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Imagens, história e ciência / Domínios da Imagem / 2016
As reflexões acerca do uso de imagem na escrita e no ensino de História ganharam corpo nos últimos anos no Brasil. As representações iconográficas e audiovisuais não apenas ilustram o trabalho do historiador, mas também são objetos de análise em suas narrativas. Nas ciências, a fronteira entre a fidedignidade do que é representado e as concepções artísticas são tênues. A representação de uma planta feita por um naturalista oitocentista ou as imagens captadas por telescópios orbitais no século XXI exemplificam bem a questão, pois em ambos os casos elas são ao mesmo tempo representação e arte, pois o ato de vulgarizar ou divulgar o conhecimento científico congrega tanto o ato da investigação racional quanto certa liberdade artística. Nesse sentido, a proposta desse dossiê é reunir trabalhos que reflitam, explorem ou tomem como objeto a relação entre os usos da imagem na História da Ciência.
Este dossiê apresenta três frentes associadas: história, imagem e ciência. Delas decorrem outras ramificações que transversalmente abordam o eixo temático básico do presente. Abordagens plurais colaboraram para o alargamento da proposta temática, pois contemplou historiadores do político, da arte, da ciência, da literatura, bem como arquitetos, artistas plásticos, antropólogos e biólogos, o que dá multiplicidade e multidisciplinaridade a esta proposta.
Transitando pelo pluriverso da História das Ciências dois artigos abordam questões até hoje pouco aprofundadas na área. Em As primeiras imagens ocidentais da anatomia do útero humano, Vera Cecilia Machline discute um tema caro aos historiadores da Ciência. Afirma que coube à escola liderada por Aristóteles (384-322 a.E.C.) não só os primeiros estudos anatômicos de animais realizados no Ocidente, mas também as primeiras representações visuais a respeito. De acordo com a historiadora, há muito perdidas, sabe-se da existência dessas imagens mercê referências a ’Ανατοµαί (i.e., Esquemas anatômicos) em obras aristotélicas analisando sob diferentes ângulos a multiplicidade do reino animal. Compensando essa irreparável perda, desde o Renascimento ensaiou-se reconstituições de tais ’Ανατοµαί, com base nas descrições verbais nessas obras. Isto se aplica até ao útero de certos animais, incluindo o do ente humano, descrito no início do Livro II da História dos animais. Diante disso, será enfocado a reconstituição algo anacrônica de D’Arcy W. Thompson (1860-1948), bem como a ilustração do útero num manuscrito de c. 850, possivelmente inspirada na descrição presente no tratado ginecológico composto por Sorano de Éfeso (fl. 98-c. 129).
A ampliação do uso da imagem pelas descrições científicas e, especialmente, em sua vulgarização para um público amplo por meio da imprensa periódica é objeto do texto Representações, vulgarização e imagética científicas na imprensa da Corte fluminense do século XIX, do historiador Cesar Agenor Fernandes da Silva, que tenta compreender as nuances e os contornos da vulgarização científica e seu papel no projeto civilizatório para o Brasil veiculado pela imprensa periódica. A questão discutida nesse artigo gira exatamente em torno da difusão dos saberes científicos e as imagens associadas a essa veiculação por meio das publicações periódicas do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX. Um dos pontos centrais é justamente descrever como o conhecimento técnico-científico e, sobretudo, o uso público da razão tiveram papel fundamental no projeto de civilização dos homens de letras que viviam no Brasil. Além disso, coloca-se em perspectiva a possibilidade de se pensar possíveis impactos nas representações sobre o mundo pelos brasileiros que tinham contato com essas publicações.
Na interface entre a criação imagético/psíquica e a percepção filosófica, o texto de Elly Rozo Ferrari retoma essa discussão sobre outro prisma. Em Deslocamentos das narrativas viajantes: as fotografias de Mário de Andrade no processo de construção de conceitos da exposição Id: retratos contemporâneos, a artista plástica apresenta o ato fotográfico moderno nas fotografias de Mário de Andrade, pertencentes ao Arquivo do IEB-USP, como gerador de propostas conceituais a fim de discutir a imagem na contemporaneidade em relação à construção de identidades atualizadas neste processo de curadoria. Nesse sentido, analisa a intervenção na concepção fotográfica a partir das narrativas visuais apresentadas sem a intervenção legendada de textos e, a partir dessas relações, discute as representações presentes nesses retratos fotográficos contemporâneos que remetam à estereotipia, à banalização dos registros que, segundo autora, inundam ferozmente os espaços escolares e de cultura.
