos dos múltiplos actores, desde as entidades internacionais aos colonizados, passando por Salazar, cujos processos decisórios escrutina minuciosamente, conquanto o livro não se debruce sobre Salazar e a sua política. Um dos condicionalismos é o contexto internacional – diga-se, uma variável crucial para o império português desde a sua constituição em oitocentos –, do qual, a par da emergência do bloco afro-asiático, da abdicação das potências coloniais e das disputas na ONU, avulta a política americana, pautada pela inclinação para a autodeterminação dos povos, com maior ou menor convicção consoante as conveniências do combate ao comunismo, que por vezes favoreceram as aspirações nacionalistas.
2 Contra essa determinante, o vento, Salazar, chefe quase incontestado, tentou ganhar tempo para manter a arquitectura política interna. Dos estéreis areópagos institucionais, atentos sobretudo ao lado de onde soprava o vento, brotava a corroboração da palavra do chefe. À luz da rígida subordinação prevalecente nos meandros do regime, percebe-se que, aquando da adopção da ideia de “nação una” contra a mística imperial, começava um debate de ilusões. As personalidades acreditavam ou forçavam-se a acreditar por força do corriqueiro acatamento das intenções do chefe, que passavam pela instrumentalização da ideia de integração nacional que, diz-nos o autor, teve uma função retórica, de justificação de soberania colonial – sobretudo quando esta se encontrava ameaçada do exterior. A mutação terminológica de “colónias” para “províncias ultramarinas” indiciava o intuito de recusar qualquer solução gradualista e prenunciava a resistência à descolonização, aparentemente em consonância com o consenso nacional acerca do património colonial.
3 Ao tempo, avultava a questão de Goa, que levou a que no PCP – cujos militantes não escapavam à crença generalizada na bondade da colonização – se advogasse o direito à autodeterminação já em 1955. Porém, tal posição do PCP era irrelevante para o regime, que a usava como prova de que o anticolonialismo era um manejo comunista contra o ultramar português. Com uma visão anacrónica do mundo, Salazar não se apercebeu da amplitude da retirada do poder colonial na Ásia, forçada pelos movimentos nacionalistas e pela crise das potências europeias. Desprezando os sinais do tempo – a propósito do Padroado, a Santa Sé sapou os fundamentos ideológicos da presença colonial –, Salazar acreditou em vão na fragmentação da Índia e não quis ver a aposta inglesa na interlocução com o Congresso Nacional Indiano. Se o recurso ao Tribunal de Haia constituiu um engulho para União Indiana, já da descrição das conversações secretas se infere uma obstinada cegueira perante as várias possibilidades oferecidas a Goa. Este livro não se queda nos meandros das dilações e mais expedientes diplomáticos na defesa do indefensável, evidentes no caso de Goa. Proporciona-nos uma viagem pelas várias situações coloniais – entre elas, o modus vivendi em Macau e o indirect rule em Timor – de que, ao arrepio do palavreado, se compunha a recém-baptizada “nação una”.
4 Portugal acordaria para o enorme hiato entre a imagem que a “nação construía de si e do seu Império” e as opressões vividas nas colónias por força da ameaça resultante da vaga descolonizadora que, além de rápida, era perturbante por fazer implodir os planos das potências coloniais de controlar o processo de descolonização. Contagiado por esta evolução política, subitamente o ambiente nas colónias de África tornou-se volátil, também devido às debilidades da administração e às sujeições impostas aos colonizados. Os massacres de finais dos anos 50 desmentiriam a vangloriada pax lusitana, aparente porque assente na repressão. A realidade era pouco conforme à harmonia racial ou, de outro modo, à presunção da subordinação natural do negro à tutela portuguesa. Todavia, mesmo se em perda, a sobranceria racista, incomparavelmente mais operante do que as lucubrações em torno do luso-tropicalismo à la carte e do benfazejo paternalismo dos portugueses, induzia ilusões quanto à capacidade de prevenir e conter a insurgência. Por exemplo, advogava-se a repressão dura, “dentro das leis que eles entendem”, de qualquer acto violento ou desrespeitoso para evitar o surgimento de uma “Argéliazinha” corrosiva de recursos e de energias, tal a expressão do optimismo baseado nos presumidos resultados da repressão infrene e selvagem, cinicamente justificada com a selvajaria imputada aos africanos.
5 Por convicção ou cedência aos interesses instalados, o poder colonial manteve até aos anos 50 formas arcaicas de exploração – trabalho forçado e culturas obrigatórias –, evidenciando relutância em subscrever a convenção de 1930 sobre trabalho forçado. Portanto, não estava em causa o “fracasso de uma política de integração”, mas, sim, a “aplicação de uma política que de integradora nada tinha”. Afinal, até nos relatórios de matiz reformista se obliterava a instituição marcante do colonialismo, o indigenato (conquanto possamos supor que a abstenção da menção ao indigenato, revelando muito da rigidez hierárquica do regime, não significasse que a sua abolição não estivesse pensada enquanto consequência das propostas reformistas). Não se aboliu o indigenato nos anos 50, retocando-se apenas os aspectos mais chocantes que poderiam chamar a atenção da opinião pública mundial.
6 Nestes anos, o rumo do colonialismo compôs-se do atrito entre o monolitismo da política colonial e as tentativas reformistas, para Valentim Alexandre, genuínas, mesmo se falhadas. Dada a rigidez do controlo das instituições e a consequente expressão apenas das ideias com cunho oficial, os alvitres reformistas tinham de ser ambíguos e contidos para poderem ser apresentados conquanto depois inexoravelmente rejeitados por afrontarem, minimamente que fosse, interesses instalados. Nada pareceria menos certo do que o idealismo de reformistas, para quem o pressentimento dos perigos levaria os colonos a mudar a posição relativamente aos negros. Como já há décadas Valentim Alexandre chamou a atenção, aos colonos que lidavam com as “realidades” no terreno, os idealismos afiguravam-se risíveis… Como convencer os colonos e os potentados de que, afinal, o interesse nacional era diverso do que vigorara durante décadas a seu benefício? Aventar que só com uma política indígena sã e verdadeira se asseguraria a confiança e a lealdade dos indígenas, base de uma ordem interna estável e sólida, afigurava-se um idealismo sem sentido. Nas colónias, e não só, sabia-se que tal não era verdadeiro. Por exemplo, cria-se que não seria por se pagar melhores salários que se obteria mão-de-obra (a que acrescia o desinteresse na redução do sobrelucro esperado nos empreendimentos coloniais).
7 Maior certeza subjazia à predição de que era mais do que duvidosa a sobrevivência de qualquer governo ao abalo da eventual perda das colónias. Justamente, dada a subordinação de tudo à preservação do seu poder, Salazar pendia para a PIDE e para os que, contrariamente às sugestões reformistas – que, diga-se, não salvariam as colónias –, achavam que a repressão era a chave da resolução de qualquer crise. No equivocado debate sobre a política colonial, truncado no tocante a conteúdos e condicionado porque operando desigualmente entre indivíduos e Salazar, a opção pela repressão foi levando a melhor sobre as reformas, para Valentim Alexandre, duas faces da política tendente a preservar a soberania sobre o império. Ao mesmo tempo que os luso-tropicalistas e reformistas produziam relatórios com sugestões para correcção das injustiças, já operava a disposição de conduzir o país para a guerra.
8 Em suma, contra o vento… ganhar tempo? A tal se resumiu a estratégia do governo de Portugal, cujos interesses foram subordinados aos de Salazar. Contra a aura de “estadista”, a história aqui narrada sugere, para não dizer que confirma, a senda de um ditador norteado pelo desejo de não querer assistir ao fim do seu poder, instrumentalizando tudo e todos, pouco lhe importando os portugueses. Para isso, construiu uma narrativa – composta de denúncias das frágeis verdades da conjuntura e, até, da duplicidade dos aliados de momento, assim como de antevisões etnocêntricas e racistas conquanto parcialmente confirmadas pelas convulsões supervenientes às independências – aparentemente irrebatível, sobretudo, por a ditadura vedar qualquer discurso dissonante. A este respeito, afigura-se sugestivo o facto de Salazar, cônscio da precariedade da soberania em Goa, auscultar o Conselho de Estado sobre (remotíssimas, se não falaciosas) hipóteses de um plebiscito ou de uma entrega institucional – soluções inconstitucionais –, qual forma de “apalpar o terreno” no topo do estado, de onde, presume-se, recolheria opiniões condicionadas não só pelos bordões do regime, mas até pela eventual intuição dos conselheiros de estar à prova a sua fidelidade.
