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Imagens da Infância / Revista Brasileira de História da Educação / 2014
Os autores foram convidados a colaborar com um dossiê em torno de imagens da infância. Traçamos alguns parâmetros comuns, mas longe de definições sobre um único conceito de imagem ou de infância.
Compartilhamos avaliações sobre o andamento dos estudos sociais e históricos da infância; a originalidade das produções recentes em relação às produções vindas dos anos 1980 e 1990, marcadas pelas referências a Ariès e a Foucault; os impasses ou os dilemas da produção dos últimos dez anos no âmbito da Sociologia e da História da infância.
Duas vertentes, ao menos, vêm interpondo dificuldades para o aprofundamento das pesquisas sobre a infância produzidas no Brasil dos últimos anos, no âmbito dos estudos sociológicos e históricos. De um lado, os trabalhos que se autoproclamando pós-coloniais pretendem projetar a criança para além das fronteiras nacionais, a favor do seu cosmopolitismo. É nesses trabalhos que se encontram as teses defensoras tanto da existência de ‘culturas infantis’ autônomas a serem estudadas e protegidas da intervenção e da apropriação adulta como do ‘protagonismo infantil’ que, realizado entre as crianças, protege-as da ‘cultura adulta’, social e historicamente hegemônica.
Não é difícil vislumbrar nessa vertente a tendência regressiva de recuperar um passado idílico no qual a criança, livre da intervenção punitiva do adulto e das suas instituições castradoras, teria vivido a sua plena essência. No limite, portanto, essa vertente vem inviabilizando abordagens sociológicas e históricas da infância.
De outro lado, soma, a favor dessa vertente, a tendência de demonizar toda e qualquer abordagem que esteja inscrita nos campos médico, biológico e, especialmente, no campo psicológico, responsabilizados pelas visões distorcidas que teriam sido produzidas sobre a infância desde fins do século XIX. A visão médica e biológica, que pasteuriza, esteriliza, mede, esquadrinha, normatiza e normaliza a criança e prescreve uma infância. A psicológica, que mede a inteligência, prescreve o desenvolvimento, divide as crianças por idades, por capacidade mental, elabora standards para observar, etapa por etapa, da infância até a adolescência.
Embora essa vertente admita que aqueles discursos científicos e suas derivações tecnológicas, clínicas e pedagógicas tenham produzido as imagens de infância do último século, aqueles discursos são desqualificados e descartados em bloco, sem que sejam diferenciados entre si, examinados e criticados em seus fundamentos, em sua lógica interna e em seu poder de se fazerem hegemônicos.
Com esses parâmetros em mente, compusemos este dossiê, visando contribuir para os estudos sociológicos e históricos da infância, considerando, de um lado, que não basta anunciar a crítica às perspectivas que historicamente vêm naturalizando a infância, assim como não basta imputar responsabilidades, pois é indispensável realizar, de modo competente, a crítica interna para desmontar aquelas perspectivas; de outro lado, não basta anunciar a superioridade das perspectivas sociais ou históricas sem atestá-las como tal.
Trabalham nessa direção os dois artigos de autores estrangeiros e três artigos de autores nacionais. Os dois primeiros artigos operam em sentidos que podem ser considerados como ‘história do presente’ ou como ‘desmontagem de representações históricas’. Nos dois casos, são perspectivas sedimentadas ao longo do tempo que estão sendo abaladas por novas perspectivas – teóricas ou práticas – em crescente expansão em tempos atuais.
