Posts com a Tag ‘Identidades’
Tornar-se negro ou índio: a legalização das identidades no Nordeste brasileiro | Jan Hoffman French
O título é autoexplicativo: Tornar-se negro ou índio trata de processos identitários no último terço do século 20, experimentados por moradores das proximidades do Rio São Francisco, em territórios alagoano e sergipano. A pesquisa empreendida pela advogada Jan Hoffman French, que é também antropóloga, na Universidade de Richmon (EUA), foi desenvolvida nos anos 1990 e narra a transição identitária das populações Xocó e Mocambo: de trabalhadores rurais aparentados e próximos em território, a índios e quilombolas, respectivamente, que cultivaram interesses distintos nos anos 2000. Essa é a história substantiva da obra. Em termos metahistóricos, o livro trata do papel positivo do Estado e da globalização nesse processo de empoderamento (reconhecimento identitário e posse da terra) das populações subalternizadas. Mais importante, o livro informa sobre as implicações desta pesquisa para a produção de novo modelo teórico que aborda, conjuntamente, a emergência de identidades indígena e negra, em sociedades sustentadas por Estado democrático de direito: a criação do modelo de “legalização das identidades”. Trata-se de um conjunto de procedimentos e categorias que explicam o processo de construção de identidades no qual “a própria lei e suas interpretações” são modificadas “ao longo do tempo”, à medida em que “as pessoas por ela afetadas utilizam-na de diversas formas e, nesse processo, passam por uma transformação identitária” (p.34). Tais situações envolvem não apenas os agentes clássicos do Estado, mas também a Igreja Católica, ONGs, advogados, antropólogos e procuradores do Ministério Público (governamentalidade). Leia Mais
Histórias do vestir masculino: narrativas de moda, beleza e elegância | Guilherme Ivana Simili e Maria Cláudia Bonadio
Maria Claudia Bonadio é uma das organizadoras do livro “Histórias do vestir masculino – narrativas de moda, beleza, elegância”, lançado nesta terça no IAD/UFJF | Foto: Divulgação
As construções de sentidos para as virilidades e as masculinidades, em diferentes tempos e espaços, norteiam as discussões do livro História do vestir masculino: narrativas de moda, beleza e elegância. O livro, sob organização das historiadoras Ivana Guilherme Simili e Maria Claúdia Bonadio, objetiva trazer reflexões acerca das concepções de homem, de masculinidade, de virilidade e de outros adjetivos, e suas relações com as indumentárias. Para tanto a obra, composta por onze capítulos, um prefácio e uma apresentação, conta com a contribuição das seguintes pesquisadoras e pesquisadores: Maria Cristina Volpi, Ivana Guilherme Simili e Alessandra Vaccari, Fernanda Theodoro Roveri, Jefferson Queler, Marko Monteiro, Maria Claudia Bonadio, Taisa Vieira Sena, Wagner Xavier de Camargo, Elisabeth Murilho, Maria Eduarda Araujo Guimarães e Wladimir Silva Machado. Leia Mais
Migrações: identidades, culturas e trajetórias / Aedos / 2021
Migrações | Imagem: Fundação FHC |
Há pouco mais de um ano, nossos editores finalizavam o volume onze, número vinte e cinco, da Revista Aedos, já sob as recomendações sanitárias de isolamento social, fundamentais para o enfrentamento da pandemia de Covid-19. Este é o volume doze, vigésimo sétimo número desse periódico, e a terceira publicação finalizada, integralmente, sob tais circunstâncias. A crise sanitária persiste, acompanhada por uma dolorosa paisagem de mortes e destruição econômica e social. No Brasil, passado um ano dos primeiros alertas da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a disseminação em massa do novo coronavírus, ainda há uma assombrosa carência de políticas efetivas e coordenadas pelo governo federal para mitigar esses efeitos – o que nos lançou tragicamente ao epicentro da crise mundial nas últimas semanas. Enquanto estas palavras são escritas, o país beira as três mil mortes diárias, sem contar subnotificações, de um total de mais de trezentas mil vidas perdidas. Os profissionais da saúde encontram-se exaustos; por toda parte, faltam leitos e medicamentos essenciais para o tratamento dos pacientes.
Embora o vírus não descrimine ninguém, demonstrando como a comunidade humana é igualmente frágil, a desigualdade, segundo Judith Butler (2020, p. 60-62), que inclui “o nacionalismo, a supremacia branca, a violência contra as mulheres, as pessoas queer e trans, e a exploração capitalista”, atribui-lhe esse componente de modo cada vez mais “radical”. Ora, pois não seria ao menos emblemático que a primeira vítima notificada no Brasil tenha sido uma empregada doméstica de 63 anos? E, já que falamos disso, como não recordar, conforme Achille Mbembe (2020, p. 4), de “todas as epidemias imagináveis e inimagináveis que, durante séculos, devastaram povos sem nome em terras remotas”? Como esquecer das guerras e ocupações predatórias que mutilam e lançam milhares de pessoas a uma vida errante?1 Ou ainda, que tem a saúde e a expectativa de vida comprometidas pela “ação de empresas poluidoras e destruidoras da biodiversidade.” A propósito, na medida em que o vírus quebrava as barreiras do espaço e dos alvéolos pulmonares, as florestas brasileiras (os pulmões da Terra), juntamente com a sua fauna, arderam em chamas, tal qual qualquer imagem arquetípica do juízo final. A fumaça liberada daquele “inferno” transformou dia em noite.
Ainda que muitas vezes queiramos nos livrar do fato, é no mínimo lamentável tamanha destruição para “olharmos para a história humana como parte da história da vida nesse planeta”, como tanto insistiu Dipesh Chakrabarty (2013, p. 15). Nessa perspectiva, nos voltamos ao “corpo”, com seus medos, desejos e sensibilidades – e, agora, isolado; nos voltamos à experiência do “frágil e minúsculo corpo humano”, a que Walter Benjamin (1987, p. 114) tanto se esforçou para evidenciar no século passado. Diante de tamanha catástrofe, esperamos que os trabalhos reunidos em mais uma edição “pandêmica”, com um dossiê temático dedicado às migrações, identidades, culturas e trajetórias, possa talvez servir como um “sopro”. Não como aquele que vem da “tempestade do paraíso”, impedindo o “anjo da história” de Benjamin (1987, p. 226) de “acordar os mortos e juntar os fragmentos”; mas como o “(co)movedor”, no “jogo de palavras” de Alistair Thomson (2002, p. 359), toque da cítara dos aedos
Notas
1. Com a pandemia, segundo o último relatório de Tendências Globais (2020) do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), “o número de pedidos de asilo registrados na União Europeia em março de 2020 caiu 43% em comparação com fevereiro, à medida que os sistemas de asilo diminuíram ou pararam com países fechando fronteiras”.
Referências
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987. v. 1.
BUTLER, Judith. El capitalismo tiene sus limites. In: AGAMBEN, Giorgio et. al. Sopa de Wuhan. Pensamiento contemporáneo en tiempos de Pandemias. [S.l.]: ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020.
CHAKRABARTY, Dipesh. O clima da História: quatro teses. Sopro, São Paulo, n. 91, jul. 2013.
MBEMBE, Achille. O direito universal à respiração. N-1 Edições, São Paulo, 2020.
THOMSON, Alistair. Histórias (co)movedoras: História Oral e estudos de migração. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, p. 341-364, 2002.
UNCHR. Global Trends. Forced Displacement in 2019. The UN Refugee Agency, Genebra, 18 jun. 2020
Lúcio Geller Junior – Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). E-mail: lucio.geller@gmail.com
GELLER JUNIOR, Lúcio. Editorial. Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março, 2021. Acessar publicação original [DR]
Literatura e interartes, desdobramentos estéticos e culturais: entrelaçamentos e reverberações da memória, da história, da sociedade e as identidades | Literatura, História e Memória | 2020
As poéticas interartes oferecem profícuo terreno para evidenciar o encontro entre as diversas linguagens e expressões a partir de uma abordagem atenta aos diálogos até mesmo por meio dos possíveis conflitos oriundos dos entrelaçamentos que perpassam as fronteiras entre as expressões artísticas. Ainda assim, essas aproximações atrelam-se a questões universais que elevam a arte a potencialidades que se referem ao seu caráter, tanto criador quanto resistente às forças que se levantam contra os discursos conciliadores diante dos encontros paradoxais da própria existência.
Foram muitos os teóricos que se debruçaram sobre o dialogismo entre as manifestações artísticas que parecem sempre dispostas a propor métodos de ultrapassar as próprias fronteiras de expressão. Para citar alguns casos emblemáticos, podem ser retomadas, por exemplo, as contribuições de Paulo Emilio Salles Gomes. Entre suas incursões pelas veredas cinematográficas, sempre em consonância com a Literatura, erigiram-se muitas pontes a conduzir e corporificar caminhos de análise e leitura. Em Decio de Almeida Prado e Anatol Roselfeld, no Teatro, é possível perceber os olhares atentos para a formação de uma crítica realizada no país em diálogo com tendências originais de diversas culturas. Já Antonio Candido traz à tona as relações entre a Literatura, a História e a Sociologia, elevando os gêneros literários a suas possibilidades comparativas às demais expressões artísticas como manifestações da sociedade na dialética que permeia o local e o universal. Leia Mais
Identidade | Brasílio Sallum Junior, Lilia Moritz Schwarcz, Diana Vida e Afrânio Catani
Constructos sociais estabelecidos no âmbito das relações humanas, as identidades se constituem como elementos que proporcionam diversas percepções a respeito das diferentes maneiras de estar no mundo, viabilizando determinadas formas de reconhecimento e luta. Para além, tomada como pauta por diversos setores no tempo presente, a identidade se manifesta como tema fundamental no debate acadêmico – protagonizando, por vezes, uma miríade de investigações que se materializam por meio dos diversos trabalhos que endossam sua atualidade.
É nesse sentido, portanto, que o livro Identidades se corporifica. Concebida como resultado imediato de um seminário internacional homônimo – sediado, em 2012, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e parte integrante de um projeto amplo titulado como Conferências USP –, a obra dispõe como organizadores os docentes Brasilio Sallum Jr. (FEUSP); Lilia Moritz Schwarcz (FFLCH-USP); Diana Vidal (FEUSP) e Afrânio Catani (FEUSP) e toma como objetivo apresentar as discussões promovidas nas mobilizações do conceito em questão – desvelando, de maneira minuciosa, uma revisão de seus múltiplos significados e usos. Leia Mais
Diálogos suburbanos: Identidades e lugares na construção da cidade | Joaquim Justino dos Santos, Raffael Mattoso e Teresa Guilhon
Pensar a construção da cidade a partir de seus espaços de exclusão social e marginalização das populações pobres, eis aqui o objetivo central e transversal da obra organizada em conjunto pelos pesquisadores e professores Joaquim Justino dos Santos, Rafael Mattoso e Teresa Guilhon e que conta com colaborações de diversos profissionais e estudiosos dos subúrbios cariocas, oriundos, esses últimos, dos mais variados campos de estudo e atuação profissional. Antes de começarmos a destrinchar a obra, gostaríamos de apresentar um pouco da trajetória dos idealizadores desse projeto. Joaquim Justino dos Santos é formado em História pela UFF, mestre e doutor em Urbanismo pelo PROURB/FAU-UFRJ, tendo atuado durante vários anos como gestor público; Raffael Mattoso é formado em História pela UFRJ, mestre em História Comparada pelo PPGHC-UFRJ, doutorando em História da Cidade pelo PROURB-UFRJ e professor das redes pública e privada do Rio de Janeiro; e, Teresa Gilhon é formada em Comunicação Visual pela UFRJ, mestre em Bens Culturais e Projetos sociais pela FGV e é atualmente pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos Urbanos do Centro de Pesquisa e Documentação de História Comparada do Brasil (CPDOC). Além de artigos de alguns dos organizadores, a obra ainda traz colaborações de professores, arquitetos, geógrafos, historiadores e cientistas políticos. Com relação aos autores, destacaremos aqui apenas suas áreas de formação, a fim de clarearmos um pouco o local de fala dos respectivos colaboradores. Ressaltamos de antemão que, o caráter interdisciplinar, presente nesse empreendimento, não se dá apenas pela filiação intelectual e profissional de seus produtores, como também pela série de enfoques, conceitos e métodos que são empregadas nas construções das narrativas sobre os subúrbios cariocas. Leia Mais
El futuro del currículum: La educación y el conocimiento en la era digital – WILLIAMSON (RHYG)
WILLIAMSON, Bem. El futuro del currículum: La educación y el conocimiento en la era digital. Madrid: Ediciones Morata, 2019 (1 era edición español). 122p. Resenha de: ALTAMIRANO, María José Umaña. Revista de Historia y Geografía, Santiago, n.43, p.267-271, 2020.
¿Cuáles son los factores sociales, más allá de la academia y del aula, que informan los cambios curriculares en la era digital? ¿Cuánto y cómo influyen las transformaciones de los sistemas económicos, polí- ticos y culturales? Y, lo más importante, ¿de qué forma estos currículos pretenden configurar las mentes, las ideas, las identidades y las actua- ciones de los jóvenes? Son estas y otras las preguntas que intenta responder Ben William- son, académico de la Universidad de Stirling en Reino Unido, e investigador en las áreas de política educativa y tecnología educativa, en su libro El futuro del currículum: La educación y el conocimiento en la era digital.
En siete capítulos el autor expone las principales ideas que se desprenden del estudio de nueve propuestas curriculares que incluyen el uso de medios digitales, impulsadas por organismos independientes del sistema educativo tradicional. En este contexto, plantea la interro- gante respecto de las implicancias en la formación de los estudiantes, debido a que las entidades que guían la construcción del curriculum responden a un nuevo pensamiento de “sociedad”. Leia Mais
Criar a Nação: História dos Nomes dos Países da América Latina | José Carlos Chiaramonte e Carlos Marichal
Em 1860, a província de Buenos Aires encontrava-se separada das outras com as quais havia formado o Vice-Reino do Rio da Prata e mergulhada em debates acerca de se, e como, deveria realizar uma reintegração nacional. Um editorial do periódico El Nacional, de propriedade de Bartolomé Mitre, tratou de colocar em pauta a questão do nome que assumiria o país resultante dessa reunião. O autor antecipa seus críticos: embora pudesse parecer impossível recorrer à “questão de nomes” sem “cair na trivialidade”, ela envolvia “outra questão de honra e de vergonha”.