O espectro desse dossiê é necessariamente amplo, o que possibilita textos de gramaturas bastante diferentes. Em uma seara pouco discutida no âmbito da história da ciência, e mesmo da história política, o texto de Rodrigo Christofoletti apresenta a percepção sui generis do movimento integralista brasileiro sobre Ciência. Em A Enciclopédia do Integralismo frente à Educação, Estética e Poética: ciências da mente e do corpo, o historiador afirma que a tríade essencial do integralismo (Deus, Pátria, Família) teve um corolário bastante divulgado pelo movimento: uma sui generis concepção de ciência, que englobava experiências ligadas à Educação, à Estética e à Poética. Buscava-se com este tripé publicizar a crença integralista de que “o terreno fértil do protagonismo só seria fertilizado por meio do conhecimento, da beleza e da palavra em todos os seus sentidos!”. A ideia de que o binômio ciência/educação sempre foi um dos pilares da civilização era levada à risca pelo movimento integralista. Tal premissa alertava para o fato de que “o acúmulo de conhecimento não se bastava em si, e que era necessário uma educação que rompesse as fronteiras do intelecto, tornando-se o conceito do binômio ciência/educação algo polissêmico”. Este texto analisará as concepções negativas de ciência propaladas pelo integralismo no seu mais importante compêndio a Enciclopédia do Integralismo, publicado de 1957 a 1961.
Outra abordagem trabalhada neste dossiê é construída por textos que transitam pela fronteira entre arquitetura e suas representações imagéticas. O texto Experimentações gráfico-espaciais na confluência dos estudos do Imaginário e das representações da Arquitetura, da dupla Artur S. Rozestraten e Paula Brazão Gerencer, investiga, sob uma perspectiva crítica e experimental, instrumentos metodológicos e fundamentos conceituais advindos do campo de estudos do Imaginário quanto às suas possibilidades de interação com temas e modos de operar próprios do universo das representações da Arquitetura. Além da fundamentação conceitual em Gilbert Durand (1921-2012) e no universo iconográfico do ‘Recueil et Parallèle des édifices de tout genre, ancien et modernes’ de Jean-Nicolas-Louis Durand (1760-1834), o texto toma como base experiências construtivas, ensaios como inter-relações visuais entre imagens, estimuladas pelo Atlas Mnemosyne de Aby Warburg (1866-1929). Tais estudos têm a intenção de sondar novas potencialidades das articulações entre imagens, no plano e no espaço, como ferramenta de investigação e construção de conhecimento.
Em contraste com o texto de Machline que abriu o dossiê, o artigo apresentado pela antropóloga Priscila Enrique de Oliveira aborda as políticas públicas de saúde do Sistema de Proteção ao índio. Ideias, escopetas e bacilos: políticas de saúde do SPI e os diálogos com as populações indígenas do Brasil discute primeiramente como as políticas de saúde do SPI (Serviço de Proteção ao Índio, 1910-1967) foram pensadas, articuladas, colocadas em prática a partir de suas ligações com as políticas e ideais nacionais de civilização e progresso, bem como os pressupostos científicos vigentes no período. Analisa como as sociedades indígenas receberam e responderam a estas ações, enfocando particularmente as diferentes narrativas e lógicas culturais que perpassavam o contato, os diálogos e mediações frente à inserção das ideias de saneamento, higienização, medicalização e cura.
As análises expressas neste dossiê pretendem contribuir para o aprofundamento e a visibilidade de concepções e posicionamentos comprometidos com a ética científica e o respeito à diversidade intelectual. Esperamos que, em tempos de fragilidades éticas, como o que vivemos atualmente, os fundamentos que unem história, imagem e ciência possam ajudar a construir uma sociedade mais sábia de si mesma, e por isso, mais apta a enfrentar mudanças e crises.
Cesar Agenor Fernandes da Silva
Rodrigo Christofoletti
CHRISTOFOLETTI, Rodrigo; SILVA, Cesar Agenor Fernandes da. Apresentação. Domínios da Imagem, Londrina, v. 10, n. 19, jul/dez, 2016. Acessar publicação original [DR]