9 Este livro insere breves diálogos com outros autores. Reconhece a António José Telo o mérito de aludir às mudanças nos apoios internacionais em finais da década de 1950, contestando, todavia, a ideia de inversão de alianças, até pela pouca firmeza dos apoios, pontuais e não comprometidos para o futuro. O autor discorda da qualificação, de Bruno Cardoso Reis, de Portugal como um estado pária, incluso na categoria dos estados que se colocavam contra as normas globais. Ora, apesar de isolado, Portugal pertencia à ONU, à NATO, à EFTA e tinha apoio da França e da Alemanha. Mais, as “relações com muitos dos novos países africanos” viriam a ser “mais complexas do que à primeira vista parecem”, uma perspectiva particularmente relevante para quem queira entender os posteriores desenvolvimentos em África.
10 A par destes diálogos, sopesam-se problemáticas, por exemplo, a da equiparação entre nazismo e colonialismo. Para o autor, a equiparação das práticas coloniais às nazis não deve ser levada longe por subsistirem diferenças, desde logo, por o poder colonial ser, não necessariamente mais humano, mas mais cônscio dos limites. Apesar de nem todos terem resultado de desmandos, os massacres coloniais tinham um carácter instrumental, não sendo, por regra, uma solução final ou uma política em si mesma. Ditatorial, o colonialismo português desdobrava-se facilmente na prevalência da arbitrariedade administrativa sobre a lei, factor propício a processos similares aos dos sistemas totalitários. Ainda assim, e mesmo que se desvalorize a ideologia que buscava a legitimação do colonialismo na missão evangelizadora e na integração, atente-se, por exemplo, na debilidade da ocupação administrativa, que limitava os efeitos das práticas discriminatórias e opressivas.
11 Nesta obra assente num vastíssimo leque de fontes, é notável a profundidade com que são retratados actores, situações conjunturais, possibilidades, estratagemas, decisões políticas, episódios e cenários de uma história global. O conhecimento não reproduz a vida, mas este livro quase nos torna testemunhas presenciais dos processos e das vicissitudes dos desempenhos na luta “contra o vento”. Esta narrativa, a que não falta, aqui e além, uma coloquialidade bem-humorada, não é uma história exaltante nem ideologicamente orientada. Pauta-a a atenção à multiplicidade de posições, incluindo a ambiguidade das enunciações para serem interpretadas pelo chefe providencial e tendencialmente absoluto. Traçados os caminhos da concretização dos supostos e reais objectivos da acção colonizadora, o autor arrola, sempre que pertinente, as várias interpretações possíveis. Pela criteriosa selecção das questões e perspectivas, valorizada pela exímia escolha de trechos citados, mormente dos papéis de Salazar, Valentim Alexandre foge ao maniqueísmo, que comummente não inspira senão a mera enunciação do consabido rol de malfeitorias insanáveis do colonialismo.
12 Obviamente, emergirão questões para responder, entre elas, a (eventualmente calada) percepção da parca valia do que se dizia (o que, aduza-se, tanto vale para os colonialistas, como, noutras circunstâncias, para os anti-colonialistas), a que se segue a questão de saber da convicção com que se lutava… “contra o vento”. Escasseiam as dúvidas: uma refere-se ao “regime colonial português tardio”, noção a aclarar pelos historiadores quanto ao período a que respeita e ao que caracteriza. Outra atém-se à grande influência do massacre de Pindjiguiti na evolução do nacionalismo guineense, do que se poderá duvidar, menos por se poder infirmar a asserção do que pela intuitiva relutância ao que poderá compor mais uma “biografia perfeita” do que uma relação intrínseca na génese do nacionalismo guineense, decerto avivado pelas influências advindas dos países limítrofes.
13 Esta obra interpela quanto às consequências de uma política que, independentemente das duras provas e de pequenas vitórias diplomáticas, não tinha saída: não se tratava de não se poder deixar de sacrificar os filhos à pátria, tratava-se de os instrumentalizar quando provavelmente já prevaleceria a consciência de que tal era inútil. Se esta hipótese estivesse certa, então, tudo não teria servido senão para Salazar preservar o poder até à morte, fito a que imolou o país. Fascinante viagem no tempo, esta é uma obra que, à margem dos nebulosos “factores de impacto”, nos enriquece. Resulta do exercício livre e competente do ofício de historiador, para que a sociedade e, infelizmente também, as universidades parecem ter deixado de ter tempo… Seja lá como for, após este, ficamos à espera dos próximos livros.
Augusto Nascimento – Centro de História da Universidade de Lisboa, Portugal. E-mail: anascimento2000@yahoo.com
História da Inquisição portuguesa (1536-1821) – MARCOCCI.; PAIVA (Topoi)
MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa (1536-1821). Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013. Resenha de: SOUZA, Evergton Sales. Uma história da Inquisição em Portugal e no seu império. Topoi v.15 n.29 Rio de Janeiro July/Dec. 2014.
A produção historiográfica sobre a Inquisição portuguesa, em particular aquela relativa a diferentes aspectos da ação inquisitorial, não tem parado de crescer nas últimas três décadas. Contudo, até o presente momento, nenhuma verdadeira tentativa de síntese da história dessa instituição havia sido tentada. Talvez a massa bibliográfica e documental a ser necessariamente manuseada numa tal empresa fosse um dos motivos que concorriam para que especialistas não encarassem esse desafio. Mas, ao mesmo tempo, os estudos publicados nos últimos vinte anos sobre a estrutura e organização da Inquisição portuguesa também proporcionaram um melhor conhecimento de vários aspectos sem os quais seria temerária a realização do ambicioso projeto de escrever uma síntese de sua história. Dois importantes historiadores do mundo português moderno, José Pedro Paiva, professor da Universidade de Coimbra, e Giuseppe Marcocci, professor da Università degli Studi della Tuscia, em Viterbo, encararam o desafio e uniram seus esforços a fim de escrever uma primeira história da Inquisição portuguesa desde sua fundação, em 1536, ao ocaso, em 1821.
O livro contém dezoito capítulos que estão distribuídos em cinco partes, cada uma delas correspondendo a um período da história da Inquisição portuguesa. Assim, vislumbra-se uma proposta de periodização que principia em 1536, com a fundação definitiva do Tribunal, e vai até 1605, com a primeira grande crise enfrentada pela Inquisição. Crise que atinge seu clímax com a concessão do perdão geral aos cristãos-novos, dado pelo papa em breve de 23 de agosto de 1604 – o qual só viria a ser publicado em Goa no ano de 1705. A Inquisição sofreu grande derrota nesse episódio, tanto mais que o breve era fruto dos esforços de famílias cristãs-novas que denunciaram em Roma as arbitrariedades cometidas pelo Tribunal português e conseguiram convencer – a custo, inclusive, de promessas de vultosas somas – a coroa espanhola a apoiar suas demandas junto à cúria romana. O segundo período se estende de 1605 a 1681 e configura-se como época de apogeu do Tribunal que, recuperado da derrota de 1604, intensificaria e ampliaria seu raio de ação na sociedade portuguesa até novamente estalar uma grave crise que culminaria com a sua suspensão pelo papa, em 1674. O restabelecimento do Tribunal, em 1681, é a página final de um período e a abertura de outro que seria marcado pela “busca de um novo caminho”, no qual estão ainda patentes os traços distintivos que denotam o prestígio da instituição na sociedade portuguesa, bem como sua estratégia de se fazer admirar, respeitar e temer pelo teatro do poder e pelo espetáculo do castigo. Entretanto, ao avançar do século XVIII, alguns problemas irão mostrar os limites do novo caminho. A crise aberta pela querela do sigilismo, na década de 1740, deixaria marcas profundas na história das relações entre a Inquisição e o episcopado, solapando uma das bases do seu poder e legitimidade. Esta fase que os autores chamaram de “Inquisição barroca” se estendeu até 1755, quando após o terremoto e com Sebastião José de Carvalho e Melo a ganhar mais e mais poder no seio do governo, inaugura-se uma nova época na qual o arrefecimento à perseguição aos cristãos novos e o declínio do poder e prestígio do Tribunal vão se tornando uma realidade palpável. Do nosso ponto de vista, esta data se configura como a que coloca mais problemas nesse esforço de periodização empreendido por Marcocci e Paiva. Enquanto as outras datas marcam momentos críticos ligados à própria história da instituição, aqui se trata de um evento maior, o terremoto, mas que não tem ligação direta à instituição, a não ser, evidentemente, pelo fato de os Estaus terem vindo abaixo com o terremoto. Poderíamos indagar, por exemplo, por que não fazer terminar a fase barroca em 1750, ano da morte de d. Nuno da Cunha e fim do longo reinado de d. João V? Mas, deve-se convir que, no presente caso, avançar ou recuar cinco anos é um problema menor frente ao trabalho desenvolvido por esses autores. O certo é que a nova fase será marcada pelo signo de sua dominação pelo Estado. Com efeito, a instituição submeteu-se inteiramente, como nunca antes o fizera, aos objetivos do centro de poder político. Despojada de seus inimigos de sempre, os cristãos-novos, ela definha até sua extinção, em 1821. É verdade que os autores optaram por tratar do fim do Tribunal na quinta e última parte da obra. Fizeram-no, contudo, observando uma lógica particular à exposição do texto, estabelecendo uma ligação coerente entre a extinção da instituição, que àquela altura já não era mais do que um corpo moribundo, e a sua emergência como objeto de memória e história estudado e debatido desde então.
