Las nuevas caras de la derecha | Enzo Traverso

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Enzo Traverso | Foto: ULF Andersen/Gamma-Rapho/Getty/O Globo

O que me levou a ler o livro de Enzo Traverso não foi apenas o título referente a esse dossiê de resenhas sobre “novas direitas”. O fato de ele ser um dos poucos historiadores de ofício a estudarem o fenômeno e de fazê-lo com ferramentas típicas de historiador – a categoria “regimes de historicidade” – foi o que pesou na escolha. Las nuevas caras de la derecha (2021) é a tradução argentina de Les nouveaux visages du fascisme (2017). O título em francês retrata com maior fidelidade o conteúdo desse livro do historiador italiano, atuante na Holanda, França e nos Estados Unidos da América (EUA): a narrativa do processo de transição do fascismo ao pós-fascismo, vivenciada por europeus e estadunidenses nos últimos vinte ou trinta anos, e comunicada imediatamente após atentados terroristas na França, como o massacre do Charlie Hebdo.

Las nuevas caras de la derecha 2O livro é um agregado de entrevistas concedidas ao antropólogo Régis Meyran, em Paris (2016), sobre temas correlatos, atravessados pelo conceito de “pós-fascismo”. O prólogo à edição castelhana, contudo, é inteiramente dedicado a outro conceito: “populismo”. As constantes referências à expressão durante as entrevistas e forte apelo dos estudiosos de Filosofia e História Política ao conceito (em sua visão, já enfraquecido academicamente) levaram-no, provavelmente, a dispender duas páginas para diferenciar populismo e “tendências regressivas solidamente arraigadas” na Europa e nos EUA no século XXI.

Na tipologia, curiosamente, Traverso o reintegra como categoria, quando afirma que o populismo argentino e peronista (nacionalista, messiânico, carismático, autoritário e idealizador do povo) difere dos “populismos reacionários” estadunidense (D. Trump) e francês (M. Le Pen e E. Macron). O primeiro distribui riqueza entre os pobres e os insere no sistema democrático. Os segundos são orientados pela entrega da nação “las fuerzas impersonales del mercado”. (p.21). O primeiro, acrescentamos, foi gestado no imediato pós-guerra em mundo bipolar. O segundo, reitera o autor, foi gestado na “era da globalização neoliberal”. O primeiro, por fim (como vários movimentos políticos do século XIX), pode continuar a ser designado “populismo”. O segundo, entretanto, deve ser tipificado como “pós-fascismo”.

O primeiro capítulo do livro – “¿Del fascismo al posfascismo” – é dedicado à definição dessa nova categoria. O que vemos nas duas primeiras décadas do século XX, segundo Traverso, não é um resíduo nem um prolongamento do fascismo, ou seja, não é o caso de se falar em “neofascismo”. Os fascismos clássicos (italiano ou alemão) eram antidemocráticos e os pós-fascismos (ao menos o de Le Pen) querem “transformar el sistema desde dentro” (p.27). Os fascismos clássicos eram estatistas, imperialistas e queriam criar uma “terceira via entre liberalismo e comunismo” e os pós-fascismos (ao menos o de Trump) são neoliberais. Os fascismos clássicos possuíam uma visão de mundo e um “modelo alternativo de sociedade”, enquanto os pós-fascismos (o de Trump é, novamente o exemplo) não tem programa ou se reduz a um “Make America Great Again”. Os fascismos clássicos estavam fundamentados em uma “ideologia forte” e o pós-fascismo, exemplificado por Macron, significa o “grau zero de ideologia”.

Com as sucessivas comparações, somos levados a definir o pós-fascismo a partir de traços ideológicos na esfera política, econômica e social: combate à democracia, defesa do livre mercado, ausência de projeto societário e de ideologia forte. Traverso, contudo, acrescenta uma marca diacrítica fundamental: “Lo que caracteriza al posfascismo es un régimen de historicidade específico – el comiezo del siglo XXI – que explica su contenido ideológico fluctuante, inestable, a menudo contradictorio, en el cual se mezclan filosofias políticas antinómicas.” (p.26).

A oralidade que marca o texto e a interrupção do entrevistador, provavelmente, o impede de detalhar esse novo “regime de historicidade”. Tomando como base o seu livro anterior (citado pelo apresentador, Régis Meyran), somos induzidos a compreendê-lo como um tempo sem futuro (horizonte de expectativas), algo que explicaria, inclusive, o caráter instável e contraditório das ideologias e as recorrentes antinomias em termos de “filosofia política” no interior dos movimentos e partidos. Esse auxílio, contudo, é insuficiente para relevar as contradições do próprio Traverso nas definições de pós-fascismos por meio de exemplos.

Afinal, se as antinomias são o caráter dos movimentos pós-fascistas, poderíamos rotulá-los como antidemocráticos? Se os fascismos italiano e alemão reuniam “corrientes diferentes, desde las vanguardias futuristas hasta los neoconservadores, de los militaristas más belicosos a los pacifistas muniquenses etc.” as antinomias deveriam continuar traço diferenciador dos movimentos e partidos do século XXI? Se as categorias “horizonte de expectativa” e “espaço de experiência” estão fundadas na ideia de continuidade passado/presente/futuro, porque afirmar peremptoriamente que as novas direitas do século XXI, exemplificadas na figura de Trump, não representariam uma continuidade histórica e nem uma herança com o fascismo histórico (mesmo que o sujeito citado não as reivindicasse conscientemente)?

O segundo capítulo – “Políticas identitarias” – expressa concepções de Traverso sobre o emprego da categoria “identidade”, acompanhada de suas críticas aos discursos identitários difundidos, principalmente, pela Frente Nacional (FN) e o “Partido de Indígenas de la República” (PIR). Sua ideia de identidade é remetida (entre outros referenciais) a P. Ricoeur – que lhe inspira na caracterização das identidades veiculadas pelos partidos de esquerda (ipseidade – identidade histórica) e de direita (mesmidade – identidade essencial). Em termos abstratos, Traverso elogia as políticas identitárias de esquerda que reivindicam o “reconhecimento”, ao passo que as de direita reivindicam a “exclusão”.

A esquerda radical (Traverso lamenta) nunca soube conciliar diferentes pautas identitárias, pondo o fator econômico (a classe) acima das identidades de raça, gênero e religião. Nesse sentido (ainda que de modo irônico, para Traverso), a nova direita representada pela FN, por exemplo, é mais eficiente, pois associa a defesa dos “blancos humildes”, manifestando, assim, a sua simpatia pela categoria interseccionalidade. Quanto às críticas às políticas de direita, estas não são nada genéricas. O laicismo, as identidades nacionais e étnicas difundidos pela FN são reacionárias (defensivas), ilógicas, antieconômicas e antissociais.

A melhor parte da discussão entabulada por Traverso, nesse capítulo segundo, está nas razões que ele aponta para esse reacionarismo. As políticas identitárias das novas direitas (que geram a exclusão de migrantes), o laicismo autoritário de Estado (que negam a cidadania plena aos ex-colonizados e que prometem o retorno à Europa anterior ao Euro) são produtos da própria República e do Colonialismo. Assim, não se pode acusar a FN de antirrepublicana, posto que as exclusões do tipo fazem parte da história da República francesa recente. Nesse trecho, quase que ouvimos Traverso declarar que não há (não houve) um germe ultradireitista. Foi a própria serpente (a República francesa) que pariu os identitarismos excludentes dos novos reacionarismos.

Aqui, vemos como o autor põe grupos de esquerda e de direita sob o mesmo solo – que gera as mesmas distorções. Ele avança ainda mais na indicação de semelhanças quando afirma que as “direitas radicais”, os “expoentes liberais e conservadores” não mais buscam “legitimar uma política” por meio da “ideologia”, que “se improvisa a posteriori”. Chega a empregar a expressão “pós-moderna” para tipificar esse traço do nosso tempo. Mesmo que esteja entre aspas, essa expressão não cabe na passagem.

Se ele admite a legitimidade política não ideológica como consequência de uma relação pós-moderna dos humanos com o tempo, as continuidades de ideias e práticas das novas direitas com as ideias e práticas de direitas do século XIX e XX não mais se sustentam. Se, ao contrário, ele reitera a interpretação das novas direitas dentro dos quadros de um novo regime de historicidade, a condição “pós-moderna” não faz nenhum sentido no seu texto.

Além desse deslise teórico, Traverso revela um misto de idealismo em relação à ideia de partido político, em prejuízo, inclusive da sua abordagem historicista (realista) sobre as novas direitas. A vida partidária, mesmo em tempo anterior ao século XXI, é marcada por estratégias de sobrevivência que resultam em diferentes comportamentos, desde a manutenção de um programa, passando pela captura dos eleitores, até a manutenção do poder, quando à frente do Executivo.

No terceiro capítulo do livro – “Antissemitismo e islamofobia” –, as questões identitárias ganham ainda maior espaço. O entrevistador parece determinado a extrair de Traverso uma crítica às definições dos termos em pauta e uma comparação entre os dois fenômenos, tomando-os em seus elementos aparentemente similares: o antissemitismo na primeira metade do século XX e a islamofobia no início do século XXI. O autor resiste várias vezes a compreendê-los como fenômenos simétricos e, implicitamente, a considerá-los “ideologias”. É certo, julga ele , que as afinidades existem: para os antissemitas dos anos 30 do século passado, judeus e bolchevistas eram um “outro” ameaçador, enquanto para os islamofóbicos, os mulçumanos e os terroristas islâmicos são um novo outro inimigo; o antissemitismo estruturava os ideais nacionalistas do início do século XX, enquanto a islamofobia estrutura os nacionalismos europeus do início do século XXI.

Essas similitudes, contudo, são menos expressivas quando observadas caso a caso, com destaque para a experiência francesa. Para Traverso, a “judeofobia” é combatida pelo Estado francês que, por sua vez, legitima a islamofobia. Os judeus estão integrados econômica, social e culturalmente, enquanto africanos e asiáticos e seus descendentes, mesmo nascidos na França, experimentam uma cidadania de segunda categoria. Nos anos 60 do século passado, ao lado dos negros, judeus marcharam em luta contra o racismo e pelos direitos civis. Hoje, organizações civis que congregam judeus confundem o Estado de Israel e comunidade judaica, oprimindo palestinos em suas próprias terras: “La memoria del Holocausto se há convertido en una religión civil republicana, en tanto que la memoria de los crímenes coloniales sigue negada o acallada, como en el caso de las controvertidas leyes de 2005 sobre el ‘papel positivo’ de la colonización.” (p.88). A emergência da islamofobia contemporânea, conclui o autor, não pode ser reduzida ao racismo clássico dos séculos XIX e XX ou ao fator imigração. O colonialismo entranhado na República é o que explica (na certeira expressão de Meyran) o “racismo de pobre” em vigor na França.

Observem que não apresentei nenhum senão ao capítulo terceiro e o mesmo ocorre com o quarto capítulo – “¿Islamismo radical o islomofascismo? El Estado Islãmico a la luz de la historia del fascismo”. Nele, novamente, Meyran tenta extrair de Traverso uma posição sobre a potência heurística da categoria (“islamofascismo”) e, consequentemente, sobre a validade de tipificar o Estado Islâmico (EI) com expressão do fascismo. Ele  rechaça a proposição, embora reconheça semelhanças entre os fascismos italiano, alemão e francês e as ações do EI.

Elas estariam principalmente, nos contextos de emergência do primeiro e do segundo fenômeno (desestabilização da Europa pós Primeira Guerra Mundial e desestabilização de países árabes pós invasões soviéticas, estadunidenses e europeias no Iraque e Afeganistão, por exemplo) e no caráter conservador das suas revoluções (o emprego da tecnologia para propagandear uma sociedade “obscurantista”, baseada em um “passado imaginário”. As diferenças, contudo, superam as similaridades mais gerais, quando, segundo Traverso, o analista aborda os fenômenos diacronicamente e em suas particularidades.

hemos visto surgir fascismos en América Latina, es decir, fuera de Europa: ahora bien, estos se instalaron en el poder gracias al apoyo de los imperialismos, las grandes potencias. En Chile, uno de los peores regímenes fascistas latinoamericanos se instaló mediante un golpe de Estado organizado por la CIA. […] La fuerza del EI, al contrario, radica en el hecho de mostrarse ante los ojos de muchos musulmanes como un movimiento de lucha contra el Occidente opresor. Eso vuelve problemático definir este movimiento como fascista.

Henry Kissinger e Augusto Pinochet 1976 Imagem Ministerio de Relaciones Exteriores de ChileWikipedia

Henry Kissinger e Augusto Pinochet (1976) | Imagem: Ministerio de Relaciones Exteriores de Chile/Wikipédia

Fascismo é conceito histórico, não devendo ser usado como categoria analítica. Totalitarismo (de H. Arendt) é categoria analítica adequada ao exame do EI, mas limitada à sua natureza abstrata (de categoria), a exemplo da categoria nacionalismo. O nacionalismo fascista é cimentado pelo “culto ao sangue” (Itália) e “culto ao solo” (Alemanha) e o nacionalismo do EI é “universalista”; o fascismo (categoria ou conceito histórico?) do Chile foi apoiado pelo imperialismo estadunidense que combate agora as ações do EI; o fascismo da Itália e da Alemanha emergem como alternativa à democracia liberal, enquanto o EI emerge em território que nunca praticou a democracia; o fascismo da Itália e da Alemanha eram anticomunistas enquanto o EI nunca encontrou a resistência de “uma esquerda radical”.

Ao listar meia dezena de razões para não tipificar o EI como fascista, Traverso demonstra os perigos das conclusões sobre causas e consequências de fenômenos históricos com base apenas no emprego de categorias (sobre todo os tipos ideais). Ideologias são apenas uma variável. Não é a religião que explica o EI: “hay que estudiar l la relacion que existe entre Marx, el marxismo, la Revolución Rusa y el estalinismo […] resulta evidente que el EI no es la revelación del islan ni la única expresión posible del islam, pero si uma de sus expresiones […] la Inquisición no es la única expresión posible del cristianismo, !también existe la teologia de la Liberación”. (p.92) Traverso, por fim, deixa implícito que quando cientistas sociais e historiadores tomam a ideologia como causa eles enviesam os resultados. Quando estrategistas e políticos agem dessa forma, o prejuízo é em escala. Eles criam “espantalhos”, omitem o assentimento popular ao EI, o financiamento ocidental ao EI, a contribuição ocidental midiática à banalização da violência (adotada pelo EI), a instrumentalização das ideias de direitos humanos, liberalismo e democracia para exterminar os movimentos emancipatórios de povos africanos e asiáticos.

Nas conclusões do livro – “Imaginario político y surgimento del posfascismo” –, mais uma vez, o leitor perceberá a tensão entre o reiterar de uma tese (a falência das utopias do século XX, a exemplo do comunismo e do fascismo, dá vasão às investidas pós-fascistas, encarnadas pelas novas direitas e o terrorismo islâmico), a instabilidade da aplicação dos conceitos (o “modelo antropológico do neoliberalismo”, também referido como “idolatria do mercado”, é ou não uma ideologia dos últimos 20 anos?) e a atribuição de valor na causação das novas direitas (a extinção das ideologias do século XX, a precariedade socioeconômica de grandes segmentos populacionais, na Europa, Ásia e África ou os dois condicionantes simultaneamente?).

Da mesma forma, ainda na conclusão, Traverso consolidará,  sinteticamente, as principais ideias que se propôs a defender durante a entrevista: 1. Novas direitas (ou direitas radicais) e islamismos não são fascistas; 2. Novas direitas e islamismos são “sucedâneos” reacionários (passadistas e xenófobos) das utopias do século XX; 3. Movimentos sociais e partidos políticos de esquerda (com suas iniciativas, ironicamente, dispersas em um mundo globalizado) não são capazes, no curto prazo, de preencher esse vazio utópico; 4. “Religiões cívicas” como o republicanismo francês pós massacre Charlie Ebdo e memorialismo anti-holocausto, respectivamente, acrítico e vitimista, são incompetentes como freios às novas direitas. Sua percepção de futuro, contudo, é otimista: “no hay inexorabilidade alguna. Pueden myy biente aparecer en cualquer momento mentes creadoras, dotadas de una poderosa imaginación, y proponer una alternativa, outro modelo de sociedad.” (p.116).

No início desta resenha, anunciei a razão da minha escolha: queria observar o que caracterizaria o trabalho de um historiador de formação e ofício que estuda o fenômeno das “novas direitas”. A resposta serve como avaliação geral do livro. Em Las nuevas caras de la derecha o noviço de história é beneficiado, talvez, pelo gênero textual (marcado pelos diálogos entre Meyran e Traverso) que elimina a organização lógica de um texto e (se o noviço aceita participar como observador) em benefício da liberdade de suspender a leitura e refletir sobre o lido sem perder o fio da meada (já que as questões ou temas se encerram ao final de uma ou duas intervenções do entrevistador).

Esse expediente possibilita a percepção das várias tensões que atravessam o livro e que ensinam de modo mais realista como trabalha um historiador que se ocupa do referido tema, obviamente, aos que estão predispostos a aprender: a tensão sobre as escolhas de variáveis para a comparação (sobre o que serve e o que não serve para fazer analogias, se mais as semelhanças, se mais as diferenças) e as justificativas políticas empregadas para fazê-lo; a tensão sobre a adequabilidade e a eficácia do emprego do conceito histórico e da categoria analítica; a tensão da escolha entre se comportar como historiador tipicamente historicista (examinando múltiplas variáveis e construindo contextos prováveis a partir de múltiplos pontos de vista) e um cientista social (empregando modelos/tipos e fazendo generalizações sobre sujeitos concretos a partir de categorias/abstrações); a tensão de perceber a oportunidade para problematizar uma situação concreta, mediante antinomias ou explicações unilaterais, e de encontrar o melhor momento para reiterar a sua tese sobre os estados de coisas nos quais estamos envolvidos no início do século XXI (Estado Islâmico, Trump, Le Pen): fenômenos pós-fascistas resultam do fracasso das revoluções do século XX e da crise do capitalismo como fornecedores de horizontes de expectativas para populações alijadas da globalização e vitimadas pelo colonialismo.

Sumário de Las nuevas caras de la drecha

  • Prefacio a la edición castellana
  • 1. Prólogo
  • 2. ¿Del fascismo al posfascismo
  • 3. Políticas identitarias
  • 4. Antisemitismo e islamofobia
  • 5. ¿Islamismo radical o “islamofascismo”? El Estado Islámico a la luz
  • de la historia del fascismo
  • Conclusión. Imaginario político y surgimiento del posfascismo
  • Sobre el autor

Para citar esta resenha

TRAVERSO, Enzo. Las nuevas caras de la drecha. Buenos Aires: Titivillus, 2021. 234p. Resenha de: FREITAS, Itamar. As recentes direitas de um historiador. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/3237/>.

Zoológicos humanos: gente em exibição na era do imperialismo | Sandra S. M. Koutsoukos

O livro aqui resenhado apresenta como protagonistas Eko, Iko, Hilda, Kurt, Elly, Stephan, Krao, Schlitzie, Peter, Bunny, Violetta, Mungo, William, Charles, Lavinia, George, Minnie, Sarah, Betty, Byrne, Ella, Lazzaro, Giovanni, Millie, Christine, Violet, Daisy, Chang, Eng, Maria, Rosalina, Liou-Seng, Liou-Tang, Joseph, Fanny, Quacke, “Manuel”, “Marie”, Abal, Nancy, Ota, Bomushubba, Shamba, Kondola, Lumbango, Latuna, Kalamma, Malengu, Lumo, Antonio, Ibag, Singwa, Johnny, entre outros tantos. Eles compõem um enorme grupo de seres humanos que foram desumanizados a partir da prática, consolidada no século XIX, de exibir seres humanos considerados exóticos, selvagens ou monstruosos em museus, teatros, circos, zoológicos, feiras e instituições científicas, tendo-se como base o discurso que se convencionou chamar “racismo científico” no mundo ocidental, um dos esteios fundamentais dos Estados imperialistas europeus. Leia Mais

Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI. Ensayos de interpretación histórica | Frank Gaudichaud, Jeffrery Webber e Massimo Modonesi

Resenha Destaque post 4

MODONESI Los gobiernos progressistasO livro [II] traz uma reflexão sobre os motivos que fizeram os governos progressistas latino-americanos, que outrora possuíam bastante força política para governar diversos países, a estarem atualmente sucumbindo frente a novas investidas da direita, como a eleição de Bolsonaro no Brasil, após mais de uma década de PT que se inicia em 2003 com Lula e se encerra em 2016 com Dilma. Nesse sentido, o livro realiza uma análise crítica dos governos de esquerda das duas primeiras décadas do século XXI com o objetivo de contribuir para as reflexões sobre essa temática.