O artigo de Nancy Lesko e Stephanie D. McCall, Cérebros cor-derosa e educação: uma análise pós-feminista da neurociência e do neurossexismo, traz à cena um problema de longa tradição no campo da Educação: a apropriação cientificamente descompromissada de resultados de pesquisas desenvolvidas em outros campos científicos, a partir de perspectivas ideológicas ou politicamente comprometidas; no caso por elas examinado, apropriação de resultados da neurociência. Lesko e McCall descrevem algumas imagens de meninas veiculadas na literatura recente que pretendem com elas fundamentar diferenças inatas entre meninas e meninos, mulheres e homens, e assim sustentar a heterossexualidade como natural. As derivações políticas dessas pressuposições são espantosas: alertam-nos, de modo contundente, que nenhuma das conquistas da educação norte-americana progressivista ou da aqui chamada ‘escola nova’ é irreversível. Da mesma forma, cresce nos Estados Unidos a defesa da escolarização doméstica. Ao longo da exposição, as autoras sustentam críticas às teses defensoras do uso seletivo de dados neurocientíficos, mostrando que as pesquisas do cérebro que estabelecem sua distinção por gênero é ‘pseudociência’.
O artigo de Mariano Narodowski examina as transformações ocorridas nos processos de transmissão intergeracional e os impactos que elas produzem na construção das narrativas sobre a infância. No primeiro movimento do artigo, o autor chama Margaret Mead para apoiá-lo na relativização da tese durkheimiana de que a educação é o processo de transmissão cultural da geração mais velha à geração mais nova. Essa relação que vai dos mais velhos aos mais jovens só se daria em algumas circunstâncias históricas. Nas atuais circunstâncias, em que aquela relação vai deixando de ser assimétrica, em que a cultura vai sendo ‘desierarquizada’, jovens e crianças vão ganhando equivalência com os adultos. No segundo movimento do texto, Narodowski trabalha os efeitos da nostalgia produzida pela perda das relações assimétricas adultos-jovens / crianças. O nivelamento dos sujeitos sociais, a perda de hierarquia entre os mais velhos e os mais jovens estaria na base dos clamores nostálgicos pela velha infância (a ‘nostalgia reflexiva’ de Boym). No terceiro e último movimento, com o objetivo de ilustrar a busca simbólica da assimetria perdida, Narodowski traz à cena um capítulo da 23ª temporada da série Os Simpsons. Com essa ilustração, ele dá a ver que, na ‘nostalgia reflexiva’, não se trata da busca de um momento mágico ou mítico da infância nem da restauração de um passado melhor; o que está em jogo, apenas, ‘é a aproximação às vivências infantis que ordenavam a vida de uma maneira estável e previsível’, e que estão agora transformadas.
Em dois artigos, o foco recai sobre a Psicologia e os ramos que têm a criança e a infância como objetos; no conjunto, esses artigos efetuam a crítica tanto do processo de produção como dos processos de difusão e apropriação dos saberes gerados pelo campo psicológico ou pelos seus derivados diretos. A História da educação no Brasil muito se beneficiará desses estudos que fazem a análise interna de ramos psicológicos que moldaram o campo e as imagens de infância com as quais ele opera.
O artigo de Regina Campos, Maria Cristina Gouvea e Paula Cristina Guimarães busca analisar a recepção da obra de Binet e o uso dos testes no Brasil, nas primeiras décadas do século XX. Foram focalizados os autores que, em períodos históricos distintos, produziram críticas ao uso indiscriminado dos testes, ou enfrentaram resistências por parte de autoridades educacionais ao seu uso nas escolas. São eles: Manoel Bomfim, Maria Lacerda de Moura e Helena Antipoff. O objetivo das autoras não é fazer a crítica da obra de Binet, mas, sim, analisar o que denominam ‘as contrafaces da História da Psicometria no Brasil’, conferindo visibilidade às tensões e aos embates no uso dos testes na educação brasileira. Nos resultados apresentados, o artigo evidencia que o fato de a recepção de Binet e dos testes psicométricos no âmbito da educação ter sido crescente e vitoriosa não teria ocorrido sem resistências e reticências, tais como as interpostas pelos três autores destacados. Exame, aliás, destacado pelas autoras como fundamental para que se possa proceder criticamente em face da psicologização do campo pedagógico.
