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Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil | Ivana Jinkins, Kim Doria e Murilo Cleto
Examinar processos sócio-políticos “à quente”, em meio ao desenrolar das tramas, é um desafio posto aos historiadores dedicados ao chamado Tempo Presente, campo do conhecimento ainda alvo de fortes críticas, desconfianças e de sua própria precariedade, pois os que incursam nele podem estar munidos de perspectivas construídas anteriormente ao “agora”, mas desprovidos do conhecimento profundo sobre detalhes mais recentes. Embora Marc Bloch tenha, desde o século passado, comprovado que o presente pode e deve ser investigado pelos profissionais da história, ao desvelar as razões pelas quais, segundo ele, a França sucumbiu tão rapidamente ao nazismo em 1940 no seu icônico A Estranha Derrota, ainda existe resistência, dentro e fora do ofício, em reconhecer essa possibilidade e esse dever. Leia Mais
Impasses da democracia no Brasil – AVRITZER (NE-C)
AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. Resenha de: SZWAKO, José; SANTOS, Fabiano. Dos impasses aos desafios de reconstrução da democracia no Brasil. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, v. 35, n.3, Nov., 2016.
O contexto sociopolítico brasileiro pós-2013 colocou dilemas práticos e teóricos incontornáveis para nossas ciências sociais. Como chegamos até aqui? Quais atores, instituições e processos levaram ao impeachment da presidente Dilma Rousseff? Dispomos ainda de categorias e dimensões de análise adequadas à complexidade desse evento? A sucessão presidencial foi legítima? Foi, ao menos, legal? Olhando para trás, o encanto de parte dos analistas com os protestos de junho de 2013 virou perplexidade, quando não o triste pesadelo, de muitos: haveria, porém, continuidade entre 2013 e 2016? E, mirando-se adiante: quais são os reflexos do Regresso (para lembrar o opúsculo de Wanderley Guilherme dos Santos)1 encarnado no golpe parlamentar de agosto de 2016 em nossa prática política?
Como se vê,não são poucas as questões a serem urgentemente por nós encaradas e respondidas. É no rol desses dilemas que se inscreve Impasses da democracia no Brasil, de Leonardo Avritzer. Escrito no final de 2015, o livro traz a marca das tensões sociais e partidárias, expressas de modo mais evidente no ranço antipetista e antigovernista dos protestos massivos de março, abril e agosto daquele ano; “o governo da presidenta Dilma Rousseff passa por uma forte crise da qual não é possível saber se sobreviverá” (p.109) – como de fato não sobreviveu. Na pequena resenha que se segue,tentaremos tirar proveito do conhecimento prévio do evento.
O ar de análise de conjuntura do livro não faz dele menor porquanto conjuga em estilo acessível política e teoria política. Isto é, visa dar respostas teoricamente adequadas a questões da ordem do dia vis-à-vis alguns dos diagnósticos disponíveis sobre a qualidade da democracia brasileira, especialmente os elaborados por Paulo Arantes e Marcos Nobre,que tendem a enfatizar supostos déficits democráticos.
Impasses é crítico de feição frankfurtiana. Sua postura não se rende às páginas das sempre evocadas insuficiências, sejam elas institucionais ou culturais, brasileiras. Se nosso sistema político tem falhas, e Avritzer tem hipóteses robustas para mostrá-las, cabe ao analista completar sua crítica,quer dizer,fazer o diagnóstico das limitações do sistema vigente impreterivelmente seguido das fissuras e alternativas também por ele trazidas à baila. Destrinchado ao longo do livro, o diagnóstico se distribui em cinco elementos, quais sejam:
i) os limites do presidencialismo de coalizão, isto é, a deslegitimação da forma de fazer alianças, característica da democracia brasileira desde 1994; ii) os limites da participação popular na política, que tem crescido desde 1990 e é bem-vista pela população, mas não logra modificar sua relação com a representação; iii) os paradoxos do combate à corrupção, que avança e revela elementos dramáticos da privatização do setor público no país, os quais terminaram por deslegitimar ainda mais o sistema político; iv) as consequências da perda de status das camadas médias que passaram a estar mais próximas das camadas populares a partir do reordenamento social provocado pela queda de desigualdade; v) por fim, o novo papel do Poder Judiciário na política[p. 9].