O continente cresceu com lutas, rupturas e resistências. Entender o passado histórico nos permitirá compreender os fatos que sucederam a partir do fim da década de 1990 na região. O aspecto insurgente pode ser considerado um catalisador de mudanças que se associam aos governos progressistas.

O livro realiza uma análise crítica em torno desse tema. Podemos encontrar avaliações positivas e negativas dos chamados governos progressistas latino-americanos. Há, neste trabalho, uma narrativa imparcial, que avalia aspectos históricos, sociais e econômicos ocorridos entre o período das décadas de 1990 a 2000. Faz-se necessário destacarmos alguns pontos que se entrelaçam na análise dos três autores na obra, que se divide em três capítulos, o primeiro intitulado “Conflictos, Sangre y Esperanza. Progresismos y movimientos populares en el torbellino de la lucha de clases latinoamericana.” de Frank Gaudichaud [III], o segundo, “Mercado Mundial, Desarrollo desigual y Patrones de acumulación: La política Económica de la Izquerda Latinoamericana” de Jeffery Webber [IV] e o terceiro “El Progresismo Latinoamericano: Un Debate de Época” de Massimo Modonesi [V].

Para melhor compreensão do período do final da década de 1990, é importante considerar anos anteriores. Por isso, Gaudichaud demonstra em seu capítulo dados econômicos e sociais desde a década de 1980. Por exemplo, no período de 1980 a 2003 o desemprego aumentou de 7,2% para 11%. Além disso, no mesmo período, o salário mínimo diminuiu em um em média de 25%, e o trabalho informal teve um aumento de 36% para 46%.[VI]

Além disso, no decorrer da década de 1980, houve a mobilização dos movimentos de esquerda e a formação de um novo ethos militante. Novos movimentos sociais ganharam força, como o feminista, o indígena e o negro. Os desgastes das ditaduras militares, sobretudo pelas crises financeiras que vinham enfrentando, serviram de combustível para esses movimentos conquistarem espaço. Contudo, apesar de a década de 1980 ser considerada favorável às manifestações democráticas, pois encerra-se um estado repressivo, pelo lado econômico, a década de 1980 foi desastrosa, marcada pelos ajustes estruturais propostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), tais como as privatizações, restrições salariais e o fim de barreiras aduaneiras [VII].

Portanto, segundo os autores, no final da década de 1990 surgiram diversos debates e críticas sobre o neoliberalismo. Inúmeros movimentos sociais estavam insatisfeitos, na ocasião, com um sistema econômico neoliberal que, na narrativa de partidos políticos e movimentos sociais, sujeitava o Estado ao interesse de empresários e oligarquias.

Dessa forma, a partir dos anos 2000, podemos perceber que essa insatisfação com a hegemonia neoliberal começa a agitar os movimentos populares e de esquerda, que buscavam uma mudança nas estruturas, no Estado, ou seja, de baixo para cima. O cenário era propício para mudanças, as agitações nas calles, os movimentos sociais e a luta contra o imperialismo norte-americano. Portanto, a democracia novamente parecia o caminho para as mudanças, o que estimulou novamente a organização popular através de votos.

À vista disso, os autores apontam que o ciclo dos governos de esquerda, que se inicia em 1999 com Hugo Chávez na Venezuela, tem continuidade durante os anos 2000. Essas experiências têm suas bases nas raízes históricas do continente e surgem com a intenção de refundar a sociedade. Porém, em alguns casos foi necessário romper com mais veemência com antigos poderes na região, como a própria Venezuela com revoltas anti-imperialistas, a mais famosa delas chamada de Caracazo que contou com a maioria da população lutando por mudanças sociais e políticas.

Porém, precisamos destacar que dentro dessa “Onda Rosa” [VIII] houve diferentes formas de governos progressistas. Isto é, existiram experiências mais radicais e outras mais moderadas, ainda que fazendo parte do mesmo movimento. Isso explica-se pelas próprias diferenças entre os países. Dessa maneira, não podemos generalizar as experiências, ou seja, os projetos de governos progressistas tiveram suas particularidades em cada região.

Neste contexto, líderes políticos como Rafael Correa (Equador), Hugo Chávez (Venezuela) e Evo Morales (Bolívia) emergem no cenário político com grande apoio popular, tendo como conceitos principais de seus governos o anti-imperialismo e antineoliberalismo. Esses líderes políticos assumiram o embate político com os Estados Unidos como um aspecto central em sua inserção internacional.

Tal postura gerou reações dos Estados Unidos. Como exemplo disso, citamos a interferência norte-americana na Venezuela, que ocorreu com a tentativa de desestabilização à experiência progressista de Hugo Chávez, em abril de 2002. Os EUA utilizaram-se de agências, como a Central Intelligence Agency (CIA), para desestabilizar a gestão de Chávez. No capítulo de Webber, notamos inclusive, exemplos recentes de apoio norte-americano à instabilidade nos países Latino-americanos. Podemos citar o golpe militar de Honduras em 2009 que destituiu o presidente Manuel Zelaya e o golpe parlamentar no Paraguai em 2012.

No caso venezuelano, o ocorrido pode ser explicado pelo fato da Venezuela ter a maior reserva de petróleo do mundo e isso estava no controle norte-americano. O golpe só foi frustrado pelo fato de Chávez ter contado com apoio de grupos da sociedade civil e das Forças Armadas venezuelanas. Como destacam os autores, as estratégias de intervenções imperialistas norte-americanas têm se adaptado para serem feitas através da grande mídia, com ataques constantes à credibilidade de governos de esquerda.

Para além do anti-imperialismo e anti-neoliberalismo que os governos progressistas de esquerda propuseram, podemos ressaltar a forte raiz nacionalista e libertária de Símon Bolívar nestes governos. Essa imagem de Símon aparece mais ainda na “Revolução Bolivariana” que Chávez promoveu na Venezuela. Faz-se isso na tentativa de libertar a América Latina por meio do conhecimento de seu passado histórico de luta e resistência, fazendo uso dos grandes heróis do passado, tal como Símon Bolívar, San Martin, dentre outros.

As diferenças entre as experiências de esquerda residem, por exemplo, no fato de algumas delas terem sido caracterizadas como revolucionárias ou experiências moderadas/reformistas, segundo os autores. Isso está baseado nas reformas econômicas, sociais, políticas que esses governos propõem em relação aos modelos que já estavam implementados. As experiências mais revolucionárias são aquelas que mais promoveram rupturas em uma resposta ao neoliberalismo. Já as mais moderadas/reformistas são as que, ainda que tenham promovido algumas mudanças progressistas, deram continuidade às práticas dessa doutrina.

Durante uma década de governos progressistas na América Latina, podemos concluir que a política de distribuição foi o foco principal. Esses governos buscaram implementar mudanças sociais e econômicas, sobretudo, para as grandes maiorias. Projetos como o “Bolsa família” do PT no Brasil são um exemplo disso. Não somente isso, os governos de esquerda buscaram aumentar o poder de consumo das classes menos favorecidas. Por isso, durante esses governos muitas famílias que outrora não tinham condições, conseguiram conquistar bens como casa própria. Grande parte deve-se ao fato dos governos progressistas terem se aproveitado da alta das commodities, ocorrida em 2003 com a alta demanda industrial que a China promoveu.

Este país foi o principal destino das exportações da região no período de 2002 a 2012. Matérias-primas exportadas, como petróleo, soja, dentre outras, tiveram um aumento de preço, favorecendo a economia latino-americana. Portanto, um dos méritos desses governos é ter aproveitado esse aporte financeiro para investir nos projetos sociais. Isto deu resultado, pois vimos que, durante uma década, um número considerável de pessoas saíram da pobreza. Como aponta Gaudichaud, “Según la CEPAL, 70 millones de personas salieron de la pobreza en una década…” [IX]

Durante os governos de esquerda, também podemos destacar as nacionalizações de empresas que anteriormente haviam sido privatizadas. Esse processo visou combater um “mal” para a economia dos países latino-americanos, pois, em contraponto com o setor privado, o Estado ficava com menos recursos financeiros do que poderia. Ou seja, as empresas estrangeiras repassavam mais capital para seus países de origem, do que ao Estado em que elas estavam sediadas, além disso, é importante ressaltar que as empresas foram nacionalizadas de acordo com as políticas do mercado, isto é, com negociações do Estado com as empresas e com taxas de indenizações.

Alguns exemplos dessas nacionalizações ocorreram na Bolívia e na Venezuela com as empresas de gás, petróleo, água, etc. Na Bolívia, em 2000 e 2005, ocorreram grandes vitórias populares antes mesmo de Evo Morales ser presidente, como as “Guerras da Água” em 2000. Esses episódios terminam com a expulsão de duas multinacionais: a estadunidense Bechtel e a filial de Suez, Aguas del Illimani. Essas vitórias fizeram o governo desmercantilizar a água. Além disso, também houve a vitória popular na questão do gás em 2003. Esse alavancou a imagem de Evo Morales como um líder pelas lutas nacionais. O acordo cancelado com a empresa americana Pacífic LNG tinha como principais justificativas o fato de que afetava a soberania da Bolívia, uma vez que fazia com que ela fizesse negócios com o Chile (recentemente há um histórico de embates entre os dois países). Outra justificativa era que a Bolívia receberia um valor “x” pelo gás, e este seria vendido em solo americano por outro bastante superior.

Já na Venezuela, Chávez recuperou o controle da Petróleos de Venezuela Sociedade Anônima (PDVSA) e multiplicou os contratos com empresas estrangeiras de origens distintas onde entra, por exemplo, a aproximação com a China. As nacionalizações foram essenciais para inversão da política social, saúde e educação que os governos progressistas promoveram durante seu período na América Latina.

O Produto Interno Bruto (PIB) durante os governos progressistas cresceu na América Latina com casos excepcionais como a Bolívia, cujo PIB subiu de $8 bilhões em 2002 a $30 bilhões em 2013, de acordo com Gaudichaud [X]. Isso pode ser explicado pela alta dos preços das matérias-primas (como o petróleo) e investimento no agronegócio, ainda que isso tenha desagradado a setores sociais. Além disso, as experiências nacionais-populares que os governos progressistas implementaram também contribuíram para a economia interna, com o aumento do número de empregos e maior poder de consumo. Isso se fez por políticas redistributivas, assistencialistas e com concessão de créditos.

Como debatido por Massimo Modonesi, essa estratégia, voltada para a democratização do consumo, permitiu às pessoas que saíram da pobreza ou extrema pobreza contribuírem para a economia, gerando mais riqueza. Por outro lado, essa estratégia contribuiu também para que os governos progressistas, no que diz respeito à parte econômica, possam ser analisados como projetos conciliatórios. Haja vista que a democratização do consumo favorecia também a classe dominante, ou seja, segmentos da sociedade que são compostos majoritariamente por empresários, bancários, e, segundo Gaudichaud, isso resultou em consequências negativas para a esquerda pois podemos compreender que politicamente teria sido melhor para a esquerda que a incorporação das classes populares tivesse sido através da politização e não somente através do acesso ao consumo.XI

Portanto, uma das críticas que o livro faz aos governos progressistas deve-se ao fato do grande capital ter tido uma alta lucratividade durante suas gestões. Como aponta Webber, “tales mejoras modestas para las clases populares coexistieron con ganancias netas sin precedentes para el capital privado extranjero y nacional invirtiendo en sectores de recursos” [XII]. O agronegócio foi uma atividade que pode ser citada como exemplo. Os seus membros contaram com incentivos financeiros à produção, diminuição da burocracia e as economias do Estado se mantiveram e se intensificaram dependentes desse setor. O Brasil é um exemplo cuja economia depende de maneira relevante da exportação de soja. Durante o governo de Dilma Rousseff, houve um grande incremento nessas atividades, segundo Jeffery Webber.

Como apontado por Massimo Modonesi, os grupos indígenas merecem destaque como agentes políticos bastante relevantes na luta contra o neoliberalismo e o imperialismo na América Latina, entre as décadas de 1990 e 2000. Ao longo da história do continente, desde as invasões feitas pelos europeus, os indígenas têm sido perseguidos, exterminados e excluídos de um território que lhes pertencia. A mentalidade colonizadora que se faz presente até os dias atuais faz com que esses grupos sejam excluídos da sociedade, acentuando a vulnerabilidade desses povos indígenas. A constante perda de seus espaços, tão essenciais para a vida em comunidade que precisam, afeta diretamente a manutenção da cultura desses povos. Esses fatores geram um apagamento da cultura e identidade desses grupos, o que muitas vezes é legitimado pelo Estado, uma vez que falha em ter políticas que possam proteger esses grupos, suas terras e seu modo de viver.

Como debatido nos capítulos de Gaudichaud e Modonesi, após esse descaso e perseguição ao longo de diversos anos na América Latina, a resistência e a união se tornaram bastante presentes no modo de viver desses grupos indígenas, e por conta disso eles conseguem se mobilizar politicamente para continuar com suas reivindicações aos seus direitos à terra e à defesa da mãe natureza. Fazem ouvir suas vozes e marcham pelas ruas em manifestações agindo o ser político e chamando a atenção para o fato dos indígenas terem espaço em qualquer projeto de Estado na América Latina. Esses grupos estavam articulados, e com consciência política, e durante a época do descontentamento com o neoliberalismo, eles se uniram com outros grupos sociais em torno de um ideal comum, a luta contra o imperialismo.

Como afirma Gaudichaud, podemos destacar os Mapuches no Chile e a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) no Equador. Esses grupos apoiaram os governos de esquerda e obtiveram respeito e respostas quanto a muitas de suas reivindicações. Porém, antes de ser esquerda ou direita esses grupos são primeiramente indígenas, e vimos isso em diversas vezes em que eles também se chocaram com decisões dos governos de esquerda, como ocorreu a partir de 2013 no Equador em manifestações questionando o presidente Rafael Corrêa, principalmente após a decisão de explorar o Parque Nacional Yasúni, abrindo-a a empresas mineiras. Ou seja, Corrêa adotou o discurso de exploração para justificar seu projeto econômico de redistribuição, o que para muitos pode ser entendido como uma política que busca um plano mais amplo para a nação equatoriana, mas que foi visto por esses grupos indígenas como uma traição por afetar diretamente suas matrizes.

Diante do extrativismo e do avanço do setor capitalista do agronegócio sobre os recursos da natureza, diversos grupos resistentes a esses ideais têm se chocado com o capital privado, como os camponeses, que defendem o meio ambiente e, em especial, os indígenas, como apontado no livro. Logo, é correto afirmar, segundo o capítulo de Webber, que esses grupos indígenas possuem uma ação política muito importante e uma voz politicamente ativa [XIII].

Nesse sentido, em alguns países latino-americanos, observamos que a luta de classes é muito recorrente. Como apontado pelos autores, o enfrentamento de grupos com interesses antagônicos se faz presente no continente, como por exemplo os movimentos sociais, indígenas, que discordam de projetos defendidos pelos grandes empresários, bancários, dentre outros. No livro, percebemos um viés marxista na análise dos autores que mostram como a temática da luta de classes é relevante para compreendermos como ocorreu a luta pela terra, por direitos sociais, por um Estado amplo de direitos em diversos países da América Latina como, por exemplo, nas experiências mais notórias dos governos progressistas: Bolívia, Equador e Venezuela.

Notas

II. O livro Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI – Ensayos de interpretación histórica, 2019 de organização de Franck Gaudichaud, Jeffery Webber, e Massimo Modonesi, fazem uma análise geral dos movimentos de esquerda latino-americanos iniciando em 1999 com Hugo Chávez na Venezuela até 2019 com o golpe a Evo Morales na Bolívia. Esses movimentos se acentuaram nesse período pois havia um descontentamento em diversos países latino-americanos com o projeto de direita: Neoliberalismo. Entretanto, o livro também irá apontar que o continente tem um histórico de revoltas, revoluções, e de lutas, em períodos que antecedem o neoliberalismo.

III. Frank Gaudichaud possui uma linha de pensamento marxistas além disso é francês, o que para esse estudo é bastante relevante pois permite ao mesmo uma análise de fora do objeto de estudo.

IV. Jeffery Webber é estadunidense mas visitou os centros de pesquisas da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO) em Quito, Equador, além do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Laboral e Agrário (CEDLA) e o Centro Boliviano de Estudos Multidisciplinares (CEBEM) em La Paz, Bolívia.

V. Massimo Modonesi pode ser destacado pelos seus estudos de movimentos sócio-políticos em México e América Latina e de conceitos e debates marxistas, além de ser diretor da revista “Memoria del Centro de Estudios del Movimiento Obrero y Socialista (CEMOS) e da revista OSAL de CLASCO (2010-2015).

VI. GAUDICHAUD, Frank. Conflictos, Sangre y Esperanza. Progresismos y movimientos populares en el torbellino de la lucha de clases latinoamericana. In: GAUDICHAUD, Frank, WEBBER, Jeffery, MODONESI, Massimo. Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI – Ensayos de interpretación histórica. UNAM, México. 2019. p. 22

VII. Um reflexo da desastrosa economia da América Latina na década de 1980 pode ser a queda do Produto Interno Bruto (PIB). Em fins do século XX o PIB na América Latina caiu consideravelmente de 3,8% em 1997 para 0,9% em 1998. Ou seja, uma queda brusca que representa quase ¼ em menos de um ano.

VIII. O que nós conhecemos hoje pelo nome governos progressistas foi um giro político impulsionado pela esquerda em diversos países da América Latina. Exemplo de Equador, Bolívia, e Venezuela, que podem ser consideradas como as mais notórias experiências deste “giro a esquerda”. Mas também podemos citar Brasil, Argentina, Uruguai, entre outros. Essas experiências foram apelidadas também como “marea rosa“.

IX. Ibidem, p. 46

X. Ibidem, p. 46

XI. Ibidem, p. 83

XII. WEBBER, Jeffery. Mercado Mundial, Desarrollo desigual y Patrones de acumulación: La política Económica de la Izquerda Latinoamericana. In: GAUDICHAUD, Frank, WEBBER, Jeffery, MODONESI, Massimo. Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI – Ensayos de interpretación histórica. UNAM, México. 2019. p. 114

XIII. Analisamos que em alguns países como Equador, a ruptura de Corrêa com os grupos campesinos, com grupos indígenas como a CONAIE, gerou um desgaste político do então presidente. Ou seja, essa ruptura pode ser entendida como relevante pois antes dela o próprio Rafael Corrêa havia recebido prêmios e grande visibilidade pelo projeto Yasúni, sendo coerente afirmar que este evento foi um ponto chave para sua imagem política.

Referências

GAUDICHAUD, Frank, WEBBER, Jeffery, MODONESI, Massimo. Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI. Ensayos de interpretación histórica. México, UNAM, 2019.