É de momentos como este que Criar a Nação: História dos Nomes dos Países da América Latina se nutre. O livro, publicado em português pela primeira vez este ano pela Hucitec e originalmente em espanhol em 2008 pela Editora Sulamericana, aposta na importância que os nomes assumiram em tais momentos, para usá-los como novos pontos de observação da história das nações. Dezesseis nomes hoje reivindicados por países e regiões da América Latina são examinados em dezessete artigos de autores diferentes, dois deles dedicados ao México. O conjunto da obra apresenta mais altos que baixos e tem na coerência com seus pressupostos uma característica da qual deriva duas de suas qualidades mais interessantes.
A primeira é uma relação de reforço mútuo entre a História aqui praticada e o aparato teórico que lhe sustenta, calcado na ideia de nação como artefato cultural. A importância disso para o trabalho aqui realizado fica evidente em alguns textos. A pesquisa de José Carlos Chiaramonte1 sobre os termos Argentina, Províncias Unidas do Rio da Prata e Confederação Argentina se beneficia imensamente da compreensão de nação como entidade circunstancialmente construída. O mesmo pode ser dito sobre o trabalho de Ana Frega, da Universidad de la República (Uruguai), sobre o par oriental/uruguaio, que, interrogado por essa lente, revela o retrato de uma identidade nacional fraturada, cindida originalmente pelas diferentes reações ao movimento juntista de 1810 esboçadas pelo governo de Montevideo e pelos habitantes do restante da banda oriental do rio Uruguai. Ambos os casos apresentam conflitos que, lidos a partir da noção essencializada da nação, perderiam importância. Seus resultados já estariam determinados de antemão pelo presente. A história dos nomes assim alimentada se restringiria a uma história da revelação do nome, da vitória do nome atual. A nação inventada liberta os eventos passados de destinos inexoráveis e dá voz aos diferentes projetos apresentados nas instâncias de discussão destas questões. Os nomes deixam de ser sinas e tornam-se símbolos, prenhes de expectativas e desejos; suas histórias deixam de ser a narrativa de suas descobertas e convertem-se em reflexões acerca de seus usos. A abordagem assim concebida, por sua vez, transforma-se em importante testemunha contra uma representação reificada da nação ao possibilitar uma indexação de eventos que confirmam a natureza histórica da nação. A imbricação entre a história aqui praticada e a teoria que lhe dá substância se revela recíproca. O estudo de Pablo Buchbinder, da Universidad de Buenos Aires, sobre Paraguai é emblemático disso, pois captura na indecisão em estabelecer-se como república ou província as dificuldades de autodeterminação enfrentadas por uma individualidade próxima o bastante a Buenos Aires para estar em sua esfera de influência, mas distinta o suficiente para não ser por ela absorvida.
A aglomeração das várias histórias nacionais no espaço de experiência latino-americano é o segundo ponto de interesse decorrente do pressuposto teórico da nação como construção. A justaposição dos casos individuais confere ao livro muito de sua força explicativa e permite que os casos específicos elucidem uns aos outros. A construção de si passa pelo reconhecimento do outro; histórias como as aqui escritas precisam necessariamente superar as fronteiras nacionais, com as quais seus objetos nem sempre coincidiram.
Alguns nomes se prestam mais que outros para exemplificar essas relações transnacionais. Os assumidos pelas repúblicas construídas no antigo território da Gran Colombia estão entre os mais úteis para sublinhar o papel do outro na definição de si. Venezuela foi, de acordo com Dora Dávila Mendoza, da Universidad Católica Andrés Bello (Caracas), uma identidade em cuja construção a percepção de si esteve informada pela presença do outro. A indeterminação histórica da formação de um território venezuelano, em mais de uma ocasião englobado por outros nomes (designado, por um momento, como parte do vice-reino de Nova Granada; e, em outro, como componente da Gran Colombia) orientou parte significativa da produção historiográfica do país.
Aimer Granados, do México, dá conta de como o pensamento político de Bolívar expressava-se exemplarmente no nome Colombia, que engendrava um projeto de superação das identidades locais através da grande pátria americana. A Gran Colombia foi o corolário desse desejo, um projeto de nação que incluía os atuais territórios de Equador, Venezuela e Colômbia. Mesmo após seu esfacelamento o nome persistiu, herdado pelo antigo vice-reino de Nova Granada; se a república que hoje existe neste antigo território herda seu nome do sonho falido de Bolívar é porque houve um esforço consciente por parte de uma elite para inventar uma tradição. O autor relata que, no momento da emancipação, o termo Nova Granada possuía mais potencial aglutinador que o termo sobrevivente.
A influência da alteridade na formação da individualidade nacional segue relevante, mas de forma surpreendente, na história por trás do nome adotado pela outra entidade política que surgiria com a derrocada da Gran Colombia. Ana Buriano, do Instituto Mora, México, relata como Equador, que foi um nome usado para se referir ao território após as missões científicas francesas de 1736 destinadas a estabelecer a forma exata da Terra, significou a possibilidade de consenso entre as rivais Guayaquil, Quito e Cuenca. Historicamente neutro, o nome permitiu que o território construísse sua identidade sem que uma das partes se impusesse sobre a outra.
O caso mais emblemático da presença da alteridade na formação do eu nacional, porém, está nos artigos dedicados aos países que compartilham a ilha de São Domingos. O historiador porto-riquenho Pedro L. San Miguel defende que o nome República Dominicana representa uma ruptura com os governos de Espanha e Haiti, de quem a comunidade esteve próxima em outros momentos. Abandonando o São Domingos colonial, a nação se marcava como república independente e, ao mesmo tempo, evocava o antigo nome espanhol como forma de se diferenciar do vizinho, tônica forte na construção de sua identidade. O passado do nome Haiti, que para os taino, habitantes originais, significava toda a ilha, foi questionado no marco desse desejo de oposição. Quisqueya foi a alternativa encontrada pelos dominicanos, chegando a constar do hino nacional, embora seja considerado exemplo de revisionismo politicamente enviesado.
Interessantemente, Guy Pierre, professor de História Econômica da Universidad Autónoma (México), dirá que as fontes não permitem afirmar que a ilha se chamava Ayiti, embora exista um virtual consenso sobre o assunto. Mais importante para ele, porém, são os conteúdos de futuro e passado que podemos depreender do batismo. Dessalines, ao escolher o nome taino, expressava uma ruptura com a Saint Domingue escravista e apontava para um porvir de liberdade, significado informado também pela referência ao momento pré-colombiano, e, portanto, anterior ao cativeiro.
Os nomes e os batismos foram, no pós-independência latino-americano, ferramentas comumente usadas para marcar novos começos. Jesús Aguilar, da Pontifícia Católica do Peru, nos traz um exemplo capaz de mostrar que os nomes não servem somente para fundar novas eras. O termo Peru, mantido na passagem do vice-reino à república independente, é lido aqui como expressão do desejo de continuidade, o que nos demonstra como elites locais encontraram valor justamente no caráter inercial da palavra. O termo se confundia com o momento da colônia. Seu conteúdo temporal sugere um futuro idêntico ao passado, alimentado pela memória de levantes de nativos.
O tema indígena é um dos principais enfoques dos trabalhos dedicados aos termos Bolívia e México. O trabalho de Esther Aillón, da Universidad de San Andrés (Bolívia), faz astutas observações acerca da existência de uma identidade organizada ao redor do imaginário inca que conferiu capacidade de atuação e espaço de pertencimento a um setor da população não contemplado no projeto nacional boliviano. Uma das contribuições da história dos nomes para o estudo das identidades é a possibilidade de mapearmos o arraigamento destas a partir da verificação da adoção daqueles. É por este mecanismo que a autora demonstra a importância da experiência da Guerra do Chaco (1932-1935) para que uma integração fosse observada.
O caso mexicano é notadamente distinto, pois o mesmo dispositivo nos mostra que, em vez de marginalizada, a memória do passado pré-colombiano foi um eixo aglutinador. É único também no contexto da obra, que lhe dedica dois artigos, suficientemente distintos para que ambos tenham contribuições a oferecer. Dorothy Tanck de Estrada parte da reação crioula a uma crítica do século XVIII, feita à vida intelectual mexicana – palavra aqui entendida em seu sentido original, referente à cidade do México – e inicia uma reflexão acerca da expansão das fronteiras do termo a partir daí. O trabalho de Alfredo Ávila, da Universidad Autónoma, por sua vez, evidencia a natureza histórica da atual composição territorial do país. Sua tese assenta na percepção de que os mesmos nomes foram, por diversas razões, compartilhados por regiões diferentes. México engendrava tanto a cidade capital do vice-reino quanto a região sob sua influência. Nova Espanha, por sua vez, tinha tantas formas quanto tinha facetas a soberania do vice-rei. Estava definida pelo alcance de sua autoridade, que era variável nas diferentes esferas em que ele a exercia.
Similar à Gran Colombia até onde também representa uma resposta agregadora à emergência das soberanias locais, o nome Centroamerica nos é apresentado pela costa-riquenha Margarita Silva Hernández como conceito histórico-político, diferenciando-se de América Central, que designa um espaço geográfico. A autora nos traz a importância de um na composição do outro, o que integrou as características de seu espaço no caráter de sua identidade. Para ela, o feitio de istmo significou a compreensão do território como passagem. Entre o mundo inca e o asteca. Entre o Atlântico e o Pacífico.
O estudo dedicado a Chile é outro que olha para a influência de uma percepção do espaço na formação da nação e de sua organização política. Visto primeiro como ermo e hostil, e depois como “cópia feliz do Éden”, o território entre os Andes e o Pacífico, limitado ao norte pelo Atacama, teve desde os primeiros momentos da emancipação quem quisesse dar forma política às suas fronteiras geográficas. A realidade do nome como ponto nodal permite que Rafael Baeza, da PUC do Chile, reúna na mesma narrativa esta dimensão, características da identidade do país, visto como estável e ordenado, e a da política, percebida como autoritária e centralista.
José Murilo de Carvalho, o brasileiro convidado para a coleção, tira também proveito do caráter do nome como espaço de encontros e sugere, na interação das imagens religiosas (Ilha de Vera Cruz; Terra de Santa Cruz), exóticas (Terra dos Papagaios), econômicas (Brasil), temporais (mundus novus; realização do império futuro português), a formação de uma identidade ressentida de seu passado. Os nomes se prestam a revelar essa mágoa; a prevalência do nome de uma madeira vulgar e o abandono dos que faziam referência à religião é vista como causa da decadência do país. Similarmente, a tentativa de encontrar na mítica Hi-Brazil, ilha fantástica do imaginário europeu medieval, uma nova raiz para o nome da nação, é, segundo o autor, declaradamente um esforço para estabelecer uma origem “mais agradável ao espírito e ao coração dos brasileiros”.
Os artigos dedicados a Puerto Rico e Cuba desenvolvem descrições bem embasadas de trajetórias interessantes – Rafael Rojas, do Centro de Investigación y Docencias Económicas (México) nos descreve as diferenças de pertencimento entre pátria e nação para o caso cubano e como uma deu lugar à outra. As porto-riquenhas Laura Náter e Mabel Rodriguez Centeno falam sobre as peculiaridades de uma identidade desenvolvida numa unidade política como Puerto Rico, descrita aqui como uma nação sem Estado. As autoras fazem também uma avaliação dos significados de resistência que as diferenças entre Porto Rico e Puerto Rico (bem como entre porto-riquenho e puerto-riquenho) engendrou. O artigo revela desafios específicos à tradução de uma obra desta natureza, que requer atenção a diferenças importantes entre terminologias por vezes similares. O trabalho de tradução de João Ribeiro demonstra sensibilidade nesse quesito e preserva os termos originais quando substituí-los constituiria prejuízo para o texto.
Embora o livro contenha certa desigualdade qualitativa entre os capítulos, o que é habitual em obras coletivas, Criar a Nação revisita temas fundamentais de maneira provocante e deixa a porta aberta para que o leitor encontre paralelos e contrastes capazes de sugerir novas discussões.
Numa famosa passagem de Romeu e Julieta em que reflete sobre a desimportância das palavras diante da realidade ontológica das coisas, a protagonista imagina que uma rosa não teria um perfume diferente se tivesse outro nome. O trecho aparece como epígrafe em Criar a Nação, retoricamente apresentado para que sua premissa seja desmontada. A própria narrativa de Shakespeare desmentiria Julieta, afinal, vítima que foi da história do nome de sua família. Agregamos que o que diferencia “Capuleto” de “rosa” é o conteúdo histórico do primeiro. Existem nomes que integram categorias e nomes que marcam individualidades. Criar a Nação apresenta um caso convincente da importância destes últimos para o historiador: como possibilitadores de projetos, como facetas de identidades, como vestígios por estudar.
Pedro Henrique Falcão Sette – Graduado em História pela Universidade Federal de Pernambuco.
CHIARAMONTE, José Carlos; MARICHAL, Carlos; GRANADOS, Aimer (Orgs). Criar a Nação: História dos Nomes dos Países da América Latina. Trad. João Ribeiro. São Paulo: Hucitec, 2017. Resenha de: SETTE, Pedro Henrique Falcão. As nações e seus nomes: invenção de entidades e identidades nas emancipações latino-americanas. Almanack, Guarulhos, n.16, p. 365-371, maio/ago., 2017. Acessar publicação original [DR]
“Tempo bom, tempo ruim: identidades, políticas e afetos” | Jean Wyllys
Não é novidade iniciar esse texto falando do momento assombroso pelo qual atravessamos, no Brasil e no mundo, onde a democracia representativa aparece em plena derrocada e as noções de Direitos Humanos, universais e fundamentais, presenciam uma verdadeira guerra de narrativas. Época onde a humanidade parece mais uma locomotiva desgovernada que se dirige rapidamente a um futuro que, de tão incerto, amedronta qualquer um que se proponha a pensar nas lições advindas da própria história, presenciamos o florescimento de espaços fugindo à regra. O mandato de Jean Wyllys, Deputado Federal pelo Psol do Rio de Janeiro, é um destes espaços.