Avritzer articula em pente-fino essas dimensões de seu diagnóstico somando,no terceiro capítulo,as causas e efeitos do ciclo de protestos de 2013.Sob risco de simplificar seu argumento,poderíamos dizer que a imbricação de uma dinâmica institucional de alianças (fundamentalmente ambivalente dado que virtuosa e custosa) com a percepção de corrupção (generalizada porém enviesada em desfavor do Partido dos Trabalhadores) opera no sentido de deslegitimar, aos olhos de uma classe média reconfigurada devido às políticas distributivas pós-2003, o sistema político como um todo, mas, mais danosamente, o próprio PT.Ao par presidencialismo de coalizão e corrupção,é somada uma análise da limitação das formas institucionais de participação, que,embora tenham deixado sua marca em parte das políticas sociais, não chegaram a permear áreas estratégicas do Estado brasileiro,levando a uma dupla “ruptura” (p. 66) no campo das mobilizações do país – à esquerda e,como se nota desde 2013,também à direita.Complexo, esse diagnóstico é complementado por uma saída de tom republicano: ampliar, aprofundar e tornar mais eficaz a participação popular – um pacote institucional que, como hipótese e potência, melhoraria tanto um suposto déficit de representação quanto o combate à corrupção. “Assim, a primeira agenda importante de um processo de reorganização do sistema político poderia ser uma extensão da participação social para a área de infraestrutura com o objetivo de democratizar essas obras e torná-las mais transparentes” (p. 121).
Três tópicos nos parecem centrais na argumentação contida no livro, a saber, o presidencialismo de coalizão, a herança de 2013 e os paradoxos resultantes da política de combate à corrupção dos três últimos mandatos democraticamente eleitos.
Sobre o presidencialismo de coalizão, parece-nos que Avritzer adota e reproduz uma definição mais ampla do conceito, definição que acaba por imputar a esse modelo institucional um grande conjunto de vícios do qual a política brasileira seria vítima. Falamos de definição mais ampla porque,em verdade,o termo presidencialismo de coalizão, numa visão mais restrita e, a nosso ver, mais precisa, tal como utilizado na literatura institucionalista stricto sensu, denota tão somente a conjugação da separação de poderes,característica do sistema presidencial, com o multipartidarismo, comumente derivado da adoção do sistema proporcional para o preenchimento das cadeiras no Legislativo.
Aqueles que criticam nosso modelo institucional, chamado de presidencialismo de coalizão, estabelecem uma espécie indevida de relação de causalidade entre a dinâmica de tal modelo e uma prática política que não só corrói os princípios, digamos, programáticos dos partidos que lideram a coalizão governamental como, no limite, compromete a legitimidade do sistema institucional em seu conjunto (ver p. 38 e seguintes). Ora, segundo nosso ponto de vista, e nisso seguindo análises mais recentes sobre o presidencialismo de coalizão,2 nada autorizaria, de uma perspectiva conceitual ou empírica, colocar na conta do modelo fenômenos políticos complexos e reconhecidamente ruins, tais como corrupção, descrença popular e profusão de escândalos aproveitados, e não raro produzidos, pela mídia.
Aqui é fundamental discernir dois elementos que são frequentemente sobrepostos na análise política:atores e instituições.Embora empiricamente e em todos os casos seja difícil identificar onde um ou outro esteja preponderando no desdobramento da conjuntura política, não se pode inferir a legitimidade ou eficiência das instituições a partir do uso que delas fazem os principais atores em cena. Em nossa avaliação, o exemplo brasileiro recente mostra exatamente isto: desde fins de 2014, a cada passo da conjuntura, e à medida que as crises econômica e social se aprofundavam, as cúpulas do PMDB e do PSDB se articulavam e se utilizavam das regras do jogo tendo em vista construir as condições ótimas para a consecução do golpe parlamentar que redundou no impeachment. Nada inerente ao desenho institucional brasileiro permitiria prever um comportamento desestabilizador assim assumido, desde o resultado das eleições daquele ano, por uma oposição até aquele momento leal à democracia e por lideranças de um partido até aquele momento parceiro na coalizão.