João Carlos Calzavara – Graduando do curso de História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Membro do Laboratório de Estudos de Imigração (LABIMI). Bolsista do Projeto de Extensão “Ideias Políticas e História do Tempo Presente da América Latina entre 1998 e 2018: uma comparação entre Bolívia, Equador e Venezuela”. E-mail: jccalzavara@gmail.com


GAUDICHAUD, Frank, WEBBER, Jeffery, MODONESI, Massimo. Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI. Ensayos de interpretación histórica. México, UNAM, 2019. Resenha de: CALZAVARA, João Carlos. Boletim Historiar. São Cristóvão, v.2, n.8, abr./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].

Dust Bowls of Empire: Imperialism/ Environmental Politics/ and the Injustice of “Green” Capitalism

El Dust Bowl que asoló varios estados del sur de Estados Unidos (Texas, Nuevo México, Colorado, Oklahoma y Texas) ha tenido diversas lecturas a lo largo de la historia y ha sido utilizado para justificar políticas sociales como el New Deal. En 1992, el historiador William Cronon analizó dos publicaciones de 1979 sobre el Dust Bowl, una de Donald Worster y otra de Paul Bonnifield, que partiendo del mismo tema y estando de acuerdo en los mismos hechos llegaban a conclusiones diferentes, demostrando que un conjunto de hechos podía dar lugar a varias narrativas. Este trabajo se hizo sin embargo desde una óptica regional sin considerar los antecedentes, y al igual que el de Lockeretz (1978), ignoró la violenta confrontación de los colonos, el estado estadounidense y las organizaciones privadas con las naciones indígenas. Holleman, en cambio, parte de un enfoque interdisciplinar, que vincula este desastre natural de raíces antrópicas con el proceso actual de Cambio Climático. Por esto, resulta interesante para profesionales de diversas áreas como historiadores, sociólogos, ambientalistas y politólogos. Leia Mais

Frontiers of Science: Imperialism and Natural Knowledge in the Gulf South Borderlands, 1500-1850 – STRANG (THT)

STRANG, Cameron B. Frontiers of Science: Imperialism and Natural Knowledge in the Gulf South Borderlands, 1500-1850. Williamsburg, VA: Omohundro Institute of Early American History and Culture and Chapel Hill, NC: The University of North Carolina Press, 2018. 376p. Resenha de: CLUXTON, Hadley Sinclair. The History Teacher, v.52, n.4, p.728-730, ago., 2019.

On the cusp of the nineteenth century, astronomers employed by Spain and the United States set out to survey the boundary between Spanish Florida and the United States as negotiated in the 1795 Treaty of San Lorenzo. Armed with a variety of scientific apparatus and a bevy of enslaved black men, the two imperial parties—both, ironically, headed by men of British descent—began the arduous task of making the astronomical observations that would establish the new line between nations. Each side boasted of their astronomical prowess, and each side denigrated the other’s supposed failures. However, it was not these imperially funded astronomers who ultimately decided the fate of this expedition. By their own admission, the surveyors never could have hacked their way through the dense foliage or persevered through the Mississippi River’s swamplands without the involuntary assistance of the enslaved black men rented out from nearby plantations. Furthermore, the entire expedition came to a screeching halt in 1800, when the armed resistance of Creek and Seminole peoples forced the empires to abandon their boundary survey. This is but one of many fascinating case studies that historian Cameron B. Strang presents on the production of natural knowledge in the Gulf South in Frontiers of Science: Imperialism and Natural Knowledge in the Gulf South Borderlands, 1500-1850.

Taking cues from one of his mentors, the inimitable historian Jorge Cañizares- Esguerra, Strang joyously exhumed from the archives rich and entangled narratives on the production of natural knowledge in the Gulf South borderlands and presented these histories in all their glorious complexity. The positive influence of other mentors can also be seen in Strang’s work: Jan Golinski’s constructivism, James Sidbury’s work on race, and Julia Rodriguez’s histories of science in Latin America. In Frontiers of Science, Strang presents a mosaic of case studies highlighting a diversity of Gulf South borderlands places, voices, and branches of natural knowledge. Incorporating a variety of knowledge practices—including astronomy, cartography, conchology, now-debunked phrenology, botany, and ethnography—these case studies defy the myth that only Anglo-Americans in the original thirteen colonies participated in the production of natural knowledge in America, or that scientific knowledge merely diffused outward from metropole to periphery. Rather, Strang argues that “natural knowledge and imperialism evolved together” (p. 21) and that indigenous peoples; free and enslaved blacks; Europeans from France, Spain, and Britain; Anglo-Americans; and creoles all formed part of a rich, polycentric network of intellectual exchange often characterized by loyalties as malleable as political boundaries.

The case studies in Frontiers of Science could make worthwhile readings for undergraduate or graduate classes in the history of science, intellectual history, U.S. history, Latin American history, indigenous history, or black history, just to name a few. Although Strang regularly emphasizes the interconnectedness between imperialism and the production of knowledge, he also builds a strong case demonstrating the importance of free and enslaved blacks in the history of natural knowledge that could (and should) be included in any classroom, given appropriate professorial curating. Until U.S. imperialism ossified the United States’ control over the region, blacks in the Gulf South participated at nearly every level of natural knowledge production. In addition, Anglo-American plantation owners who generously supported the advancement of science did so with wealth created through the labor of enslaved blacks—blacks who were actively oppressed intellectually as well as physically. To this end, Strang presents evidence that white supremacists in the Gulf South wielded science to actively construct the lie of black intellectual “inferiority” in order to justify slavery. As Strang stated, “the routes that supported slavery and science were often one and the same throughout the greater Caribbean” (p. 178). Students at every age deserve to learn about the historical ways in which Anglo-Americans created and perpetuated the structural inequality that persists to this day.

One challenge with incorporating this book into a pre-existing curriculum is the fact that it defies easy categorization. While the book flows well through a variety of case studies, Strang does not oversimplify his narratives. Furthermore, the histories stretch from 1500 to 1850 and include multiple imperial, indigenous, and African or African-descended groups, which poses serious issues of periodization.

This (much-needed) presentation of the entangled nature of knowledge production creates problems when trying to squash a round story into a square framework.

If a curricular rewrite is not feasible, one suggestion might be to excerpt case studies where they fit into a pre-existing outline. Another suggestion is to change the frameworks within which we study and teach history.

Strang calls for diversity in places and voices, as well as a more inclusive understanding of what constitutes “science.” Apart from a dearth of female perspectives, this book achieves that goal. Frontiers of Science is an intellectual love song to the Gulf South’s forgotten histories of natural knowledge, a quilt of intriguing case studies that relish in their inability to be readily categorized and constrained within our narrow historiographic frameworks. Strang’s book is a solid contribution to a burgeoning field—the history of natural knowledge in the Atlantic World—a field perhaps not in the process of consolidation, but rather in the process of decolonization.

Hadley Sinclair Cluxton – Odyssey School (Asheville, North Carolina).

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Storia della globalizzazione. Dimensioni, processi, epoche – OSTERHAMMEL; PETERSSON (BC)

OSTERHAMMEL, Jürgen; PETERSSON,  Niels P. Storia della globalizzazione. Dimensioni, processi, epoche. Bologna: Il Mulino, 2005 (2003). Resenha de: PERILLO, Ernesto. Il Bollettino di Clio, n.11/12, p.184-189, giu./nov., 2019.

Il saggio si snoda attraverso sette capitoli e una conclusione finale. Dopo aver precisato il concetto di globalizzazione nei due capitoli introduttivi, gli autori (insegnano storia contemporanea all’università di Costanza) ricostruiscono i processi che hanno portato all’attuale mondo globalizzato, a partire dall’età medievale e moderna, mostrando la progressiva interconnessione di rapporti economici, politici e culturali e al tempo stesso la profondità storica della globalizzazione.

Il presente è terreno elettivo delle scienze sociali che hanno assunto la globalizzazione (dagli anni Novanta circa del secolo scorso) come categoria interpretativa delle loro analisi, mettendone in luce le diverse caratteristiche. Che il mondo sia sempre più piccolo e interconnesso è d’altronde senso comune diffuso, esperienza quotidiana e concreta di un numero sempre maggiore di persone.

In questo scenario gli storici possono essere utili esercitando il loro mestiere: mettere in prospettiva temporale il tema (la globalizzazione), problematizzare ciò che appare come assoluta novità, verificare la tenuta euristica e interpretativa della concettualizzazione anche nel loro campo di indagine: la lettura del passato.

La storiografia che nasce come disciplina scientifica nell’Ottocento ha previlegiato la nazione come oggetto di ricostruzione e soggetto delle sue narrazioni: solo recentemente si sta affermando la necessità di una interrogazione trasversale rispetto alle storie nazionali, di una storia globale al cui interno la (storia della) globalizzazione rappresenta un campo specifico.

Il concetto di rete diventa allora essenziale: la globalizzazione è il processo di costruzione e intensificazione delle reti mondiali (ai diversi livelli, con diversa intensità e velocità di contatti e grado di integrazione). E processo significa dare conto di svolgimenti e cambiamenti che avvengono nel tempo, non in modo meccanico, regolare, scandito sulle canoniche tappe ed epoche della storia politica, ma con ritmi, accelerazioni, rallentamenti, riprese che sono proprie dei diversi ambiti coinvolti dalla globalizzazione: economico, tecnico, politico e dell’organizzazione dello Stato, sociale, culturale.

La periodizzazione è lo strumento concettuale che gli storici utilizzano per comprendere i fenomeni analizzati. Ogni periodizzazione è discutibile e provvisoria: Osterhammel e Petersson ne sono consapevoli. Ed è proprio la loro discutibilità il sale della storiografia e strumento di migliore comprensione della storia come ricerca.

Per i due storici tedeschi è possibile periodizzare il processo di globalizzazione,  dopo alcune forme di integrazione verificatesi già in età antica e medievale, nelle seguenti fasi:

  • 1450-1500: inizio della modernità e avvio della globalizzazione
  • 1750-1880: Imperialismo, industrializzazione e libero commercio
  • 1880-1945: Capitalismo mondiale e crisi mondiali
  • 1945-1975: La globalizzazione dimezzata

Dagli ultimi decenni del Novecento: La globalizzazione attuale  La preistoria della globalizzazione  Riguarda il mondo antico e premoderno. In esso l’integrazione macrospaziale si verificò in forme diverse (l’ aggregazione di unità politiche minori in grandi imperi sulla base essenzialmente della forza militare (l’impero romano, cinese, indiano, ottomano…), l’ecumene religiosa (cristianesimo, islam, buddismo…), il commercio a distanza (la via della seta che univa la Cina al Mediterraneo, le vie carovaniere del Vicino Oriente e del Nordafrica…), le migrazioni di popoli (gli insediamenti preistorici dell’America e dell’Asia, la diffusione di popolazioni di lingua bantu della regione del Niger-Congo tra il 500 a.C. e il 1000 d. C. …).

In epoca medievale, le spinte all’integrazione di ampi spazi si possono collocare nel VIII (fondazione e diffusione dell’Islam) e nel XIII (l’impero mongolo di Gengis Khan), mentre dal XIV secolo si rafforzarono processi differenti nella parte orientale dell’Eurasia (consolidamento di Cina e Giappone) rispetto a quella occidentale e meridionale (ripresa degli imperi plurinazionali accanto alla formazione degli “Stati territoriali”).

L’inizio della modernità

Il periodo tra il 1450 e il 1500 si conferma come profonda cesura nella storia della globalizzazione e l’inizio della “modernità” anche in una prospettiva di storia globale. Ne furono fattori decisivi e connessi la scoperta e la colonizzazione dell’America, l’avanzata degli Europei nell’Oceano Indiano e nel Pacifico, l’«imperialismo ecologico» (in primo luogo i virus e i batteri delle malattie europee), la rivoluzione delle tecnologie militari (polvere da sparo e artiglieria) e della comunicazione (la stampa).

Gli europei stabilirono sull’Atlantico un dominio incontrastato e nell’America si realizzò un’economia di piantagione (caffè, tè, cacao, caucciù…) coltivata da schiavi, che introdotta alla fine del Cinquecento si affermò come istituzione sociale dominante fino ai primi decenni del XIX secolo. Si intensificarono inoltre le reti commerciali transoceaniche: per il commercio di schiavi in primo luogo e delle merci preziose (spezie, tessuti, tè, pelli animali, argento).

1750-1880 Imperialismo, industrializzazione e libero commercio

Intorno alla metà del Settecento, ancora prima delle rivoluzioni politiche (americana e francese) e industriale, un altro impulso ai processi di globalizzazione venne dall’affermarsi di una politica mondiale legata alla necessità del controllo degli oceani (sia dal punto di vista militare che commerciale): il teatro dei conflitti non fu, come in precedenza, a scala locale/regionale, ma mondiale con una presenza egemonica dell’Inghilterra.

Le rivolte di coloni e schiavi delle Americhe tra il 1765 e il 1825 (le tredici colonie inglesi a Nord e le repubbliche del Sud e del Centroamerica) se da una parte indebolirono i legami della rete globale, dall’altra, superata la rottura politica, posero le basi per una diversa relazione tra Stati Uniti e Inghilterra.

La rivoluzione industriale fu ovviamente fattore decisivo per l’intensificarsi dell’interconnessione globale: gli autori mettono in evidenza da una parte le caratteristiche e le ragioni del caso inglese, dall’altro gli effetti a distanza in ambiti diversi dalla produzione di merci: armi e cannoni, trasporti, tecnologie della comunicazione (telegrafo).

Nel corso del XIX secolo l’Europa occidentale e in particolare l’Inghilterra si affermarono quali potenze dominanti e come modello di riferimento per lo sviluppo e il progresso di ogni altro stato del mondo: il futuro sarebbe stato possibile solo accostandosi almeno parzialmente al loro livello.

Gli autori parlano di una globalizzazione adattiva e ambivalente (tra ammirazione e disprezzo, vicinanza e distacco, assimilazione e preservazione della propria identità): si andava profilando un unipolarismo culturale ancora più che geopolitico, che vide nello Stato nazionale la forma ideale e desiderabile per le sfide del tempo.

Nella seconda metà dell’Ottocento la dimensione mondiale dell’economia trovò ulteriore impulso: accelerazione del commercio mondiale, migrazioni di massa (tra il 1850 e il 1894 circa 60/70 milioni di persone), nuova divisione internazionale del lavoro legata alla possibilità di inviare beni di massa a grande distanza, congiunture economiche con ripercussioni su scala planetaria (grande depressione del 1873, congiuntura favorevole del 1896).

Capitalismo mondiale e crisi mondiali (1880-1945)

Contrariamente alla vulgata corrente (soprattutto della storia economica) che racconta gli anni precedenti lo scoppio della Prima guerra mondiale come epoca di estesa globalizzazione seguita da una de-globalizzazione che durò fino al secondo dopoguerra, gli autori suggeriscono una lettura del periodo secondo la quale il contrasto tra queste due fasi è meno netto: gli stessi processi di de-globalizzazione sono descrivibili dentro uno spazio economico e politico mondiale.

Alla svolta del secolo il mondo era percepito come una comunità di destino: grazie anche ad una diversa esperienza (non solo nella coscienza delle élites) della dimensione del tempo e dello spazio nella vita quotidiana. La sempre maggiore diffusione dei mezzi di comunicazione, l’alfabetizzazione crescente, l’adozione di un sistema di computo del tempo suddiviso per fusi orari e basato sul meridiano di Greenwich, la maggiore frequenza dei viaggi transcontinentali furono tra i fattori di questo cambiamento. Tra Otto e Novecento l’economia mondiale può essere descritta come un sistema multilaterale caratterizzato da flussi internazionali interconnessi (di forza lavoro, capitali e merci), reti commerciali con centro a Londra e conseguenze anche per i paesi extraeuropei, infrastrutture (trasporti e comunicazioni) garantite dagli Stati nazionali.

Non che fossero assenti “buchi” nella rete (la maggior parte dell’Africa, le regioni interne della Cina e tutti i continenti non collegati dalle reti ferroviarie e dalle rotte delle navi a vapore): nel 1913 il divario tra i più ricchi centri del mondo (che non erano già più in Europa) e i più poveri era di 10:1 (nel 1820 era di 3:1).

La globalizzazione avveniva parallelamente alla costruzione delle nazioni. E il mondo divenne uno spazio di interazione tra Stati nazionali concorrenti (con l’aggiunta di nuovi attori, gli Stati Uniti e il Giappone): un mondo sempre più piccolo (nel 1911 quando R. Amundsen arrivò al Polo Sud, ogni parte del globo era conosciuta e cartografata) nel quale si realizzarono un sistema globale di alleanze, la spartizione coloniale del pianeta, processi di territorializzazione degli Stati nazionali, all’interno della dialettica tra globalizzazione e frammentazione.

Secondo J. Osterhammel e N. P. Petersson la Grande Guerra dal punto di vista delle cause fu una guerra europea che ben presto si allargò su scala globale con l’impiego di risorse globali. Segnò la fine del potere mondiale dell’Europa e l’assunzione dello Stato nazionale come modello di organizzazione politica generale. Negli anni successivi si assistette alla ideologizzazione della politica su scala mondiale: liberalismo, leninismo e fascismo furono esperimenti politici che si scontrarono in quella che può essere definita una guerra civile internazionale.

Il cosiddetto “regionalismo” dell’economia internazionale del periodo tra le due guerre con il privilegio accordato ovunque all’ambito “nazionale” conferma il primato della politica sulle interazioni economiche. Si possono anche leggere le politiche autarchiche degli anni Trenta come forme di regionalismo: la loro valenza globalizzante fu che condussero a una nuova guerra mondiale che divenne anch’essa globale, consacrando gli Usa potenza mondiale decisiva e fu punto di partenza di un ulteriore impulso alla globalizzazione economica, politica, e culturale del dopoguerra. Il 1945 può essere considerata una data decisiva (una data globale): per la fine della guerra e la volontà dei vincitori di creare un nuovo ordine mondiale.

Dal 1945 alla metà degli anni Settanta: la globalizzazione dimezzata

La divisione del mondo in due blocchi contrapposti fu la più importante struttura politica (non prevista) del secondo dopoguerra che condizionò anche gli spazi di interazione economica ai vari livelli. Diverse furono le conseguenze di questo assetto geopolitico bipolare nella sfera di influenza sovietica e in quella occidentale nella quale la priorità della riorganizzazione interna produceva, tra l’altro, una spinta all’integrazione regionale. Il processo di integrazione europeo, in transizione dalla federazione di Stati allo Stato federale, va inquadrato in questo contesto. Se da una parte tale processo può essere letto come limitazione del potere degli Stati nazionali, dall’altro si può pensare che la cooperazione realizzata nl quadro delle strutture europee sia stata funzionale al persistere dello stesso modello dello Stato nazionale.

L’ordine della guerra fredda pose fino anche agli imperi coloniali: dal 1950 al 1970 gli Stati nazionali indipendenti passarono da 81 a 134. Nacque quello che allora si chiamò il “Terzo Mondo” che non divenne uno spazio d’integrazione e di cooperazione di politiche sovranazionali. Un ruolo politico transnazionale importante, invece, ebbe la protesta studentesca della fine degli anni Sessanta che coinvolse paesi di gran parte del mondo e le cui ragioni sono comprensibili nel quadro delle trasformazioni socioculturali del secondo dopoguerra.

Gli accordi di Bretton Woods del 1944 avrebbero dovuto assicurare un nuovo ordine mondiale dell’economia, attraverso istituzioni (Banca Mondiale, Fondo Monetario Internazionale, Accordo generale sulle tariffe doganali e sul commercio) create per garantirne il funzionamento.

La pianificazione economica in realtà fallì ma navigazione, commercio, telecomunicazioni, traffico aereo e attività multinazionali crearono reti globali che aggregarono, a gradi diversi di intensità delle interdipendenze, anche il Terzo mondo e l’area di influenza sovietica, ad esclusione della Cina che seguiva una scelta rigidamente autarchica.