Ao conhecimento da bibliografia atinente ao tema os autores desta obra aliaram o das fontes documentais. Aqui repousa uma de suas características distintivas: trata-se de síntese que não abre mão da construção de um conhecimento histórico largamente fundamentado na documentação disponível. Isto faz com que o livro seja lido com muito proveito tanto pelo público não especialista quanto por aquele especializado, pois ao tempo em que condensa num único volume um conhecimento esparso em múltiplos livros e artigos, apresenta também novos problemas e novas conclusões retiradas de um conhecimento imediato das fontes. Daqui também se origina uma compreensão da história da Inquisição que consegue manter um distanciamento benéfico ao exame desse objeto tão complexo e que desperta, por vezes, discursos e análises eivados de passionalidades. Marcocci e Paiva levam ao pé da letra o ensinamento de Marc Bloch sobre o ofício do historiador e seu dever de compreensão – e não julgamento – dos fatos estudados. Não se trata de adotar uma atitude complacente em relação ao significado dessa instituição na história da humanidade, mas de procurar compreendê-la no seu devido contexto. Os autores explicitam isto ao afirmarem que:
a Inquisição é, sem dúvida, um símbolo dos excessos de desumanidade a que se pode chegar em nome da religião e do que se considerava a verdade. Ainda assim, representa também uma instituição filha do seu tempo que, para ser seriamente compreendida, precisa de ser estudada no seu contexto e nas suas consequências concretas. (p. 14)
Apresentar a Inquisição como “filha do seu tempo” pode, à primeira vista, parecer uma fórmula fácil, mas sua real profundidade revela-se na medida em que os autores vão desenvolvendo uma das ideias centrais do livro e que se encontra magistralmente exposta no capítulo 6, “O medo de uma sociedade impura”. Evidencia-se que uma lógica de intolerância e ideais de pureza de sangue estavam difusos na sociedade. Esses elementos explicam muito da origem e do desenvolvimento do Tribunal do Santo Ofício em Portugal. Compreende-se, assim, que a instituição não foi imposta, mas desejada por amplos setores da sociedade tomados por uma obsessão antijudaica. Esses mesmos setores, com o passar do tempo, pressionaram a coroa a adotar políticas cada vez mais discriminatórias em relação aos cristãos-novos. Aqui se descortina mais uma linha de força deste livro que ao contar a história da Inquisição não o faz a partir de um olhar circunscrito à instituição, mas procurando observar sua inserção no – e sua interação com o – contexto social, cultural, político e econômico de seu tempo.
Para Paiva e Marcocci a Inquisição foi, sobretudo, um tribunal eclesiástico que tinha seu lugar junto a outras instâncias que formavam o complexo ordenamento jurídico português da época moderna, mas também foi um lugar de poder (p. 15). Ao longo da obra, nota-se como o tribunal português, cuja rápida ascensão se deveu ao apoio da coroa, mas também aos ventos da contrarreforma, adaptou-se aos jogos de poder na busca de construir e manter sua relativa independência vis-à-vis do poder monárquico e, embora subordinada ao papa, procurando não se dobrar inteiramente ao seu poder. Nesse sentido, a dinâmica das relações entre Inquisição, monarquia e Roma apontada na obra pode nos fazer pensar no dilema do clero galicano em sua vontade de autonomia em relação ao rei e ao papa. Contudo, a similitude fica restrita a este campo, pois do ponto de vista eclesiológico a Inquisição portuguesa jamais flertou com as ideias galicanas, demasiado episcopalistas e pouco favoráveis à instituição inquisitorial.
Esta História da Inquisição portuguesa exprime uma constante preocupação em descrever e analisar a ação inquisitorial numa escala geográfica que extrapola os limites do Portugal continental. Além da necessária atenção dada ao tribunal de Goa, é dispensado especial cuidado ao exame da ação do tribunal em todo o ultramar português, e particularmente no Brasil. O peso conferido ao império ultramarino ao longo do livro, com quatro capítulos inteiramente consagrados ao seu estudo, revela não só a visão abrangente que os autores têm do objeto estudado, mas também uma escolha que transcende as fronteiras de um campo historiográfico específico, refletindo uma tendência compartilhada por diversos historiadores, entre os quais me incluo. Nesse sentido, a obra é mais uma excelente prova de que o conhecimento histórico sobre o mundo português moderno tem muito a ganhar quando estendemos o campo de visão para além dos limites do Portugal continental ou de uma área específica de seu império.
Escrito em muito bom estilo, o livro deixa-se ler facilmente. Ao longo de suas 607 páginas identificamos poucas gralhas, todas facilmente corrigíveis e que não comprometem a qualidade do texto. A título de exemplo pode-se mencionar o caso do breve Inter luculenta, de 1737, que iliba d. Inácio de Santa Teresa das suspeitas de jansenismo que haviam sido lançadas contra si em Goa, grafado “Inter iuculenta” (p. 300). À página 296, em passagem sobre o cristão-novo Francisco de Sá, há erro no século apontado para o seu anterior encarceramento. Por fim, nota-se um problema no gancho do parágrafo final do capítulo 11 (p. 304) que remete o leitor não para o imediatamente seguinte, mas para o capítulo 13, que discorre sobre a Inquisição nos tempos de Pombal.
Também são bastante raras as imprecisões pontuais que notamos na obra. É o caso da menção feita a Bossuet (p. 235). Ali deveria ser dito que seria, em 1677, “futuro bispo” de Meaux, pois ele já havia sido bispo de Condom, entre 1670 e 1671, antes de renunciar àquela mitra a fim de se tornar preceptor do príncipe herdeiro francês. Menos marginal ao objeto da obra é a inexistência de uma advertência ao leitor quanto à composição étnica da Congregação do Oratório em Goa. Trata-se de um aspecto importante a salientar, ainda mais num passo em que são abordados problemas relativos às tensões locais e ao prestígio social conferido pela participação em atividades relacionadas com o Santo Ofício (p. 319). Por fim, há uma ou outra ausência a lamentar na bibliografia, como a do excelente Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil (Rio de Janeiro: Editora Bertrand do Brasil, 1993), de Luiz Mott, e a do recente Domingos Álvares, african healing, and the intellectual history of the Atlantic world (Chapel Hill: The University of Carolina Press, 2011), de James H. Sweet.
Os poucos problemas assinalados aqui terminam por confirmar a solidez da obra em tela, sem nada ofuscar do seu brilho. Talvez a palavra que melhor a defina seja “equilíbrio”. Equilíbrio para não ceder ao mero discurso condenatório, nem à complacência em relação à instituição e à sociedade estudada; para dosar cuidadosamente o uso da bibliografia existente e a imprescindível consulta direta às fontes documentais; para construir um texto suficientemente fluido que agrade ao público em geral e rigoroso, inovador e instigante o bastante para tornar-se indispensável aos especialistas.
Por suas muitas qualidades, por seu equilíbrio, esta História da Inquisição Portuguesa, de José Pedro Paiva e Giuseppe Marcocci constitui um marco na historiografia sobre o tema. Uma obra verdadeiramente incontornável.
Evergton Sales Souza – Doutor em História Moderna e Contemporânea pela Université Paris-Sorbonne, PARIS 1, e professor adjunto da Universidade Federal da Bahia. Salvador, BA, Brasil. E-mail: evergton@pq.cnpq.br.