Rótulo alternativo para o que vem ocorrendo na política brasileira é amalgamado na ideia de uma suposta crise de representação. É inegável a existência de insatisfação de parte significativa das elites judiciárias, midiáticas, empresariais e de setores importantes das classes médias com os marcos centrais da democracia tal como consagrados na Constituição de 1988. Todavia, concomitantes à expressão de tais sentimentos, a ampliação e a pluralização da capacidade de representação externa ao Congresso,mas no interior do Estado brasileiro,têm sido ressaltadas em diversos trabalhos atinentes às interações Estado-sociedade.3 Se a inclusão de temas e atores da sociedade civil nos processos decisórios é alvo de crítica, como bem mostra Avritzer no livro, isso não infirma o diagnóstico – pouco conhecido, diga-se de passagem – de que as políticas públicas têm sido, desde a redemocratização,cada vez mais interpeladas e modificadas por organizações e movimentos sociais. Em suma, a agenda de pesquisa mais atual sobre os efeitos da institucionalização da participação denota não a limitação, mas antes a indagação sobre a efetividade das instituições participativas no Brasil.4
Enfim, e não obstante a riqueza da análise de Avritzer, entendemos que nada há de conclusivo, seja em torno do diagnóstico da corrosão institucional inerente ao presidencialismo de coalizão e por ele supostamente produzida, diagnóstico de resto conveniente a versões legitimadoras do golpe parlamentar, seja ainda no que tange à existência de uma crise de representação afetando o quadro político institucional brasileiro.
Outro tópico central no ensaio de Avritzer consiste no impacto do ciclo de protestos de 2013 sobre o processo político brasileiro. Quanto a esse tópico, parece-nos fundamental notar, primeiramente, que os significados e raízes da convulsão social experimentada em junho de 2013 ainda estão para ser descobertos e explicados. Nesse quesito, fatores sociais e institucionais, entre os quais destacaríamos a atuação dos agentes repressivos do aparelho de Estado, se misturam, dificultando um diagnóstico claro e consistente do perfil dos manifestantes e, portanto, da manifestação em jogo. A contribuição de Avritzer, aqui, caminha no sentido de mostrar como operou uma espécie de quebra do monopólio exercido pelas forças civis e políticas de esquerda sobre a mobilização de rua em nosso país. O desafio, em nossa visão, é explicitar claramente em que medida aquela profusão de bandeiras e vozes realmente se articula com os vetores recentes e regressivos assumidos pela política institucional. Nesse sentido, Impasses se torna de saída leitura incontornável para quem quiser entender, por exemplo, se e como se entrelaçam 2013, a acirrada disputa presidencial de 2014 e o triste episódio do golpe parlamentar.
Por último, e no que entendemos ser um dos pontos altos de Impasses, a questão do combate à corrupção e dos poderes a ele ligados. A citação é longa, mas necessária e algo premonitória:
A forma como no primeiro semestre de 2015 o Poder Judiciário colocou o Executivo na defensiva com práticas políticas questionáveis, como o vazamento seletivo de informações da Operação Lava-Jato e um abuso de prisões preventivas e de delações que têm como objetivo desestabilizar o campo político,mostra o perigo de uma solução para os impasses que não transite pelos poderes constituídos pelo voto popular [p. 116].
Tal intervenção, politizada e espúria, de agentes e instituições de controle, sejam ou não do Judiciário, frente a órgãos do Executivo e do Legislativo nos remete diretamente ao alerta imprescindível dado por Max Weber5 a seus contemporâneos da República de Weimar: ao funcionário público não cabe a disputa política nem a respectiva convicção. As alçadas do funcionário e do político profissional são distintas, assim como são distintas as responsabilidades estatuídas a cada posto. Que a política de seu país se tornasse refém da burocracia era um dos maiores temores de Weber – essa lição não pode ser hoje olvidada por aqueles que, como nós e Avritzer, entendem o potencial nefasto contido numa instância de poder que,em nome do combate à corrupção, atua de modo ilegal.
Ironicamente, se podemos falar de crise institucional de nosso modelo político, esta não emerge do presidencialismo de coalizão. A leitura de Impasses é mais uma confirmação,a nosso ver,de que graves distorções atingem o desenho mesmo de nossas instituições de controle, tal como inscrito na Constituição de 1988. Nesse particular, as recentes intervenções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE),por exemplo, nas regras eleitorais e partidárias, bem como os ataques seletiva e partidariamente orientados do Ministério Público contra lideranças políticas ressoam uma das mais famosas preocupações madisonianas: quem controla os controladores? A ingerência administrativa sobre a disputa política exige não só sua crítica teórica. Exige, antes, a ação política daquele que é, ao fim e a cabo, o principal afetado pela instabilidade do jogo democrático judicialmente instilada e também o único soberano desse mesmo jogo: a vontade popular. Nesse sentido, e aprofundando uma pista dada por Avritzer, dois caminhos necessários e convergentes para a pacificação do Judiciário e das instâncias de controle no Executivo são o aprofundamento de mecanismos de controle tanto institucionalizados como externos às instituições.