Autor de “Tempo bom, tempo ruim: Identidades, políticas e afetos”, publicado em 2014 pela editora Paralela, Jean Wyllys de Matos Santos parece um sujeito que teima em nadar contra a correnteza. Seu livro é um relato da sua trajetória, construída sobre pilares sólidos, fincados no sertão da Bahia, onde a fome foi uma experiência real de inúmeras famílias, incluindo-se a sua. Composto de quarenta e dois textos, a obra se divide em “tempos de vida” e “tempos de luta”, não para marcar espaços distintos, mas sim para apresentar os entrecruzamentos de ambos. Logo no início, Jean afirma que sua vida foi uma luta cuja primeira batalha foi travada com a desnutrição. Leia Mais
Tempo bom, tempo ruim: identidades, políticas e afetos | Jean Wyllys
Em entrevista a Antônio Abujamra em 2013, o Deputado Federal pelo PSOL – Partido Solcialismo e Liberdade – do Rio de Janeiro, Jean Wyllys, afirmou que sua ida para o programa Big Brother Brasil, da Rede Globo em 2005 foi resultado das leituras que fez sobre as ideias do italiano Antonio Gramsci, acerca do posicionamento estratégico dentro do sistema: “mudar de dentro”. Importa afirmar que Gramsci foi um combatente contra o avanço do fascismo na Europa da primeira metade do século XX e elaborou uma espécie de manual sobre como o enfrentamento das questões e contradições da sociedade capitalista podem ser encaradas. Ao sujeito que se coloca na luta (ou na militância) dentro de um partido político ou outra instituição de cunho engajado, deu o nome de intelectual orgânico. Mal poderia imaginar o grande filósofo que, décadas depois de tombar na batalha, o fascismo ainda seria o inimigo a ser vencido. Leia Mais
Angola-Portugal: Representações de Si e de Outrem ou o Jogo Equívoco das Identidades | Arlindo Barbeitos
Resenhar um livro com essa densidade e pormenorização é tão difícil quanto traçar o perfil do autor pois este assume diversas facetas: o intelectual, o professor, o investigador, o nacionalista, o politico, o cidadão, que se resume numa única característica: o profissional. E é com profissionalismo, mas igualmente com muito empenho, dedicação e persistência que Arlindo Barbeitos escreveu a presente obra, pois de outro modo não seria possível empreender essa tarefa com tal densidade de pormenorização. Abordar temas ainda muito sensíveis para a sociedade angolana e portuguesa, como a raça, a miscigenação e todas as conotações daí resultantes, analisar obras essencialmente portuguesas, mas que representam os angolanos da altura (período colonial), parece-nos à partida, uma missão inglória, na medida em que se torna fundamental ter um excelente domínio da história dos dois países, assim como da relação entre os diferentes acontecimentos ocorridos nos dois lados do Atlântico. Leia Mais
Estudos Feministas e de Gênero / Cristina Stevens, Susane R. Oliveira e Valeska Zanello
Entre os dias 28 e 30 de maio de 2014 foi realizado na Universidade de Brasília (UnB) o II Colóquio de Estudos Feministas e de Gênero: Articulações e Perspectivas. O evento, de caráter interdisciplinar, recebeu pesquisadoras/es de diversos lugares do país e contou com a apresentação de inúmeros trabalhos que tem como foco as mulheres, os feminismos, a sexualidade, as identidades e relações de gênero. Os trabalhos apresentados por professoras/es e pesquisadoras/es doutoras/es nas sessões de conferência e mesas redondas foram selecionados, avaliados e reunidos em um livro digital, organizado pelas professoras Cristina Stevens, Susane Rodrigues de Oliveira e Valeska Zanello. Este livro, intitulado Estudos Feministas e de Gênero: Articulações e Perspectivas, lançado em 2014 pela Editora Mulheres de Santa Catarina, contou também com o apoio da CAPES, da Universidade Livre Feminista e do CFEMEA. A obra está disponível gratuitamente para download, em formato PDF, no site do CFEMEA e do Colóquio (www.coloquiofeminista2014.com).
A realização desse Colóquio e, consequentemente, a publicação dessa obra, evidenciam que os questionamentos feitos pelos movimentos sociais continuam em vigor. Ao conquistar espaço no universo acadêmico, as reivindicações feitas por ativistas e simpatizantes encontram a oportunidade de não apenas contestar o que ocorre nas ruas e na vida cotidiana, mas também o que ocorre dentro das Universidades. Dessa forma, são apresentados novos pontos de vista e novos saberes que certamente contribuirão para a renovação das ciências. Os textos reunidos nessa coletânea seguem a tendência da intersecionalidade ao trabalhar, também, com questões raciais e de classe, tão discutidas atualmente pelos feminismos. Segundo as próprias organizadoras,
A surpreendente conclusão que podemos tirar a partir da leitura desses textos multifacetados é a de que as perspectivas feministas e de gênero nas produções acadêmico-culturais são bastante diversas em suas articulações com questões de raça, etnia, geração, sexualidade, religião, classe, dentre outras. Os textos que integram este livro incorporam novos idiomas críticos, visões políticas e ferramentas teórico-metodológicas na abordagem do binômio Feminismos-Gênero em áreas diversas como Antropologia, Artes, Cinema, Direito, Educação, Filosofia, Física, História, Literatura, Psicologia, Publicidade e Sociologia. Sem dúvida, os trabalhos são testemunhos positivos do dinamismo promissor desta relativamente recente área de estudos, experiências e práticas acadêmico-culturais [1].
O livro apresenta quarenta e sete capítulos e está dividido em sete partes, sendo elas: 1) Perspectivas feministas na pesquisa acadêmica; 2) Corpo, violência e saúde mental; 3) Mulheres e literatura: do medievo à contemporaneidade; 4) Educação, ciência e diferenças de gênero; 5) Imagens, cinema, mídia e publicidade; 6) Ações, direitos e políticas; 7) Identidades, experiências e narrativas.
A primeira parte da obra apresenta os textos de cinco conferencistas brasileiras que possuem larga experiência de pesquisa e produção intelectual feminista, são elas Débora Diniz, Susana Funck, Tania Swain, Sônia Felipe e Sandra Azerêdo. Débora Diniz apresenta as “Perspectivas e articulações de uma pesquisa feminista”. A autora defende que o gênero é um regime político que encontra na família sua instituição reprodutora e cuidadora. Diniz também recupera o conceito de patriarcado tratando-o como uma tecnologia moral. Segundo ela, é possível retomar esse conceito e ser sensível “às expressões locais de sua governança pelo presente histórico” [2]. Com isso, a autora propõe que toda pesquisa sobre gênero será feminista, uma vez que tal empreendimento é capaz de desafiar o regime político de sexagem dos corpos.
Susana Funck fala dos desafios atuais dos feminismos, com ênfase nos estudos literários e culturais e suas influências em outros campos do saber. Desse modo, a autora ressalta que, embora, muitas das agendas feministas já estejam incluídas nos estudos acadêmicos e nos movimentos sociais de grande parte das nações contemporâneas, suas metas de igualdade e diversidade ainda estão longe de serem alcançadas. Nesse sentido, observa que um dos maiores desafios talvez seja o de desmistificar a prática feminista como uma unanimidade monolítica e fazer valer as várias facetas da categoria gênero, perpassadas como são por vetores de raça, classe, nacionalidade, sexualidade, faixa etária e tantas outras diferenças.
A historiadora Tania NavarroSwain, em seu texto “Por falar em liberdade…”, analisa os dispositivos que se colocam em ação para sustentar a diferença sexual, os chamados subsistemas constitutivos do patriarcado. Segundo a autora, a diferença sexual, que é implantada no imaginário ena materialidade de corpos sexuados, constitui motor de ação patriarcal e exercício de poder. Assim, destaca que o patriarcado se impõe pela violência, pela persuasão/amor e por uma sexualidade que se impõe como centro identitário e de significação do ser.
A filósofa Sônia Felipe apresenta uma importante reflexão sobre o feminismo antiespecista. Nesse caso, o termo “especismo” pode ser compreendido como similar ao “machismo” e ao “racismo”. O termo foi elaborado pelo cientista e filósofo inglês Sir RichardRyder ainda o século XX para descrever a discriminação e exploração perpetradas pelos seres humanos contra outros animais sencientes. Para Ryder, usar, “abusar, explorar e matar animais para consumo e divertimento humano é uma forma de posicionar os seres humanos acima de todos os animais e de alimentar o padrão machista e racista que rege as relações de poder entre os humanos”. Por fim, Sônia Felipe propõe como opção ética uma perspectiva ecoanimalista do feminismo, afinal “Os machistas tratam as mulheres de forma especista: como animais. E as mulheres, incorporando e emulando o mesmo especismo, tratam os animais como matéria destituída de espírito, portanto, inferiores” [3].
Já a psicóloga Sandra Azeredo, no texto “O que é mesmo uma perspectiva feminista de gênero?”, destaca que o gênero, como uma categoria central na teorização feminista que problematiza as noções de sexo e sexualidade, tem necessariamente que incluir outras categorias, especialmente a categoria raça, em suas teorizações, de modo a contribuir para práticas de emancipação. No encerramento do texto a autora ressalta que
(…) uma perspectiva feminista de gênero significa partir da igualdade, nos abrindo para o encontro com as outras pessoas (inclusive os animais não humanos), com respeito, nos rendendo, mútua e voluntariamente, aos ditames da intersubjetividade [4].
A segunda parte do livro reúne os textos de Érica Silva, Gislene Silva, Valeska Zanello, Ionara Rabelo, Marcela Amaral, Ana Paula de Andrade, Gláucia Diniz e Cláudia Alves. Trata-se de estudos desenvolvidos no campo da psicologia e da literatura, sobre a saúde mental feminina. No texto “Gênero e loucura: o caso das mulheres que cumprem medida de segurança no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios”, Érica Silva analisa os casos de dezesseis mulheres que cumprem medida de segurança no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. A autora destaca a prevalência de mulheres pobres, de baixa escolaridade, negras e pardas que estão sob a tutela do Estado. Por terem algum transtorno mental –geralmente em decorrência do uso de álcool e/ou drogas –, elas são consideradas inimputáveis ou semi-inimputáveis pela Justiça e destinadas à Ala de Tratamento Psiquiátrico localizada na Penitenciária Feminina do Gama, ou ao tratamento ambulatorial na rede pública e privada de saúde. Silva faz importantes questionamentos sobre o tratamento dado a essas mulheres que se encontram em um contexto de marginalidade e invisibilidade na sociedade brasileira. Por sua vez, o texto de Ana Paula de Andrade tem o objetivo de problematizar os atravessamentos das questões de gênero na política pública de saúde mental em seus diferentes níveis. Já o texto “Saúde mental, mulheres e conjugalidade”, de Valeska Zanello, ao tratar do caso clínico de uma mulher internada em um hospital psiquiátrico, cujo sintoma que se destacou foi “choro imotivado”, busca apontar o que a chancela do diagnóstico psiquiátrico “depressão” escondia.
A terceira parte, “Mulheres e literatura: do medievo à contemporaneidade”, reúne textos de Cíntia Schwantes, Cristina Stevens, Janaina Gomes Fontes, Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne, Virgínia Maria Vasconcelos Leal, Wiliam Alves Biserra e Nadilza Martins de Barros Moreira. O texto de Cristina Stevens avança, especialmente, no debate e reflexão sobre as representações literárias da violência contra as mulheres; focalizando a mudança radical de tratamento desta temática na contemporaneidade, quando as mulheres assumem a posição de sujeito dessas construções ficcionais e abordam o tema da violência como consequência da injusta dominação masculina na produção do conhecimento. Sobre as mulheres na literatura, Nadilza Moreira tece um esboço comparativo entre as obras de Nísia Floresta e Júlia Lopes de Almeida, ambas reconhecidas pelo pioneirismo na luta feminista ainda no século XIX. Em seu trabalho, Moreira vai elucidar que diversas mulheres do Brasil oitocentista se dedicavam à atividade intelectual e à escrita, inclusive resistindo às campanhas contrárias dos homens escritores que temiam a concorrência. Ao concluir, Moreira faz uma provocação: que mulheres como Nísia Floresta e Júlia Lopes de Almeida continuem sendo redescobertas pela Academia, pois elas “aguardam por mentes laboriosas, por pesquisadores desafiadores que queiram lhes dar a devida relevância, para colocá-las visíveis nas prateleiras da contemporaneidade” [5].
A participação feminina na educação e as questões de gênero nas ciências, especialmente nas disciplinas de física e história, são exploradas na quarta parte do livro. Diva Muniz, no texto “Memórias de uma menina bem comportada: sobre a experiência da alfabetização e a modelagem das diferenças”, apresenta uma análise de suas próprias experiências vividas na infância, nos anos cinquenta, no processo de alfabetização. Muniz revoluciona a narrativa historiográfica ao se colocar como sujeito da própria história, utilizando a própria memória para fazer considerações sobre todas as “tecnologias de gênero” que estiveram presentes em sua vida, bem como as formas de subversão e resistência à própria realidade. Assim escreve a autora,
Submetida a esse processo de disciplinarização escolar, fui sendo “fabricada” como menina educada e aluna aplicada aos estudos. Apesar e por conta desse processo, também me produzi como pessoa crítica, questionadora e independente e até mesmo impertinente. Afinal, somos assujeitadas às prescrições sociais e escolares, mas nunca de modo pleno: resistimos, negociamos, agenciamos outros termos, condições, posições e alianças; fazemos escolhas e recusas na constituição de nossas histórias e na configuração de nossas subjetividades [6].
Valéria Silva, com base nas teorias feministas, analisa as representações das mulheres nos livros didáticos escolares. Por sua vez, Susane Oliveira trata de questões relacionadas à inclusão da história das mulheres nos currículos escolares, atentando para as demandas dos movimentos feministas e delineando algumas propostas para a efetivação dessa inclusão, tendo em vista o potencial educativo da história das mulheres na promoção da cidadania e igualdade de gênero. A autora aponta que, para os avanços existentes ocorrerem, como no caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), foi necessária a mobilização dos movimentos sociais no processo. No caso do ensino da história,
Tais mudanças, somadas às inovações que ocorreram na historiografia e nas tendências pedagógicas na segunda metade do século XX, impuseram à história, enquanto disciplina escolar, um papel fundamental no reconhecimento e valorização das identidades e memórias de diferentes grupos sociais, especialmente daqueles que haviam sido marginalizados e/ou silenciados nos discursos históricos tradicionais, como as mulheres, os jovens, os trabalhadores, as crianças, os idosos, as etnias e minorias culturais [7].
Patrícia Lessa analisa os escritos da educadora Maria Lacerda de Moura, produzidos na primeira metade do século XX, cujas ideias sobre a libertação das mulheres e dos animais não humanos é bastante atual. O texto de Ademir Santana analisa a participação masculina no movimento feminista a partir de experiências na Física. Já Adriana Ibaldo versa sobre a desigualdade de gênero nas ciências exatas e a dificuldade que as mulheres precisam enfrentar para permanecerem na área. A autora apresenta dados sobre a produtividade feminina na física, que ainda é tímida –entre 6% e 25% –e relembra as situações cotidianas que podem levá-las à interrupção da carreira nos mais diversos níveis, como o machismo arraigado em ambientes majoritariamente masculinos e o estereótipo de que mulheres são inaptas às ciências exatas. Para a transformação desse cenário, a autora propõe medidas que incentivem o ingresso de jovens alunas aos cursos de física, como o projeto Atraindo meninas e jovens mulheres do Distrito Federal para a carreira em física, financiado pelo CNPq com foco em estudantes do Ensino Médio da rede escolar.