Imperial Portugal in the age of atlantic revolutions: the luso-brazilian world, c. 1770-1850 – PAQUETTE (H-Unesp)
PAQUETTE, Gabriel. Imperial Portugal in the age of atlantic revolutions: the luso-brazilian world, c. 1770-1850. United Kingdom, Cambridge University Press, 2013, 463 p. Resenha de: MOURA, Denise Aparecida Soares de. História [Unesp] v.32 no.1 Franca Jan./June 2013.
Na historiografia de nações de herança colonial, certos temas, como o da independência política, por exemplo, são alvo de grandes controvérsias e chegam mesmo a formar escolas interpretativas (GARRIDO, 2009). Na historiografia das antigas metrópoles, o tema nada prestigioso da independência de sua suas colônias é, de um modo geral, apagado da memória.
Porém, tendo em vista a longa vida dos impérios europeus coloniais da época moderna, como imaginar que a separação política de suas colônias tenha desconectado imediatamente suas histórias? O caso do império português é um dos mais expressivos deste tipo de indagação, e o paradigma da “era das revoluções”, cuja ideia chave é a da ruptura, algo aparentemente mais próximo de situações, como as vividas pelos Impérios britânico ou hispânico, não é aplicável a sua história.
Essa é a tese defendida por Gabriel Paquette, professor da Johns Hopkins University, em seu recém-publicado “Imperial Portugal in the Age of Atlantic Revolutions”. O tema do colonialismo e das independências em perspectiva atlântica é algo que há certo tempo vem fazendo parte das reflexões deste historiador, que escreveu ainda “Enlightenment, governance and reform in Spain and its Empire, 1759-1808” (2008) e também dirigiu a coletânea “Connections after colonialism: Europe and Latin America in the 1820s” (2013).
“Imperial Portugal in the Age of Atlantic Revolutions” conta com uma consistente pesquisa empírica realizada em arquivos e bibliotecas do Brasil, de Portugal, dos Estados Unidos e da Inglaterra. O livro é formado por cinco capítulos distribuídos ao longo de quase 450 páginas. O autor faz uma análise global do processo histórico do mundo luso-brasileiro no período 1770-1850, focalizando suas transformações políticas, mas levando em consideração fatores de mútua influência e continuidades nas suas histórias, especialmente a partir de 1822, quando ocorreu a formalização da separação política entre Brasil e Portugal.
O tipo de abordagem da obra permite situá-la, do ponto de vista da historiografia brasileira, no âmbito de ensaios seminais como “Herança colonial – sua desagregação” (HOLANDA, 1962) e “A Interiorização da Metrópole” (DIAS, 1972), que contribuíram para modernizar a intepretação do processo da independência do Brasil. Ao negar fatores de ruptura neste processo e mesmo identificar seu caráter de conflito doméstico, que opôs portugueses do Reino e da velha Corte – como faz especialmente o segundo ensaio -, estes autores lançaram as bases, posteriormente desdobradas pela historiografia, para que a compreensão da história do Brasil pudesse ser feita fora das perspectivas de análise polarizadoras.
O primeiro capítulo do livro analisa o período 1777-1808 e mostra a mobilização da elite de letrados e funcionários luso-brasileiros, patrocinada pelo Estado português, sob a liderança de ministros como Sebastião José ou D. Rodrigo de Souza Coutinho, em torno do projeto de remodelação das estruturas políticas, econômicas e administrativas do Império. Esta foi uma conjuntura de recalibragem das estruturas do Império, como considera o autor, que conclui ser o período colonial tardio do Brasil um tempo de consolidação de seu status e posição de precedência política e de maior integração com Portugal.
A ocupação de Lisboa pelas tropas francesas, contudo, estabeleceu as bases da crise política do Império entre os anos de 1807-1822, conforme é discutido no segundo capítulo. A instalação da Corte no Rio de Janeiro, em 1808, e a elevação do Brasil a Reino Unido, em 1815, ponto alto da sua precedência política, contribuiu para estabelecer um divisor de águas no projeto luso-brasileiro de modernização do Império.
A transformação do Brasil em sede da Monarquia colocou para a velha Corte que permaneceu no reino alguns desafios, como o de expulsar o invasor francês, enfrentando ao mesmo tempo um agudo déficit econômico e a tarefa de assegurar a sobrevivência política de Portugal perante as outras nações da Europa. Para tanto, grupos políticos da península se articularam em torno de um projeto monárquico conservador, cujo objetivo era recuperar a antiga conformação do Império Luso-brasileiro, com Lisboa como cabeça das instituições políticas e da Coroa.
Como fazer, contudo, para que a nova Corte estabelecida no Rio de Janeiro perdesse o status político-institucional alcançado desde 1808? É neste ambiente político que o autor propõe a compreensão do desenvolvimento de uma cultura intelectual constitucional no atlântico ibérico, como parte de um movimento mais amplo que envolvia também outras nações, como Espanha, França e Inglaterra.
Os processos de independência do século XVIII e início do XIX levaram antigas metrópoles a reformular suas constituições e as antigas colônias a elaborar suas próprias cartas de leis. Dada a natureza de conflito doméstico da separação política do Brasil com a permanência, inclusive, da mesma linhagem dinástica que governava Portugal, a cultura constitucionalista do atlântico ibérico foi caracterizada pela expectativa portuguesa de reabilitar o antigo Império, tanto do ponto de vista das Cortes Constituintes de Lisboa, de 1821, como do projeto final da Carta constitucional outorgada por D. Pedro, em 1824.
Conforme pode ser acompanhado nos capítulos 3 e 4, nos intervalos cronológicos entre 1822-1826 e 1828-1834 a vida política nas duas pontas do atlântico português continuou ligada pela persistência desta expectativa das forças políticas em Portugal, algo que somente desapareceria com a morte de D. Pedro, em 1834, e com o surgimento das discussões públicas em torno de temas comuns como legitimidade e direitos dos Bragança, o aparecimento de modelos de sistema monárquico e a emergência de personagens – como o próprio D. Pedro, D. Miguel, D. Maria e seus conselheiros.
Mais especialmente no quarto capítulo são apresentados e discutidos os meandros nacionais e internacionais da guerra civil ocorrida em Portugal, que opôs correntes de Miguelistas, adeptos de D. Miguel e Cartistas, e defensores do direito de D. Pedro à Coroa portuguesa e da carta constitucional portuguesa de 1826, que influenciaram a movimentação política de todo o atlântico português, incluindo-se os Açores, que abrigou a resistência dos defensores da legitimidade de d. Maria contra as pretensões de D. Miguel de permanecer no trono português.
O capítulo 5 analisa o esforço português de converter a África em seu novo Império nos trópicos, após a perda do Brasil. O intervalo 1820-1850, tradicionalmente visto como um hiato na história portuguesa em relação ao colonialismo, na realidade foi caracterizado pela ação intensa, especialmente após 1834, de escritores de textos políticos e econômicos, jornalistas e funcionários públicos que produziram memórias, ensaios e relatórios que refletiam sobre os erros do colonialismo português e sobre um novo modelo de colonização a partir da África.
Assim como na fase dos confrontos entre miguelistas e cartistas, este outro momento da história portuguesa – de reinvenção do colonialismo e da utopia portuguesa de voltar a ser um poderoso Império – retoma o espírito de diagnóstico dos letrados do final do século XVIII identificando os erros cometidos na colonização do Brasil para corrigi-los na África.
“Imperial Portugal…” está inserido no horizonte teórico-metodológico da história atlântica, que, do ponto de vista acadêmico, ganhou força nos Estados Unidos entre as décadas de 70 e 80, a partir dos trabalhos impressos pela Johns Hopkins University Press e dos seminários organizados pela Harvard University.
Alguns adeptos desta corrente têm apontado como um de seus desafios a superação da circunscrição da sua análise aos limites de um Estado-nação específico (Games, 2006). Os trabalhos publicados nesta linha de abordagem, contudo, revelam que estes limites detêm também motivações metodológicas. Certamente serão necessárias mais pesquisas e organização mais funcional de acervos documentais para que se possa alcançar uma visão de síntese da civilização do atlântico.
Em virtude disto e seguindo na tradição dos trabalhos do historiador inglês John Russell-Wood, este é um livro que pode ser encaixado no âmbito de preocupações voltadas para a conceituação da especificidade do atlântico português. Para que esta especificidade ficasse mais clara, contudo, o autor deveria ter recorrido mais a uma das muitas metodologias utilizadas no estudo da história atlântica: a comparação. Se o paradigma da “era das revoluções” pode explicar a experiência do atlântico hispânico, mas não a do português, esta experiência poderia ter sido mais evocada, pelo menos na introdução do livro.