A despeito das eventuais discordâncias interpretativas, Impasses se coloca como obra seminal nos projetos de reconstrução da democracia brasileira. A tarefa não será fácil, como não foi fácil a redemocratização consagrada na Carta de 1988. O primeiro desafio, certamente, passa pela responsabilização dos atores que desestabilizaram e usurparam a dinâmica democrática até aqui conquistada. No plano da disputa político-institucional, máscaras de atores que defendem um liberalismo douto requentado, quando não somente neoliberal, deverão ser reconhecidas enquanto tais.Já no plano da cultura política, o fenômeno é ainda mais complexo: o crescente fascismo das classes médias, alimentado não somente pela crise econômica mas também pelo Judiciário e por mídias hegemônicas, é realidade que julgamos imprescindível conhecer e combater. Em verdade, não é outra a questão maior que atravessa, além e aquém de Impasses, toda a obra de Leonardo Avritzer: a cultura política brasileira e sua contribuição para nossa história democrática – ou ainda democrática.
Referências
AVRITZER, Leonardo; Souza, Clóvis (Org.). Conferências nacionais: atores, dinâmicas participativas e efetividade. Brasília: Ipea, 2013. [ Links ]
FREITAS, Andréa. O presidencialismo da coalizão. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2016. [ Links ]
GURZA LAVALLE, Adrian; Szwako, José. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, v. 21, n. 1, pp. 157-187, 2015. [ Links ]
PIRES, Roberto (Org.). Efetividade das instituições participativas no Brasil: estratégias de avaliação. Brasília: Ipea , 2011. [ Links ]
POGREBINSCHI, Thamy; Santos, Fabiano. “Participação como representação: o impacto das conferências nacionais de políticas públicas no Congresso Nacional”. Dados, v. 54, n. 3, pp. 259-305, 2011. [ Links ]
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Regresso: máscaras institucionais do liberalismo oligárquico. Rio de Janeiro: Opera Nostra, 1994. [ Links ]
WEBER, Max. Parlamento e governo na Alemanha reordenada: crítica política do funcionalismo e da natureza dos partidos. Petrópolis: Vozes, 1993. [ Links ]
Notas
1 Santos, 1994.
3 Ver, entre outros, Pogrebinschi e Santos, 2011.; Avritzer e Souza, 2013; Gurza Lavalle e Szwako, 2015.
4 Ver Pires, 2011.
5 Weber, 1993.
José Szwako – Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Fabiano Santos- Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
O impeachment de Fernando Collor: Sociologia de uma crise – SALLUM-(NE-C)
SALLUM JUNIOR, Brasilio. O impeachment de Fernando Collor: Sociologia de uma crise. São Paulo: Editora 34, 2015. Resenha de: AVRITZER, Leonardo. Entre o conflito de interesses e a nova institucionalidade política. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.103, Nov, 2015.
O livro O impeachment de Fernando Collor é uma obra importante e necessária e que certamente acrescentará ao debate acadêmico nas ciências sociais no país. Desde o impeachment de Collor é pequena a literatura produzida sobre o assunto, e a referência mais importante ainda é um livro publicado por Keith Rosenn e Richard Downes nos Estados Unidos no final dos anos 1990. Poucos trabalhos de fôlego foram realizados no país sobre o tema. O livro de Brasilio Sallum Jr. vem preencher essa lacuna. Ao mesmo tempo, não poderia ser mais oportuno. Existem, neste momento, diversas propostas de impeachment do mandato da presidente Dilma Rousseff tramitando no Congresso Nacional, e o debate sobre o impeachment está sendo travado no Congresso e fora dele sem um conhecimento adequado sobre o assunto. Mais uma vez o livro em tela pode ajudar a preencher essa lacuna.