A quinta parte do livro, “Imagens, cinema, mídia e publicidade”, reúne oitos textos. O primeiro, de Maria Pereira analisa imagens de mulheres artistas no ocidente medieval. O texto de Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro dedica-se às representações imagéticas de mulheres negras no Brasil oitocentista em “Corpos negros no/do feminino em três movimentos: um exercício de (des) construção” analisando três imagens da época: duas fotografias e um quadro. Em seu trabalho, Carneiro tece importantes considerações sobre a intersecionalidade entre gênero e raça e como os corpos das mulheres negras eram representados no século XIX. Suas palavras elucidam que no interior dessa maquinaria “política ocidental corpos negros e cativos exibem marcas de sexo-gênero e de raça, extraídas e significadas como diferenças construídas na arquitetura da dominação do patriarcado escravocrata” [8]. Os textos de Liliane Machado, Mônica Azeredo e Sulivan Barros analisam as perspectivas de gênero nas produções audiovisuais (filmes e documentários). Os textos de Sandra Machado, Ana Veloso e Cynthia debatem os processos sociais engendrados pela publicidade e propaganda que tornam as mulheres imagens-espetáculo, fetiches e objetos de consumo, impondo padrões de comportamento e preconceitos socioculturais que esvaziam o sentido político das contestações dos grupos feministas.
A sexta parte do livro apresenta seis textos que versam sobre direitos e políticas públicas para as mulheres, desenvolvidos pelas/os autoras/es Ela Wiecko, Soraia da Rosa Mendes, Wanda Miranda Silva, Camila de Souza Costa e Silva, Lourdes Maria Bandeira, Tânia Mara Almeida, Carmen Hein de Campos, Ana Liési Thurler, Sônia Marise Salles Carvalho, Nelson Inocêncio, Umberto Euzébio e José Zuchiwschi. Os textos, das oito primeiras autoras, abordam, teórica e empiricamente, estratégias atuais de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres brasileiras, a partir de um campo interdisciplinar de conhecimentos científicos, redes interinstitucionais e movimentos sociais. São discutidas abrangências e limitações na aplicação da Lei Maria da Penha frente a paradigmas, valores e práticas fundadas em representações sexistas, bem como em identidades essencializadas e referenciadas pela articulação de múltiplas desigualdades (grupos de mulheres indígenas, pobres, negras, dentre outros). Já o texto de autoria dos quatro últimos autores/as, mencionados acima, trata da proposta da Universidade de Brasília na criação da Diretoria da Diversidade no Decanato de Assuntos Comunitários, que propõe reforçar o direito à diferença e o respeito à diversidade na comunidade acadêmica.
Já a sétima e última parte da obra, intitulada “Identidade, experiências e narrativas”, reúne os textos de Águeda Aparecida da Cruz Borges, Juliana Eugênia Caixeta, Lia Scholze, Maria do Amparo de Sousa, Lia Scholze, Cláudia Costa Brochado, Gilberto Luiz Lima Barral e Tania Swain. O texto de encerramento, “Histórias feministas, história do possível”, de Tania Navarro Swain expõe uma crítica às narrativas historiográficas que muitas vezes silenciam e excluem a participação feminina na história. Sua proposta se baseia em resgatar as histórias que, apesar de possuírem vestígios materiais e simbólicos, foram negligenciadas pelos historiadores. Segundo ela, esses profissionais “enclausurados em um imaginário androcêntrico, não conseguem pensar e nem ver aquilo que se abre à pesquisa, um mundo onde o feminino atuava como sujeito político e de ação” [9].
Enfim, a obra Estudos feministas e de gênero: articulações e perspectivas reúne uma amostra bastante significativa da produção intelectual feminista que vem se desenvolvendo nas universidades brasileiras, nas mais diversas áreas de conhecimento. Trata-se de uma produção reveladora da dimensão política dos estudos feministas e de gênero, que contribui não só na denúncia e crítica às desigualdades de gênero presente nos mais diversos espaços sociais, mas também na renovação dos saberes, oferecendo novos horizontes de expectativas à produção científica.
Notas
- STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Estudos Feministas e de Gênero: Articulaçõese Perspectivas. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2014, p. 9.
- DINIZ, Débora. Perspectivas e articulações de uma pesquisa feminista. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 12.
- FELIPE, Sônia. A perspectiva ecoanimalista feminista antiespecista. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 59.
- AZEREDO, Sandra. O que é mesmo uma perspectiva feminista de gênero? In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 84.
- MOREIRA, Nadilza Martins de Barros. Os manuais femininos/feministas de Júlia Lopes de Almeida dialogam com “(…) uma alma brasileira” de Nísia Floresta: esboço comparativo. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 249.
- MUNIZ, Diva do Couto Gontijo. Memórias de uma menina bem comportada: sobre a experiência da alfabetização e a modelagem das diferenças. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 260.
- OLIVEIRA, Susane Rodrigues de. Ensino de história das mulheres: reivindicações, currículos e potencialidades pedagógicas. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 260.
- CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro. Corpos negros no/do feminino em três movimentos: um exercício de (des)construção. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 356.
- SWAIN, Tânia Navarro. Histórias feministas, história do possível. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 613.
Ana Vitória Sampaio Castanheira Rocha – Doutoranda em História na Universidade de Brasília.
STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Estudos Feministas e de Gênero: Articulações e Perspectivas. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2014. 620p. Resenha de: História histórias. Brasília, v.2, n.4, p.200-206, 2014. Acessar publicação original. [IF]
Identidades e fronteiras no medievo ibérico | Fátima Regina Fernandes
A obra Identidades e Fronteiras no Medievo Ibérico, coordenado pela professora doutora Fátima Regina Fernandes, é fruto de estudos conjuntos realizados pelos pesquisadores do Núcleo de Estudos Mediterrânicos – NEMED – vinculado à Universidade Federal do Paraná e o grupo Espai, Poder e Cultura da Universidade de Lérida, apoiado por instituições de fomento brasileiras e espanholas. Como expresso pelo título do livro, o tema que perpassa todos os capítulos relaciona-se com formação de identidades e fronteiras nos espaços ibéricos nos séculos VII a XV, interesse haurido de reflexões contemporâneas a cerca de temas que tocam o Ocidente Medieval.
Em contexto de globalização, o interesse do presente estudos surge a partir do questionamento das fronteiras e identidades atualmente estabelecidas, seja entre instituições ou mesmo entre grupos de indivíduos, o que exige um exercício de reflexão em torno da utilização de concepções da atualidade para pensar em questões específicas à medievalidade ibérica, o que exige aos pesquisadores um esforço em evitar possíveis anacronismos. Leia Mais
Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil / Marcos Maio
Raça como questão reúne um conjunto de textos que analisam a problemática racial no Brasil, desde o século XIX até os dias atuais. Como os próprios organizadores afirmam na apresentação do livro, “tratam de temas variados e contextos diversos desde os debates sobre as interrelações entre identidade nacional e raça no fim do século XIX até as presentes vinculações de raça com as tecnologias genômicas”.1 Isso nos permite entender o fio temático dos textos, não obstante possam ser lidos isoladamente.
Para Jean-François Véran, no prefácio à obra, “o conceito de raça [é colocado] na interface entre os três domínios nos quais ele vem sendo elaborado historicamente”,2 quer seja o domínio científico, a dimensão política e o plano social. Decerto, o grande valor de Raça como questão não é somente instigar o leitor a participar da discussão sobre o entendimento de “raça” na dinâmica histórica, mas também compreender como esse conceito é formulado nos âmbitos da ciência, da política e do social.
O primeiro capítulo, “Entre a Riqueza Natural, a Pobreza Humana e os Imperativos da Civilização, Inventa-se a Investigação do Povo Brasileiro”, de Jair de Sousa Ramos e Marcos Chor Maio, serve como uma espécie de introdução, pois contextualiza os primórdios da apropriação do conceito europeu de raça pelos intelectuais brasileiros, na segunda metade do século XIX e início do século XX. Esse fato não estava dissociado do que se entendia por civilização, cujo eixo central era a Europa em relação à periférica América Latina.
Nesse período do pensamento ocidental, em que a ideia bipolar do mundo era suficiente para explicar a realidade, havia um projeto de dominação no plano político, ao lado de certo desinteresse em desvendar cientificamente a origem do homem. Nesse sentido, criou-se por parte de escritores europeus a explicação a cerca do “povo” brasileiro, a partir da noção de “natureza exuberante versus raça deficiente”.3
Influenciados pelo pensamento europeu, intelectuais brasileiros tentaram, paradoxalmente, formular uma ideia positiva de civilização brasileira. É com esse ponto de vista que irá se desenvolver a argumentação do primeiro capítulo de Raça como questão. Foi no século XIX que essa ideia ganhou maior expressividade, tendo como apoio teórico “os determinismos climáticos e raciais”, bem como “a ideia de evolução”.4 Tanto o meio físico quanto a raça se tornaram elementos importantes para o cientificismo determinista, que defendia não somente as diferenças entre os povos, mas, sobretudo a hierarquia entre eles. Como informam os autores do texto em apreço:
Assim, a suposta hierarquia racial entre os homens era tomada como expressão de um movimento evolutivo da espécie humana, evolução essa definida pela sobrevivência dos mais aptos e que explicaria o porquê da expansão europeia em todo o globo terrestre e seu domínio sobre outros povos.5
Nesse sentido, Jear de Sousa Ramos e Marcos Chor compreendem que a noção de clima e raça migra do âmbito da ciência para as relações políticas, que, naquela época, reconfiguravam-se a partir do olhar que os europeus tinham, principalmente, sobre a América. A partir daí, criou-se uma imagem pejorativa do Brasil, cuja argumentação principal estava na “população atrasada em termos evolutivos”.6 Entretanto, o texto problematiza a questão, quando põe em evidência os motivos pelos quais as ideias evolucionistas europeias “tiveram ampla aceitação entre intelectuais e políticos latino-americanos”, cuja resposta a essa questão se encontra nas “relações entre centro e periferia desenvolvidas entre Europa e América Latina”.7
Foi durante a Independência do Brasil que “as teorias raciais vão ganhar importância”, devido ao objetivo do país de estabelecer-se como uma nação civilizada, com povo homogêneo. Com a República, encontra-se um espaço mais favorável às teorias deterministas, haja vista que ela “motivou o aparecimento de um novo conjunto de representações sobre a identidade brasileira”.8
Com objetivo de compreender melhor a maneira pela qual os intelectuais brasileiros lidavam com essa questão, os autores discutem o pensamento de três escritores da segunda metade do século XIX e início do século XX, quer seja Sílvio Romero, Raimundo Nina Rodrigues e Euclides da Cunha. Estes intelectuais, embora tenham dialogado com as teorias raciais europeias, interpretaram cada um a seu modo, o Brasil da época como um lócus onde seria possível um avanço social e político, no sentido de nação civilizada.
No segundo capítulo de Raça como questão, intitulado “Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil”, propõe-se uma interpretação diferente da que Sidney Chalhoub desenvolve sobre o pensamento higienista do século XIX. Este no capítulo “Febre Amarela”, do livro Cidade febril (1996), defende o ponto de vista que, durante o combate à febre amarela nos séculos XIX e XX, havia uma postura racista e de classe social. Diferentemente, Marcos Chor Maio não concebe determinismo racial, mas uma “continuidade com o ideário neo-hipocrático do século XIX no Brasil”.9
Contextualizando os argumentos históricos de Chalhoub, Marcos Chor mostra-nos que, ao lado da defesa do branqueamento a favor de uma classe privilegiada, havia um conjunto diversificado de ideias que giravam em torno da questão social. Nem todos os intelectuais defendiam a mestiçagem como degenerescência e o branqueamento como a única solução para o progresso do Brasil. Para concluir seu ponto de vista, o autor cita Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freire, em que vê influência do neo-hipocratismo de Cruz Jobim.
Em “Mestiçagem, Degeneração e a Viabilidade de uma Nação”, Ricardo Ventura Santos analisa as investigações feitas por Baptista Lacerda (final do século XIX) e Roquette-Pinto. Ambos, segundo Ventura, posicionam-se favoravelmente à noção de uma mestiçagem não degenerativa. O que importa no debate sobre a questão racial posta em evidência é, sobretudo, a ambientação, o contexto e as condições sociais. O texto de Ricardo Ventura é significativo, pois revela certos intelectuais brasileiros que, não obstante dialogarem com as ideias evolucionistas em voga na época, souberam impor sua autonomia intelectual, numa tentativa de interpretar melhor a nação brasileira. O autor, enfim, desloca a postura bipolar dos fatos para alcançar uma visão mais próxima da complexa realidade.
Continuando o assunto sobre Antropologia no Museu Nacional, o capítulo quatro, de Raça como questão, “Crânios, Corpos e Medidas”, trata de refletir sobre o impacto e a projeção que as pesquisas desenvolvidas no Setor de Antropologia Biológica tiveram no contexto social e histórico brasileiro. A partir de estudos de instrumentos de medição de crânios, percebe-se um conjunto de teorias postas em prática com a finalidade de compreender a moral humana, levando em consideração elementos físicos e biológicos das raças.
Desde a década de 1950, os equipamentos de medição foram transformados em peças do Museu Nacional, mas continuam a representar o pensamento de intelectuais brasileiros que buscaram uma explicação antropológica para a população brasileira, numa certa época e contexto. Decerto, o capítulo em apreço busca despertar o leitor para a dinâmica da interpretação e dos conceitos sobre a realidade histórica.