Dagli anni Sessanta si registrarono spinte verso una globalizzazione socioculturale: le migrazioni verso l’Europa con la creazione di megalopoli multiculturali, l’aumento dei flussi turistici legati alle vacanze di massa, l’omogeneizzazione globale dei riferimenti culturali e degli stili di consumo (dalla Coca-Cola che divenne un marchio mondiale alla diffusione dei jeans e delle t-shirt). Un processo che non fu privo di contraddizioni e resistenze: basti pensare ancora al movimento del ’68 e alla lotta contro l’omologazione culturale e ideologica che trovò nella mobilitazione contro la guerra del Vietnam uno dei suoi momenti più significativi.

Conseguenza della cultura della contestazione di quegli anni fu anche la consapevolezza politica che per la prima volta si ebbe sui temi del clima, dell’esauribilità delle risorse, dell’inquinamento e in generale dell’impatto dell’uomo sul pianeta. Non solo la guerra nucleare, ma anche lo sfruttamento incontrollato delle risorse del mondo potevano determinarne la fine.

La svolta del XX secolo

Può essere datata alla fine degli anni Sessanta con la trasformazione degli assetti complessivi del secondo dopoguerra. In una prospettiva storica, questa ultima (per ora) globalizzazione (per alcuni la vera globalizzazione) è caratterizzata, secondo gli autori, principalmente da questi aspetti: la fine del mondo bipolare con il crollo dell’Urss e del blocco sovietico, la crisi dello Stato sociale (conseguenza e causa al tempo stesso della globalizzazione), l’estensione delle relazioni internazionali e finanziarie internazionali (con l’affermazione delle imprese transnazionali e l’evoluzione dei paesi di recente industrializzazione, in particolare nel Sud-Est asiatico), i progressi delle reti di comunicazione e di informazione, la diffusione su scala globale di beni e modelli culturali (soprattutto americani) pur in presenza di spinte che vanno nella direzione opposta, la presenza, accanto alle reti internazionali legali di quelle illegali (droga, riciclaggio di denaro sporco, traffico di esseri umani) con un peso significativo all’interno dell’economia globale.

Per J.Osterhammel e N. P. Petersson “la sensazione diffusa a livello mondiale di vivere nell’epoca della globalizzazione ha validi fondamenti “ (p. 122), ma non si tratta di un unicum nella storia dell’umanità: la cesura fondamentale a partire dalla quale la globalizzazione è diventata tema centrale e decisivo va individuata, secondo gli autori, nella prima età moderna (epoca delle scoperte, del commercio degli schiavi, dell’«imperialismo ecologico») e non nel tardo Novecento. Spinte e tendenze alla globalizzazione si sono poi verificate in epoche precedenti, a partire dalla metà dell’Ottocento.

Nella riflessione conclusiva del saggio si sottolinea come nella storia delle modernità i processi di integrazione e di de-globalizzazione e frammentazione sono andati di pari passo e come la globalizzazione sia strettamente connessa con la modernizzazione.

Il concetto di globalizzazione, in conclusione, ha senso ed è utile se non viene usato come categoria astratta, essenzializzandone il contenuto, e senza dimenticare che dietro e dentro la globalizzazione e i legami globali ci sono attori e soggetti (Stati, imprese, gruppi, individui… con differenti visioni e strategie), conflitti di interesse, vincitori e vinti.

La globalizzazione è dunque una categoria interpretativa e un processo con una sua storia: che è compito degli storici indagare e far conoscere.

Ernesto Perillo

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Portugal e a questão do trabalho forçado: um império sob escrutínio (1944-1962) – MONTEIRO (LH)

MONTEIRO, José Pedro Monteiro. Portugal e a questão do trabalho forçado: um império sob escrutínio (1944-1962). Lisboa : Edições 70, 2018, 401 pp. Resenha de: CASTELO, Cláudia. Ler História, v.75, p. 296-299, 2019.

1 Licenciado em relações internacionais, mestre em ciência política e relações internacionais e doutor em História, José Pedro Monteiro é um investigador jovem com um currículo científico invulgarmente internacionalizado e consistente, mas que não tem descurado a vertente da divulgação para a sociedade portuguesa (refiram-se, em colaboração com Miguel Bandeira Jerónimo, os ensaios e entrevistas da série “Histórias do presente” saída no jornal Público ao longo de 2018, ou a exposição “O direito sobre si mesmo : 150 anos da abolição da escravatura no império português”, inaugurada em Julho de 2019, na Assembleia da República). Também o livro que temos em mãos, uma versão revista e editada da sua tese de doutoramento, se dirige a um público que extravasa a academia, interessando-o por um problema central na história do último império colonial português : a questão laboral africana.

2 O autor contribui para o avanço do conhecimento sobre o tema do ponto de vista empírico, conceptual e analítico. Baseado em pesquisa de fontes primárias publicadas e manuscritas (de arquivos portugueses, britânicos, norte-americanos e da Organização Internacional do Trabalho, em Genebra), e numa bibliografia actualizada e pertinente, este livro enquadra-se nos debates historiográficos recentes sobre “a mútua constituição, interdependência e intersecção” de dois processos históricos que marcaram o século XX : o internacionalismo e o imperialismo (p. 21). Revela-nos como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) condicionou os debates e processos de tomada de decisão política respeitantes à questão do “trabalho indígena” (e modalidades aparentadas) no império colonial português no contexto de gradual contestação à legitimidade imperial após o fim da Segunda Guerra Mundial. Percebemos que o problema do trabalho forçado deve ser equacionado levando em consideração as dinâmicas internacionais e transnacionais que influenciaram a produção e avaliação de políticas e práticas imperiais, nomeadamente através de processos de escrutínio regular, cotejo normativo, denúncias internacionais e projectos e esforços de reforma, mesmo que sem tradução prática.

3 A estrutura do livro promete seguir a ordem cronológica dos eventos em quatro momentos : 1945-49, 1950-54, 1955-60 e 1961-62. A segunda parte, porém, volta ao início dos anos 40, não se cingindo, efectivamente, ao período indicado na introdução (p. 23). A organização diacrónica, não introduzindo inovação, oferece-nos uma narrativa detalhada do problema e espelha a sua complexidade. Somos confrontados com persistentes práticas laborais coercivas em várias geografias e envolvendo populações “indígenas” e “cidadãos” cabo-verdianos, desfasadas da evolução verificada nos impérios europeus congéneres, denunciadas não só por actores internacionais e transnacionais, mas também por agentes do estado-império português, envolvidos num “processo de autorreflexão imperial durante o período posterior à Segunda Guerra Mundial” (p. 64). Percebemos que, não obstante diversas críticas internas incisivas (para além da que ficou mais conhecida, a de Henrique Galvão), as iniciativas “reformistas” ficavam sempre aquém das soluções que visavam uniformizar os sistemas laborais metropolitanos e coloniais. Isto porque a grande preocupação dos críticos era arranjar formas de assegurar a respeitabilidade internacional do país e a legitimidade externa do império (p. 82), sem nunca pôr em causa o dever moral do “indígena” de trabalhar (p. 98).

4 Passamos a conhecer com minúcia os processos de decisão no seio do Estado Novo, assentes na gestão da tensão entre, por um lado, “a vontade de preservar a soberania imperial na definição das políticas sociais coloniais e de contrariar a sua internacionalização” e, por outro, “a necessidade de aprofundar a integração internacional neste domínio” (p. 52). Verificamos que foi a dimensão internacional que, na segunda metade dos anos 50, forçou o governo português a ratificar diversas convenções da OIT. O momento mais saliente da pressão externa, a queixa do Gana contra Portugal por violação da Convenção da Abolição do Trabalho Forçado, no seio da OIT, e a actividade da comissão de inquérito, além de levar à “multiplicação de instâncias de autoescrutínio” na máquina burocrática imperial e colonial, deu azo a “iniciativas que visavam emendar alguns dos aspectos mais gravosos da política social ‘indígena’” (p. 330). Também aqui – na capacidade de colaboração, acomodação e contemporização nos círculos internacionais – se evidencia a “arte de saber durar” do Estado Novo.1 Não esqueçamos que se o trabalho dos africanos foi a trave-mestra do império, da durabilidade deste dependia a existência do próprio regime.

5 Vejamos agora algumas questões que poderiam ter sido esclarecidas ou aprofundadas. Em que medida o recrutamento de trabalhadores cabo-verdianos para outras colónias portuguesas se pode inserir na problemática do “trabalho indígena”, não sendo os naturais de Cabo Verde abrangidos pelo indigenato (p. 248) ? Nos anos 40 a migração cabo-verdiana para São Tomé e Moçambique, “com o impulso das autoridades (…) adquiriu um nítido carácter forçado”.2 O trabalho contratado para as roças são-tomenses e plantações de Angola ou Moçambique equiparava-os na prática a “indígenas”, sendo tutelados pelos serviços de “Negócios Indígenas” e sujeitos a sanções pelas faltas laborais previstas no Código de Trabalho Indígena. Às normas jurídicas sobrepunham-se o pragmatismo económico, os interesses do recrutamento, a política de controlo social e a diferenciação racial no seio do império.3 Estou em crer que a mão-de-obra africana de Angola, Moçambique e Guiné, anteriormente categorizada como “indígena”, terá continuado sujeita à mesma “indigenização” informal após o fim legal do indigenato e do trabalho forçado. No contexto das guerras coloniais/de libertação, estradas e outras obras de “interesse público” continuariam a ser construídas sem que os trabalhadores africanos auferissem qualquer salário ; autoridades administrativas não cessariam de imediato de colaborar no fornecimento de mão-de-obra africana ao sector privado. Mas, como refere José Pedro Monteiro, só estudando o período posterior a 1962 será possível “aferir da transformação real das práticas que as mudanças legislativas impulsionaram (ou não)” (p. 369).

6 Outro feixe de questões relaciona-se com os tempos (tardios) e os modos (parcelares) de ajustamento ao standard internacional. Havendo entre os inspectores (e não só) do Ministério das Colónias/do Ultramar um tão amplo conhecimento dos abusos, da violência, da corrupção das autoridades administrativas, porque é que no império português a resistência à mudança foi mais duradoira do que noutros impérios ? Porque se tardou tanto a aceitar que a exploração económica se devia subordinar ao bem-estar das populações autóctones ? Porque é que “os limites da imaginação burocrática imperial continuavam presos a referenciais que se encontravam em processo de gradual deslegitimação internacional” (p. 274) ? Algumas passagens do livro parecem remeter-nos para a persistência entre os portugueses (autoridades e particulares) de uma visão “paternalista” (racista, diria) sobre os trabalhadores africanos (por exemplo, pp. 71, 77, 99 e 259), na contramão da tão propalada à época “tradição não-racista” dos portugueses. Mas outras razões poderiam ser aduzidas. Desde logo, o modelo de exploração económico vigente, que dependia da manutenção de um sistema laboral dual.

7 As Conferências Interafricanas de Trabalho patrocinadas pela Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA) e o Instituto Interafricano do Trabalho, organismo especializado da Comissão, surgem pontualmente ao longo do livro, mas não são alvo de tratamento específico. Que papel desempenhou a participação portuguesa nesta cooperação técnica regional nas dinâmicas de ajustamento às demandas internacionais ? O que podemos ganhar acrescentando de forma mais explícita a escala de análise interimperial e intercolonial ? Convém ter em conta, como salienta José Pedro Monteiro, que o problema do trabalho nas colónias portuguesas do continente africano era um problema indissociavelmente ligado ao êxodo de trabalhadores rurais para países vizinhos (p. 83).

8 Finalmente, deixo pequenos reparos. Na bibliografia foram incluídas fontes primárias impressas (produzidas na época por actores objecto de estudo, como Silva Cunha, Afonso Mendes, José Pereira Monteiro ou Adriano Moreira), embora mais à frente apareça autonomizada uma lista de fontes primárias impressas da OIT. A lista das fontes primárias é, de facto, uma lista de fontes de arquivo. Teria sido preferível apresentar primeiro as fontes primárias manuscritas ou de arquivo, depois as fontes primárias impressas e finalmente a bibliografia. O elenco das fontes de arquivo deveria apresentar os títulos dos fundos, secções, séries documentais ou colecções consultadas e não listas de códigos de referência ou de cotas topográficas. BIT (Bureau International du Travail, o secretariado da OIT) não chega a aparecer por extenso. As convenções são muitas vezes indicadas apenas pelo número. A inclusão de listas de siglas e das convenções teria ajudado o leitor. Trata-se de uma edição sóbria e cuidada, enriquecida com um índice remissivo. Estranha-se, no entanto, que ONU seja sistematicamente grafada num tamanho de letra inferior às restantes siglas.

9 Nada do que foi apontado como menos positivo invalida que se recomende vivamente a leitura deste livro. Trata-se de um trabalho incontornável, sério e rigoroso, no âmbito da história do colonialismo português tardio e especificamente da sua pedra angular – o trabalho forçado –, que expande o campo de observação à escala internacional, merecendo ser tido em conta pelos que se ocupam do estudo comparado das formações imperiais na era da descolonização (para isso recomenda-se a sua tradução para inglês), sendo também relevante para pensar o regime do Estado Novo.

Notas

Já foram examinados como factores explicativos da longevidade do Estado Novo português, o papel d (…)

2 Augusto Nascimento, O sul da diáspora : cabo-verdianos em plantações de S. Tomé e Príncipe e Moça (…)

3 Ibidem, pp. 206-209.

Cláudia Castelo – Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Portugal. E-mail: claudiacastelo@ces.uc.pt

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Roman Temples, Shrines and Temene in Israel – OVADIAH; TURNHEIM (Topoi)

OVADIAH, Asher; TURNHEIM, Yehudit. Roman Temples, Shrines and Temene in Israel. Roma: Giorgio Bretschneider Editore, 2011. 155páginas e 78 pranchas. Resenha de: BASTOS, Marcio Teixeira. Espaços sagrados na Palestina romana: arqueologia, imperialismo e a multiplicidade ritual no Oriente Médio. Topoi v.17 n.32 Rio de Janeiro Jan./June 2016.

Asher Ovadiah e Yehudit Turnheim oferecem um trabalho pioneiro de pesquisa que contribui amplamente para o estudo da arquitetura e da cultura material associada aos lugares de culto em Israel; assim como para a investigação das distintas manifestações daquilo que foi considerado sagrado no período romano e a ocupação das múltiplas topografias na região. Este é o primeiro livro a tratar da arquitetura dos templos erigidos em Israel e da cultura material associada a ocupação dos templos, santuários e témenos no período romano (em seu contexto maior, a parte sul da extensa Província da Síria Romana e suas consequentes transformações). O estado de conservação dos sítios arqueológicos, o número limitado de escavações e a escassez de publicações sobre templos romanos escavados nessa parte do império são obstáculos que limitam a imagem e abrangência do esforço de abordagem feito pelos dois arqueólogos da Universidade de Tel Aviv na tentativa de reconstrução de práticas e lugares de culto em Israel durante esse período. A faixa cronológica dos templos, santuários e témenos discutidos neste livro se estende ao longo de um período que compreende desde o reinado de Herodes até o início da dinastia Dioleciana (primeiro século AEC até terceiro século EC).

Os autores decidiram não separar a discussão entre santuários e templos, e em alguns casos eles são apresentados conjuntamente. Um olhar apurado sobre a lista apresentada na obra mostra claramente quão variado e diferentes entre si são estes complexos. O livro é dividido em duas partes distintas: na primeira, são abordados onze sítios arqueológicos e seus respectivos santuários e templos; na segunda parte, é apresentada uma discussão de treze outros lugares, baseada essencialmente em fontes históricas, literárias, epigráficas e numismáticas, mais do que em vestígios das edificações nos sítios arqueológicos na região. Convém salientar que alguns dos sítios abordados nunca foram escavados, como é o caso da Caverna de Elijah, no Monte Carmelo; e outros sítios arqueológicos escavados não têm até hoje seus resultados completos de escavação publicados. Esse é o caso do santuário de Paneas (Banias), e dos três templos localizados em Citópolis (Beth Shean), que foram escavados há mais de dez anos e ainda aguardam a publicação completa e resultados finais dos trabalhos executados.

Nesse mesmo sentido, os autores apresentaram crítica ao trabalho desenvolvido pela Universidade de Minnesota no templo de Omrit, na Alta Galileia, salientando que até aquele momento nenhum resultado havia sido publicado sobre o sítio. Contudo, durante o mesmo ano de edição do livro aqui resenhado, Andrew Overman e Daniel Schowalter publicaram os resultados preliminares das escavações no templo de Omrit (J. Andrew Overman e Daniel N. Schowalter, The Roman Temple Complex at Horvat Omrit: An interim report, BAR International Series 2205). A crítica de Ovadiah e Turnheim não ficou sem resposta. Dois anos depois, Andrew Overman em resenha para o Journal of Roman Archaeology (2013, vl. 26, p. 877-878) procurou rebater as assertivas analisando o livro dos autores. Por sua vez, Arthur Segal, da Universidade de Haifa, em resenha publicada em 2011 (Roman Temples, Shrines and Temene in Israel, Israel Exploration Journal, v. 61, n. 2, p. 242-246) já havia alertado para a dificuldade que os autores enfrentaram na tentativa de proporcionar uma imagem balanceada do que foi denominado como “Arquitetura do Culto Romano em Israel”. Apesar de tais críticas, é preciso salientar que, em função do quadro variado e obstáculos de acesso à informação, Ovadiah e Turnheim chegaram à conclusão de que não é aconselhável, para o momento, estabelecer uma tipologia de construção para as edificações dos templos e santuários romanos em Israel.

Na primeira parte do livro (que corresponde a onze sítios arqueológicos) são abordados: 1 – Paneas-Banias / Cesareia Philippi; 2 – Horvat Omrit; 3 – Templo de Baal Shamin, em Kedesh; 4 – Beth Shean / Citópolis; 5 – Caverna de Elijah, Monte Carmelo; 6 – Dor; 7 – Cesareia Marítima; 8 – Samaria-Sebaste; 9 – Templo de Zeus Hypsistos, Monte Gerizim; 10 – Jerusalem / Aelia Capitolina; 11 – Témenos de Elonei Manre e Me’arat Hamachpelah / Tumba dos Patriarcas, em Hebrom. Já na segunda parte os treze lugares que compõem a obra são apresentados sob o título “Varia“. São eles: Keren Naphtali / Khirbet Harrawi; Bethsaida; Hippos / Sussita; Tiberíades; Beset; Acre (Akko) / Ptolemais; Antipátrida (Aphek) / Antipatris; Jaffa / Jope; Beth Guvrin / Eleutheropolis; Ascalon / Askelon; Gaza; e Elusa / Halutza. O Epílogo finaliza o livro e um apêndice sobre as fontes literárias, bem como a reprodução das fotos dos sítios arqueológicos, são providos no final da obra.

Os templos e santuários dedicados a Pan e outros deuses, situado no sopé da caverna de Paneas em Banias, na Alta Galileia, é um local que formou, na Antiguidade, um fascinante complexo religioso. Porém, como referido, poucos resultados das escavações foram publicados em mais de dez anos após o fim das atividades. Nesse sentido, merece destaque o estudo da cerâmica ritual encontrada no sítio. O estudo feito por Andrea Berlin, da Universidade do Minnesota, em The Archaeology of Ritual: The Sanctuary of Pan at Banias/Caesarea Philippi apresenta excelente descrição das possíveis atividades realizadas no local. Nesse contexto de escassez de publicações, a descrição do sítio apresentada por Ovadiah e Tunheim é uma fonte essencial para compreender o espaço, uma vez que tem por base, principalmente, os relatórios preliminares de escavação, além da obra de Zvi Uri Ma’oz, Baniyas in the Graeco-Roman Period: A History Based on the Excavations. No livro é possível encontrar uma análise das fontes escritas, epigráficas e numismáticas relacionadas com o sítio. Os autores procuraram utilizar toda a informação disponível, a fim de proporcionar, na medida do possível, uma imagem objetiva dos templos e santuários descritos nessa obra.