O livro O impeachment de Fernando Collor tem dois pontos bastante fortes. O primeiro deles é uma tentativa de propor um modelo analítico para o impeachment de Collor que se assenta na literatura de sociologia política. Aliás, o próprio autor destaca no subtítulo a ideia de uma análise a partir da sociologia. O motivo para essa intenção parece bastante claro e está ligado ao fato de o impeachment de Collor, assim como outros momentos decisivos da história do país, envolverem uma ampla coalizão de interesses e ideias. Assim, parece bastante importante analisar quais interesses são esses. O segundo ponto forte é uma análise de atores e coalizões que é um trabalho de natureza fortemente historiográfica com o qual o autor nos permite ver a diferente movimentação dos atores políticos ao longo dos quase três anos de governo Collor. Em conjunto, a sociologia política do autor permite uma complexa análise das movimentações políticas do atores e partidos.
Brasilio Sallum Jr. começa o seu livro mostrando a forte reorientação que o estrangulamento fiscal do Estado brasileiro ocorrido com a crise da dívida externa provocou. Para ele, são as reações à crise da dívida que levaram a um forte reposicionamento no interior da elite empresarial, no sistema de empresas estatais e no interior do sistema político. Esse reposicionamento favoreceu o fim do autoritarismo e permitiu a redemocratização do país. Com a volta da democracia e a Constituinte tivemos um momento de forte rearticulação do desenho institucional brasileiro, que Sallum Jr. sintetiza em alguns pontos: o maior poder concedido a estados e municípios; o aperfeiçoamento dos dispositivos da democracia representativa com a introdução de diversos institutos que propiciaram a participação direta e um conjunto de dispositivos cujo objetivo era diminuir a desigualdade social no país. Mas, junto com essas características, Sallum destaca também o fato de a Constituição ter emprestado uma moldura rígida ligada ao nacional-desenvolvimentismo já afetado pela crise da dívida externa. Por fim, no que diz respeito à arquitetura institucional, o ponto central de Sallum é que a derrota do parlamentarismo teve profundos efeitos. Segundo ele, o balanço geral da Constituição é que ela não foi capaz de superar a crise de hegemonia que perpassava o Estado (p. 38).
Vale a pena analisar o marco proposto por Sallum não só porque ele explica bastante bem as polêmicas que não foram resolvidas pela Assembleia Nacional Constituinte como também porque ele oferece pistas importantes para pesarmos os conflitos em torno do mandato da presidente Dilma que envolvem conflitos semelhantes tanto sobre a configuração do Estado quanto sobre a organização das políticas sociais. Brasilio Sallum Jr. argumenta que houve uma forte inflexão liberal no final dos anos 1980, reforçando agentes econômicos que já haviam se reposicionado a favor do liberalismo no começo da década. Assim, surge com força um projeto de integração competitiva entre esses setores, e é esse projeto que vai polarizar a sociedade brasileira em 1989. Assim, o marco proposto por Sallum é um marco que entende a diferenciação de interesses econômicos causando dilemas societários que por sua vez geram enfrentamentos políticos. Esse é, ao mesmo tempo, o ponto mais forte do livro, mas como mostrarei mais à frente é o seu ponto mais vulnerável também.
A campanha que levou Collor ao poder é descrita com uma grande riqueza de detalhes pelo autor. Ele mostra a importância do complexo midiático, em especial da Rede Globo, cuja influência era muito superior à atual, com a audiência se situando entre 65% e 80%. A construção da imagem de Collor é bem trabalhada, aparecendo frequentemente com os punhos cerrados e os braços erguidos em desafio (p.73), dando a impressão de um super-homem capaz de enfrentar os desafios do país. O autor mostra também a importância do discurso liberal, modernizante e de redução do Estado. Sua vitória eleitoral estabeleceu, desse modo, uma hegemonia do projeto liberal de redução do Estado. No entanto, essa hegemonia não fez com que o debate sobre o próprio Estado e o modelo liberal refluísse. Pelo contrário, Sallum também mostra em detalhes como a clivagem social fez com que o conflito político persistisse durante o governo Collor.