Outro interessante capítulo é o “Estoque Semita: a presença dos judeus em Casa-Grande & Senzala”, de Marcos Chor Maio. Trata-se de uma releitura da obra de Gilberto Freyre, focalizando a presença “positiva dos judeus ao processo de colonização do Brasil”, em contrapartida com a “ideia que concebe a existência de uma proposta antissemita na obra do sociólogo pernambucano”.10
Com essa interpretação acerca das ideias freyreanas, que relacionam raça e cultura, Marcos Chor redimensiona Casa-Grande & Senzala no debate sobre a questão racial no Brasil. Atribui à referida obra certa importância e novo significado para o pensamento brasileiro, cuja projeção vem se tornando internacional. Observando o diálogo com as ideias de Roquette-Pinto, com a vertente culturalista de Franz Boas e com a perspectiva neolamarckiana, Marcos Chor analisa o avanço de Casa-Grande & Senzala a respeito das questões raciais no Brasil. No cerne dessa análise, está o judeu que contribui para a miscigenação do povo brasileiro. Sem desconsiderar os elementos culturais e ambientais, Gilberto Freyre põe em evidência conceitos chaves para o entendimento sobre os portugueses em “incorporar características de outros povos: adaptação, plasticidade e mobilidade”.11
Em “Cientificismo e Antirracismo no Pós-2ª Guerra Mundial”, Marcos Chor e Ricardo Ventura analisam a Primeira Declaração sobre Raça da Unesco e seus impactos para a comunidade científica, em 1950. A Unesco, com a intenção de resolver a problemática ocasionada pelo genocídio nazista, defendeu uma postura antirracista em tal declaração. Procura, pois, resolver um problema político e social, através da ciência. Por conta dessa abordagem cientificista, a Unesco sofreu severas críticas de biólogos, geneticistas e antropólogos físicos, o que a forçou a organizar um segundo encontro com especialistas. A fragilidade maior do discurso da Unesco, segundo os autores deste artigo, estava na controvérsia sobre o conceito de raça. As considerações acerca da declaração da Unesco são importantes, porque revelam não somente uma tentativa política por intermédio da ciência, mas sobretudo nos mostra que a problemática racial é mais complexa do que se pensava naquele momento.
Em seguida, o sétimo capítulo, cujo título é “Antropologia, Raça e os Dilemas das Identidades na Era da Genômica”, traz a discussão sobre raça, identidade, ciência e política para o contexto do início do século XXI. Constatou-se que, a partir de críticas feitas por grupos diferentes às pesquisas geneticistas realizadas sobre a população de Queixadinha, localidade ao norte de Minas Gerais, a complexa relação entre o conhecimento biológico e as políticas sociais ainda não esta devidamente compreendida. Ricardo Ventura e Marcos Chor, por isso, lançam uma série de questionamentos a fim de problematizar o modo como à construção de identidades culturais é observada tanto pela ciência como por grupos sociais que objetivam um lugar na sociedade.
A construção argumentativa desse capítulo resguarda a mesma imparcialidade e clareza dos textos anteriores de Raça como questão. Apresentam e contextualizam a temática. Depois, relatam o fato e o seu impacto para a sociedade. Finalmente, analisam temas antropológicos numa relação conflituosa com a biologia e a política. No caso do presente capítulo, são aprofundadas as discussões sobre o papel da “nova genética” e as políticas sociais acerca das questões de raça, no contexto atual. Integram esse debate temas como essencialismo, racismo, racialismo e identidade.
“No Fio da Navalha: raça, genética e identidades”, continuam a discussão a respeito das identidades raciais no contexto contemporâneo. Entretanto, o corpus agora se trata de um comercial de testes genéticos na Internet. Compreender até que ponto a biotecnologia e a utilização de testes de DNA interferem nas novas descobertas e quais são os seus impactos sociais e políticos hoje é a preocupação da análise feita pelos autores.
Nesse capítulo, depreende-se da conclusão dos autores o importante papel mediador da biotecnologia em “situações [que] nos falam de encontros, tensões e distanciamentos de pessoas consigo mesmas e com outras de seu entorno”,12 ou seja, as pessoas buscam se entender a partir de certa identidade, que se evidencia não só pelas semelhanças, mas também pelas diferenças. Isso fica percebido tanto no apelo comercial do site da empresa como na procura significativa de pessoas pelo serviço oferecido: o teste de ancestralidade genômica. Os resultados desse exame são, segundo os autores, “racializados e etnicizados, tendo como pano de fundo dinâmicas identitárias particulares”,13 bem como culturais e políticas.
No capítulo nove, “A Cor dos Ossos”, Verlan Valle Gaspar Neto e Ricardo Ventura Santos apresentam um texto repleto de reflexões em torno de “Luzia”, crânio de uma mulher achado em Minas Gerais, com mais ou menos 11.500 anos. Os discursos e representações criados sobre essa peça pré-histórica revelam, a partir de apropriações das descobertas científicas, toda uma questão sócio-histórica e política. Os autores, para comprovar seu ponto de vista, lançam mão de quatro exemplos que veicularam na imprensa, em livros didáticos e na Internet. Analisando-os, observaram neles a tentativa de ressignificação do conceito de racialização, para uma nova configuração no plano social e político.
Em volta da reconstituição subjetiva da face de Luzia, feita com argila por cientistas ingleses, cria-se no Brasil um complexo simbólico, de acordo com o texto em apreço. Na verdade, Gaspar Neto e Ricardo Ventura nos chamam atenção para a relatividade e a apropriação dos conceitos, à medida que a dinâmica histórica nos descortina um novo contexto.
No capítulo “Política de Cotas Raciais, os ‘Olhos da Sociedade’ e os Usos da Antropologia”, Marcos Chor e Ricardo Ventura discutem e analisam o significado de um evento de expansão das políticas públicas de teor racial. Trata-se da vinculação do sistema de cotas raciais para o vestibular na Universidade de Brasília. Nesse evento, segundo os autores, há relação entre história, antropologia e problemas contemporâneos. Logo na introdução, o texto adverte sobre o modo como a UnB procedeu no processo de seleção para pessoas negras. O critério utilizado se assemelhou às práticas comuns entre o final do século XIX e o começo do século XX. As ferramentas podem ser outras, mas a essência é a mesma: a identificação de “negros com base em características físicas como a cor da pele, textura do cabelo e formato do nariz”.14
Justamente por ter o objetivo de retratar uma injustiça histórica e social com os afrodescendentes brasileiros, a maneira como foi conduzido o processo de cotas na UnB revela-se contraditório. Para fundamentar, portanto, a análise a esse respeito, Marcos Chor e Ricardo Ventura afirmam que “é necessário historiar a atuação dos diversos agentes e agências (…) envolvidos nesse processo”.15 Não se trata, entretanto, apenas de relatar a contradição abrupta entre o programa político-social e os procedimentos usados no processo seletivo. O importante, nesse sentido, é compreender de que forma a política de cotas raciais para o ingresso no ensino superior irá impactar na discussão mais ampla e na efetivação de políticas de ação afirmativa, no contexto atual do Brasil. Esse fato, concluem nossos autores, possibilitou uma forte tensão no seio da antropologia contemporânea.
Finalmente, no último capítulo de Raça como questão, “Política Social com Recorte Racial no Brasil”, Marcos Chor Maio e Simone Monteiro analisam a relação entre raça e saúde. Para tanto, abordam o modo como estão sendo implementadas as medidas do Sistema Único de Saúde (SUS) especificamente para pessoas consideradas “negras”. A partir da contextualização e discussão desse processo, que vem sendo colocado em prática desde o final de 1990, o texto mostra que raça representa tanto um mecanismo para evidenciar as desigualdades sociais, como também “um instrumento político de superação das iniquidades históricas existentes no Brasil”.16
Devidamente contextualizada, a temática se desenvolve de maneira a suscitar no leitor uma reflexão sobre o papel positivo dessas ações racializadas no setor da saúde pública no Brasil. Depois da leitura dos capítulos anteriores, compreende-se melhor que o significado da política de saúde para a população negra é apenas mais uma estratégia de política pública, cuja finalidade é a afirmação social. Entretanto, a forma como se operacionalizam as ações é equivocada. Isso se deve ao fato “da existência de concepções variadas sobre o passado e o presente da nação, assim como de distintas visões sobre a identidade cultural do país”.17 Apesar de os autores não negarem, na conclusão, que a reforma da Saúde significa um avanço importante para “segmentos com expressiva presença de negros”,18 advertem-nos que é preciso pensar sobre as consequências de um processo cujas categorias são conceitualizadas pelos próprios opressores.
Ao concluir os onze capítulos que integram o livro Raça como questão, o leitor atento depreende, entre outras coisas, a preocupação dos autores em refletir e compreender o processo histórico que envolve o entendimento de raça, sobretudo, por partes setoriais da sociedade brasileira, tais como intelectuais, mídia, ONGs, programas governamentais, desde o final do século XIX até a atualidade. Percebe-se, também, que há, no conjunto dos textos, o diálogo com as dimensões da realidade histórica: a economia, a política, o cotidiano, o cultural e o biológico, entre outros. Esses elementos fortalecem o argumento analítico que dá sustentação teórica ao livro, sem cair em abstrações universalistas.
Portanto, Raça como questão trata de trabalhar em torno de categorias históricas tais como identidade cultural, raça, mestiçagem, políticas públicas no Brasil, e seus impactos representativos para a sociedade. Os autores abordam essas categorias não de maneira isoladas ou estagnadas, mas buscam observá-las em suas historicidades e em suas temporalidades.
Notas
1 MAIO, Marcos Chor (org.). Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2010, p. 22.
2 Idem, p. 9.
3 Idem, p. 27.
4 Idem, p. 28.
5 Idem, p. 30.
6 Idem, p. 31.
7 Idem, p. 33.
8 Idem, p. 34.
9 Idem, p. 55.
10 Idem, p. 130.
11 Idem, p. 135.
12 Idem, p. 200.
13 Idem, p. 213.
14 Idem, p. 255.
15 Idem, p. 257.
16 Idem, p. 287.
17 Idem, p. 288.
18 Idem, p. 310.
José Wellington Dias Soares – Professor assistente do curso de letras da FECLESC/UECE e doutorando em história pela UFMG. wellitonds@yahoo.com.br
MAIO, Marcos Chor (org.). Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2010. Resenha de: SOARES, José Wellington Dias. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.19, p.84-91, ago./dez., 2011. Acessar publicação original. [IF].
Artífices de sua própria história: a Guarda Negra da Redemptora como espaço de construção de identidades e exercício da cidadania / Augusto O. Mattos
É visível, nos últimos anos, um novo direcionamento na historiografia dedicada à escravidão e à abolição. Recusando análises que identifiquem homens e mulheres escravizados apenas como vítimas passivas do sistema escravista, muitos historiadores/as, influenciados, principalmente, mas não exclusivamente, pelos trabalhos de Edward Palmer Thompson e pela “história vista de baixo”, tem priorizado em suas pesquisas novos temas e problemas. Nessas análises, é de fundamental importância conceitos como o de “resistência” e de “autonomia escrava”, que permitem compreender os grupos escravos como agentes transformadores do sistema escravista.1 Nesse sentido, são trabalhos que ressaltam as estratégias, as lutas, as escolhas, enfim, a participação direta desses escravos/as na busca de sua liberdade e na construção de sua própria história.
É por tal caminho que trilha o trabalho do historiador Augusto Oliveira Mattos, Guarda Negra: a Redemptora e o ocaso do Império, publicado pela Hinterlândia Editorial. Resultado de sua dissertação de mestrado defendida na Universidade de Brasília, a pesquisa está centrada na atuação e na composição da Guarda Negra, criada em 1888 por ex-escravos e intelectuais negros que juraram lealdade e prometeram zelar pela vida da Redemptora, a Princesa Isabel.
Mais do que proteger a Princesa e provar a gratidão daqueles que foram libertos pela Lei Áurea de 1888, Mattos percebe a Guarda Negra enquanto uma via de acesso e exercício de cidadania para esses indivíduos, muitas vezes excluídos pela sociedade do século XIX. Tratava-se, portanto, para o autor, de uma forma de resistência e inserção em tal sociedade, mesmo que de maneira limitada, que possibilitava a criação de laços de solidariedade e amizade entre aqueles que se consideravam iguais. Enfim, um espaço fundamental para a construção de identidades.
Nesse esforço em desvelar a organização e o arranjo de tal grupo, o autor inicia sua análise pela própria Princesa Isabel, foco da proteção da Guarda Negra. Intitulado “Das camélias do Leblon à Rosa de Ouro: as representações de Isabel no contexto do abolicionismo”, o capítulo procura salientar as imagens construídas, no final do século XIX, principalmente pela imprensa, sobre a Regente e sua atuação política, inclusive em prol do abolicionismo. Embora tenha sido considerada por muitos como incapaz de assumir o trono e de lidar com a coisa pública, Mattos evidencia que entre alguns grupos era corrente a ideia de que a Princesa teria sido a principal responsável pelo fim da escravidão – e por isso o título de Redemptora. Nessa associação entre Isabel e a abolição, o autor percebe o projeto de criar um ambiente favorável e uma base de apoio para sua ascensão ao trono, ou seja, a possibilidade de estabelecer um Terceiro Reinado. Uma tentativa de aproximação entre os libertos e a monarquia, como pode ser percebido na própria Guarda Negra.
Em “A sociedade negregada: racismo à flor da pele e sectarismo social no fenecer do Império”, Augusto Mattos privilegia os protagonistas dessa história: os/as negros/as e suas formas de organização, suas manifestações culturais, suas maneiras de resistência em uma sociedade que os menosprezava, lhes era hostil e os considerava uma “classe perigosa”. Aqui tem destaque as irmandades e maltas de capoeiras, grupos que possibilitavam a esses indivíduos, segundo o autor, a manutenção de determinadas tradições culturais. Todavia, Mattos evidencia que, mesmo com a abolição da escravidão, os/as negros/as não tiveram acesso a uma série de oportunidades, o que criou a possibilidade de “articular uma série de mecanismos para a defesa de seus interesses”. Para ele, o mais importante foi a Guarda Negra.
Por fim, “Da espontaneidade à ação política: a Guarda Negra da Redemptora e a defesa do Terceiro Reinado”, Mattos faz a leitura da Guarda Negra enquanto uma “organização pronta para defender o continuísmo monárquico”, composta por alforriados, intelectuais negros, como José do Patrocínio, e também com apoio de alguns membros da elite branca. Questionando interpretações historiográficas que vêem a Guarda Negra enquanto um grupo de ex-escravos manipulados por monarquistas que pretendiam conter o avanço do republicanismo, o autor problematiza tal passividade e sugere entender a formação do grupo como resposta as necessidades de uma camada negra marginalizada. Um grupo politizado, um espaço de legitimação das aspirações negras, com ações diversificadas.
Utilizando-se de jornais de época, Anais do Senado e da Câmara, correspondências pessoais, coletânea de artigos de abolicionistas, coleção de leis do Império e uma vasta bibliografia sobre o tema, Augusto Oliveira Mattos consegue evidenciar que, mais do que dotada de sentimento de gratidão à Princesa Isabel e o compromisso em defender o Terceiro Reinado, a Guarda Negra foi um espaço que permitiu a um grupo de indivíduos serem sujeitos de sua própria história.
Notas
1 Para mais informações sobre o debate acerca destes conceitos e dos novos direcionamentos da historiografia da escravidão, ver o artigo: MACHADO, Maria Helena P.T. Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a história social da escravidão. Revista Brasileira de História. São Paulo: Marco Zero, v.08, n.16, p.143-160, mar./ago. 1988.