O autor atribui todo o peso do espírito reformista do Império português da segunda metade do século XVIII à ação do ministro Sebastião José, desconsiderando que o período anterior – o do reinado de D. João V – contém todas as forças reformistas que serão ampliadas ou remodeladas no período posterior. (Maxwell, 1996).
O tema do reformismo ilustrado português poderia ter sido mais bem conceituado se algumas abordagens tivessem sido mais acuradamente empregadas (Dias, 1968; Prado, 1999). Neste caso, o exemplo de Frei Veloso – que dependia de que agentes do exterior lhe enviassem obras para serem traduzidas – não é suficiente para endossar a tese de uma ilustração de enxerto, porque esta tipografia durou apenas dois anos.
Um aspecto positivo ao longo de toda a obra é o minucioso trabalho de micro-história sobre a interferência inglesa no processo de reconhecimento da independência do Brasil e da constituição de 1826, elaborada por D. Pedro para Portugal e inspirada na constituição do Brasil de 1824.
“Imperial Portugal…” é uma obra que também pode ser vista como uma análise do processo de descolonização do ponto de vista das suas influências e consequências para a metrópole. Para a historiografia de um país de herança colonial como o Brasil, o livro contribui para uma nova forma de abordar o processo de descolonização, ou seja, inverte a problematização para a metrópole.
O último capítulo do livro introduz, de fato, uma questão estimulante e que diz respeito à reinvenção do Império Português na África. Neste caso, entre a independência do Brasil e 1850 não teria ocorrido um intervalo, como diz Paquette, até o advento do neocolonialismo português neste continente.
O engajamento em torno desta questão estimulou jornalistas e intelectuais a produzir uma série de escritos, memórias e relatórios amparados nas referências da colonização do Brasil. O Estado, especialmente, esteve envolvido neste esforço de construção de um novo Império, ao incentivar portugueses residentes no Brasil a fundar colônias agrícolas na África. Para a historiografia brasileira, este capítulo abre uma frente de pesquisa que talvez possa conceituar este movimento do século XIX, quando Portugal enfrentou o desafio de se reinserir no atlântico sul.
“Imperial Portugal…”, portanto, é uma obra de reflexão sobre o tema maior da descolonização e dos novos modelos de colonização do século XIX na perspectiva do atlântico português. Para os historiadores, de um modo geral, este livro é um excelente exemplar de rigor metodológico na pesquisa histórica, pois o autor faz cortes precisos em um longo processo histórico, como os dos anos 1770-1850, documentando e analisando as questões próprias de cada momento. Para os pesquisadores do mundo luso-brasileiro ou que buscam construir uma visão de síntese sobre a civilização do atlântico entre o XVIII e o XIX, este é um livro inspirador de temáticas na área de história política e intelectual.
Referências
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da Metrópole (1808-1853). In: MOTA, Carlos Guilherme. 1822: dimensões. 2. ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1986, p. 160-186. [ Links ]
MAXWELL, Kenneth. Marques de Pombal: paradoxo do iluminismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. [ Links ]
GAMES, Alison. Atlantic History: definitions, challenges and opportunities. The American Historical Review. Bloomington, n. 3, v. 111, pp. 741-757, June 2006. [ Links ]
HOLANDA, Sérgio Buarque. A herança colonial – sua desagregação. In: ____ (org.) História Geral da Civilização Brasileira. Brasil Monárquico. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962, tomo II, vol. 1. [ Links ]
PIMENTA, João Paulo Garrido. The Independence of Brazil: a review of the recente historiographic production. Providence, E-JPH, n. 1, vol. 7, pp. 1-21, Summer 2009. [ Links ]
PRADO, Maria Emilia. O estado como vocação: ideias e práticas políticas no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Access, 1999. [ Links ]
Denise Aparecida Soares de Moura – Professora de História do Brasil do Departamento de História da UNESP (Campus de Franca).
Science in the Spanish and Portuguese Empires: 1500-1800 – BLEICHMAR et. al. (HH)
BLEICHMAR, Daniela et alii (ed.). Science in the Spanish and Portuguese Empires: 1500-1800. Stanford: Stanford University Press, 2009, 456 pp. Resenha de: KANTOR, Iris. A ciência nos impérios português e espanhol. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.294-298 março 2010.
O recém publicado Science in the Spanish and Portuguese Empires – 1500- 1800, reúne quinze artigos e dois ensaios que fazem a síntese dos principais argumentos desenvolvidos na coletânea. Direcionada ao público universitário anglo-americano, o livro procura redimensionar o peso do legado ibérico na construção do mundo moderno. A coletânea valoriza os modos de fazer, comunicar e teorizar das ciências praticadas no âmbito dos impérios português e espanhol. Seus organizadores denunciam a persistência de visões reducionistas e depreciativas associadas à cultura científica ibérica que, segundo eles, ainda persistem nas grandes narrativas historiográficas sobre a formação do campo científico moderno.
O silêncio não é recente, mas contemporâneo às campanhas de detração promovidas pelos impérios rivais, veiculadas pela difusão da legenda negra e pelas controvérsias sobre a inferioridade natural e humana do Novo Mundo ao longo dos séculos XVII e XVIII. Por outro lado, essas imagens negativas do colonialismo ibérico também foram apropriadas pela historiografia decadentista (tanto na vertente liberal como marxista) que, por sua vez, atribuiu à censura inquisitorial, ao catolicismo e aos jesuítas, as principais obstruções ao desenvolvimento do pensamento científico nos países e regiões de colonização ibérica.
Os estudos reunidos nessa coletânea procuram superar definitivamente a dicotomia entre prática científica e cultura católica, demonstrando que o enquadramento teológico político do mundo natural – sensibilidade científica barroca que conjuga a intervenção divina com o experimentalismo – não teria constituído um impedimento para formulação de modelos explicativos com validade universal.
Um dos principais méritos da interpretação proposta é restituir o protagonismo ibérico. Presença percebida não apenas como contribuição pontual à história da ciência moderna, mas como parte de processos históricos mais amplos em que se procura reconstruir os contextos sociais de legitimação dos “sistemas científicos”. Não se trata de avaliar os fracassos ou os eventuais sucessos dos empreendimentos em si mesmos, mas, sim, de compreender os impactos globais e locais resultantes da acumulação (ou dispersão) de conhecimento adquirido na experiência de gestão de impérios de dimensão transcontinental.
Essa perspectiva desloca o foco de análise para a mobilidade geográfica dos diferentes atores (individuais e coletivos) implicados no processo de transmissão dos saberes para além das fronteiras políticas, religiosas, sociais e lingüísticas. Esse novo ângulo de observação permite estabelecer um quadro interpretativo distinto das abordagens historiográficas precedentes, geralmente, marcadas pelas visões decadentistas ou por reações apologéticas. Os autores dessa coletânea não caíram na armadilha de transformar as descobertas marítimas em pedra de toque do nacionalismo científico. Um anacronismo sempre difícil de contornar tendo em vista o papel ativo da Coroas na criação de instituições especializadas e na formação de corpos profissionais.
A compreensão da imbricação (não sem tensões e conflitos) entre os desígnios imperiais e a produção científica apresenta-se como um desafio teórico que contraria os modelos de análise weberiano ou habermasiano. Com efeito, os artigos evidenciam uma realidade matizada, um contexto de experiências constituído por uma diversidade de espaços institucionais e informais (conselhos, corte, salões cortesãos, universidades, academias, seminários missionários, jardins botânicos, bibliotecas privadas, expedições e gabinetes itinerantes etc…), mas também por diferentes modalidades de interação social. A riqueza desses diferentes situações nos obriga a uma revisão dos modelos sociológicos clássicos. As teorias de Pierre Bourdieu são invocadas para explicar as condições de exercício das atividades científicas na Nova Espanha de maneira bastante convincente.
Da mesma maneira, os autores não desconsideram as restrições impostas à difusão das descobertas científicas por motivos geopolíticos: os segredo de Estado (arcana imperii). Contudo, destacam que, mais do que controlar o fluxo da informação científica, as coroas lograram impedir sua publicação, e, por conseqüência, sua difusão e reconhecimento oficial no âmbito da república das letras européia. Onésimo de Almeida e Kevin Sheehan, por exemplo, chamam atenção para importância dos relatos dos navegantes portugueses e espanhóis na obra Francis Bacon, muito embora o autor não tenha atribuído os devidos créditos às fontes utilizadas. Ao contrário dos impérios rivais, as Coroas Ibéricas nunca souberam explorar o potencial de propaganda dos experimentos bem sucedidos em seu próprio favor.