A análise do governo Collor por Sallum opera na tensão entre os interesses econômicos que o apoiaram e as propostas políticas do presidente. Nesse sentido, é como se a articulação entre interesses econômicos e apoio político tivesse trincado já no primeiro momento. Assim, a primeira análise do autor sobre a montagem do ministério já aponta para a vontade do presidente de não colocar um representante de peso da nova agenda liberal no Ministério da Economia. O presidente deixava claro o seu afastamento relativo dos interesses que o elegeram e a sua vontade de ser ele mesmo o gestor da economia. A matriz explicativa para essa tensão que perpassou a formação de todo o ministério é a mesma e se assenta na sociologia política proposta por Sallum, que defende uma forte conexão entre interesses e articulação política. Ainda assim, o argumento do autor é que o campo político amplo da rearticulação liberal, em um primeiro momento, esteve disposto a apoiar o presidente e o seu plano de estabilização econômica. O núcleo do Plano Collor, como é sabido, foi a apropriação e o congelamento de 80% dos ativos financeiros e da moeda em circulação (p. 90). Ao fazê-lo, Collor se posicionou contra a riqueza financeira, como comentaram diversos órgãos de imprensa da época. Assim, em sua primeira ação econômica de peso, Collor propôs um plano entre um certo intervencionismo de esquerda e o reformismo liberal (p.94). Da esquerda, o Plano Collor retirou a ideia de intervir nos direitos associados à moeda indexada, ao passo que do reformismo liberal ele retirou a ideia de intervir profundamente nas estruturas do Estado desenvolvimentista. Junto com o congelamento dos ativos financeiros, ele propôs uma reforma administrativa que mexeu profundamente com a liderança sindical ao anunciar que poria à disposição entre 20% e 25% dos servidores públicos. Desse modo, o que Sallum mostra é que Collor se colocou à margem dos principais interesses representados por ele e se chocou fortemente com os principais interesses representados pelo grupo oposicionista, em especial pelo PT e pela CUT. Nesse sentido, Collor construiu uma imagem voluntarista e autocrática que levaria até o seu impeachment. Sallum mostra como as principais forças dentro do Congresso se posicionaram pela aprovação do Plano Collor: “Os partidos que haviam se comprometido previamente a apoiar o Plano – PRN, PFL, PDS, PTB, PL e PDC – acabaram votando em peso a seu favor […]. O PSDB o PT ou por melhorá-lo e o PMDB – o maior partido, com 159 deputados e 28 senadores – acabou contribuindo decisivamente para a sua aprovação […]”. Assim, a análise de Sallum é que Collor inicia o seu mandato com uma certa disjunção entre interesses e representação política. Ao contrariar os interesses alinhados com uma agenda liberal e tentar atuar por cima deles, ele rompeu com a sua base e passou a depender de uma base no Congresso que lhe dava apoio condicional. Já no final de 1990, Collor é derrotado na votação de diversas medidas provisórias. Assim, Sallum passa a centrar sua análise na arena legislativa e no novo Congresso eleito em 1990.
Os anos 1991 e 1992 foram os anos decisivos para Collor. Brasilio Sallum Jr. começa a descrição desse período com a posse do novo Congresso em 1º de fevereiro de 1991. O dia foi o mesmo em que foi anunciado o Plano Collor II, que mais uma vez congelou os preços e anunciou um tarifaço nos preços da energia elétrica, telefonia e gasolina (p. 121). O segundo Congresso a ser enfrentado por Collor não era muito diferente do primeiro em termos de composição partidária, era um Congresso majoritariamente conservador. Mas era um Congresso mais independente, não apenas porque os seus membros tinham mais quatro anos de mandato, mas principalmente porque ali já se colocava uma agenda de maior autonomia do parlamento em relação ao Poder Executivo. O presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro, já falava naquela altura na regulamentação da edição de medidas provisórias. Collor consegue aprovar o Plano Collor II, ainda que com algumas modificações. No entanto, o mais importante naquele momento foi que as modificações não foram mais aprovadas por reedição de medidas provisórias, e sim através de uma negociação com os partidos de centro. Ainda assim, a base política de Collor já aparece arranhada em meados de 1991 devido a diversos conflitos, em especial com o Congresso, com os trabalhadores e com o sindicalismo. Collor, percebendo o esgarçamento da sua base parlamentar, tentou alguns movimentos, entre os quais a substituição da sua ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, por um liberal mais ortodoxo, Marcílio Marques Moreira. Assim, é possível entender a embocadura da análise de Sallum. Para o autor, os arranjos políticos têm que expressar interesses econômicos e quando não o fazem produzem crises. A crise do governo Collor foi provocada por uma disjunção entre representação de interesses e arranjo político. O voluntarismo do presidente tende a afastar dele primeiro a sua base empresarial e em segundo lugar a sua base política. Percebendo tal disjunção, ele muda a condução da economia, em que ainda estava presente uma certa heterodoxia na equipe, mas de alguma forma a recomposição da iniciativa política do presidente não foi possível, já que não houve melhora nem na economia nem na capacidade de negociar com o Congresso Nacional. Começa já em meados de 1991 a pipocar no Congresso um conjunto de iniciativas, todas elas destinadas a reduzir as prerrogativas do presidente. Ao mesmo tempo, começa a se formar uma frente parlamentar que passa a coordenaras ações de PMDB, PT e PSDB. Essa frente, por seu lado, reduziu as possibilidades de um amplo processo de liberalização econômica. Mais uma vez, vemos em operação a ideia de Sallum de sociologia política. Na medida em que o presidente não foi capaz de agregar os interesses econômicos que ele defendia em uma base política sólida, rearticularam-se partidos de centro e esquerda, que então bloquearam a liberalização, mesmo após a mudança do ministério. É essa frente, acrescida da mobilização popular, que será a responsável pelo impeachment.