O texto de Mirian J. Warde trata da formação do campo dos estudos da criança nos Estados Unidos – o child study – sob a égide de G. Stanley Hall, nos anos em torno de 1880 a 1910. O artigo centra-se na luta dos discursos que disputavam a legitimidade para falar da criança, dos ‘seus’ adultos e das ‘suas’ instituições, para, assim, falar em seu nome. Aborda um momento importante, no qual a Psicologia está se afirmando como nova ciência e está construindo a sua hegemonia em assuntos pertinentes à criança e suas circunstâncias.
A importância de Stanley Hall na história dos estudos sobre a criança e o adolescente é confirmada pela literatura especializada. Do ponto de vista aqui adotado, o destaque a Hall deve-se, especialmente, ao fato de ter deslocado os parâmetros dos estudos e dos debates sobre a criança, suas relações com a Pedagogia e as reformas escolares, com os professores primários e pais; Hall polemizou em todas as frentes e formou um número vultoso e relevante de acadêmicos e líderes educacionais.
O artigo examina também o fato de Stanley Hall estar à testa de muitas frentes do movimento de institucionalização da Psicologia e da sua afirmação como campo autônomo de estudo; sua relação com a Psicologia não o teria impedido de entender o child study como um campo para o qual confluíam muitas disciplinas centradas em um único tema – a criança – cujos resultados deveriam ser revertidos em favor da Educação. No entanto, ainda que pregasse a favor da conjugação de vários pontos de vista no estudo da criança, Hall contribuiu decisivamente para produzir a hegemonia da Psicologia sobre as demais disciplinas, no que tange aos estudos da criança. O exame de suas iniciativas, portanto, dá a ver as complexas e tortuosas trajetórias percorridas pelo child study das quais resultam hegemonias e subordinações originalmente não planejadas.
Embora não seja seu foco, o artigo de Warde aponta para o peso da religiosidade na trajetória intelectual de Hall enquanto pugnava ferozmente pela subordinação dos estudos da criança, do adolescente e da Educação aos ditames da ciência. O tema, que aqui é apenas tangenciado, é o centro das atenções do artigo de Claudia Panizzolo.
O artigo de Panizzolo examina uma dimensão do projeto civilizatório dos metodistas no Brasil especificamente destinado à conquista, melhor seria dizer, ao amoldamento da alma infantil. Os missionários e educadores norte-americanos que fundaram igrejas e escolas metodistas no Brasil, entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, criaram a Revista Bem-te-vi, destinada às crianças. No artigo, Panizzolo examina a construção e a difusão da imagem de criança impressa nas páginas da Revista e oferece evidências de que o projeto civilizatório dos metodistas, em termos gerais, não colidia com as proposições das lideranças que comandaram a implantação e a consolidação da República no Brasil. No que tange à Educação, a autora aponta que a Revista Bem-te-vi veicula mais um, entre tantos projetos em circulação e em disputa que pretendem civilizar as crianças, e que apresentam em comum a necessidade de moldar a infância para a modernidade. O caminho adotado foi o da centralidade da criança, do respeito às normas higiênicas, da disciplinarização do corpo e da mente das crianças (por meio da civilização de hábitos e condutas), e da valorização do ato de observar na construção do conhecimento das crianças.
Nesse sentido, constata certas convergências entre as idealizações da infância dispostas pelos metodistas e as idealizações liberais e republicanas postas em circulação no mesmo momento histórico.
Que os cinco artigos aqui reunidos contribuam não só para a ampliação das pesquisas sociais e históricas sobre a infância, mas, principalmente, para problematizar perspectivas e fertilizar novos programas investigatórios.
São Paulo, outono de 2013
WARDE, Mirian Jorge; PANIZZOLO, Claudia. Apresentação. Revista Brasileira de História da Educação, Paraná, v.14, n.2, maio / ago., 2014. Acessar publicação original [DR]