Santuário de Omrit Alta Galileia Foto Marcio Teixeira Bastos

Figura 1 Santuário de Omrit, Alta Galileia (Foto: Marcio Teixeira Bastos)

No santuário de Omrit, que ainda passa por escavações realizadas pela equipe da Universidade de Minnesota (Macalester College), foram descobertos três templos romanos. O templo mais antigo foi erguido no primeiro século AEC, talvez nos tempos de Herodes. O segundo, que teve um plano tetrastilo períptero, foi construído no final do primeiro século AEC ou início do primeiro século EC, enquanto o terceiro templo, com um plano hexastilo períptero, seria uma expansão de seu antecessor e teria sido construído no decorrer do segundo século EC. Mesmo que a escavação ainda esteja em curso, não há dúvidas de que este sítio é um dos mais impressionantes templos romanos encontrados em Israel. A respeito de Horvat Omrit, os autores inferem que possivelmente o sítio serviu como um claro referencial paisagístico, assim como para propósitos eróticos e orgásticos de culto. Contudo, nada em Omrit parece sustentar essa especulação e mais evidências são necessárias para tal inferência.

As escavações no magnífico templo de Hippos/Sussita e algumas recentes publicações têm consideravelmente impactado o modo como tem sido entendido e abordado o leste do mar da Galileia e as cidades da Decápolis, brevemente abordadas pelos autores no livro. Arthur Segal e uma equipe de pesquisa da Universidade de Haifa têm publicado consistentemente sobre o tema nos últimos anos (SEGAL, Arthur et al. Hippos-Sussita of the Decapolis. The first twelve seasons of excavations 2000-2011. v. I, Haifa: The Zinman Institute of Archaeology, University of Haifa, 2013 ).

Ainda na primeira parte do livro, uma detalhada descrição do Templo de Baal Shamin em Kedesh (escavado por Ovadiah, Fischer e Roll em 1984) é apresentada. Sem dúvida um trabalho de fôlego sobre um templo romano preservado em estado satisfatório (os resultados das escavação desse sítio foram publicados amplamente). A respeito da caverna no Monte Carmelo, o questionamento de Overman sobre a estrutura ali existente é válido: trata-se de templo, santuário ou témenos? Provavelmente nenhuma dessas opções, como Ovadiah e Turnheim afirmam, tendo em vista que não existe evidência da ocupação da caverna em período romano. Assim, as duas páginas sobre esse sítio dependem em maior medida de algumas fontes literárias, notadamente Tácito (Hist. 2.78), que também afirma não haver um templo no lugar, mas considera que a “tradição da Antiguidade” reconhecia no local a presença de um altar e associação sagrada.

Assim, conforme salienta Mircea Eliade em O sagrado e o profano: a essência das religiões, dentro das práticas de consagração dos espaços, a valorização e a desvalorização de locais sagrados organiza uma hierarquização dos lugares e dos territórios. Isto contribui para o fortalecimento e/ou enfraquecimento do referencial de territórios ocupados na composição dos espaços. A seleção e consagração dos lugares depende em maior medida da capacidade que uma dada modalidade do sagrado tem de criar tipos de associação e uma rede de memórias atreladas à irrupção do sagrado naquele determinado contexto. As edificações sagradas e, portanto, os lugares em que elas se encontram, contribuem para a inteligibilidade associativa do que é considerado sacro e do que é considerado profano.

Entre os capítulos VII e VIII, Ovadiah e Turnheim descrevem dois templos erigidos sob a patronagem de Herodes durante o primeiro século AEC em honra e culto ao imperador Augusto. Estes são o Augusteum de Cesareia Marítima e o Augusteum de Samaria-Sebaste. Contudo, as publicações sobre Cesareia Marítima são mais consistentes para os estudiosos que procuram aprofundar o entendimento a respeito do sítio (ver HOLUM, Kenneth et al. Caesarea reports and studies: excavations 1995-2007. Oxford: Archaeopress, 2008 e PATRICH, Joseph. Studies in the archaeology and history of Caesarea Maritima. Leiden; Boston: Brill, 2011). Apesar dos poucos itens de decoração arquitetônica desenterrados e dos comprometidos segmentos das paredes das fundações do templo, o esforço de pesquisa dos autores proporciona uma imagem crível do santuário, construído sobre uma plataforma artificial na costa do Mediterrâneo, a alguns metros do porto da cidade (nominado de Sebastos). Melhor preservado estava o Augusteum em Samaria-Sebaste, localizado no ponto mais alto da cidade, como parte de outro magnífico santuário. Embora escavado na primeira metade do século XX por equipes norte-americanas e britânicas, as pesquisas estão ainda em desacordo a respeito dos estágios de construção e do plano do templo (REISNER, George Andrew; FISHER, Clarence Stanley; LYON, David Gordon. Harvard Excavations at Samaria, 1980-1910. Cambridge: Harvard University Press, 1924, 2v.; CROWFOOT, John Winter; KENYON, Kathleen Mary; SUKENIK, Eleazar Lipa. The Buildings at Samaria I. London, Palestine Exploration Fund, 1942; Netzer, E. The Augusteum at Samaria-Sebaste: A New Outlook. Eretz-Israel, v. 19, 1987, p. 97-105). O livro de Ovadiah e Turnheim oferece aqui um excelente material comparativo e elucidativo para compreender a questão.

Pouco restou do templo de Zeus Hypsistos, escavado em Tell er-Ras em Monte Gerizim. Entretanto, a escavação e a riqueza de informações numismáticas e das fontes históricas permitiram uma reconstrução dos planos do santuário e do templo (MAGEN, Yitzhak. Mount Gerizim; MAGEN, Yitzhak. Flavia-Neapolis, Shekhem in the Roman Period. Jerusalém: Israel Exploration Society, 2005). O templo teria um plano tetrastilo períptero, com o santuário retangular construído em dois níveis. Esse templo contava com uma via de procissão (a via sacra) que consistia basicamente em uma longa escada sobre a íngreme encosta da montanha conduzindo diretamente ao santuário no topo do monte. A via sacra ramificava-se a partir da principal via colunata da cidade. No que diz respeito aos quatro templos erigidos em Jerusalém, após ser refundada e renomeada como Élia Capitolina (Aelia Capitolina) em 130 EC, estes lugares foram dedicados às divindades de Zeus/Júpiter, Aphrodite/Venus, Asclepius/Serapis e Tyche/Fortuna, respectivamente. A informação sobre estes templos deriva essencialmente de fontes históricas, literárias e numismáticas, uma vez que pouquíssimos vestígios arqueológicos restaram destas edificações, em grande medida devido ao processo de cristianização da Palestina a partir do quarto século EC. Nesse sentido, assim como a Caverna de Elijah, no Monte Carmelo, seria mais apropriado alocar estes lugares na segunda parte do livro.

A primeira parte do livro encerra-se com a discussão dos dois témenos encontrados nas imediações de Hebron: o témenos de Elonei Mamre e o de Me’arat Hamachpelah (Tumba dos Patriarcas). As edificações foram construídas no final do primeiro século EC, ao que parece no mesmo período em que foram construídos o Augusteum de Cesareia Marítima (e também o de Samaria-Sebaste). Porém, não existe uma relação objetiva entre estas edificações. Os témenos claramente possuem inspiração Oriental e consistem em duas praças retangulares abertas, formada por paredes com sólidos blocos de rocha. Nestes espaços reuniam-se os participantes das cerimônias comunais e ritualísticas. Novamente se torna pertinente a pergunta: como podemos diferenciar estas estruturas? Basicamente, a origem de témenos está associada à escrita micênica Linear B e seu conceito surge associado a um terreno delimitado e consagrado a um deus, portanto, excluído dos usos seculares. O conceito também pode aplicar-se ao topos do bosque sagrado, ou, de modo genérico, à sacralização de uma dada paisagem (Carl Jung em Psicologia y alquimia associa o termo ao conceito do circulo mágico, que atua como um espécie de “lugar seguro”, onde se pode “trabalhar” mentalmente). Contudo, o sentido atribuído a témenos pelos autores está ligado a uma porção de terra em um domínio oficial, especialmente separada para um basileo (soberano) ou anax (rei supremo). Cabe dizer que tal definição necessitaria estar mais evidente no texto.

Muito foi feito em relação ao estudo dos sítios arqueológicos na transição do período Helenístico para o período romano na região e um número cada vez mais elevado de publicações pode ser consultado pelos estudiosos que se dedicam a este amplo e importante tópico de pesquisa. Bem como todos os que pretendem aprofundar seus conhecimentos no tema. Dessa forma, o livro de Ovadiah e Ternheim fornece uma abordagem holística singular sobre o tema que habilita os estudiosos a traçar seus próprios caminhos de pesquisa. No entanto, entre os importantes sítios não contemplados neste livro, merece menção Sepphoris-Zippori, escavado por Zeev Weiss da Universidade Hebraica de Jerusalém, e a publicação do templo romano From Roman temple to Byzantine church: a preliminar report on Sepphoris in transition.

Na segunda parte do livro, treze lugares são abordados de maneira concisa. Embora breves, todas as descrições são baseadas em evidências históricas, epigráficas e numismáticas, com suas respectivas correspondências nos vestígios das edificações, quando presentes. O livro termina com um epílogo. A importância desta breve conclusão, de apenas seis páginas, reside principalmente na análise dos diferentes tipos de fontes empregadas pelos autores na pesquisa. São listados os nomes das dezoito divindades às quais os santuários e templos foram dedicados em Israel e a bibliografia é acompanhada na sequência pela organização de pranchas com ilustrações dos sítios arqueológicos abordados.

Ao final desta resenha é importante relembrar uma das observações presente no prefácio do livro: os sítios da região passaram por profundas modificações materiais ao longo dos séculos. De fato, a deterioração dos templos e santuários pela erosão e outros agentes naturais (entre os quais terremotos que atingiram a região), e a destruição causada por roubo e pilhagem na Antiguidade, bem como o surgimento e o crescimento do cristianismo, são fatores capitais de mudança. A paisagem da Palestina foi radicalmente transformada com a ascensão do cristianismo no Oriente, apropriando sítios, destruindo e reconstruindo templos e santuários, promovendo, assim, a ressacralização dos lugares. Alguns destes complexos religiosos foram deliberadamente “esquecidos” e/ou destruídos na Antiguidade Tardia (quinto e sexto séculos EC) por ordem das autoridades cristãs e imperadores bizantinos, ou convertidos em igrejas e monastérios. Outros tantos foram demolidos pelas gerações posteriores, ou passaram por distintos processos pós-deposicionais (desastres naturais, incêndios, conquistas etc.). Como afirmou Lucrecio, uma faísca aqui e outra ali provoca um incêndio generalizado.

O número residual de templos romanos sobreviventes em Israel é muito pequeno se comparado à evidência e à preservação dos templos no Líbano, Jordânia e na Síria. A razão para esta discrepância parece ser evidente: as montanhas pouco povoadas e de difícil acesso do Líbano, o tamanho e a distância destas áreas na Síria e Jordânia, além da perda do controle da região durante a Idade Média. No entanto, as fontes literárias, as analogias arqueológico-arquitetônicas e as evidências circunstanciais, fornecem informações suficientes para a compreensão dos contextos e das transformações ocorridas na Antiguidade nessa região. As percepções culturais evidenciadas nestes lugares sagrados e os complexos religiosos do período romano em Israel demonstram como o imperialismo romano atuou eficazmente através da religião e como a veneração e adoração de muitas e variadas divindades dos panteões orientais e greco-romanos foram combinadas e consubstanciadas, fomentando a multiplicidade ritual do período. Além disso, é permitido supor que estes sítios arqueológicos, templos e santuários, demonstram não somente a realidade arquitetônica, mas também a atmosfera religiosa-cultual do período.

Entretanto, não é possível encerrar essa resenha a respeito dos templos romanos em Israel sem a profunda lástima sobre a destruição dos templos de Baal-Shamin (convertido em igreja no quinto século EC) e Baal (Bel) em Palmyra. Assim como sobre o descalabro que foi acometido o arqueólogo sírio Khaled al-Asaad da Universidade de Damasco, brutalmente assasinado pelo extremismo monoteísta islâmico do grupo autodenominado Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) ou Estado Islâmico do Iraque e da Síria (EIIS). O mundo contemporâneo testemunha mais uma onda de destruição de sítios arqueológicos, considerados Patrimônio da Humanidade, e a supressão intencional da memória coletiva. E assim, assistimos mais uma versão escabrosa de extremismo monoteísta e fundamentalismo religioso, que insiste em não saber conviver com a multiplicidade ritual presente em todas as sociedades do globo. Quando o objetivo de um grupo social atenta contra a vida e a memória dos povos, é nesse momento que se tornam mais significativas as palavras de Peter Burke: a função do Historiador (e essencialmente do Arqueólogo) é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer.

Marcio Teixeira Bastos – Doutorando cotutela em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), São Paulo, SP, Brasil e da Universidade de Tel Aviv (TAU), Israel, com período de pesquisa na Universidade de Durham, Reino Unido (2013-2014 – bolsa Bepe-Fapesp). Bolsista Fapesp. E-mail: marcio_quisleu@yahoo.com.br.

European Empires and the People: Popular responses to imperialism in France, Britain, the Netherlands, Belgium, Germany and Italy – MACKENZIE (LH)

MACKENZIE, John M. European Empires and the People: Popular responses to imperialism in France, Britain, the Netherlands, Belgium, Germany and Italy. Manchester: Manchester University Press, 2011, 242 pp. Resenha de: REIS, Célia. Ler História, n.67, p. 190-193, 2014.

1 Há várias décadas que o editor deste livro, John M. Mackenzie, se dedica a estudar as manifestações do imperialismo na vida cultural da metrópole e da identidade nacional e aqui continua nesse campo de trabalho. Se isto é, incontestavelmente, importante, este volume da série «Studies in Imperialism» (dirigida pelo mesmo) ainda se mostra mais relevante ao seguir uma linha que não é habitual: a comparação entre os casos de seis países, França, Grã-Bretanha, Holanda, Bélgica, Alemanha e Itália. Com esse fim, em Julho de 2009, MacKenzie reuniu à sua volta – em todo o sentido da palavra porque o encontro ocorreu na sua própria casa – quatro investigadores de vários países (a exceção foi apenas Giuseppe Finaldi, impossibilitado pela sua estadia na Austrália) e com eles discutiu as diversas questões que resultaram nesta obra; o trabalho continuou depois através dos novos meios de comunicação. Encontramo-nos assim perante o que o editor considerou mais uma coautoria do que uma coleção de ensaios (p. 16).

2 O resultado foi um livro cujo tema central é, como se encontra logo na introdução, a “colonização da consciência” (‘colonisation of consciousness’) e o “imperialismo internalizado” (‘internalised imperialism’), expressões que MacKenzie foi buscar às obras de Comaroff e D. A. Low (p. 1), usadas inicialmente noutros contextos mas que aqui correspondem, fundamentalmente, ao desenvolvimento da ideia imperial entre as próprias populações de cada Estado, entre os finais do século XIX e a primeira metade da centúria seguinte. Com efeito, como se assegura, o imperialismo correspondeu a um processo múltiplo, que se alargou não só às populações indígenas e colonos mas igualmente aos habitantes metropolitanos (p. 6). Assim, a leitura proporciona-nos a análise de situações diferenciadas mas que, no seu global, nos situam perante duas abordagens principais: a procura da conciliação entre os efeitos económicos do imperialismo e os seus resultados sociais, canalizando as tensões internas para outra dimensão; a apreciação das particularidades culturais e de propaganda do imperialismo, a parte com maior destaque na sucessão das páginas do livro. Ou, visto numa outra via, e considerando que a realidade é mais complexa, numa infiltração entre o social e o cultural (pp. 4-5).

3 A conjugação de todos estes elementos tem na sua base um aspeto não menos relevante: o «outro». Para além do nativo dos territórios ultramarinos, sobre quem se desenvolveram teorias raciais da diferença integradas no contexto do darwinismo social, ou do colono, o imperialismo teve como pano de fundo as relações intereuropeias. Com efeito, estava-se perante um facto transnacional, desenvolvido numa teia de relações muito diversas entre os Estados. Apesar das rivalidades, evoluíram no mesmo processo, fomentando formas e teorias comuns – «learned from and copied each other» (p. 7); mesmo os americanos e japoneses assumiram estes modelos. E, não obstante as variantes nacionais, os diversos capítulos apelam frequentemente ao uso de meios similares. Mas em relação ao «outro» cresceram também as competições, os ressentimentos e o medo, dos «inimigos» tradicionais (entre a França e a Inglaterra, por exemplo), ou dos novos, criados pelas ambições dos competidores e que foram mudando num contexto que em muito alargava as fronteiras ultramarinas.

4 Neste contexto, na obra são consideradas instituições e formas de transmissão da ideia imperial. O período sobre o qual se debruça, aliás, potencializava esta propagação: desenvolvia-se a escolarização, propagavam-se os meios de comunicação de massas, alargava-se o sufrágio, expandiam-se os mercados de consumo, surgiam novas disciplinas e técnicas, etc. As instituições culturais, políticas, religiosas, científicas, educativas, ou outras, assumiram um papel preponderante, com a criação de museus, organização de exposições, realização de cerimoniais, integração dos temas nos currículos escolares, publicação de livros das mais variadas formas, criação de heróis nacionais, difusão de imagens, monumentalização de factos e pessoas, entre outros, de que os diferentes autores vão dando conta. Entre as instituições um papel destacado é concedido às de evangelização das diferentes confissões: para além do seu conhecido e desconhecido papel na pregação e no alargamento da influência dos Estados europeus por terras ultramarinas, o destaque dá-se aqui ao seu papel na difusão do imperialismo nas metrópoles.

5 Estas questões mais gerais ganham lugar na individualidade de cada um dos Estados, considerados em cada capítulo e mostrando que houve diferentes níveis de aceitação dos factos imperiais.

6 Berny Sèbe, em «Exalting imperial grandeur: the French empire and its metropolitan public», mostra como, apesar das dificuldades metropolitanas e da importância dos valores agrários em França, se sustentou o interesse pela expansão ultramarina. Vindo já de épocas anteriores, ele converteu-se numa parte importante das ideias da III República e incrementou-se ao longo do tempo, entrando na cultura popular. Se o período entre guerras conheceu maior incremento, ganhou ainda maior dimensão durante com a II Guerra, como contraponto à fraqueza interna. O momento final do seu colonialismo foi, deste modo, o do seu paroxismo.

7 O capítulo dedicado à Grã-Bretanha, «Passion or indifference: popular imperialism in Britain, continuities and discontinuities over two centuries», é devido ao próprio John M. MacKenzie, que aqui reafirma as suas anteriores proposições sobre o imperialismo na cultura popular: apesar da contestação oferecida por alguns autores, são considerados os sinais que, de formas diversificadas, mostram o encantamento com o império. Na sua conclusão, “apesar nem sempre visível, o imperialismo popular esteve sempre presente” (p. 82) – todavia, apesar da sua expressão desde o século XVIII, foi no final de oitocentos que assumiu maior peso na cultura popular.

8 Envolvida no colonialismo desde o século XVII, ao iniciar-se o século XX a Holanda estava essencialmente ligado a dois espaços, as Índias holandesas e a África do Sul. Ao longo do capítulo três, «Songs of an imperial underdog: imperialism and popular culture in the Netherlands, 1870-1960», Vincent Kuitenbrouwer examina como a ideologia imperial se tornou parte importante no processo de desenvolvimento da afirmação da identidade nacional, ligada à modernidade – apesar da incerteza experimentada por um pequeno país com um grande império colonial (p. 118). Prossegue até aos traumas suscitados pelos efeitos da II Guerra, da descolonização e do apartheid.