Oanode1992começoucomumadisputaemtornodoreajustedos aposentados. A partir de uma decisão do Judiciário do Rio de Janeiro sobre esse reajuste, Collor entrou em uma disputa com o Judiciário e o Legislativo que acentuou a crise do seu governo. O presidente do Supremo Tribunal Federal, que tentava naquele momento fazer uso das novas prerrogativas concedidas pela Constituição de 1988 ao Judiciário, se declarou incompetente para sustar um aumento concedido pela justiça aos aposentados do Rio. Collor mais uma vez recorreu ao expediente comum: foi à televisão dizer que não havia recursos para tal e propôs um aumento das contribuições. Imediatamente a Câmara dos Deputados se pronunciou contra tal aumento, criando um impasse em torno do assunto com a assinatura, pelo presidente, de um decreto que retirava poderes do Congresso. Esse impasse azedou de vez a relação do presidente com o Congresso e acentuou a queda da sua popularidade. A popularidade de Collor, que iniciou o seu mandato com mais de 70% de aprovação, vai caindo ao longo dos dois anos e alcança marca próxima a 20% no meio de 1992. Assim, todos os componentes da crise estão no lugar em meados de 1992 e são explicados por Sallum da seguinte forma:“[…] entrou em crise o modo como o presidente da República interpretava o regime democrático por suas palavras e atos de governo, modo distinto em relação ao esperado e propugnado pela maioria das forças políticas presentes no Congresso […]” (p. 184).
Temos assim o início da crise, que se exponencia com as entrevistas do irmão Pedro Collor, que colocam o tema da corrupção no centro da crise política já vivida pelo governo, e que aponta a denúncia na direção do próprio presidente. Collor responde ao irmão no dia 25 de maio, acusando-o de insensato e prometendo processá-lo. Mas a crise prospera no Congresso com a formação, no dia 27 de maio, de uma Frente Parlamentar de Oposição entre PMDB, PT e PSDB, cujo objetivo explícito era a atuação conjunta na CPIM (p. 211). Nesse mesmo contexto, doze organizações se reúnem no dia 29 de maio na sede da OAB e convocam uma mobilização da sociedade civil. Sabemos todo o desenrolar desses eventos. A partir de um desafio tosco à sociedade brasileira, em que um presidente sem apoio pede a manifestação da sociedade a seu favor, o Brasil inteiro se mobiliza, com o apoio da imprensa, a partir de meados de agosto de 1992. Sallum nos dá uma ideia desse ciclo mobilizatório: de quatro a seis eventos por semana ao longo das cinco semanas anteriores a 16 de agosto, passamos a 56 eventos por semana com uma média de participantes de 15 mil pessoas (p. 306). É esse o caldo da mobilização que irá levar, no dia 29 de setembro, ao afastamento de Collor da presidência, seguida da sua renúncia em dezembro.