Fabiana Francisca Macena – Doutoranda em História Social do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (PPGHIS/UnB). E-mail: fabianamacena@yahoo.com.br.
MATTOS, Augusto Oliveira. Guarda Negra: a Redemptora e o ocaso do Império. Brasília: Hinterlândia Editorial, 2009. 123p. Resenha de:
MACENA, Fabiana Francisca. Artífices de sua própria história: a Guarda Negra da Redemptora como espaço de construção de identidades e exercício da cidadania. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.18, p.155-157, jan./jul., 2011. Acessar publicação original. [IF].
Fluxos Migratórios e Identidades / Dimensões / 2011
A Revista Dimensões anuncia neste número o empenho na internacionalização de quatro Programas de Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo, respectivamente, de História, Ciências Sociais, Letras e Linguística e a Università Cà Foscari di Venezia. O eixo temático Fluxos Migratórios e Identidades é construído em torno de uma agenda de pesquisas que promove revisões sobre o fenômeno migratório, ontem e hoje, numa perspectiva interdisciplinar.
O fenômeno imigratório tem crescido em importância, em âmbito internacional, e se tornado uma presença constante nas páginas dos periódicos dos países centrais, mas também daqueles do chamado sul global. Quer por questões internas e pelas problemáticas inerentes à imigração – sobretudo em uma dinâmica de criminalização do imigrante – quer pelos problemas gerados pelo próprio fluxo de entrada de estrangeiros – que produz dificuldades de controle para os Estados Nacionais – o processo migratório é hoje um tema candente nas sociedades de acolhida e nos países de emigração. Também, os esforços das vozes subalternas em se fazerem ouvir, num mundo que denuncia as práticas colonialistas e neocolonialistas, trazem à luz os deslocamentos e trânsitos antes invisíveis e promovem releituras de identidades étnicas, de gênero, políticas e outras. Dessa forma, considerando que são as demandas sociais do presente que oferecem o input temático às pesquisas das Ciências Humanas, a imigração está ocupando, novamente, um espaço importante nas discussões acadêmicas e produzindo encontros e publicações em níveis local e internacional. Leia Mais
Théorie critique de l’histoire. Identités, expériences, politiques | Joan W. Scott
Joan Scott, professora do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, Estados Unidos, tem se dedicado, há tempos, ao estudo da epistemologia do estudo da História, a partir de um ponto de vista crítico. Este volume retoma considerações de Scott e ele desenvolve outras, de forma original e criativa, a começar pela definição, logo no início, da História como crítica, com uma citação de Theodor Adorno sobre a importância da crítica, definida por “resistir às opiniões estabelecidas e às instituições existentes… a democracia define-se pela crítica, nada menos”.
Para além da Escola de Frankfurt, Scott volta-se para história de Michel Foucault, na medida em que a crítica se exerce não mais na busca de estruturas formais de caráter universal, mas na pesquisa histórica sobre como nos constituímos como sujeitos do que fazemos, pensamos e dizemos. A busca de como e de que maneira, os homossexuais ou os trabalhadores se tornaram um problema abre novas oportunidades de conhecimento. A “verdade”, como um sistema de padrões compartilhados, deixa de ser uma entidade transcendente, como pressupõe a História positivista. Scott questiona a História normativa, fundada no conceito de prova. Já em 1989, Lionel Gossman mostrava que “uma narrativa determina a prova tanto quanto a prova determina a narrativa”. Leia Mais
Identidades: teoria e prática – GOMES; ENNES (PL)
A discussão sobre a temática identidade, promovida pelo Fórum Identidades e Alteridades: diálogos (im) pertinentes em 2007, no Campus Universitário Prof. Alberto Carvalho da UFS, em Itabaiana, resultou na obra Identidades: teoria e prática, organizada por Carlos Magno Gomes e Marcelo Alario Ennes.
Produto dos debates entre pesquisadores de áreas distintas, como Letras, Sociologia, História, Antropologia e Educação, a obra pretende dialogar a referida temática a partir de diferentes metodologias. Para tanto, está dividida em quatro partes, onde se discutirão questões teóricas e suas relações com os espaços geográficos e as práticas docentes, além do gênero feminino. Leia Mais
América Latina: identidades em construção – das sociedades tradicionais à globalização | Maria T. T. Lemos
O livro América Latina: identidades em construção – das sociedades tradicionais à globalização, organizado por Maria T. Toríbio Lemos (Professora da UERJ), tem o objetivo central de realizar um amplo estudo sobre a cultura latino-americana. Fruto das pesquisas realizadas pelo Núcleo de Estudos das Américas (NUCLEAS) e pelo Laboratório de Estudos das Américas (LEPAS) do Programa de Pós Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenados pela Professora Toríbio Lemos e pelo Professor Paulo Seda, reúne oito artigos de diferentes pesquisadores e de distintas abordagens da história da América Latina, unidos entre si pela preocupação com as questões atinentes à identidade latino-americana. Em síntese, os textos revelam a inquietude e a particularidade de cada pesquisador ao debruçar-se sobre as adversidades e problemas presentes nas sociedades sulamericana e caribenha “como a violência, a pobreza, a educação, a exclusão social, as grandes diferenças sociais entre ricos e pobres, além dos problemas políticos e econômicos dos diversos países” (p.7).
A obra se desdobra em dois blocos, Sociedades tradicionais e Modernidade e globalização, que dão ao leitor a dimensão espaço-temporal sobre a qual os estudos se lançam. O primeiro bloco, constituído por três artigos, transita “pelas práticas culturais e representações das sociedades tradicionais”, trazendo à luz discussões acerca da alteridade, exercício do poder, mitologia, cerimônias e festividades; já o segundo bloco, composto por cinco textos, transcende os aspectos primários das sociedades ditas “tradicionais”, atingindo “a complexidade das estruturas modernas das sociedades ocidentais” (p.7), abordando as relações da religião e do poder, a efemeridade do tempo presente, a educação e a pluralidade cultural, a economia global e, por fim, o contexto da América Latina no processo das migrações internacionais.
Após essa concisa apresentação da obra, antes de olhar minuciosamente cada artigo, convém lembrar que a questão da identidade mostra-se fundamental nos estudos culturais, na medida em que examinam os contextos dentro e por meio dos quais tanto os indivíduos quanto os grupos constroem, negociam e protegem sua identidade. Desse modo, os estudos culturais valem-se das interpretações que defendem a identidade como uma resposta para algo externo e diferente dela, a alteridade. Notadamente, o reconhecimento dessa identidade como algo que não é somente construído, mas também dependente da existência de um outro, abriu um lócus para grupos marginalizados e oprimidos historicamente objetarem e renegociarem as identidades que lhes foram impostas no processo de dominação. Este entendimento de identidade é a chave para a leitura da obra ora resenhada.
Ao longo do primeiro capítulo, Mundo Novo e Paraíso Terrestre: O Transe dos Viajantes na Conquista da América, Alexandre Belmonte expõe os encontros e confrontos entre culturas a partir de fontes como os registros dos viajantes (exploradores e conquistadores), da cartografia européia do século XV e de obras literárias. Destarte, contextualiza o período, discorrendo sobre a complexidade e as dificuldades em se realizar uma viagem de longo curso para o “Mundo Novo”, sobretudo pela onerosidade de cada aventura e pela necessidade de se conseguir financiamentos que, em geral, provinham do Estado, do clero ou da ascendente burguesia, quando não por todos ao mesmo tempo. Além disso, segundo o autor, havia no imaginário europeu a herança da mentalidade medieval que fomentaria uma perspectiva pessimista em relação às viagens, representada pelos mitos do além-mar.
Todavia, o eixo central deste capítulo começa a ser delineado a partir do retorno dos viajantes para a Europa, visto que “o retorno evocava uma „operação escrituraria‟ […] em que a alteridade era definida por um corte que marcava a diferença” (p.16). Eis o ponto. Para Belmonte não interessa tanto os modos de ser e viver dos ameríndios, pois “são muito mais interessantes as próprias possibilidades discursivas dos europeus sobre a alteridade representada pelos indígenas do Mundo Novo do que o modus vivendi destes” (p.17). Assim, o olhar europeu transcrito nos relatos e narrativas dos viajantes, permite ao pesquisador observar as cosmovisões e os imaginários que colocaram o europeu em contato com a alteridade cultural de forma abrupta e total.
A constatação do alto grau de organização e desenvolvimento dos Astecas, feita pelos espanhóis quando da chegada ao México, é explorada pelo professor Paulo Roberto Gomes Seda. Este os ordena a partir da influência da religião praticada pelos Astecas do período arcaico e pelos remanescentes da civilização Tolteca. Guerra, religião e poder entre os Astecas, assim chama-se o segundo capítulo, no qual o autor mostra com muita perspicácia que o contato, o conflito e a conjugação de costumes, tradições, ritos e mitos, ocorridos na peregrinação dos “bárbaros” Astecas para as regiões das cidades do lago, onde aconteceu o choque com as tribos que ali viviam, transformaria definitivamente a história desses povos, alçando os Astecas à condição de herdeiros das brilhantes civilizações do México central, tornando-os senhores de um vasto império.
O cerne do trabalho de Seda imperiosamente se coloca na exposição da organização e do exercício do poder entre os Astecas, ocorrida progressivamente a partir da religião e de uma dualidade por ela forjada que, em menos de dois séculos, intensificou-se e espraiou-se para todos os âmbitos da vida pública e privada deste povo, altamente ritualístico e crente. De um lado, o culto aos deuses guerreiros Huitzilopochtl e Tezcatlipoca, respectivamente, o grande deus solar e o deus do céu noturno, das trevas e do vento da noite; de outro, a incorporação dos deuses da terra e da água das civilizações sedentárias: Tláloc, deus camponês; e Quetzalcoatl, deus padroeiro dos sacerdotes. O paradoxo assinalado pelo autor incide justamente na questão da religião, pois esta mesma construção identitária, religiosa, dicotômica, que elevou os Astecas à hegemonia do Altiplano central, também foi, segundo ele, um dos fatores capitais para a derrocada dos Astecas frente aos conquistadores espanhóis, uma vez que essa religiosidade “contribuiu para modificar profundamente a hierarquia de valores reconhecidos por uma civilização dividida em si mesma pela dualidade de suas origens. […] dualidade presente, inclusive, diante dos conquistadores (deuses ou humanos), levando à posição vacilante do imperador e da própria sociedade” (p.53).
Dando continuidade às questões religiosas, mitológicas e ritualísticas das sociedades tradicionais, o estudo de caso intitulado Mitos e ritos andinos – Wana kawri Waka – Percursos entre as tradições orais e a contextualização dramatizada da história, apresentado pela professora Maria Teresa Toríbio B. Lemos, encerra o primeiro bloco do livro. Neste terceiro capítulo, a autora descreve aspectos das práticas culturais e representações simbólicas da antiga sociedade quéchua em homenagem ao deus Wana Kawri, considerado pelos camponeses da região andina “um deus protetor e reprodutor, que fertiliza o solo e multiplica a produção naquela região árida dos Andes” (p.56). Nesta parte, Lemos acentua a importância dos mitos para essas sociedades, distinguindo-os do rito e da cerimônia, e busca no relato de Felipe Guaman Poma de Ayala – um dos principais cronistas do Vice-Reino do Peru no século XVII – a recuperação histórica das narrativas míticas e ritualísticas quéchuas, fontes valiosas para “o conhecimento desses dois universos em confronto, o da sociedade nativa quéchua e o do dominador espanhol na América” (p.59). Ao fim e ao cabo, Maria Lemos discorre sobre a estratégia praticada pelos espanhóis na conquista da região andina e aponta para a importância do cristianismo, da evangelização mediada pela aproximação e identificação das divindades indígenas, como poderoso mecanismo de aculturação desses povos. Dessa forma, à medida que se desqualificavam os deuses indígenas, impunha-se legitimamente o Deus cristão e, por conseguinte, a cultura européia. Para além destas questões, o estudo se justifica pela tenacidade desses mitos que, ainda hoje, são reproduzidos, ressignificados e reelaborados pelo imaginário e pela memória coletiva dessas comunidades durante as festas agrícolas e folclóricas na região andina do Peru, Bolívia e Equador.
O quarto capítulo inaugura o segundo bloco e traz como principal discussão as relações de poder, expressadas, neste caso, pela instituição religiosa e/ou pelas “autoridades” religiosas. Sob o título Religião e Poder na América Latina: Um breve estudo sobre a religião como forma de controle social no Brasil, Gilberto Angellozi recorda que as relações de poder se estabelecem em todos os níveis, formal ou informal, por um determinado período ou perpetuamente. Igualmente, enfatiza que violenta ou não, a coerção não deixa de existir e aquele que a exerce ou faz uso dos seus mecanismos adquire poder sobre o outro e isso lhe dá prazer. Ocorre que, para o autor, o poder religioso passa por esse mesmo princípio e “o exercício do poder se estabelece ainda hoje como forma de libertação, especialmente nos meios religiosos, onde os fundamentalismos, sejam de direita ou de esquerda, tendem a reproduzir estruturas de dominação” (p.70). Nesse momento, o leitor tem a falsa impressão de que determinados segmentos religiosos, menos radicais, não estariam submetidos aos mecanismos do poder e aos sistemas de coerção anteriormente descritos como presentes “em todos os níveis” da vida social. É possível que essa afirmação derive da própria influência religiosa do autor que, entre outras formações, é teólogo. Talvez por isso acredite internamente em alguma forma de religião não dominadora. Afora esta crítica pontual, o estudo revela-se desvelado de uma ideologia cristã. Aliás, notoriamente, Angellozi apresenta a religião como fonte de poder e dominação, assinalando no desrespeito ao próximo, ao diferente, um dos principais causadores dos problemas sociais do passado e do presente, pois “sempre que alguém usa alguém para garantir o alicerce de um projeto pessoal, a figura do outro desaparece. Ocorre assim o desrespeito pela vida, que se traduz em destruição da natureza e das relações sociais e políticas” (p.80).
No quinto capítulo intitulado Pós Modernidade – O Sólido se Desmancha – O Eterno é Provisório e o Futuro é Presente, Raimundo Lopes Matos propõe uma análise prospectiva da Pós-Modernidade e ressalta a importância da mudança de paradigma ao observar as suas influências e conseqüências na vida do homem nos seus múltiplos domínios. Antes de tudo, o autor conceitua e situa historicamente a Pós-Modernidade, tarefa que lhe ocupa boa parte do texto. Também utiliza outros conceitos fundamentais para o entendimento deste tempo presente como, por exemplo, a globalização e a desterritorialização. Conclui afirmando que todos, em todos os âmbitos, estão envolvidos na cultura do consumismo, do veloz, do instantâneo e do on-line, “celebrando uma nova época”, “resultando em uma pluralidade de fragmentos complexos e um fluir de uma presentidade inarredável” (p.94).