9 Matthew G. Stanard escreveu «Learning to love Leopold: Belgian popular imperialism, 1830-1960» onde se dedica ao estudo da alteração de atitudes em torno da figura do rei Leopoldo II, de mal-amado a celebrado, e da relação com os belgas com as suas colónias, da indiferença ao entusiasmo. Em todo este processo, a ameaça alemã proporcionou uma mudança, que se desenvolveu pelas atividades internas, organizadas com este fim.

10 Apesar da Alemanha só ter possuído colónias entre 1884 e 1918, a ideia imperial prolongou-se no tempo, numa aspiração ao que o país deveria ter, como destacou Bernhard Gissibl em «Imagination and beyond: cultures and geographies of imperialism in Germany, 1848-1918» (p. 161). Com efeito, já anteriormente à unificação se constatava o assunto; apesar dos efeitos do Tratado de Versalhes, as fantasias imperialistas resistiram através de uma variedade de formas, almejando a satisfação de necessidades nacionais – embora não se tenham manifestado especialmente para com as colónias durante o nazismo. Porém, a ligação entre o nacionalismo e o colonialismo não foi similar em todos os grupos nem em todo o país.

11 Para concluir, no último capítulo, «’The peasants did not think of Africa’: empire and the Italian state’s pursuit of legitimacy, 1871-1945», Giuseppe Finaldi observa como a ligação entre o imperialismo e o Estado prosseguiu ao longo dos regimes que se sucederam entre a unificação e a II Guerra Mundial: o império tornou-se essencialmente a mensagem de comunicação Estado/povo, envolvendo a todos numa «cidadania comum» (p. 224), um esforço para ligar o povo com os vários regimes (p. 196). Neste sentido contradiz a frase de Levi que colocou no título, pois considera que o império se tornou, se facto, um sonho generalizado.

12 Apesar da pertinência de toda a sua análise, o livro enferma de algumas lacunas, aliás reconhecidas na própria introdução. Assim, num nível mais geral não é contemplada a descolonização. Mas se esta é uma decisão que engloba todos os países, podemos considerar que a omissão é mais grave deixando a Espanha e Portugal de fora, por razões de espaço. Se o primeiro destes Estados atravessava a sua fase de perda, já o nosso país, não obstante a sua fraqueza, era indubitavelmente um ponto central destas questões no período em causa. E a sua debilidade poderia eventualmente ser confrontada com a posição que Kuitenbrouwer apontou para a Holanda, a de uma pequena nação descobrir o seu lugar como detentora de um vasto império. No nosso caso interno lamentamos também a exclusão de Portugal porque proporcionaria uma conjugação de elementos que já se começaram a fazer e o incentivo ao seu prosseguimento. Esperamos pois que, como John MacKenzie escreveu, haja outra possibilidade de superar essa falta.

13 No contexto europeu seria igualmente de considerar outras possibilidades de alargamento desta análise. Por exemplo, como é que o imperialismo se refletiu na cultura de países que não estiveram diretamente envolvidos mas certamente experimentaram nele as suas consequências. Alguns teriam, provavelmente, uma relação mais intensa devido ao seu passado, como sucedeu com a Dinamarca. O estudo destes fenómenos contribuiria, sem dúvida, para um melhor conhecimento das dinâmicas europeias. E, apesar do imperialismo ter assumido mais destaque no Velho Continente, seria igualmente desejável compreender o mesmo fenómeno para outras potências que foram adquirindo espaço, os Estados Unidos da América e o Japão.

14 Não obstante estas questões, estamos perante uma obra de grande pertinência, levantando questões variadas e linhas de trabalho muito sugestivas, que se espera que venham a frutificar.

Célia Reis – IHC-FCSH/UNL.

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Third World Protest: Between Home and the World | Rahul Rao

The opening scene of this fascinating book about human rights in the Global South, nationalism (‘home’) and cosmopolitanism (‘the world’) by Rahul Rao, Lecturer in Politics at SOAS, is central London in 2003. The author participates in a manifestation against the impending Iraq War, seen by many as an imperialist venture that will most certainly endanger Iraqi civilians. Yet he also professes to the “struck by the tacit alliance between a politically correct Western left, so ashamed of the crimes of Western imperialism that it found itself incapable of denouncing the actions of Third World regimes, and a hyper-defensive Third World mentality […].” After all, as British foreign policy makers pointed out, Saddam Hussein was guilty of the largest chemical weapons attack directed against a civilian-populated area in history, which took place in Halabaja in the late 1980s, at the end of the war against Iran.

Both sides may care about the fate of the Iraqi population. Yet, what sets the two groups apart, Rao remarks, is that they have identified different enemies: Communitarians and nationalists pointed to the international system as the main threat, while cosmopolitans point to the state, or, more specifically, to the often brutal ‘Third World state’. Leia Mais

Imperialism, power, and identity. Experiencing the Roman Empire / David Mattingly

MATTINGLY David 1
David Mattingly / Foto: Archaeological Institute of America /

MATTINGLY D ImperalismProfessor de Arqueologia Romana na Escola de Arqueologia e História Antiga (School of Archaeology and Ancient History) da Universidade inglesa de Leicester, desde 1991, David Mattingly é, atualmente, diretor de pesquisa do College of Arts, Humanities and Law e membro da Academia Britânica. Arqueólogo consagrado na academia britânica, o referido autor possui inúmeras publicações a respeito da arqueologia do Império Romano, as quais abrangem o resultado de suas pesquisas realizadas na Grã-Bretanha, Itália, Tunísia, Líbia e Jordânia. No momento, a África Romana tem sido a grande preocupação de Mattingly. Uma de suas prioridades tem sido analisar as situações de colonização romana no norte da África e tentar perceber, por meio da cultura material, as condições locais das populações que viviam sob o Império. Dentro desta perspectiva, Mattingly também atua como coordenador geral do projeto “Trans-Sahara: Formação do Estado, Migração e Comércio no Sahara Central (1000 a.C. -1500 d.C.)”.

Imperialism, power, and identity. Experiencing the Roman Empire é formado, em sua maior parte, por ensaios resultantes de conferências realizadas por Mattingly na Tufts University, Massachusetts (EUA), em abril de 2006. A temática geral trata de um assunto muito debatido ultimamente na academia, que diz respeito, sobretudo, à aplicabilidade (ou não) do conceito de Romanização para os estudos do Império Romano. Mattingly opta pelo viés do Imperialismo, do poder e da identidade para formular sua proposta atual de pesquisa para o Império Romano, focalizando nas experiências locais como uma nova forma de interpretação dos vestígios arqueológicos. Segundo Mattingly, o termo Romanização não mais serve aos nossos propósitos atuais. O “seu” Império Romano, como realça, é o resultado de trinta anos de estudo. Após inúmeros trabalhos de campo e pesquisas científicas, o autor chegou à conclusão que as condições do Império Romano eram situacionais, pois a percepção do que era o Império variava de região para região. Os estudos pós-coloniais foram, neste sentido, essenciais para o desdobramento de sua tese atual.

Os capítulos do livro são formados por ensaios direcionados a temáticas variadas, mas sempre partindo de um eixo central – a questão do poder. São quatro as partes que compõem a estrutura interna do livro, a saber: 1) Imperialismos e Colonialismos; 2) Poder; 3) Recursos e 4) Identidade. A primeira parte é constituída por dois capítulos. No primeiro deles, intitulado “Do Imperium ao Imperialismo: escrevendo sobre o Império Romano”, Mattingly discorre a respeito de vários termos utilizados pela historiografia que trata de Roma Antiga. Conceitos como Império, Imperialismo, Colonialismo, Globalização e Romanização são colocados em pauta e debatidos. Partindo de uma revisão historiográfica sobre o Império Romano, o autor descortina as influências que o Imperialismo do século XIX, sobretudo o britânico, exerceu na interpretação do que foi Roma na Antiguidade.

A historiografia tradicional considerava que o Império Romano teria expandido a civilização para os povos bárbaros, assim como os europeus ocidentais estavam procedendo quanto às suas colônias na África e na Ásia. De uma maneira geral, os classicistas foram os grandes responsáveis por nos imputar a ideia de que somos herdeiros e beneficiários das ações civilizatórias romanas. Tal atitude é severamente criticada por Mattingly, que interpreta as atitudes romanas em relação às províncias como atos imperialistas, em muitos aspectos semelhantes àqueles perpetrados pelo Imperialismo contemporâneo. Segundo ele, o conceito de “Imperialismo” pode ser aplicado a Roma Antiga, pois Roma era um Estado excepcional na Antiguidade. A natureza das relações desiguais entre Roma e os estados conquistados, o exercício do poder e as diferentes respostas a ele indicam ao autor que o termo Imperialismo cabe bem à sua proposta de estudo. O desejo de poder é o ponto central que une todas as épocas e lugares que vivem sob um Império. Justifica-se também o uso do conceito de Imperialismo pelo fato de os administradores do Império Britânico considerarem a Roma Antiga como exemplo e modelo a ser seguido.

A maior parte das fontes que dispomos sobre Roma Antiga diz respeito aos grupos que compunham a elite. Faltam estudos que mostrem as reações e atitudes dos povos conquistados pelos romanos. As abordagens pós-coloniais estão sendo consideradas apropriadas para quem se dedica a estudar os efeitos do colonialismo e da colonização exatamente pela possibilidade de darem voz aos oprimidos. Muitos arqueólogos têm, ultimamente, utilizado esta perspectiva de análise para verificar questões relativas à identidade local. Este é o caso de Mattingly, cuja preocupação é saber como as pessoas sujeitas ao Império viviam e como esta situação afetava o seu comportamento e a sua cultura material. A partir do conceito de experiência discrepante (discrepant experience), desenvolvido por Edward Said [1], Mattingly estabeleceu o seu próprio, diferindo em certos aspectos quanto à ideia original proposta por seu criador. Said havia pensado neste conceito como definidor de uma dicotomia entre governantes e governados, onde cada um tinha a sua própria história. No entanto, Mattingly prefere usar o termo “experiência discrepante” no sentido de incorporar todos os impactos e reações ao colonialismo rejeitando a ideia de bipolaridade, no seu caso específico entre romanos e nativos (p. 29).

Ao tratar da “Romanização” Mattingly é bem claro em recusar o uso do conceito. Atualmente, muitos arqueólogos e historiadores continuam a usar o termo “Romanização” pensando, sobretudo, nas negociações entre os membros da elite local romana e o agente nativo. Entretanto, embora tenha usado este conceito no passado, Mattingly agora se mostra enfático em suas objeções a ele: seria um paradigma falho, pois possui múltiplos significados; é um termo inútil, pois implica que a mudança cultural foi unilateral e unilinear; faz parte do discurso moderno colonial; dá grande ênfase aos vestígios da elite como grandes monumentos; leva os estudiosos a adotarem posturas pró-romanas; não destaca os elementos que sugerem uma continuidade das tradições culturais da sociedade indígena; reforça uma interpretação da cultura material que é simplista e estreita (como aculturação e emulação); enfim, focaliza a atenção no grau de semelhança entre as províncias e não na diferenciação e na divergência entre elas.

No segundo capítulo, intitulado “De um colonialismo a outro: o Imperialismo e o Magreb”, Mattingly discorre a respeito de um estudo de caso da África Romana, região também marcada pela estrutura colonialista contemporânea. As pesquisas arqueológicas no Magreb (Argélia, Tunísia, Marrocos e Líbia) foram influenciadas, segundo Mattingly, pela ação colonialista de franceses e italianos, que se consideravam herdeiros dos romanos na região. A população local, de origem berbere, foi classificada como selvagem, bárbara e não civilizada. Buscando paralelos entre os imperialismos, antigo e moderno, Mattingly estabelece a existência de uma ação direta entre o exército de ocupação francês e os assentamentos romanos na região. A arqueologia foi, inicialmente, dominada por ex-militares, que procuravam vestígios de fortificações romanas. Na verdade, o que aconteceu foi que muitos sítios arqueológicos que eram áreas agrícolas na Antiguidade foram interpretados como sendo assentamentos militares romanos. Houve uma manipulação dos dados em benefício dos colonizadores.

Com o desenvolvimento dos estudos pós-coloniais, baseados em atitudes de nacionalismo e de resistência, passou-se a considerar que a africanidade estava presente nos nomes púnicos das inscrições de época romana, na religião e em outros aspectos da sociedade dominada, fato que é demonstrativo da atuação dos agentes locais que viviam sob o Império Romano. Mattingly aponta as novas perspectivas necessárias, segundo ele, para que haja o desenvolvimento da arqueologia do norte da África: os estudiosos europeus devem abandonar o discurso colonial; a fase de ocupação romana precisa ser restabelecida no Magreb como uma parte importante de sua herança cultural; é importante a criação de uma nova agenda para a arqueologia clássica na região, uma que servirá às necessidades do turismo, mas que também se preocupará com a história do Magreb e, em última instância, uma mudança na atitude da Academia criará as circunstâncias certas para a utilização da teoria pós-colonial.

A segunda parte do livro de Mattingly é dedicada ao “Poder”. No terceiro capítulo, nomeado “Mudança de regime, resistência e reconstrução: Imperialismo antigo e moderno”, o autor discorre a respeito da atuação romana frente aos seus reinos clientes. Mais uma vez procura-se associar o Imperialismo antigo e o moderno. Apesar das diferenças entre eles, Mattingly defende a ideia de que todos os impérios têm uma base comum na dominação de terras, mares e povos, cujo elemento principal é o “poder”. No final da República e início do Principado foi comum a existência de governantes clientes. Tratava-se de reis locais, que mantinham o seu poder graças ao apoio romano. Estes reinos amigos eram uma forma econômica de se conseguir recursos e extrair tributos. Entre o final do século I a.C. e início do seguinte muitos reinos clientes foram anexados por Roma. O momento de anexação coincidia com a morte do rei e a não aceitação de seu sucessor. Um exemplo famoso é o de Cleópatra Selene, filha de Cleópatra VII e Marco Antônio, casada com o rei Juba II e colocada junto com ele no trono da Mauritânia, reino que originalmente não era de seus pais. Era comum que os governantes romanos apresentassem uma imagem negativa dos reis clientes que foram por eles depostos. No caso da Britânia, Mattingly ressalta que os historiadores colocaram a culpa pela invasão romana nos governantes dos reinos clientes, sendo que os romanos tiveram a intenção de dominar a região e, por isso, incentivavam atritos entre os habitantes locais.

No capítulo seguinte, “Poder, sexo e Império” a temática principal gira em torno da relação entre corpo e poder. Para tanto, Mattingly se apropria dos estudos pós-coloniais e compara aspectos do sexo no mundo romano com as atitudes observadas nas sociedades coloniais modernas. Um assunto específico chamou a atenção do autor – a questão do poder sexual e seus efeitos na formação das atitudes sexuais romanas. Mattingly está preocupado em verificar a influência negativa do poder na sociedade romana, que causou alterações na conduta dos romanos à medida que o Império se expandiu e conquistou vastos territórios. É comum os estudiosos considerarem que as relações culturais entre Roma e suas províncias eram, em certo sentido, igualitárias. No entanto, embora Roma não fosse racista e exclusivista como as metrópoles modernas, o impacto da conquista romana sobre os povos conquistados não pode ser negligenciado. O Imperialismo Romano estava baseado em poder assimétrico, coerção, exploração e violência. Enquanto as antigas abordagens a respeito do Imperialismo Romano tendiam a considerar que os povos dominados não possuíam nenhum papel ativo no seu destino, Mattingly enfatiza que todos os atos de colaboração, participação seletiva e resistência tomava lugar na estrutura dinâmica das relações de poder.

As teorias pós-coloniais servem para observarmos a relação entre ambas sociedades – a que domina e a subjugada – também no que diz respeito ao comportamento sexual. Segundo Mattingly, o comportamento considerado bizarro de certos imperadores é, geralmente, descrito pelos historiadores, mas não analisado. E este deveria ser compreendido em um contexto amplo de sexualidades alternativas proporcionadas pela existência de sociedades coloniais. Orgias romanas míticas podem, então, ser relocadas neste discurso. As fontes romanas e o vocabulário sexual latino revelam um padrão de dominação e práticas que atravessam os limites normativos da moral, do gênero, da classe e da etnicidade. Existem paralelos, neste sentido, entre os imperialismos romano, britânico e norte-americano. Os efeitos desta prática de domínio sexual podem ser observados na população dominada. Mas outra característica importante é a corrupção psicológica da humilhação e degradação sexual – que tem sido um poderoso instrumento de sustentação das diferenças sociais entre governantes e governados nas sociedades coloniais.

A sexualidade romana, no decorrer do tempo, sofreu alterações. De uma tradição comportamental austera adquiriu aspectos eróticos jamais vistos anteriormente. Mattingly se questiona sobre o que aconteceu. A resposta é algo interno à sociedade romana ou foi resultado de seu domínio colonial? Nos primórdios da civilização romana se falava de castidade, respeitabilidade e virtude e o comportamento adequado para as mulheres da aristocracia eram o de fidelidade sexual e de modéstia. Já os homens tinham suas licenças para ter sexo fora do casamento. Com a expansão da riqueza advinda das terras conquistadas e o aumento na quantidade de escravos, a sociedade romana teria sofrido transformações também em relação ao seu comportamento sexual. O exército estabelecido fora da Itália poderia experimentar novas formas de luxúria, colocada por Mattingly em termos de bens materiais, artísticos e acesso a uma culinária diferenciada.

Mattingly propõe deslocar o fenômeno da permissividade romana para o discurso colonial, onde temos a violência e a exploração em relação à sexualidade. O poder colonial inclui exercer o poder sobre os dominados inclusive no âmbito da sexualidade. Nas sociedades coloniais a distância do colonizador da sua terra de origem e sua permanência em um lugar desconhecido favorecia a transgressão às regras. A humilhação sexual dos colonizados, homens e mulheres, era comum. No vocabulário latino e nos relatos das práticas sexuais romanas fica evidente que o falo era um símbolo de poder, além de possuir seu significado propriamente religioso de proteção e de fertilidade. Termos linguísticos para o intercurso sexual estão sempre relacionados aos soldados. É o caso de verbos como penetrar, cortar, cavar e atacar, normalmente associados ao ato sexual masculino. Tanto a vagina (cunnus) quanto o reto (culus) estavam associados metaforicamente a animais, campos, grutas e objetos domésticos. As mulheres e aqueles que se sujeitavam ao papel passivo em uma relação sexual eram considerados de status social inferior. A palavra stuprum significa, em latim, vergonha. Era, por exemplo, chamado de stuprum o ato de um homem exercer a função passiva em uma relação sexual com outro homem, o que o equiparava a um escravo.

Ao tratar das relações de poder Mattingly nos remete às ideias de Michel Foucault (p. 102-103). A sexualidade não é considerada como uma condição natural e sim como produto das relações de poder e resultado do efeito de operações historicamente específicas de diferentes regimes de poder sobre o corpo. Embora Mattingly concorde com Foucault no sentido de considerar a existência de múltiplas formas de relações de poder, discorda deste pela não observação dos fatores que se opunham ao poder. Esta crítica a Foucault foi apresentada primeiramente por Said, preocupado com questões relativas à resistência ao poder dominante. Geralmente, quando se estuda sexo e desejo no mundo antigo não se faz pelo viés das relações de poder e sob a ótica do Colonialismo e do Imperialismo, tarefa a que Mattingly se propõe neste capítulo.