Um balanço da análise de Sallum encontra alguns pontos fortes decorrentes, como o autor reivindica, da sua sociologia política, mas alguns pontos débeis decorrentes exatamente da sua incapacidade de ir além dela. Os pontos fortes já foram mencionados e estão relacionados à maneira como o autor utiliza a sociologia para tecer uma relação entre o realinhamento dos interesses econômicos nos anos 1980 e uma análise específica de como esses interesses se rearticularam no Congresso. A tese fundamental sobre Collor surge a partir desse marco analítico, e o seu ponto central é que o voluntarismo e o desrespeito a sua base econômica e política criaram os problemas que o presidente enfrentou em 1991 e 1992. Mas os limites da análise de Sallum se encontram justamente aí, porque no primeiro semestre de 1992 Collor muda o seu ministro da Economia e realiza uma reforma ministerial justamente com o objetivo de alinhar o seu governo aos interesses das forças que o elegeram. É esse justamente o momento em que se acentua a mobilização contra Collor. Sallum não tem uma explicação para o fenômeno. O que ele afirma em relação às manifestações é o seguinte:
Durante o governo Collor houve uma crise política importante embora não muito profunda iniciada em 1992 e encerrada com a reforma ministerial de abril. O que diferencia a crise política que se desenvolvia desde o fim de junho […] é que especialmente a partir do domingo negro, ela alterou significativamente a dinâmica do processo político porque a intensificação da mobilização de atores societários não participantes usuais da política nacional rompeu os limites do campo político institucional (p. 308).
Entendo que essa frase expressa os limites da capacidade analítica do autor. O problema que parece lhe escapar é que a democratização brasileira e a Constituição de 1988 ampliaram os limites do campo político institucional, que tem que ser entendido com a presença desses atores e as conexões adequadas entre mobilização, organização da sociedade e dinâmica política institucional. A sociologia de Sallum opera muito bem na interseção entre interesses econômicos e institucionalidade política. Ali ele demonstra os movimentos importantes que as forças sociais realizam no interior das instituições políticas. No entanto, outras categorias mais próprias, como a do institucionalismo político ou da ideia de inovação institucional, faltam no livro, e sua lacuna constitui um problema na sua capacidade explicativa. Sallum aborda de forma muito superficial a nova institucionalidade criada pela Constituição de 1988, que criou inovações que foram muito importantes no governo Collor. Assim, quando o Congresso ou movimentos sociais procuram o Poder Judiciário por meio de ADINs para tentar barrar o decreto sobre as aposentadorias, esse foi um fenômeno absolutamente novo, assim como o foi o ato do presidente do Supremo, de não se posicionar junto com o Executivo na questão das aposentadorias do Rio de Janeiro. Sallum menciona todos esses fatos, mas não lhes atribui a novidade e a importância que tiveram na época e seguem tendo. A análise de Sallum para no voluntarismo e na reação do sistema político ao presidente, utilizando a inovação institucional e a capacidade de mobilização social da oposição como uma variável externa a sua análise. Tenho a impressão de que não é possível entender plenamente o impeachment de Collor sem mostrar uma dimensão que no livro aparece secundarizada: o fio que vai da mobilização da sociedade na direção do papel das novas instituições no campo jurídico (Ministério Público, ADINs e o novo papel da OAB) e alcança o sistema político. O autor mostra muito bem a capacidade de Collor de estabilizar a sua situação no interior do campo político. Mas sua capacidade explicativa parece sucumbir na incapacidade de julgar novos atores e instituições que desde 1988 vêm tendo um papel diferente na política brasileira. Foram elas que influenciaram decisivamente no impeachment de Collor, são elas que têm hoje um papel fundamental em um possível processo de impeachment da atual presidente que está colocado no processo político em curso no Brasil neste ano de 2015. Para entender essas novas instituições não é possível utilizar apenas o marco da sociologia política, como pretende Sallum. É necessário utilizar um marco que atribua às instituições um papel maior que o do abrigo a grupos sociais e políticos com interesses diversos e mostrar como novas instituições produzem novos padrões de relação entre Estado e sociedade. O livro O impeachment de Fernando Collor é uma excelente descrição e análise do evento sob o ponto de vista da articulação política de interesses sociais, mas deixa a desejar sob o ponto de vista de uma análise do impacto das novas instituições nessa mesma institucionalidade. Somente assim seria possível explicar o que falta explicar no livro: por que a ancoragem/blindagem de Collor nos interesses políticos e social-liberais não salvou o seu mandato? Por que os grupos de oposição ao modelo liberal conseguiram se mobilizar muito mais fortemente que os grupos que poderiam sustentá-lo? Por fim, em 1992 como hoje, seria importante explicar o novo marco jurídico das instituições de controle e seu impacto sobre a democracia no Brasil. Em todos os casos, uma sociologia dos interesses nos deixa a meio caminho no processo de explicação desses fenômenos.
Leonardo Avritzer –Professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG.