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Imagem na Idade Média / Antíteses / 2016
Os estudos da imagem nas últimas décadas têm assumido um espaço visível e indiscutível na historiografia. Desde a École des Annales e a valorização de documentação além da escrita evidenciada pela História Nova e depois pela Nova História Cultural, a imagem aparece como uma possibilidade concreta para o conhecimento do passado. Até então, o fascínio e inquietação promovidos pelas imagens não pareciam traduzir-se em estudos que as considerassem. Ainda que o trabalho formidável de Johan Huizinga em princípios do século XX tenha apontado para o valor das imagens para o entendimento sobre o homem medieval, prefigurando em parte, algumas questões importantes da História Cultural, nossa herança cartesiana dificultou-nos a apreensão das imagens segundo sua complexidade e riqueza. Como expressar verbalmente o que antes se fixou como imagem? Como estabelecer a genealogia de conteúdos e elementos que transitam entre referências escritas e imagéticas de modo tão inefável? Como enfrentar a estranheza e a convenção das formas? Como lidar com a multiplicidade de sentidos das imagens?
Os estudiosos da Idade Média foram grandes colaboradores para a renovação do campo da História. No campo específico dos estudos sobre os registros figurativos, esta contribuição tem sido também muito evidente. As discussões primeiras sobre o uso da expressão arte ou imagem certamente colaboraram em grande monta para a redefinição de parâmetros no exame da figuração do período medieval. Historiadores como Jean-Claude Schmitt, Jérôme Baschet, no campo da filosofia, estudiosos como Georges Didi Huberman e Marie-José Mondzain têm contribuído para o reconhecimento de funcionalidades e sentidos para a imago que ultrapassam a objetividade característica dos discursos em torno da comunicação e da ideologia. Ao contrário do que afirmou na tradição historiográfica, fundada principalmente na História da Arte, na esteira dos trabalhos de Émile Mâle, em meados do século passado, o medievo emerge como período fértil para as imagens. A liberdade e inventividade no tocante à produção das imagens que fizeram sobressair Jean Claude Schmitt e Jérôme Baschet vêm negar os equívocos gigantescos que de todo modo ainda se arrastam nas sínteses sobre a Idade Média: não, as imagens medievais não são basicamente a “bíblia dos iletrados”; sim, a civilização do ocidente medieval deu tamanha importância às imagens que superou as interdições veterotestamentárias e desenvolveu um cristianismo de imagens! Os desdobramentos disto estão entranhados no processo de expansão colonial, e no modo como os homens e mulheres do Ocidente pensam e lidam com a imagem, no meio religioso ou além dele.
Esse dossiê reuniu pesquisadores brasileiros que desenvolvem estudos sobre as imagens na Idade Média. Nesse caso, quatro medievalistas trazem recortes de suas reflexões e, a partir de formações e trajetórias distintas, possibilitam-nos conhecer a produção deste campo de estudo no Brasil. Esperamos, assim, contribuir para o conhecimento dos debates que se apresentam na teoria e historiografia hoje sobre as imagens neste período.
“Verbo que se faz carne, que se faz verbo”. A partir desse belo axioma que localiza a imagem no fundamento do cristianismo, a historiadora Maria Cristina Pereira apresenta o que existe de inexorável na operação do estudo da imagem. Sobre a imagem se produz discurso para se reportar a ela. O limite está no axioma, mas o desafio está no reconhecimento da limitação e na caminhada. A identificação e organização, pela pesquisadora, dos conteúdos escritos no período medieval relativos à imagem certamente facilitarão o reconhecimento da natureza dos textos pelos futuros estudiosos e seu lugar no entendimento do que se pensou sobre a imagem no período chamado medieval. São identificadas cinco categorias: os discursos teóricos sobre imagens; os que apresentam proposições normativas; aqueles que se referem à recepção; aqueles que mencionam os produtores das imagens; por fim, os que as descrevem.
Dessa forma, a partir da riqueza apresentada pelos discursos, a autora contribui para a superação da associação entre as imagens medievais e sua direcionada função didática. Apresenta-se, assim, mais uma oportunidade de localização, atenuação e superação do recorte do discurso do Papa Gregório (séc. V) sobre a destinação das imagens como “bíblia para os iletrados”. Esta passagem que se reproduz nos manuais e mesmo em materiais mais densos sobre o medievo apresenta-se, muito comumente, ainda, desconectada do discurso inteiro: uma carta de admoestação que se referia a imagens narrativas num contexto iconoclasta.
Ao classificar os textos que se referem às imagens, Cristina Pereira apresenta vozes discordantes à de Gregório (como a de Paulino de Nola ou a dos neoplatônicos), quando se reporta aos discursos teóricos. Os discursos sobre as práticas, revelam a pouca atenção dos intelectuais eclesiásticos acerca da normatização das imagens. Os registros indiretos e associados a contextos muitas vezes delicados obrigam o historiador a uma busca em textos dispersos e de naturezas muito distintas (cartas, tratados, material hagiográfico). Do mesmo modo, os textos que se referem aos produtores das imagens: cartas, contratos, referências dispersas que os mencionam em função da valorização dos comitentes, textos laudatórios, esses mais comuns nos últimos séculos medievais, assim como em necrológios, crônicas e hagiografias. As questões teológicas perpassam mais ou menos fortemente as diversas categorias, mas evidencia-se a pouca uniformidade e a ausência de discurso articulado e continuado. A quase ausência de referências diretas sobre a recepção das imagens e a difícil captação dos efeitos da figuração junto aos observadores nos faz refletir sobre o sentido do silêncio. De todo modo, ele nos parece indicar muito mais nossas angústias em entender por escrito o que tomaram os homens do passado pelo olhar. E principalmente pelo olhar.