Seguindo a pista deixada por Alexander von Humboldt, o prefaciador da coletânea, Cañizares-Esguerra, alerta para a necessidade de investigar centenas ou milhares de manuscritos ainda inéditos depositados nos arquivos e bibliotecas para uma correta avaliação dos alcances e limites da cultura científica ibérica.
Palmira Costa e Henrique Leitão também enfatizam que o pesquisador deve percorrer as correspondências das autoridades metropolitanas e locais, os diários de viajantes e comerciantes, os relatórios de missionários e cronistas locais para captar a dimensão quotidiana dessas experiências.
Dividida em quatro unidades, a coletânea busca novas abordagens para o enquadramento da produção científica na escala intra-imperial e trans-imperial.
Na primeira parte, “Reassessing the Role of Iberia in Early Modern Science”, dois balanços bibliográficos traçam um panorama atualizado das investigações realizadas nas últimas duas décadas. Tanto no caso português, como no caso espanhol, os autores constatam as dificuldades de recepção por parte da historiografia estrangeira das contribuições mais recentes. Na segunda parte, “New Wold, New Sciences”, os autores exploram as tensões de natureza epistemológica suscitadas pelo confronto entre campo e gabinete, entre experiência prática e especulação teórica. Na terceira parte do livro, “Knowledge Production: Local Contexts, Global Empires”, abordam-se as relações entre ciência e a construção dos impérios de longa distância, e os estudos de caso atenuam a dicotomia entre centros e periferias ao enfatizarem o intenso intercâmbio de conhecimento e a multiplicidade de variáveis que interferiam na produção local.
Com efeito, a expansão comercial e o processo colonizador levaram à intensificação dos contatos com as populações nativas. Desígnios comerciais e políticos possibilitaram o aparecimento de uma camada social – tradutores ou mediadores culturais – fundamental na conversão entre os sistemas de conhecimento nativo e o europeu. A atuação desses “experts” comprovaria a enorme capacidade de apropriação da sócio e biodiversidade locais. Personagens híbridos – nem totalmente crioulos, nem completamente europeus – como o navegador português a serviço de Felipe III (Felipe II de Portugal) Pedro Fernandez de Quirós, o matemático e astrônomo Carlos de Singüenza y Góngorra, o naturalista e editor de periódicos Jose Antonio Alzate y Ramirez e o naturalista José Celestino Mutis. Todos eles atestam a coexistência e articulação de matrizes de pensamento, muitas vezes distintas, mas que estimularam a elaboração de outras linguagens e taxonomias científicas, mais recentemente denominadas de epistemologias patrióticas (cf. Cañizares-Esguerra).
A politização dessas epistemologias como reação às reformas ilustradas em fins do século XVIII não constitui um objeto de questionamento nesta coletânea. Nesse aspecto, os estudos distanciam-se das perspectivas historiográficas que buscam ver nas tensões entre cientistas peninsulares e crioulos uma fonte de inspiração para afirmação das identidades antimetropolitanas (cf. Antonello Gerbi, David Branding, Thomas Glick). Os organizadores deixam isso evidente quando propõem um recorte temporal que abarca o período de 1500 a 1800, sem comprometer-se com a cronologia do processo de emancipação política deflagrada a partir das invasões napoleônicas e após a revolução de Cadiz (1812). Fiona Clark, Daniela Bleichmar e Paula de Vos, pelo contrário, destacam a tendência para afirmação do patriotismo imperial que unia peninsulares e crioulos contra os preconceitos veiculados pelas teorias da inferioridade natural do Novo Mundo.
Na quarta e última parte da coletânea, “Commerce, Curiosities and the Circulation of Knowledge”, explora-se mais diretamente as interconexões entre motivações mercantis, ciência aplicada e curiosidade. Os estudos trazem à tona novos atores cujos experimentos empíricos e as vivências concretas estiveram na raiz das inovações tecnológicas, posteriormente incorporadas e difundidas por cientistas europeus de grande prestígio. Reconstitui-se a cadeia de transmissão dos conhecimentos úteis para o comércio e para os governo dos povos (sobretudo no campo da medicina, botânica, mineração, técnicas de navegação, astronomia e cartografia). Em mais de 300 anos de colonização, as coroas ibéricas teriam desenvolvido sistemas de coleta e processamento das informações, configurando uma rede não apenas institucional, mas também informal, mobilizada em escala planetária. Paradoxalmente, até mesmo as iniciativas das ordens missionárias (nos colégios jesuíticos, franciscanos e dominicanos) colaboraram para formação de uma cultura empírica, aberta ao experimentalismo e à concepção secular do mundo natural.
Entre os quinze estudos apresentados, quatro apenas dedicam-se ao império português e o restante ao espanhol. Somente um artigo (de Junia Ferreira Furtado) está dedicado ao mundo luso-americano. O desequilíbrio é notório, mas não compromete a perspectiva global de análise, pelo contrário, demonstra que ainda há um longo percurso de investigação a ser percorrido…
Sobretudo no que toca aos entrecruzamentos possíveis entre os dois impérios, conexões temáticas, cronológicas e biográficas poderiam aproximar ainda mais as experiências comuns em contraste com os demais impérios. A historiografia recente tem mostrado que o “comércio erudito” entre os luso-americanos e os hispano-americanos era mais intenso do que se pressupôs. A contradição entre cosmopolitismo e nacionalismo científico tornou-se cada vez mais aguda após a expansão napoleônica. Fazer ciência no mundo ibérico nunca foi um labor neutro, mas carregado de investimento político, econômico, filosófico e afetivo.
Science in the Spanish and Portuguese Empires abre uma agenda historiográfica indiscutivelmente fundamental.
Iris Kantor – Professora Adjunta Universidade de São Paulo (USP) ikantor@usp.br Av. Prof. Lineu Prestes, 338 São Paulo – SP 05508-000 Brasil.
acetas do Império na História: conceitos e métodos – DORÉ et. al (H-Unesp)
DORÉ, A.; LIMA, L. F. S.; SILVA, L. G. Facetas do Império na História: conceitos e métodos. São Paulo: HUCITEC, 2008, 314 p. Resenha de: LUZ, Guilherme Amaral. Lugares do Império e o Império Portugues. História [Unesp] v.28 no.1 Franca 2009.
Quase não parecem fortuitas algumas das coincidências impressas nesta resenha: um professor de universidade do interior de Minas Gerais, com formação na UNICAMP, apresentando, em revista da UNESP, um livro de professores da Federal do Paraná sobre o tema do Império, que tem como foco inegável o caso português entre fins do século XV e início do XIX. A coincidência básica aqui expressa está na aparente ausência de lugares institucionais brasileiros que, ao longo das últimas décadas, assumiram centralidade na proposição do problema: USP, UFF e UFRJ. O acaso, aqui, parece sintoma de um fenômeno duplo: primeiro, da dimensão ampliada que a problemática do Império vem ganhando no interior das preocupações de historiadores da “colônia” ou da “América portuguesa” em todo Brasil; segundo, para não deixarmos de fora um pouco de pimenta (especiaria tão apreciada pelos “nossos” antigos navegadores), do próprio “imperialismo” que alguns programas de pós-graduação na área exercem sobre todo o país, espalhando seus “rebentos” para todo canto… O primeiro fenômeno é o que me importa comentar, o segundo é fabulação irônica, com vistas a atrair a atenção do leitor, ainda que a custo de não conquistar a sua benevolência.
Mas não é só brasileira a preocupação com os Impérios e, nem tampouco, é exclusivamente do Império português que trata o livro Facetas do Império na História. Seu próprio título indica a hipótese de que a história, nas mais diversas áreas espaciais e recortes temporais, apresentou várias formas de um fenômeno capaz de ser abarcado pela noção de Império. O subtítulo do livro – conceitos e métodos – sugere, por sua vez, o objetivo mais específico visado: pensar a própria conceituação deste fenômeno, propondo formas de lê-lo historicamente sem riscos de uniformizações sociologizantes ou, por outro lado, de atomizações nominalistas. É nesta perspectiva que se entende a escolha do texto de Maurice Douverger (“O Conceito de Império”) como abertura para o livro. Escrito na década de 1970, esse texto visava apresentar um outro livro que publicava conferências apresentadas em um colóquio na França sobre a temática e no qual o conceito de Império era buscado por meio do cruzamento de realidades históricas variadas e distantes entre si no espaço e no tempo, sem, contudo, reduzi-las a uma essência idêntica. Com esta proposta, o livro organizado por Doré, Lima e Silva identifica-se, buscando abranger espaços-tempos que começam na paradigmática experiência imperial romana, passando pela sua translatio medieval e moderna, chegam aos Estados Ibéricos do século XVI (com sua renovatio), detêm-se em Portugal entre os séculos XV e XIX e terminam nas definições mais contemporâneas de Imperialismo. O livro não se furta, ainda, de reservar espaços para a consideração de dimensões historiográficas do conceito, mapeando suas tradições nas historiografias alemã (com os casos de Ranke e de Burkhardt) e francesa (nas Ciências Humanas).