Luiz Henrique Nunes Bahia, Maria Cristina Leal e Célia Linhares, escrevem conjuntamente o sexto capítulo denominado Debate sobre o pluriculturalismo na Gestão da Educação Pública: Estado do Rio de Janeiro e Rede Municipal de Nova Iguaçu. Dentro da conjuntura atual, os autores entendem que há uma pluralização da cultura urbana como resultado direto do confronto de múltiplas mensagens e ideais dispersos na sociedade globalizada. Essa dinâmica é projetada para as relações de poder e dominação de grupos e instituições, onde os pesquisadores exploram “os contrastes e tensões entre culturas políticas manifestas nos depoimentos de professores e demais segmentos da comunidade escolar” (p.99). Especificamente, nesta pesquisa, fez-se a análise comparativa entre duas regiões e contextos distintos: a rede pública estadual de ensino (RJ) e a rede pública municipal (Nova Iguaçu/RJ). Analiticamente, observaram que a pluralidade cultural encontrada hoje nas cidades mantém as hegemonias do centro decisor maior, mas conserva lugares ainda de natureza local que permitem entender as formas hegemônicas de poder.
O sétimo capítulo, As negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio e o papel do Mercosul, de Aléxis Toríbio Dantas, esboça sucintamente a evolução do Mercosul e suas ações nas negociações recentes, de maneira especial, frente à OMC, sublinhando a importância dos acordos regionais para os países emergentes, garantia de maior poder de barganha destes países perante os Estados Unidos e à União Européia. Já no último capítulo, intitulado Movimentos sociais da América Latina e a construção de novas identidades, Maria Luzia Landim trata da questão imigratória no nordeste do Brasil e reflete sobre as dinâmicas geradas nos processos de adaptação e estabelecimento físico destas pessoas, especialmente, no que concerne aos sentimentos de perda de identidade, imediatamente compensados pela procura ou criação de novos contextos e retóricas identitárias.
Finalmente, se, pelo exposto, pode-se ter uma noção sobre a questão identitária na América Latina, o conjunto de artigos apresentados mostra a amplitude e a pluralidade de temas que emergem desse recorte temático, bem como deixa muito claro que este não é um debate estanque, inexorável, mas sim uma discussão que se renova e se amplia a cada dia. Portanto, o principal mérito do livro reside na proposta abrangente e aberta dos autores de trazerem à luz assuntos polêmicos sem a pretensão de oferecer respostas definitivas, sem dúvida, instigando o leitor mais inquieto a buscar suas próprias conclusões.
Fábio Bastos Rufino – Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestrando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Bolsista CAPES.
LEMOS, Maria Teresa Toríbio (org.). América Latina: identidades em construção – das sociedades tradicionais à globalização. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. Resenha de: RUFINO, Fábio Bastos. Aedos. Porto Alegre, v.2, n.5, p. 146- 151, jul. / dez., 2009.
História oral: memória, tempo, identidades – DELGADO (PL)
Ao entender História Oral como uma metodologia de produção de fontes históricas (os depoimentos), imediatamente somos levados a pensar no lado prático deste método. A importância de se observar o lado teórico deste campo de conhecimento, e de se ter em vista algumas categorias da História no desenvolver dos trabalhos com História Oral, é exposta com propriedade pela mineira Lucilia de Almeida Neves Delgado, que foi presidente da Associação Brasileira de História Oral.
Em seu livro, Lucília relaciona História Oral à memória, ao tempo e à identidade, embora deixe a desejar quando trata das narrativas não expondo o modo como elas se arrumam (narrativas de vida pública, épicas, trágicas, cômicas e narrativas que misturam as várias soluções anteriores), o que o Manual de História Oral de José Carlos Sebe Bom Meihy faz, só para citar um dentre os vários manuais que se pode encontrar. A autora também não tem as preocupações arquivistas e não traz exemplos de roteiros a serem utilizados nas entrevistas. Duas questões importantes que podemos perceber em outro livro, História Oral: possibilidades e procedimentos de Sônia Maria de Freitas. Leia Mais
Cultura e poder / Estevão C. R. Martins
Professor de teoria da história e de história contemporânea na Universidade de Brasília – UnB, Estevão C. de Rezende Martins dedica-se aos estudos nos campos da teoria, filosofia e metodologia da história, história cultural moderna e contemporânea, e das relações internacionais, em particular da Europa ocidental. Publica em 2007, Cultura e poder, livro que busca situar o leitor em questões referentes à formação e organização dos Estados modernos e de suas relações externas. Nas palavras do autor, o livro segue uma “perspectiva teórico analítica em que são coordenados a preocupação filosófica com a engenharia conceitual e o prisma historiográfico, penhor de inserção empírica dos temas tratados” (p. 01).
O livro está dividido em sete capítulos que buscam apresentar ao leitor, inicialmente, os conceitos que o autor utiliza (como poder, idéias, cultura e ideologia), para em seguida, demonstrar como estes são utilizados para a construção das identidades e, conseqüentemente, das organizações sociais que originam os Estados. Durante a leitura da obra capítulos, nota-se que há quatro seções de análise que direcionam o livro. Essas podem ser divididas em: seção de conceituação (capítulos 1, 2 e 3), nos quais são apresentados os conceitos usados em todo o livro; análise da União Européia (capítulos 4 e 5), onde as idéias apresentadas pelo autor já foram trabalhadas e postas em prática, com relativo sucesso; e análise da América Latina (capítulo 6), utilizando-se de todo o escorço conceitual apresentando. O capítulo 7 tratará das perspectivas sobre o uso das idéias e o poder que exercerão no contexto da “mundialização”.1 Diversos são os campos de estudos e pesquisas que se dedicam à formação dos Estados e sua relação com as identidades sócio-culturais. Dentre esses, há de se destacar o campo da ciência Jurídica, da Ciência Política e das Relações Internacionais. E é por meio dos conceitos fornecidos por estas áreas do saber que Martins articula seus pensamentos utilizando uma perspectiva que se afasta da ciência da história e se aproxima da filosofia, do direito e das relações internacionais. Por meio de tais perspectivas e com base no instrumental teórico dos campos citados é que o autor inicia suas pontuações.
O que são idéias e como são capazes de mover sociedades, isto é, sua concepção e sua função, são as bases para os debates do primeiro capítulo. O autor trata as idéias com uma perspectiva do papel que desempenham no “contexto de redes culturais cuja resultante são as formas de poder na sociedade e no Estado que interferem na formulação e na prática de condutas individuais e sociais”. (p. 7) As idéias são apresentadas como uma forma de orientação do agir, destacando-se em três dimensões distintas: passado (interpretação), presente (explicação) e futuro (projeção). Tais dimensões orientam o pensar humano e a formação não apenas de idéias, mas de identidades – outro discussão que perspassa o livro todo. O debate sobre as idéias de poder é o que conclui o primeiro capítulo. Neste ponto, Martins apresenta diversos posicionamentos sobre as idéias de poder – Foucault, Carl Schmitt, Jean Bodin, etc. – mas deixa claro seu alinhamento com a concepção de Niklas Luhmann, que concebe o poder “como um jogo social de ações, que causam a partir de pressupostos não causais, que efetuam trocas com base em fundamentos não permutáveis, que jogam utilizando regras não colocáveis em jogo”. (p. 25) O poder da cultura e a cultura do poder são o mote do segundo capítulo. O autor emprega o termo cultura, no livro, de forma ampla, “diretamente vinculada à ação racional do homem” (p. 2), um fator dinâmico de ação, formação e transformação. O fundamento da cultura está no fato de que o homem precisa agir para poder viver.
Utilizando-se das concepções de Gordon Mathews, para Martins, a cultura está mergulhada em um “sistema de circulação de idéias e de produtos chamado mercado” (p. 30), e segue três vertentes: a individual, a coletiva (família, colegas de trabalho, torcedores de um time, etc.) e a pública ou estatal (sistemas de educação e de comunicação em massa). Por estas vertentes, o autor explicita a importância do conhecimento histórico, ou “cultura histórica”, pois esse é formador de identidades e está inserido em um mundo de signos, elementos distintivos pertencentes a uma “cultura”. “A cultura histórica é, então, a articulação de percepção, interpretação, orientação e teleologia, na qual o tempo é um fator determinante da vida humana”. (p. 33) Ao nascer, qualquer pessoa já está inserida em um mundo pleno de histórias, de signos e conceitos pré-concebidos, mas isso não significa precisar aceitá-los passivamente; ao contrário, ao adquirir consciência, conquista a capacidade de transformar estas idéias dadas em idéias e conceitos próprios. O indivíduo, grupo ou nação demonstram, desta forma, o poder da cultura. A construção e formação das identidades tomam boa parte desse segundo capítulo, pois para Martins, é o entendimento de si e de quem é o outro que propiciará a criação de laços entre os países, superando questões seculares, como ocorreu com a União Européia (UE). Ponto interessante, pois o autor toma a UE como um exemplo, guardadas as devidas proporções, que a América Latina deve seguir para superar desavenças e se impor de forma organizada.
O terceiro capítulo trata da ideologia. Neste ponto, o autor explicita que o entendimento de ideologia como “receita pronta” para uso rápido, simples e imediato, independente do conteúdo ou dos fins – colocadas de forma maniqueísta muitas vezes – deve ser superado. Atualmente deve-se observar a amplitude e abrangência das idéias, que escapam do simplismo das ideologias clássicas. É algo que pode estar em qualquer contexto, desde que nele haja a questão de ser, pensar e agir, que pode ser entendida como ideologia. Martins expressa que ideologia “é um instrumento prático polivalente, socialmente relevante e particularmente eficaz – embora de contornos difusos, quando ‘vivida’ de forma concreta pelas pessoas”. (p. 67) Após apresentar suas impressões sobre os conceitos elencados Martins passa a questionar essas concepções, o autor vai se lançar a questionar o poder da cultura na história européia e, conseqüentemente, como se pode buscar um fio condutor para a formação das identidades da Europa ocidental, o que facilitaria a convivência e formação de um bloco de países.
O capítulo quatro é dedicado a apresentar a história da Europa ocidental e como a formação das identidades foi diferente em relação aos europeus orientais. Para tal, lança mão das idéias sobre a expansão da fronteira na formação das identidades e do conceito de “grande fronteira” – teorias de Frederick Tuner e Walter Prescott Webb, respectivamente. Para Martins, “A percepção ou ‘estranhamento’ cultural entre diversos ‘outros’ que conviveram – e convivem – no espaço da(s) Europa(s) é um elemento importante na organização extrínseca (…) e intrínseca da identidade cultural européia…” (p. 83).
As questões do multiculturalismo e das identidades nacionais no conjunto Europeu é o tema do capítulo cinco. Nesse momento da obra é debatido o conceito de “linguagem da nação”, isto é, o discurso político nacional que integra três grandes dimensões: a razão modernizadora, a vontade mobilizadora e a justiça igualitária. Por meio desta “linguagem da nação”, deste discurso político nacional é que as nações modernas se organizaram. Para Martins a nação não é uma ideologia, mas um “produto, dentro de um território particular, das relações entre uma economia, uma cultura e um Estado dominados pelo princípio da racionalidade instrumental”. (p. 99) Por essa linguagem é que uma sociedade pode construir o passado como tempo ultrapassado (dimensão interpretativa), de modo a se distanciar e poder explicar o passado e ter perspectivas de futuro (projeção). Contudo, no decorrer da leitura, nota-se que essa linguagem, com bases muito mais históricas, perdeu sua força. A busca de uma nova linguagem deverá, segundo Martins, passar por uma (re)construção das consciências nacionais (no âmbito europeu), devendo se reorientar em busca de uma síntese democrática, o que evitaria os elementos contraditórios de nossa modernidade.
O sexto capítulo do livro volta-se para os debates sobre a formação de uma identidade cultural latino-americana. São expostas quais são as dificuldades para se fomentar uma identidade comum na América Latina. O primeiro passo é compreender que as sociedades européias são “sociedades originárias”, ou seja, foram criadas, originadas da vontade mobilizadora de um grupo, enquanto as sociedades americanas são “sociedades implantadas”, isto é, não foram originadas de uma vontade de um grupo, mas sim impostas por um grupo sobre outro. A partir desse pressuposto, Martins vai discorrer sobre a situação na América Latina e das dificuldades de uma articulação histórica, que contribua para uma identidade comum.
A parte final da obra é dedicada a uma discussão de possíveis perspectivas sobre os movimentos de “mundialização”, o uso e poder das idéias nesse contexto “A multipolaridade política e cultural apresenta-se como contraponto consolidável para viabilizar uma alternativa à unipolaridade econômica norte-americana ainda remanescente”. (p. 137) Com tal perspectiva, propõe que o mundo social deve se voltar para um entendimento da diversificação cultural interna, encarceradas nos Estados nacionais, pois a cultura serve como referência do agir humano, podendo influenciar na modificação das estruturas sociais vigentes.
O historiador convencional ao ler, Cultura e poder não encontrará uma obra nos moldes da ciência da história. Mesmo hoje, onde as fronteiras entre as disciplinas como filosofia, história, sociologia e relações internacionais, não possuem um limite claro – pois todas se utilizam de conceitos comuns, mas com usos específicos – pode-se dizer que o livro é direcionado para o campo das relações internacionais, como o próprio nome da coleção, Coleção Relações Internacionais, já mostra – e dos estudos que debatem a formação dos Estados nacionais e das relações de poder que emergem no interior dessas sociedades, através de uma perspectiva cultura.
Centra-se no contexto europeu, mas segue esse caminho para demonstrar como as idéias e os conceitos apresentados foram aplicados na Europa, suas conseqüências e os possíveis que a América Latina pode seguir para formar uma macro-identidade regional, respeitando as diferenças culturais – o que não ocorreu no velho continente, segundo Martins, pois os Estados foram criados, como que ignorando tais diferenças culturais, criando situações de conflito nos dias atuais, como nos Bálcãs ou na região basca. Contudo, sem se aprofundar no debate, o livro pode introduzir e situar o leitor no debate sobre cultura e poder.
A obra de Martins é extremamente interessante, já que ao introduzir e situar o leitor no debate sobre cultura e poder, centra-se no contexto europeu e segue essa trilha para demonstrar como as idéias e os conceitos apresentados foram aplicados na Europa, suas conseqüências e os possíveis caminhos que a América Latina pode seguir para formar uma macro-identidade regional, desde que respeitadas as diferenças culturais.