Historiadores e historiadores da arte veem suas fronteiras dissolvidas pela aproximação de seus interesses e o esboroar-se de conceitos arraigados. A aproximação de historiadores da arte como Michael Baxandal de questionamentos marcantes da História da Cultura e a percepção cuidadosa sobre o objeto artístico dos primeiros adotada pelos historiadores da cultura, a exemplo de Carlo Ginzburg, trouxeram enormes ganhos para a emergência de novas possibilidades de trabalho. As fronteiras entre Renascimento e Idade Média, Humanismo e valores do medievo se esfumaçam na consideração das imagens. O estudo de Maria Eurydice de Barros Ribeiro sobre a obra de Uccello, a Batalha de São Romano, do século XV, historiciza o próprio objeto, apontando-nos para uma perspectiva de história não somente centrada na consideração das condições de produção do objeto ou de sua recepção prevista, mas também para a trajetória mesma do objeto de arte-documento. A imagem evidenciada fez parte de tríptico, que hoje repartido, compõe acervos que, inclusive, desconsideram sua origem. Os espaços que ocupam cada parte da antiga peça original, o lugar em que habitam, a singularidade que adquiriram, os olhares que suscitam, deram autonomia e ressignificaram as imagens.
O caráter emblemático da pintura, que justificou sua posse por Lourenço de Medici, assim como o uso da perspectiva e valor investido em ouro e prata, tornaram essa obra uma referência para o medievo florentino. A intencionalidade da obra inquieta a estudiosa que reafirma o caráter de registro e comemorativo da Batalha de São Romano, conflito que deu vitória a Florença sobre Siena poucos anos antes de sua confecção.
Dois estudos de caso, ainda, apresentam análises de imagens associadas ao universo cristão medieval. Adriana Zierer desenvolve um estudo sobre as várias formas de representação do Diabo na iconografia medieval. A partir de imagens retiradas da Vision de Tondal, do século XII, com uma versão iluminada no século XV, dedicada à duquesa Margaret de York (1475) e do Livro de Horas Les Très Riches Heures do Duc de Berry, produzido pelos irmãos Limbourg, também do século XV, a historiadora aponta para a riqueza de elementos que compõem a imagem do Diabo. As variações nas suas representações que indicam maior complexidade na representação da figura. Assim, uma imagem convencionada do Diabo foi a figura da Boca do Inferno, que está associada a animais como o dragão e a serpente, os quais, por sua vez ligam-se ao monstro bíblico Leviathan. Na Vision de Tondal, os seus guardiões, na entrada da cavidade, são elementos da cultura popular (os gigantes Fergus e Connal, associados à mitologia irlandesa). Já nas imagens produzidas pelos irmãos Limbourg o Diabo apresenta-se, por um lado, entre formas humanas e animalescas, como na imagem do “Inferno”, ou como como um belo anjo no momento em que traiu Deus, portando halo.
No texto de Tamara Quírico, o exame da dupla funcionalidade da cena de Juízo Final, particularmente nos últimos séculos medievais, valoriza a superação de uma objetivação unívoca para as imagens. Além da consideração da cena como momento especialmente valorizado no contexto da religiosidade cristã e dos efeitos esperados quanto à reafirmação dos destinos dos homens, santos e pecadores, pouco ou muito pecadores, a cena remete a outras preocupações dos homens. Nesse caso, a evocação da justiça dos homens equiparada à justiça de Deus.
Na esteira da historiografia francesa, particularmente de Jean-Claude Schmitt e Jérôme Baschet, o “lugar” da imagem importa além da consideração de um contexto da obra. A imagem que se define pelo seu conteúdo cristão, formula-se com intencionalidades outras, além da religiosa. Esta tem sua intenção apontada a partir também do local que a abriga. Nessa perspectiva, Tamara Quírico interpreta o ciclo de afrescos com o tema do Juízo Final executados na Capela Madalena ou (del Podestà), no Palazzo del Bargello, em Florença. Provavelmente concebido por Giotto di Bondone, por volta de 1336, o ciclo do último julgamento, embora, executado no interior de uma capela, estava localizado originalmente na sede da justiça do governo florentino. A suposta obviedade do assunto tratado se redefine na análise que a associa à valorização do tribunal e ações judiciárias. Assim, a imagem atua sobre duas temporalidades, aquela do tempo presente e aquela do futuro julgamento.
Os artigos, enfim, nos oferecem uma amostragem dos estudos realizados no Brasil sobre as imagens medievais. As justificativas para os estudos sobre o medievo em nosso continente, cremos, já foram apresentadas inúmeras vezes, e pensamos que isto já não deveria se fazer, ainda, necessário. Nossa cultura colonial europeia é medieval e por isso somente já deveríamos guardar atenção e cuidado. Quando pensamos no quadro das expressões visuais, cabe lembrar, todavia, que o ocidente desenvolveu uma cultura imagética que hoje se pulveriza pelas mídias eletrônicas, mas cuja trajetória se torna imprescindível para a reflexão sobre como lidamos com o olhar. Não pensamos que um caminho unívoco tenha nos levado a essa sociedade de imagens em que vivemos, mas perceber as inquietações, ousadias e censuras quanto ao que se vê e o que se cria para ser visto, assim como os silêncios e vazios, é absolutamente necessário.
Angelita Marques Visalli – Doutora em História. Universidade Estadual de Londrina. Departamento de História.
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