O evidente foco no Império português é praticamente confessado, entretanto, no livro. Um dos seus índices mais claros está na escolha do segundo texto “clássico” a abrir a obra: “A idéia imperial manuelina”, de Luís Filipe Thomaz. Neste texto, o historiador português praticamente oferece ocasião ou insights para análises da sociogênese (para usarmos um termo dos preferidos de Norbert Elias) do Império português. No seu texto, Thomaz realiza um belo ensaio de explicação histórica, articulando as estratégias da expansão ultramarina portuguesa no reinado de D. Manuel com noções explícitas ou implícitas relativas ao poder imperial que circulavam em fins da Idade Média. Para o autor, a articulação dessas noções, na política manuelina, gerou uma concepção própria de Império que, sendo medieval em sua base cultural e teológico-política, tornou-se moderna em sua estratégia, desdobrada “em escala quase planetária”. Na sua base, segundo Thomaz, articulam-se três componentes básicos: a aparência de guerra santa, o ecletismo cultural na tradição da Reconquista e o messianismo. No seu interior, os objetivos espirituais e materiais da expansão não se separariam. Pensando-se como providencialmente eleito por Deus para a recuperação de Jerusalém, o estabelecimento da paz perpétua e para a reforma da Igreja, o “imperador” português buscava realizar seus intuitos por meio da conquista dos mares e das rotas de comércio. Ou seja, pela via “de uma cruzada pela pimenta e não mais pelo Santo Sepulcro” (THOMAZ, 2008: 101-102).
Com o ensaio de Thomaz, dialoga de maneira interessante o capítulo de Ana Paula Vosne Martins, sobre o tema imperial em Carlos V. Vejamos como conclui a autora sobre o herdeiro espanhol dos Habsburgos:
Como um cavaleiro de Cristo ele procurou por meio da ação política renovar o império e fundar a República Cristã, ideário cavalheiresco, medieval e também humanista. Por outro lado, não podemos esquecer que para atingir estes objetivos nobres e cristãos Carlos foi um príncipe moderno, sustentando suas ações no racionalismo político (MARTINS, 2008: 223).
Percebe-se, tanto no D. Manuel, de Thomaz, quanto no Carlos V, de Martins, que a questão central relativa aos impérios ibéricos está colocada na combinação de objetivos fundados na tradição teológico-política cristã “medieval” com meios “modernos” de buscar sua consecução. Colocado desta maneira, o problema revela-se bem mais opaco do que se poderia supor. Isso porque, ao se tratar de império, o que se combina aqui são conteúdos por vezes bastante opostos tais como o universalismo cristão de uma imperatoria potestas e a soberania absoluta de uma monarquia moderna. Nisso não deixa de tocar o texto de Luís Filipe Silvério Lima que lembra que, no século XVII português, as formulações de Vieira sobre o Quinto Império se davam no interior de
monarquias definidas (e não de uma idéia geral de império), de um espaço de conquistas e expansão (e não de uma noção hipotética de orbe como espaço da comunidade cristã ou de reconquista de uma Jerusalém perdida), e mais importante, se afirmavam como execução (consumação) completa da soberania, ou seja, o ideal imperial (e o ‘horizonte de perspectiva’ que tinham a partir de suas esperanças) estava ligado ao exercício absoluto e soberano do poder” (LIMA, 2008: 254-255).
Ora, se é verdade, como já fora postulado, que a chave do império permitiria uma abordagem menos insuficiente do que a bipolaridade metrópole/colônia na consideração da história da América portuguesa, a partir da complexidade que o conceito de império assume na “modernidade ibérica”, torna-se necessário refinar conceitualmente o que se entendia naquela época pelo termo império e o que podemos disso tomar, por extensão. A ele, não se pode simplesmente associar concepções romanas, tardo-antigas e carolíngias como necessariamente válidas em longa duração, bem como não se pode projetar pré-concepções derivadas do imperialismo de épocas mais recentes do capitalismo industrial. Há que se reconhecer, nele, as particularidades e as transformações que passa a assumir em cada espaço datado. Assim, mesmo ao longo da história da América portuguesa, o conceito de império pode não significar a mesma coisa do início ao fim, como de certo não significou.
É bem esse tipo de alerta que Facetas do Império na História traz ao público. Conceitos e métodos, mobilizados no plural, supõem exatamente a necessidade de reflexão sobre a diversidade de fenômenos que se recobrem pela noção aparente e enganosamente auto-explicativa de “império”. O livro não busca cercar todo o campo que a noção abrange e confessa sua própria limitação neste sentido. O que faz é ensaiar maneiras de olhar para impérios, sejam aqueles que assim se autodenominaram ou que foram denominados por outros. No caso português, entre os séculos XV e XVIII, a autodenominação e a conceituação a posteriori de “império” nem sempre coincidem em sentidos. Talvez aqui, muito sutilmente, resida o sabor especial do livro, instigando novas abordagens menos viciadas sobre a questão.
Referências
THOMAZ, L. F. A idéia imperial manuelina. In: DORÉ, A.; LIMA, L. F. S. & SILVA, L. G. Facetas do Império na História: conceitos e métodos. São Paulo: Editora HUCITEC, 2008, pp. 39-104. [ Links ]
MARTINS, A. P. V. Milles Christianus: Carlos V e o tema imperial. In: DORÉ, A.; LIMA, L. F. S. & SILVA, L. G. Facetas do Império na História: conceitos e métodos. São Paulo: Editora HUCITEC, 2008, pp. 212-223. [ Links ]
LIMA, L. F. S. Os nomes do império no século XVII: reflexão historiográfica e aproximações para uma história do conceito. In: DORÉ, A.; LIMA, L. F. S. & SILVA, L. G. Facetas do Império na História: conceitos e métodos. São Paulo: Editora HUCITEC, 2008, pp. 244-256. [ Links ]
Guilherme Amaral Luz – Professor Doutor – Instituto de História – Universidade Federal de Uberlândia – UFU – 38.400-902 – Uberlândia – MG – Brasil. E-mail: galuz@uol.com.br.
Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII) – FRAGOSO et al (RBH)
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 473p. Resenha de: GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002.
Com um prefácio impecável de A. J. R. Russell-Wood, chega-nos uma obra coletiva inovadora que une pesquisadores lusos e brasileiros. Não se trata de mais uma publicação que acompanha o crescimento do mercado editorial sobre os tempos coloniais, embalado pela comemoração dos descobrimentos, mas de uma contribuição definitiva para a revisão do chamado “antigo sistema colonial”. Lá se vão pouco mais de vinte anos desde que Ciro Flamarion Cardoso chamou a atenção, de forma ensaística, para a preocupação obsessiva com a extração de excedentes pela metrópole na historiografia colonial brasileira. Ao cabo deste período, a pesquisa acadêmica tomou fôlego e trouxe novas evidências empíricas para a cena do debate.
A historiografia portuguesa, independentemente das discussões acerca da autonomia do modo-de-produção escravista colonial que marcou profundamente os estudos brasileiros, também se renovou com o revisionismo de seu Antigo Regime, particularmente sobre o fracasso das reformas pombalinas, o crescimento industrial gorado com a Independência brasileira e o questionamento sobre a centralização do poder pelo Estado monárquico lusitano.
Ambos os percursos historiográficos se amalgamam nesse livro, nos dando uma visão ampla e diversificada sobre a complexidade do que foi o Império luso, tendo como elemento catalizador o controvertido “pacto colonial”.
O primeiro bloco de ensaios, através da pesquisa de múltiplas fontes primárias manuscritas e inéditas, traça a trajetória da elite econômica e política da capitania do Rio de Janeiro. João Fragoso, Antonio Carlos Jucá de Sampaio e Helen Osório vão abrir o conjunto de doze artigos, situando a praça mercantil carioca no centro de uma vasta rede de operações abrangendo rotas no ultramar africano e asiático, bem como as linhas do abastecimento do mercado brasileiro da época. Atuação que caracterizou a elite mercantil de grosso trato daquela cidade pelo menos até os anos de 1830 e que se consolida no setecentos (Fragoso, p. 333).