A terceira parte do livro aborda a temática “Recursos”. A questão relativa à economia e à exploração dos recursos das áreas conquistadas é central nos três capítulos que consideraremos a seguir. No capítulo V, denominado “Regiões governadas, recursos explorados”, Mattingly retoma um antigo debate a respeito da economia antiga. Durante muito tempo a historiografia foi dominada pelas ideias de Moses Finley, para quem a economia antiga não poderia ser considerada de mercado ou capitalista como queria alguns autores marxistas, entre eles Michael Rostovtzeff (p. 125). Finley seguia, neste sentido, as ideias desenvolvidas por Karl Polanyi, que postulou o conceito de uma economia “embededd”, imbuída em todas as esferas da sociedade. Estas opiniões divergentes polarizaram o discurso em dois matizes: os formalistas e os substantivistas. Os primeiros considerando a existência de uma economia de mercado, de cunho racionalista e, os últimos, sendo partidários de uma economia primitiva. Mattingly defende que a economia romana possuía ambos os aspectos, primitivo e progressivo, sendo uma economia híbrida. O objetivo de Mattingly é focalizar sua pesquisa no papel do Estado como motor da atividade econômica através de seu status de poder imperial. Sua análise parte das questões atuais a respeito do discurso colonial e não se define pela teoria econômica.

No capítulo VI, “Paisagens do Imperialismo. África: uma paisagem de oportunidade?”, Mattingly aborda uma temática recorrente nas pesquisas arqueológicas atuais, que diz respeito aos estudos da paisagem. A África seria, neste sentido, uma paisagem da oportunidade para os romanos. Pelo trabalho arqueológico foi possível, segundo o autor, identificar o crescimento econômico intensivo nas províncias da África Proconsular e a Numídia, entre os séculos II e IV d.C. Enquanto esta província cresceu, outras, como a da Acaia, diminuiu após a conquista romana. As paisagens provinciais foram o produto de processos complexos de coerção, negociação, acomodação e resistência, sendo exploradas tanto pelos colonizadores como também pela população nativa.

Em “Metais e Metalla: paisagem de uma mina de cobre romana em Wadi Faynan, Jordânia”, capítulo VII, o enfoque está colocado sobre a paisagem desta importante mina de cobre romana, cuja exploração intensiva tinha por objetivo manter o exército romano e o próprio império. Em comparação com as atividades industriais atuais, Mattingly salienta que a poluição causada ao meio-ambiente derivada desta ação humana passada permanece na localidade até os dias de hoje, sendo muito comum a contaminação do solo com chumbo, o que afeta a produção de alimentos e causa doenças em pessoas e animais. Estudos de caso como este de Mattingly são importantes, pois revelam a existência de vários tipos de relações de trabalho nas minas exploradas pelos romanos. Era comum que em uma mesma mina trabalhassem escravos e homens livres. Enquanto na mina de Wadi Faynan prevaleciam indivíduos condenados a trabalhos forçados, geralmente oriundos de populações que tinham se rebelado contra Roma, outras minas como as de granito e pórfiro do Egito (Monte Porfirius e Monte Claudianus) possuíam trabalhadores contratados, que recebiam salário.

“Identidade” é a temática da quarta parte, dividida em dois capítulos. No capítulo oitavo, intitulado “Identidade e Discrepância”, Mattingly apresenta uma nova abordagem para explicar a mudança cultural, que oferece uma alternativa àquela da Romanização. A história tradicional considerava as áreas conquistadas como tendo um papel passivo frente à civilização romana. Uma postura corrente nos estudos atuais, adotada, por exemplo, por autores como Martin Millet e Greg Woolf (p. 206), é considerar o papel ativo das elites locais que estavam sob o domínio imperial romano. Enquanto os membros pertencentes à elite adotavam a língua latina e os novos tipos de vestimenta, adornos e um comportamento romano, aqueles das camadas mais humildes teriam uma experiência mais diluída da Romanização. No entanto, para Mattingly, este modelo falha por considerar que a maioria da população nativa era passiva frente ao Império Romano. Mattingly conclui que, como a identidade está relacionada ao poder, a criação das identidades provinciais não pode ser tomada isoladamente da negociação de poder entre o Império Romano e os povos conquistados. E o que falta no modelo de Romanização é saber como as dinâmicas do poder operam tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima. Outra abordagem que busca se diferenciar dos estudos tradicionais foi proposta por Jane Webster com o uso do termo “crioulização” (p. 203-204), com a finalidade de visualizar na cultura material vestígios da cultura escrava crioulizada. Mattingly acredita que o uso deste termo é perigoso, pois acabamos por substituir um conceito elitizado, o de Romanização pelo seu oposto, que prioriza os indivíduos de baixo status social. Segundo ele, uma abordagem que combine ambos os lados se faz necessária.

Como observar esta diversidade em uma pesquisa arqueológica? Mattingly retoma as ideias de Sian Jones [2], que defende ser a etnicidade uma forma de identidade que a sociedade constrói (p. 209-210). A solução de Jones para este problema é focar a pesquisa nas culturas locais e comparar grupos de sítios como assentamentos rurais e fortes romanos, por exemplo. Ao trabalhar com estudo de caso de sítios rurais ela demonstra que havia considerável diversidade, que era obscurecida pelo modelo de Romanização com sua tendência em enfatizar a homogeneidade. Mattingly tem dúvidas em dar à etnicidade muita importância nos estudos sobre identidades passadas, mas sabe que tanto no mundo grego quanto no romano os discursos de etnicidade tinham um importante papel. Se a etnicidade era um dos pontos de significância para marcar a identidade, a evidência arqueológica sugere que ela não era uma constante no tempo e no espaço.

Para Mattingly, a identidade deve ser estudada em termos de poder e de cultura. E embora considere a importância do agente ativo nativo na mudança cultural sabe que há limites sobre a habilidade de escolher nossa identidade aos olhos dos outros. Enquanto o processo de conquista e assimilação ao Império Romano promoveu uma delineação profunda de identidades étnicas, vários fatores militaram contra a manutenção disto na longa duração. A identidade étnica dificultava e criava uma barreira para estas sociedades negociarem com Roma. As distinções étnicas, que tornaram-se grandes e significantes durante o processo de expansão imperial, foram, mais tarde, diminuídas como estratégias múltiplas para lidar com a identidade individual e comunal. A construção romana de identidade étnica servia ao propósito de facilitar a violência colonial, ao passo que a nativa servia como forma de resistência durante a fase de conquista.

A heterogeneidade de respostas a Roma não era uniforme e variava conforme o local. Alguns estudos recentes de identidade têm empregado o termo hibridização para definir o resultado do contato cultural entre romanos e nativos. Mattingly, ao priorizar a diferença ao invés da semelhança, defende a utilização do termo “discrepante”, que indica “discordância” e “desarmonia”. O ponto é que as sociedades provinciais romanas poderiam algumas vezes exibir discordância cultural assim como similaridades, que são geralmente celebradas por meio da teoria da Romanização. A principal preocupação do autor é mostrar que os indivíduos e os grupos no período romano foram multifacetados e dinâmicos. O que foi previamente descrito como Romanização representa as interações de múltiplas tentativas de definir e redefinir a identidade.

“Identidade discrepante” possui similaridades com os trabalhos que usam o conceito de agência e teoria da estruturação.[3]Estas teorias enfatizam as escolhas do sujeito na estrutura social (p. 216-217). Mas, no caso de sistemas imperiais, há uma limitação nesta escolha. Então, é preciso balancear o conceito de agência com um exame profundo das influências estruturais. Um ponto a considerar é que as estruturas imperiais afetam os atores locais de diferentes maneiras. Os impactos imperiais sobre as áreas dominadas podem ser observados, geralmente, por meio de atos intencionais perpetrados pelo Império Romano e o consequente comportamento dos sujeitos afetados. Alguns fatores importantes a se considerar pelo pesquisador são elencados por Mattingly (p. 217): 1) o status social (escravos, livres, libertos, bárbaros, cidadãos romanos, não cidadãos etc.); 2) riqueza – as formas de produção econômica (economia de subsistência, de mercado etc.); 3) localização (espaço urbano, rural, zonas civil, militar etc.); 4) trabalho (artesãos, membros de guildas, soldados do exército etc.); 5) religião – sobretudo as seitas exclusivistas como o Mitraísmo, os Cultos de Mistério, Judaísmo e Cristianismo); 6) origem (geográfica ou étnica, tribal etc.); 7) associação por serviço ou profissão ao governo imperial (ou não); 8) aqueles que viviam sob lei civil ou marcial; 9) linguagem e literatura; 10) gênero e 11) idade.

Mattingly exemplifica sua proposta de encaminhamento de pesquisa arqueológica com os dados provenientes da Britânia e do norte da África. Sua abordagem inicial para o estudo da Britânia foi isolar as evidências da comunidade militar, da população urbana e das sociedades rurais. Um dos vestígios mais prementes para observar a identidade discrepante diz respeito à religião, pois é uma esfera recorrente para a marcação de diferenciação social. A religião romano-britânica tem sido frequentemente apresentada como um amálgama de práticas romanas importadas e práticas nativas britânicas temperadas com influências galo-germânicas. Segundo Mattingly, a distribuição dos vestígios de certas práticas em santuários como a presença de altares e de inscrições com maldições são indicadores de que a religião estava associada à identidade social. O exército, por exemplo, tinha cultos muito diferentes daqueles dos civis. Enquanto nas áreas militares predominavam santuários romanos em outras comunidades os templos possuíam características celtas. Inscrições funerárias também servem para demonstrar as diferentes identidades do indivíduo no decorrer do tempo. Por exemplo, o relevo funerário de Regina, esposa de um mercador ou soldado de Palmira que vivia na Britânia, a retrata como uma respeitável matrona romana. Na representação iconográfica ela aparece usando vestimentas e adornos símbolos deste status social. No entanto, pela inscrição da lápide, em texto bilíngue, ficamos sabendo que antes do casamento Regina havia sido escrava de seu futuro marido (p. 218, fig. 8.3).

Em comparação com a Britânia a África era mais rica e próspera, possuindo maior quantidade de inscrições latinas. Léptis Magna, por exemplo, era uma grande cidade da Tripolitânia, habitada por líbios-fenícios, oriundos de casamentos mistos entre fenícios (púnicos, originários de Cartago) e líbios. A identidade púnica era muito parecida com a dos egípcios que viviam sob o domínio romano: servia à elite provincial que circulava pelas estruturas do poder romano, assim como era um marco da identidade local. A cultura material de cunho funerário como estelas, tipos de enterramento e inscrições bilíngues é demonstrativa deste tipo de comportamento.

O último capítulo, o nono, denominado “Valores familiares: Arte e Poder em Ghirza no pré-deserto líbio”, trata da relação entre arte e poder. Nos estudos historiográficos sobre a arte romana normalmente a arte das províncias é retratada como inferior, como sendo uma imitação inadequada daquela produzida no centro do Império. Não havia a preocupação em indagar qual iconografia ou estilo servia aos propósitos indígenas. Faltava também aos historiadores de arte considerar que na Antiguidade não existia separação entre arte e artesanato e também não havia um padrão estético que valesse para todo o Império Romano. A arte era usada por diferentes grupos na sociedade para expressar relações de poder. A arte oficial romana, que se expandia a todas as camadas da sociedade, servia para dar suporte à dominação imperial. No entanto, sabemos que a interpretação da iconografia dependia do contexto e da audiência. Para Mattingly, a adoção do estilo romanizado facilitou a continuação das tradições indígenas.

As tumbas de Ghirza, na Líbia, servem para exemplificar esta questão. Interpretadas à luz da arte romana eram vistas como degenerativas pelos escritores do século XIX e início do XX. Para Mattingly, estas tumbas devem ser consideradas não apenas como monumentos aos mortos, mas também como estruturas que tinham uma continuidade na significância religiosa dos vivos. O objetivo principal de Mattingly, nesta sua pesquisa, foi relacionar a imagética presente nas tumbas com as redes de poder construídas ao redor dos membros vivos e mortos das principais famílias de Ghirza. Sua hipótese é de que existiam duas famílias principais da elite em Ghirza, que procuravam demonstrar poder e status social por meio dos enterramentos e da iconografia funerária. Os chefes das famílias aparecem retratados nas tumbas com cetros e outros elementos simbólicos associados ao poder: vestimentas e adornos, cavalos, cães etc. As mulheres, por sua vez, aparecem representadas usando joias romanas. No entanto, Mattingly conclui que os retratos seguiam o padrão de representação púnico e serviam ao culto ancestral líbio.

Esta série de ensaios de David Mattingly é elucidativa do caminho que a arqueologia romana tem percorrido nos últimos tempos. O conceito de Romanização tem sido colocado em xeque e debatido em vários sentidos. Por isso mesmo, vem sendo utilizado com cautela no sentido de ser uma via de mão dupla, que permita vislumbrar não apenas a ação romana nas províncias, mas também as respostas dos sujeitos subordinados ao Império Romano. O desenvolvimento da teoria pós-colonial foi imprescindível para que vários arqueólogos e historiadores passassem a adotar uma postura mais crítica em relação à Romanização. Este livro de Mattingly é importante no sentido de trazer luz ao debate atual e por propor novas diretrizes para arqueologia romana. O caráter do Imperialismo e Colonialismo romanos, seu impacto econômico, a operacionalidade do poder nas sociedades coloniais e o modo como os indivíduos sob governo imperial construíram suas identidades são pontos-chave de sua proposta (p. 269).

A existência de um “Imperialismo Romano” é defendida enfaticamente no decorrer da obra, sendo que Mattingly não considera que haja problemas na utilização de termos como “Império”, “Imperialismo”, “Colonialismo” e “Colonização”, quando se trata de Roma Antiga. Os estudos sobre Roma foram pautados, no passado, pelo discurso colonialista europeu do final do século XIX e início do XX, do qual os norte-americanos foram herdeiros. Tal fato afetou toda a produção historiográfica que se dedicava aos estudos do Império Romano e possui repercussões até hoje. A teoria da “Romanização” é rejeitada e por meio das abordagens pós-coloniais outros aspectos da sociedade romana podem ser observados, segundo o autor: o dinamismo de seu Imperialismo e Colonialismo; a questão do poder, central para a compreensão da relação entre Roma e suas províncias; a existência de uma “economia imperial”, sendo o vetor econômico pautado pela exploração de recursos um dos pontos que caracteriza o Imperialismo Romano e, por fim, o conceito de “Identidade”, que pode ser usado para se estudar a diversidade e o hibridismo resultado do contato entre romanos e nativos.

Além das proposições teóricas propriamente ditas, Mattingly apresenta sua metodologia de pesquisa, que se detém em interrogar o registro arqueológico procurando exemplos de diferenças no uso da cultura material com o objetivo de saber se tais ocorrências podem ser atribuídas a práticas sociais distintas que foram sendo usadas para expressar noções de identidade na sociedade. O método, derivado da proposta de Sian Jones, está relacionado à abordagem da Arqueologia pós-processual, cuja preocupação com o contexto arqueológico e as questões de status social e poder definem bem este paradigma científico. Desta forma, as “experiências” que se busca traçar do Império Romano estão relacionadas aos vários tipos de ações de Roma e às múltiplas respostas ao Império, que são condicionadas pela região e o período que estivermos analisando. Os estudos arqueológicos permitem esta consideração do contexto para a verificação da atuação das identidades locais. Mattingly exemplifica com suas pesquisas realizadas no Norte da África e Britânia. Mas sua metodologia, resguardadas as diferenças regionais, pode ser aplicada para o Império Romano como um todo.

Alguns autores podem fazer críticas ao modelo de Mattingly pela sua ênfase na questão da diferença e da não uniformidade do Império Romano e, sobretudo, pela sua comparação da atitude imperial romana com a ação imperialista das nações contemporâneas. Ele seria anacrônico ao tomar a experiência de épocas recentes para tentar entender os romanos? Mattingly, em suas considerações finais, tem plena consciência deste fato e se defende dizendo ter uma postura crítica analítica e não se interessar em construir um Império Romano totalmente negativo, em contraposição aos estudos mais antigos, que vangloriavam a grandeza de Roma (p.274-275). Concordo com o autor neste aspecto. A abordagem pós-colonial trouxe novas perspectivas para entendermos situações de colonização e ações imperialistas. Sua utilização em conjunto com a análise do contexto local, por meio de comparações de sítios arqueológicos e da cultura material, é que traz o equilíbrio necessário ao desenvolvimento da pesquisa. É por meio desta combinação de teoria e dados que poderemos tomar ciência da grande diversidade que constituía o Império Romano.

Notas

1. SAID, Edward W. Culture and Imperialism. London: Vintage, 1993. Edição brasileira: SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

2. JONES, Sian. Archaeology of ethnicity: Constructing identities in the past and present. London: Routledge, 1997.

3. A referência principal do autor para a Teoria da Estruturação é derivada das ideias de Anthony Giddens, em sua obra: GIDDENS, Anthony. The constitution of society: Outline of a theory of structuration. Cambridge: Polity Press, 1984.

Marcia Severina Vasques – Professora Adjunta do Derpartamento de História – UFRN. Doutora em Arqueologia – USP.


MATTINGLY, David. Imperialism, power, and identity. Experiencing the Roman Empire. Princeton: Princeton University Press, 2011. 342p. Resenha de: VASQUES, Marcia Severina. Revista Porto. Natal, v.1, n.2, p.136-149, 2012. Acessar publicação original [IF].

Ocidentalismo: o Ocidente aos olhos dos seus inimigos – BURUMA; MARGALIT (PL)

Nas últimas décadas, as obras que refletiram a herança colonial européia na América, África e Oriente, consolidaram uma área distinta no campo dos estudos culturais que se convencionou chamar estudos pós-coloniais. Essa resenha considera o exemplar Ocidentalismo, livro de Ian Buruma e Avishai Margalit, motivado pelo atentado de 11 de setembro de 2001, quando o Word Trade Center, de Nova York, ruiu com o choque de aviões seqüestrados por terroristas da Al Qaeda, de Osama Bin Laden. Mas é possível relacionar Ocidentalismo à principal obra de Edward Said, Orientalismo, publicado em 1978. Nesta o intelectual palestino desmistifica a construção discursiva e histórica dos ocidentais acerca do que viria a ser o oriente, acenando que a opção a alteridade européia/norte-americana não seria o ocidentalismo, seu oposto. Foi justamente para substantivar o léxico que Buruma e Margalit enriquecem os estudos pós-coloniais com sua obra. Leia Mais

Imperialismo e luta de classes no mundo contemporâneo | James Petras

O debate sobre o imperialismo e a luta de classes, abandonado por uma parte da esquerda e não considerado pela maioria dos pós-modernos, sempre esteve presente na vida dos povos latino-americanos. Na América Central, no Caribe e no México, onde o imperialismo se manifestou de forma mais atuante e visível, os movimentos revolucionários não apenas tomaram em armas, mas também apresentaram um projeto nacional para se contrapor ao Estado imperialista. Essa luta começou no final do século XIX e início do XX, com José Martí, em Cuba, que denunciou a ideologia colonizadora do pan-americanismo; passou por Emiliano Zapata e Francisco Villa, que expropriaram terras de estadunidenses em território mexicano para fazer suas reformas agrárias durante a Revolução de 1910; continuou com Augusto C. Sandino, que lutou contra a ocupação estrangeira para construir um Estado nacional na Nicarágua; e chegou a Che Guevara, que defendeu a tese da criação do segundo e do terceiro Vietnã para derrotar militarmente o imperialismo.

Hoje, líderes nacionalistas de esquerda começam a ganhar as eleições em vários países da América Latina, fazendo-o sobre os escombros das políticas neoliberais aplicadas a partir de meados dos anos 1970. Venezuela, Bolívia, Equador, Nicarágua e a própria Argentina são os exemplos mais conhecidos. Todos estes governos têm implementado, em menor ou maior grau, um projeto nacional de esquerda que se opõe frontalmente ao imperialismo. O Documento de Santa Fé II (1988), que orientou a política externa do Departamento de Estado estadunidense, afirmava que “o matrimônio do comunismo com o nacionalismo, na América Latina, representava o maior perigo para a região e para os interesses dos Estados Unidos”. Leia Mais

Holocaustos Coloniais. Calma, fome e imperialismo na formação do Terceiro Mundo | Mike Davis

Resenhista

Norberto O. Ferreras

Referências desta Resenha

DAVIS, Mike. Holocaustos Coloniais. Calma, fome e imperialismo na formação do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro/São Paulo: Record Editora, 2002. Resenha de: FERRERAS, Norberto O. Trajetos. Fortaleza, v.2, n. 4, p.237-241, 2003.

Acesso apenas no link original [DR]

 Os Olhos do Império. Relatos de viagem e transculturação – PRATT (RBH)

PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império. Relatos de viagem e transculturação. Bauru, EDUSC, 1999, 394p. Resenha de MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.20 n.39, 2000.

O livro de Mary Louise Pratt, Imperial Eyes. Travel Writing and Transculturation. Londres/Nova Iorque, Routledge, 1992, que aparece agora em versão para o português, com o título de Os Olhos do Império. Relatos de Viagem e Transculturação, traduzido por Jézio Gutierre e com revisão técnica desta autora e de Carlos Valero, Bauru, EDUSC, 1999, é um trabalho de grande peso intelectual, que vem sendo profusamente discutido nas universidades norte-americanas, latino-americanas e, em menor escala, no meio acadêmico brasileiro. A presente tradução, facilitando o acesso ao livro, deve sanar esta lacuna.

Obra de grande impacto acadêmico, com discussões teóricas inovadoras e análise minuciosa de uma ampla gama de relatos de viagem, o livro de Mary Pratt encontra-se na intersecção da análise de texto e crítica ideológica. Procurando desvendar não apenas os mecanismos ideológicos e semânticos por meio dos quais os viajantes europeus, a partir de meados do século XVIII, criaram um novo campo discursivo, forjando uma consciência planetária a respeito do outro colonial e suas culturas, a autora associa estes escritos e seus tropos às diferentes fases do expansionismo capitalista e suas conquistas dos territórios interiores do mundo colonial. Neste sentido, é este livro hoje considerado fundamental para a reavaliação dos processos de constituição de um repertório semântico-cognitivo imperialista que se construiu a partir dos anos de 1750, entrelaçando as amplas dinâmicas da expansão do capitalismo em direção às áreas coloniais à produção de um saber que vai criativamente reinventar a realidade colonial, produzindo os novos paradigmas e o repertório de imagens por meio dos quais estas novas dinâmicas puderam ser efetivamente realizadas e implementadas.

Como nota a autora em sua introdução, este livro foi escrito no ambiente acadêmico norte-americano da década de 1980, como parte de um amplo esforço de resistência à onda conservadora que então se impunha, e como exercício de descolonização do conhecimento. Embora se encontre estruturado nos moldes dos estudos acadêmicos, neste trabalho Mary Pratt não se furta à discussão política em seu sentido mais profundo, estabelecendo alguns marcos teóricos para resistência intelectual às análises globalizantes. Conceitos largamente desprezados pelas análises de texto pós-modernas, como os de imperialismo e descolonização, aparecem neste livro contextualizados num recorte teórico afinado com as discussões mais atuais, tornando este um livro que se localiza numa perspectiva interdisciplinar, útil aos estudos da literatura, antropologia, história e outras disciplinas.

Valendo-se da análise de texto e da crítica ideológica, Mary Louise Pratt analisa a literatura de viagem relativa à África no momento em que os europeus lutavam por superar os obstáculos que se antepunham à conquista do território interior do continente, possibilitando o enraizamento dos interesses políticos e comerciais. A autora se volta igualmente para a análise da literatura de viagem sobre a América do Sul, com algumas incursões sobre o México, ressaltando exatamente sua coincidência com o que se convencionou denominar como crise do sistema colonial, eclosão dos movimentos de independência e rearticulação desta área à divisão internacional do trabalho da era imperialista. Neste empreendimento a autora vai propor uma nova visão das relações entre a metrópole e as áreas coloniais, entre o saber europeu e o saber nativo, entre visitantes e visitados, entre viajantes e viajados (neologismo que a autora lança mão para sublinhar o caráter interativo destes encontros). A dimensão da autora é global – mas não globalizante – e é, sobretudo, relacional e interativa, desprezando as análises unilaterais e pretensamente imparciais mas que tomam, por princípio, o olhar imperial e o ponto de vista difusionista como verdade neutra e marco zero analítico. Novos recortes temáticos, novos conceitos e releituras renovadas da literatura imperial permitem que a autora coloque literalmente de cabeça para baixo as interpretações clássicas deste tema, sempre por meio da desconstrução de um universo semântico aparentamente neutro e objetivo. Para tal, alguns conceitos são fundamentais e eu vou apenas nomeá-los rapidamente.

Primeiro o de transculturação, entendido como um fenômeno da zona de contato e que se refere às apropriações dos materiais nativos pelos europeus mas também à maneira pela qual os coloniais se apropriam dos estilos imperiais, construindo eles próprios modos de representação que, absorvidos pelo olhar imperial, constituem um universo cognitivo que passa a ser considerado como originariamente europeu. O termo transculturação foi criado na década de 40 por Fernando Ortiz em seu Contrapunteo Cubano del Tabaco y el Azúcar, e é lá correlacionado ao universo das trocas culturais. Este mesmo conceito foi, na década de 70, utilizado por Angel Rama nos estudos literários. No entanto, parece-me que o uso extensivo do conceito de transculturação em Olhos do Império reporta-se a um universo mais amplo, que é o da constituição de repertórios de símbolos, imagens e discursos que conformam um modo ou estilo cognitivo e um repertório semântico e imagético por meio do qual o outro colonial passa a ser abordado.

Outro conceito fundamental ao livro é o de zona de contato que é compreendido como sinônimo de fronteira cultural, enfatizando as dimensões interativas e improvisadas dos encontros coloniais, pondo em questão como os sujeitos coloniais são constituídos nas e pelas relações entre colonizadores e colonizados, ou viajantes e visitados, em termos de interação e trocas no interior de relações assimétricas de poder. Frente a esta dimensão a autora, invertendo os paradigmas analíticos da análise objetiva, racionalista e eurocentrada do olhar imperialista, faz a pergunta fundamental que, de fato, norteia sua abordagem: Em que medida as construções européias a respeito do outro subordinado teriam sido moldadas pelos próprios subordinados através da construção de si próprios e de seu ambiente tal como eles – os próprios coloniais – os apresentaram aos europeus? Refletindo sobre a constituição do paradigma imperialista, Pratt ressalta a importância da viagem e da literatura de viagem romântico-naturalista como experiência daquilo que se convencionou denominar de modernidade, propondo a crítica aos conceitos reificados que norteiam estas análises e que igualmente legitimam a utilização acrítica dos conceitos da pós-modernidade.

Marcadas por processos culturais complexos norteados pelo racionalismo, pela ciência, pelo romantismo, pela constituição de um self individualizado e pelas teorias raciais, a experiência da viagem e da literatura de viagem se apresentavam como espaço privilegiado para a articulação do novo paradigma imperial. Possibilitando, por meio do deslocamento, a que viajantes e seu público – as sociedades envolvidas com os desafios da modernidade – refletissem a respeito de si próprias, a literatura de viagem, ao mesmo tempo, abria espaço para a construção, por oposição, de um discurso sobre a alteridade e sobre o papel do ocidente no domínio, condução e absorção das sociedades não-ocidentais. Enquanto experiência individual do sujeito-viajante às portas da modernidade, a viagem para terras longínquas surgia claramente como metáfora da viagem interior, suportando experiências pioneiras de subjetividade e auto-conhecimento. Enquanto discurso auto-reflexivo do homem que, ao viajar, observa, reflete e cataloga terras estranhas e povos selvagens, a viagem realizava uma apropriação discursiva das áreas coloniais, dando origem a uma configuração nova, porém extremamente efetiva de conquista, que Mary Louise Pratt denominou de “anti-conquista”, em alusão ao caráter aparentemente pacífico e reflexivo do viajante-naturalista e às características abstratas da apropriação catalagadora por ele promovida.

A literatura de viagem naturalista – masculina, eurocêntrica, com traços edipianos, da dedicação dos filhos viajantes ao pai Lineu, ou mais tarde ao pai Humboldt, ou no caso do Brasil, a Martius – e seu objetivo de estabelecer uma posse intelectual e abstrata de um saber e da natureza, traços sugestivos da idealização e impotência do filho edipiano, expressa um desejo de posse a ser realizado sem violência, que caracterizaria a anti-conquista. Note-se que um dos objetivos explícitos de Olhos do Império é o de discutir as relações entre a viagem, sua literatura e a questão de gênero. Para tal Mary Pratt não apenas sublinhou o caráter androcêntrico da viagem naturalista como dedicou todo um capítulo às viagens realizadas e relatadas por mulheres, procurando determinar as particularidades do olhar feminino sobre as áreas coloniais, bem como sua inserção na construção de formas específicas e variadas da abordagem imperial.

Os estudos acadêmicos sobre o Iluminismo, fortemente eurocentrados, têm freqüentemente negligenciado o papel dos agressivos empreendimentos coloniais e comerciais europeus que funcionaram como modelo, inspiração e base de teste para formas de disciplina social que, re-importadas para a Europa nos finais século XVIII e inícios do XIX, tornaram-se importantes mecanismos sociais na construção da ordem burguesa. É preciso igualmente lembrar que a sistematização da natureza coincidiu com o apogeu do tráfico de escravos, com o sistema de plantation, com o genocídio colonial na América do Norte e na África do Sul, com as rebeliões de índios e escravos nos Andes, Caribe e América do Norte e noutras partes do globo. Na seqüência, Mary Pratt faz uma aproximação entre a célebre acumulação primitiva de capital e a sistematização da natureza que, nela inspirando-se, conduziu a idéia de acumulação a um extremo totalizante. Enquanto base de um gênero literário a literatura de viagem serviu para suprir as necessidades de cultura, educação e lazer das nascentes classes médias européias e norte-americanas, construindo, entre outras coisas, um repertório comum a respeito dos povos selvagens e um consenso sobre a necessidade da intervenção do homem branco no mundo pós-colonial que então se esboçava.

Por meio da crítica ideológica e da desconstrução dos textos naturalistas, a autora também reelabora o conceito de natureza. Segundo nota Mary Pratt, nos escritos de viagem do período, natureza significa antes de tudo regiões e ecossistemas não dominados por europeus, embora incluindo muitas regiões da entidade geográfica conhecida como Europa. A história natural impôs uma autoridade urbana, letrada e masculina sobre todo o planeta, elaborando um entendimento racionalizador, extrativo e dissociativo, que suprimiu as relações funcionais e experenciais entre as pessoas, plantas e animais. O resultado deste processo concretizou-se na prefiguração de uma certa forma de hegemonia global, que deu origem a um paradigma descritivo e uma apropriação do planeta aparentemente benigna e totalmente abstrata, produzindo uma visão utópica e inocente da autoridade mundial européia, a qual a autora se refere como a de anti-conquista.

Conforme sublinha Os Olhos do Império, a literatura de viagem anterior ao paradigma naturalista segue o modelo do antigo relato de viagem marítimo. Neste, o enredo gira em torno das narrativas de aventura e sobrevivência (catástrofes, naufrágios, lutas pela sobrevivência em terras estrangeiras) nas quais a perspectiva analítica é interativa e os nativos podem ainda ser inclusos no mesmo universo institucional dos europeus. Acrescente-se que nesta literatura o marco divisório a partir do qual o europeu julga e classifica a sociedade nativa é a escravidão que estabelece a divisão básica entre o eu e o outro, sendo os escravizados percebidos como brutais e inferiores, mesmo quando o observador, homem, europeu e branco, refere-se às sociedades africanas e à escravidão tradicional e doméstica nelas existente.

Por seu turno, a literatura de viagem que começa a se concretizar com a expedição do geógrafo Charles de la Condamine à América do Sul em 1735 e com as viagens realizadas também em meados do XVIII à África, reflete um empreendimento narrativo, de caráter cumulativo e organizacional, na qual a geografia é minuciosamente documentada e o mundo humano naturalizado. Aqui se reencena Adão no Jardim do Éden nomeando a natureza. A paisagem é descrita como inabitada, devoluta, sem história e desocupada, até mesmo pelo próprio viajante. A atividade de descrever a geografia e identificar a flora e a fauna estrutura uma narrativa a-social em que a presença européia ou nativa é absolutamente marginal, ainda que fosse este, evidentemente, um aspecto constante e essencial da viagem em si. Neste sentido, conforme aponta Mary Pratt, é fácil relacionar esta literatura e sua produção de um corpo sem discurso, desnudo e biologizado com a força de trabalho desenraizada, despojada e disponível criada pelo colonialismo. Nestas descrições, as mudanças são naturalizadas e descritas como lacunas, a historicidade das sociedades locais desaparece e o estado em que os viajantes encontram estas sociedades – muitas vezes já profundamente deterioradas pela influência colonial – é descrito como eterno e atemporal.

Em sua análise, a autora reflete sobre os princípios da anti-conquista mostrando a maneira pela qual esta se legitimava ideologicamente argumentando a existência de uma reciprocidade entre europeus e as sociedades coloniais, entre viajantes e viajados. Utilizando-se de conceitos derivados do discurso das nascentes ideologias liberais e capitalistas, porém contextualizado-os na análise de texto, a autora aponta para a falácia desta suposta troca, que legitimaria a intervenção classificatória do sábio europeu nas áreas coloniais, aqui denominada como zona de contato. Mary Pratt forja o conceito da mística da reciprocidade mostrando que a literatura de viajem naturalista assenta-se sobre as mesmas bases ideológicas e discursivas do capitalismo. Interessante notar que uma parcela do livro concentra-se no enfoque da literatura de viagem sobre a África, como a realizada por Mungo Park e relatada em seu livro Travels in the Interior of Africa, publicado em 1799 (por sinal, lido e citado por Southey quando escrevia a História do Brasil), bem como sobre muitas outras, que aparecem vinculadas aos interesses europeus comerciais e de conquista do interior da África. Entre estas destacam-se as que objetivavam delimitar o curso, direção, nascente e desaguadouro do Rio Niger, com vistas a estabelecer rota transcontinental mediterrânea, que atravessasse a África, supostamente desaguando no Nilo. Por meio da análise destes textos, constrói a autora uma taxionomia da literatura de viagem e das fases da conquista da África. Assim, o viajante naturalista que lança mão da ciência se associa ao aparato estatal e panóptico da vigilância, absorvendo as ambições territoriais dos impérios. Por seu turno, a viagem sentimental (associada às qualidades da domesticidade, interioridade e privacidade), alia-se aos ideais do comércio e da iniciativa privada. Conclui a autora que a mística da reciprocidade na literatura de viagem remonta à mística da reciprocidade das relações capitalistas, embora saiba-se que o capitalismo tem como base exatamente a negação deste princípo na própria base das relações sociais. Neste sentido, a viagem sentimental identifica-se com a fase de tentativa de conquista da África e seus autores com a missão civilizadora que é, em essência, o contrário ideológico e simbólico da reciprocidade

Numa operação ainda mais ousada, Mary Louise Pratt percebe nos conflitos entre raça, relações raciais e movimentos abolicionistas dos finais do XVIII e inícios do XIX nas Américas, os motivos de uma literatura de viagem sentimental, que em seus enredos e soluções narrativas estabelece as relações sentimentais entre homens brancos e mulheres nativas, com a óbvia submissão destas últimas, como codificadora de uma nova solução racial. Isto é, na realidade, as soluções narrativas desta literatura dão forma a uma proposta política reformista em ascensão nesta conjutura, que propõe uma saída humanitária ao problema da escravidão e da assimetria das raças, que seria o da abolição com a manutenção da subserviências das culturas nativas e afroamericanas ao homem branco. Seria o romantismo criação da zona de contato e expressão destas experiências inusitadas de encontros culturais assimétricos e, recambiado para a metrópole, seria apropriado como a mais pura expressão do espírito europeu?

Analisando a literatura de viagem sobre a América hispânica, a autora chama a atenção para a reivenção da América enquanto natureza, operação esta que se concretizou por meio da reatualização do deslumbramento dos primeiros cronistas, sobretudo de Colombo, como se três séculos de colonização não houvessem ocorrido. O grande inspirador desta vertente foi Alexander von Humboldt e, no caso do Brasil, este lugar foi ocupado por Martius. A autora aponta para a historicidade desta reinvenção, pois a América é reinventada como natureza primal e o espanto e deslumbramento inicial são reatualizados como ato histórico, embora a infraestrutura colonial a partir da qual os viajantes se valem para realizar a viagem esteja lá, bem presente, embora completamente eludida nos relatos de viagem. Assim, por exemplo, as solidões andinas, que constituem uma imagem extremamente valorizada por Humboldt, que as descreve em cenas carregadas de dramaticidade. No entanto, sabemos que é nesta mesma solidão que vive a maior parte da população indígena do Peru, tendo sido inclusive o centro de gravidade de grandes civilizações.

A autora descontrói o discurso naturalista, analisando a historicidade da produção do texto em todas as suas instâncias de produção, circulação e apropriação. Ao mesmo tempo, e este me parece é outro aspecto extremamente importante a ser ressaltado, é o fato de que o saber que os naturalistas produzem é na verdade fruto da apropriação do saber nativo. Mais ainda, as relações sociais estabelecidas entre o viajante e as populações coloniais, sejam elas compostas de índios, escravos, autoridades coloniais ou fazendeiros, apenas surgem no texto exercendo funções instrumentais, de informantes, guias ou hospedeiros do viajante. Desta maneira, como aponta Mary Pratt, as populações coloniais surgem no texto em um estado de disponibilidade, que é em si a essência das relacões coloniais. Assim, a natureza ahistórica, as populações instrumentalizadas e despersonalizadas e o processo histórico colonial elidido (e acrescente-se para o caso das antigas civilizações, do México e Peru, a arqueologização da cultura, que desconhece os elos entre aqueles índios decaídos que carregam as malas e os instrumentos e os produtores das maravilhas das antigas civilizações) forjam um saber que, vazado num estilo da ciência do XIX, conforma aquilo que convencionamos chamar de literatura de viagem ilustrada e naturalista. Refazendo estes circuito, Pratt pergunta-se se o romantismo foi, de fato, concebido na Europa e daí transplantado para a América ou na verdade foi ele um, entre tantos processos originais produzidos nas e pelas Américas e, transculturado para Europa, ali transformou-se na concretização mais sutil e sublime do espírito europeu.

Interessante sublinhar que a autora não pára aí, isto é, no desvelamento da historicidade e na crítica ideológica da escrita de viagem e do saber científico naturalista, mas refaz o circuito mostrando como a produção e publicação da literatura de viagem irá realimentar um sistema que tem como elo final a volta à América. Nela, esta mesma literatura será apropriada pelas elites crioulas do XIX, mas não de forma mecânica. Na verdade o que vai ocorrer é uma apropriação seletiva que vai justificar uma nova inserção da América no contexto imperial, no processo de descolonização e nos movimentos de independência. Movimentos novos e essencialmente americanos, como sublinharam Benedict Anderson e a própria autora (embora Pratt não pareça compartilhar da mesma concepção de comunidade imaginada de Anderson), estes serão apropriados pelas elites crioulas europeizantes em busca de sua auto-justificação e legitimidade. Todas estas idéias estão minuciosamente discutidas e analisadas no texto propondo novas formas de se pensar estas questões fundamentais para nossa história. Embora o Brasil não seja o tema deste livro, as interpretações e debates aqui discutidos têm para nós grande interesse.

Finalmente, chamo atenção para um erro que aparece na página 42 da tradução portuguesa, na qual Carl Linné é citado como “naturalista francês”, embora no livro Os Olhos do Império, em sua versão original, inglesa e na tradução em espanhol, ele apareça corretamente denominado como de origem sueca.

Maria Helena Pereira Toledo Machado – Universidade de São Paulo;

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