A passagem da elite agrária dos fundadores da Guanabara para o predomínio dos homens de negócios na hierarquia social é marcada pela crise da economia açucareira que acompanhou a reativação mercantil do Rio de Janeiro, causada pelo impacto da mineração e o controle carioca no abastecimento das Minas Gerais. Também a subordinação da economia sulista ao domínio dos capitais mais elevados dos negociantes guanabarinos fica patente nos dados de arrematação dos impostos sobre as mercadorias rio-grandenses, estudados por Helen Osório.
Os três artigos iniciais vão sublinhar as estratégias de enriquecimento dentro de uma economia chamada do “bem comum”, dominada pelas melhores famílias da terra. Nessa economia de distribuição de benesses e privilégios, as alianças familiares e clientelistas são decisivas para acumulação de fortunas. Nota-se a influência, entre outras, da abordagem de Giovanni Levi, Braudel e Polanyi, para a análise da reciprocidade dos favores entre famílias e o mercado pré-capitalista imperfeito, bem como do método genealógico das famílias, propalado por Adeline Daumard e Jacques Dupâquier, imprescindível para a reconstituição dos mecanismos de formação dos patrimônios privados nas sociedades pré-industriais.
Talvez, neste bloco inicial e ao longo do livro, o leitor sinta a falta de trabalhos que cuidassem mais detidamente da participação das demais capitanias no sistema complexo das rotas mercantes e no funcionamento administrativo dos vice-reinados, notadamente da Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo e Grão-Pará. Embora esse desejo pudesse soar excessivo ao plano que alinhava a obra, o do esforço de análise dos aspectos centrais do Antigo Regime lusitano revisto pelo papel desempenhado pelas instituições e elites coloniais, com ênfase na praça do Rio de Janeiro.
Nas duas seções seguintes, a diversidade de assuntos partilha de um denominador, o das relações de poder na administração do Mare Lusitano. A figura de um regime colonial centralizado no poder da Coroa é substituída pela imagem de um espaço de negociação, que edifica as relações mutualistas ou simbióticas entre a grande autonomia das câmaras municipais, instituições eclesiásticas ou senhoriais e o poder real, que se beneficiava do bom andamento dos negócios coloniais (ver artigos de Maria Fernanda B. Bicalho, Antonio Manuel Hespanha, Nuno Gonçalo F. Monteiro e Maria de Fátima S. Gouvêa). Afinal a economia política dos privilégios, institucionalizada pelas monarquias do Antigo Regime nas colônias, estava assentada numa cadeia de negociações entre redes pessoais e institucionais do poder local e o trono metropolitano, hierarquizando os homens e o acesso à obtenção das benesses imperiais. O outro lado desta realidade seria a coesão política necessária para o governo do Império. Antonio Manuel Hespanha, investigando as regras formais para a atuação das instituições coloniais diante do poder real, indicará as inconsistências da suposta uniformidade da estrutura jurídica do Império, como corolário da idealização do centralismo do poder do monarca. Trabalhando comparativamente com a diversidade de situações entre a organização da justiça em Goa, Bahia e Rio de Janeiro, Antonio Hespanha torna visível a pluralidade dos laços de políticos que iriam se estabelecer entre o poder local e a Coroa a partir das distâncias e realidades da conquista, nas quais o direito colonial moderno se ajustava e os nativos estabeleciam suas práticas legislativas próprias. Portanto, a centralização não poderia ser efetiva sem um quadro legal uniforme e o poder restrito ao mando dos oficiais metropolitanos.
A experiência da evangelização é tratada por Ronald Raminelli e Hebe de Mattos. O primeiro, enfatizando as diferentes estratégias missionárias no Congo, Brasil e Japão, que pretenderam unir povos diversos sob a defesa da fé cristã. O projeto missionário que cimentava a conquista, ao criar a identidade cultural entre povos subjugados e os valores metropolitanos, continha elementos para a sua corrosão ao se manter dentro dos limites da desigualdade representada pela exclusão dos gentios no corpo social hierarquizado.
Num dos artigos mais polêmicos da coletânea, Hebe de Mattos vai se contrapor às motivações de ordem econômica utilizadas pela historiografia brasileira para explicar o estabelecimento do regime escravista nas Américas, tais como a falta de braços para as tarefas da colonização ou a lógica mercantilista das monarquias modernas. A construção de justificativas religiosas para a escravidão, a exemplo da guerra justa para a salvação dos gentios, não foi forçada pela lógica mercantil da expansão. Ao contrário, antecederia a empresa ultramarina e teria fabricado as referências mentais e políticas, de fundo corporativo e religioso, que permitiram a aventura colonial, inclusive em sua dimensão mercantil. A escravidão seria a mola propulsora para os colonos portugueses motivados pela possibilidade de se afidalgarem no além-mar, conquistando o status de senhores de homens e terras. Caímos, assim, na polêmica das determinações históricas e poderíamos nos perguntar se não deveríamos separar as motivações das razões impostas pelas necessidades da experiência da colonização. Ou ainda, distinguir as aspirações que moviam os colonos e as estratégias da Coroa para o seu enriquecimento, dentro da lógica mercantilista do Estado moderno. De qualquer maneira, deixemos o leitor tomar partido.
A última parte do livro vincula múltiplos aspectos da obra à construção da noção de uma economia colonial tardia, que se define pela hegemonia do capital mercantil residente no Rio de Janeiro, e se constituiria na nova elite econômica da América portuguesa. João Fragoso persegue um modelo explicativo para a economia colonial já definido em sua tese de doutorado (Homens de grossa aventura), e do qual alguns trabalhos aqui apresentados lhe são tributários. Por conseguinte, modelo forjado no programa de história agrária da UFF, sob a batuta de Maria Yedda Linhares. Nele, a autonomia da economia colonial é sustentada, com base numa cuidadosa pesquisa empírica, diante das flutuações externas e do poder da metrópole. A hegemonia econômica dos negociantes do Rio de Janeiro é meticulosamente recuperada por fontes cartoriais e arquivísticas diversas. Neste novo livro, Fragoso procura remontar seu estudo ao momento da transformação da acumulação de capitais pela economia da plantation em direção à constituição de uma elite mercantil colonial, que se mostrará autônoma e capaz de amealhar sua fortuna nas redes do comércio interno e ultramarino. As implicações dessas constatações são imensas para a historiografia brasileira, ainda não explorada de todo nas suas dimensões políticas e sociais.
E, finalmente, os textos de Roquinaldo Ferreira e Luís Frederico Dias Antunes ajudam a fundamentar os argumentos de Fragoso. Ambos, com riqueza de detalhes, reconstroem os circuitos intra-ultramarinos do comércio carioca com a costa africana e Goa. Negociantes do Rio, da Bahia e Pernambuco são identificados com freqüência nos portos indianos, participando ativamente do comércio de tecidos asiáticos (Luís Antunes). As três praças também usufruíam da vantagem do comércio direto com Angola, com a presença de suas embarcações representando cerca de 85% de toda a movimentação portuária de Luanda entre 1736 e 1770 (Roquinaldo Ferreira). Do Brasil partiam os panos asiáticos reexportados, as cachaças (“geribitas”), pólvora e armamentos para as trocas no sertão angolano, especialmente os escravos. E nesse tráfico novamente o Rio de Janeiro se destaca, absorvendo 48,5 % dos navios negreiros que zarparam de Luanda na década de 1760 (Idem).
Ao concluirmos nossa leitura, no mínimo podemos afirmar que se os argumentos não convencerem os mais céticos, a profusão de indícios e as comprovações empíricas, especialmente sobre a vinculação da praça carioca com a navegação de longa distância e suas triangulações de mercadorias com a Costa da Mina, Angola e Goa, alteram em definitivo a percepção do “pacto colonial”, reafirmando a autonomia que o capital mercantil sediado nas colônias ousou possuir ante o poder metropolitano. É prova também de que a história econômica e das estruturas se renova, sem esgotar as suas possibilidades de contribuição para o saber histórico. Aqui, os resultados das pesquisas regionais se sintonizam e dialogam com uma totalidade revisitada, o Império colonial português. Aguardamos ansiosos pelas controvérsias que o livro certamente causará no meio acadêmico.
Afonso de Alencastro Graça Filho – Universidade Federal de São João del Rei.
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