Notas 1 O autor usa o termo “mundialização”, expressão do universo da língua francesa, no sentido de “globalização”, mas com ênfase aos aspectos mentais, ideais e culturais.
Eric de Sales – Graduado em História pela Universidade de Brasília – UnB e mestrando pela UnB em História na Área de Concentração História Social. E-mail para contato: malkerik@yahoo.com.br.
MARTINS, Estevão C. de Rezende. Cultura e poder. 2 ed. Revisada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2007. Resenha de: SALES, Eric de. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.167-171, 2007. Acessar publicação original. [IF].
Fronteiras: paisagens, personagens, identidades – GUTIÉRREZ et al (RBH)
GUTIÉRREZ, Horacio; NAXARA, Márcia; LOPES, Maria Aparecida (Org.). Fronteiras: paisagens, personagens, identidades. São Paulo: Olho d’Água, 2003, 300p. Resenha de: NISHIKAWA, Reinaldo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.51, jan./jun. 2006.
Podemos entender as complexidades que a palavra “fronteira” pode conter se sua própria constituição se dá muitas vezes em termos historicamente mutantes, difusos, cercada de especificidades? Ou sucede o inverso: as fronteiras se formam por processos semelhantes em lugares diferentes? Essas questões são tratadas na coletânea Fronteiras: paisagens, personagens, identidades, organizada pelos professores Horácio Gutiérrez, Márcia Naxara e Maria Aparecida Lopes. Ao privilegiar as três Américas como escopo (portuguesa, espanhola e inglesa), os autores que compõem o livro demonstram que muitas imagens criadas no “Novo Mundo”, em particular nas áreas de fronteira, esse espaço considerado demograficamente vazio e que acabou se tornando uma forma de legitimar a conquista, já não podem ser tomadas como corretas. A colonização entendida como um processo e as fronteiras como parte central desse processo são as linhas mestras seguidas no livro.
Os autores se comprometem a estudar as fronteiras, provando ser esta uma vertente importante para se entender os complexos mecanismos criados pela aproximação cultural dos diversos povos que conformam o mosaico americano. O estudo, composto por onze artigos, constitui um espaço de discussões para essa diversidade. O livro foi dividido em dois momentos que estão ligados entre si. A primeira parte é dedicada a pensar nas fronteiras como fundadoras de identidades, e segunda, a entender como essas fronteiras transformam as paisagens e os personagens tocados nesse processo.
Considerando que a maioria do território americano começou sua colonização pelo litoral, a expansão para o far west tornou-se um terreno propício para a criação de mitos embasados por ícones criados nessa expansão. As novas fronteiras trouxeram à tona personagens importantes nas suas conquistas. Temos o pioneer americano, o bandeirante brasileiro e o gaucho argentino, personagens que estão intrinsecamente ligados à expansão territorial. Entretanto, essa marcha implicou uma série de contrastes necessários para legitimar a presença do colonizador em terras estranhas. A presença do outro significava, em essência, um contato cultural, social, político e econômico de transformações irreversíveis. O livro em suas várias abordagens estuda esses impactos e procura entendê-los como um processo que engloba as Américas em suas diversas realidades.
A existência de “terras livres” nas Américas foi a justificativa encontrada por diversos colonizadores para legitimar as conquistas. Os artigos publicados neste livro nos mostram que a fronteira significa mobilidade e fluidez, e que não houve apenas uma única noção de fronteira na história das Américas, mas várias. Nos últimos séculos, o continente latino-americano possuía fronteiras diversas, as produtivas (a pecuária, a de metais preciosos), as fronteiras agrícolas (açúcar, café, algodão), e junto a elas, as fronteiras militares, de poder, bem como as lingüísticas e culturais. Essa pluralidade implica entender o longo processo de formação das fronteiras, das identidades criadas no transcurso do tempo e os personagens que se fixaram nessas fronteiras, e transformaram as paisagens existentes nesse caminho.
Os artigos que compõem a obra dão destaque também à importância dos povos “conquistados” e da influência mútua que os povos mantiveram com os colonizadores. Mesmo de uma forma desigual e arbitrária, os habitantes das Américas conseguiram impor certas práticas, certas influência e costumes, o que nos leva a um outro tópico.
Pensar no outro, naquele que faz parte do processo e que muitas vezes é esquecido tornou-se uma porta rica de entrada para o estudo da história e para os historiadores interessados em saber muito mais do que apenas compreender fronteiras como sinônimo de recorte espacial, ou como limites unicamente geográficos. O estudo das fronteiras demonstra que sua complexidade e suas implicações não podem passar despercebidas aos historiadores, uma vez que foram essas fronteiras que muitas vezes moldaram a identidade, as paisagens e a economia dos povos que aqui habitam. Para a compreensão de todos os meandros dessas fronteiras, os autores utilizaram, como seria necessário, variadas fontes de análises, que podem exemplificar-se no estudo de poemas, fotografias, pinturas, e até jornais, textos e relatos, prova de que a história não é estática e nem seus interlocutores.
É interessante perceber o quão ligados estão a fronteira e o sertão, ou o lugar considerado sertão enquanto uma construção histórica. As fronteiras vão ganhando especificidades e legitimidades dependendo de onde se origina tal conceito, e vários artigos que compõem o livro conseguem vislumbrar múltiplas gamas nas diversas regiões das Américas. O livro endossa a importância das transformações econômicas, políticas e sociais relacionadas ao momento em que as fronteiras são criadas e transformadas pela ação do homem.
Em alguns artigos publicados nos últimos tempos, os autores afirmam que a questão da fronteira não é tão discutida na historiografia latino-americana quanto na norte-americana, desconsiderando, segundo esses historiadores, o papel das fronteiras como formadoras das identidades criadas na América Latina. Talvez a publicação deste livro venha a dar resposta a essa afirmação, e demonstrar o interesse dos historiadores latino-americanos para a questão das fronteiras e suas implicações.
Ao fecharmos o livro, temos a impressão de que percorremos os quatro cantos das Américas (Estados Unidos, México, Caribe, Chile, Argentina, Uruguai e o Brasil) e conseguimos entender por que situações tão díspares quanto as colonizações portuguesa e inglesa, por exemplo, acabaram por percorrer o mesmo caminho em direção ao Oeste na tentativa de formar suas fronteiras. Os autores conseguiram mostrar que a conquista territorial nas Américas foi feita com sorrisos, e principalmente com muitas lágrimas. O livro, sem dúvida, vale um bom curso de História.
Reinaldo Nishikawa – USP
[IF]Identidades, discurso e poder: estudos da arqueologia contemporânea | Pedro Paulo Abreu Funari, Charles E. Orser Júnior e Solange Nunes de Oliveira Shiavetto
Pensar as múltiplas identidades possíveis ao homem implica refletir sobre a interação conceitual entre identidade, discurso e poder no estudo da formação e da organização social. Nesse quadro de interdependência, verificam-se, ao longo da história, práticas políticas direcionadas à construção de discursos normativos e mantenedores do poder pela edificação de identidades, cujas definições interagem com a distribuição dos espaços sociais e geográficos. Tal diversidade espacial retrata a heterogeneidade da ocupação do solo, demonstrando que essa variável deve ser considerada no labor de arqueólogos e historiadores. Sob essa perspectiva, o livro Identidades, discurso e poder: estudos da arqueologia contemporânea, organizado por Pedro Paulo Abreu Funari, Charles E. Orsen Jr. e Solange Nunes de Oliveira Schiavetto, fomenta o debate a respeito dos usos das fontes materiais e literárias para o entendimento das ações humanas situadas no passado, revelando descompassos entre escritos e espaços, e estimula o repensar dos modelos teóricos acatados por arqueólogos e historiadores.
A primeira parte do livro, intitulada “Identidades e conflitos”, principia com o capítulo “A mulher aborígine nas Antilhas no início do século XVI”, de Lourdes S. Domingues. A autora tece reflexões sobre os anos de 1492 a 1542, período com escassa documentação primária e, por esse motivo, fonte de polêmica entre os estudiosos. O recorte da autora contempla a época em que a Coroa Espanhola promulgou as Leyes Nuevas, as quais, segundo Domingues, influenciaram sobremaneira o processo de construção das identidades das mulheres aborígines do Caribe. Leia Mais
Identidades a flor de piel. Lo negro entre apariencias y pertinências: categorias raciales y mestizaje en Cartagena – CUNIN (M-RDHAC)
CUNIN, Elisabeth. Identidades a flor de piel. Lo negro entre apariencias y pertinências: categorias raciales y mestizaje en Cartagena. Bogotá: Instituto Colombiano de Antropología e Historia; Universidad de los Andes, Instituto Francês de Estudios Antinos; Observatorio del Caribe Colombiano, 2003. 329p. Resenha de: DÍAZ, María José Almarales. Memorias – Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe, Barranquilla, n.2, jan./jun., 2005.
María José Almarales Díaz – Antropóloga e investigadora membro del Grupo de Investigación en Historia y Arqueologia del Caribe Colombiano de la Universidad del Norte. Asistente editorial de Memorias.
[IF]Historia, identidades, cultura popular y música tradicional en el Caribe colombiano – MEJÍA; DURÁN (M-RDHAC)
MEJÍA, Hugues Sánchez; DURÁN, Leovedis Martinez (Compiladores). Historia, identidades, cultura popular y música tradicional en el Caribe colombiano. Valledupar: Ediciones Unicesar de la Universidad Popular del Cesar, Colombia. 2004. 226p. Resenha de: CAMARGO, Moraima. Memorias – Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe, Barranquilla, n.2, jan./jun., 2005.
Moraima Camargo – Profesora e investigadora del Departamento de Historia y Ciencias Sociales y membro del Grupo de Investigación en Historia y Arqueología del Caribe Colombiano de la Universidad del Norte.
[IF]Fire and Ice: The United States, Canada and the Myth of Converging Values – ADAMS (CSS)
ADAMS, Michael. Fire and Ice: The United States, Canada and the Myth of Converging Values. Toronto: Penguin Press, 2003. 224p. Resenha de: NEIDHARDT, W. S.. Canadian Social Studies, v.39, n.2, p., 2005.
For many years now Canadians – at least those who are interested in their country’s history – have been exposed to countless books and articles about the Canadian-American relationship. Most of the authors inevitably concluded that Canada was slowly but surely drifting into a closer relationship with the United States. In fact, some writers even predicted that Canada’s ultimate destiny was nothing less than complete absorption into the American republic. In Fire and Ice, Michael Adams challenges what he calls the existing myth of inevitability and advances the rarely heard, and even more rarely substantiated, thesis that Canadians and Americans are actually becoming increasingly different from one another (p. 4).
Adams is quite aware that most Canadians may not, at first, believe him. He readily admits that Canada is increasingly dependent on the U.S. economy and that Canadians consume increasing amounts of American popular culture, products, services and imagination (p. 140). He also points out that in a recent public opinion poll – taken in 2002 – 58% of Canadians thought that Canada had been becoming more or less similar to the United States during the preceding ten years (p. 3). He also fully acknowledges that the two North American nations do have, indeed, much in common, including such things as common founding principles and similar political institutions.
However, Adams also wants his readers to know that there are, in fact, some very fundamental differences that have developed between the two countries over the years. For example, he refers to the ‘revolutionary tradition’ in the U.S.A as opposed to the ‘counter-revolutionary tradition’ in Canada, the contrasting attitudes Americans and Canadians have towards the roles of government, and the quite different beliefs they have about the role of religion in their daily lives. As one reads each chapter in Fire and Ice, one begins to believe that Adams is onto something and that his thesis is not a mere flight of academic fancy but rather a thoroughly researched and carefully constructed argument.
The book is filled with a vast array of statistics that he and his colleagues at Environics compiled while conducting over 14000 individual interviews and numerous focus groups and surveys. Based on these findings, Adams argues that fundamental values, motivations, and mindsets were changing (p. 7) in recent years in both Canada and the United States and that these changes in peoples’ social values have, in fact, created two distinct societies in North America. The author, who is more a social scientist than a historian (Seymour Lipset seems to be his much admired role model) believes that much of what people say when they are asked specific questions during public opinion polls tends to reveal only how they feel about specific issues. Furthermore, he argues that these polls generally do not involve the social value assessment criteria that are required in order to elicit peoples’ more fundamental beliefs and values.
Adams makes skilfull use of the social scientist’s repertoire as he examines a variety of areas of social change that have taken place in Canada and the United States including religion, multiculturalism, immigration, the status of women, patriarchal authority, consumerism, social welfare, gun-control and many others. In the final analysis, Adams concludes that his research data clearly establishes that Canadians and Americans embrace a different hierarchy of values (p. 147) and that the two nations are socio-culturally distinct and will remain so for many years to come – perhaps indefinitely (p. 76).
Some of Adams’ conclusions may well be seen as quite provocative and will probably not endear him to some readers – especially those who espouse the neo-conservative vision for the Canada of the future – when he suggests that the United States is becoming a country where we find values of nihilism, aggression, fear of the other, and consumptive one-upmanship (p. 72). While he supports the commonly held view that the United States is a more competitive society than Canada and that Americans are more innovative, he also describes America as being more violent and more racist (p. 115). He suggests that Americans worship money and success more than Canadians do but he also admits they are more willing to take risks in the hope that they might win than to ensure against disaster in fear that they might lose (p. 115). Meanwhile, Canada, according to Adams, is showing increasing flexibility, openness, autonomy and fulfillment (p. 74) and is perhaps becoming the home of a unique postmodern, postmaterial multiculturalism, generating hardy strains of new hybrids that will enrich this country and many others in the world (p. 143).
Fire and Ice is a clearly written and carefully researched book. In his introduction the author spells out what he wants to say and in the subsequent six short chapters he does what he said he would do. For the amateur social scientists in us he has included seven appendices (60 pages in length) which provide ample information about the social values methodology that was used to collect and interpret the vast amount of data. In addition, the book has a useful Trend Glossary, a carefully prepared index, several humorous but thought-provoking cartoons from the New Yorker, numerous graphs, and a short bibliography. As far as usability in the classroom is concerned, Fire and Ice is a must read for teachers and students who study the Canadian-American relationship because it provides a compellingly different view from the traditional interpretation as to where Canadian and American societies are heading.
In my opinion, Fire and Ice richly deserves to be the winner of the Donner Prize as the best book on Canadian public policy in 2003/04. Perhaps this paragraph – found at the end of chapter four of the book will best sum up Michael Adams’ message: In my nightmares, I may see the American fire melting the Canadian ice and then dream of the waters created by the melting ice drowning the fire, but this will not happen – at least not in our lifetimes. The two cultures will continue side by side, converging their economies, technologies, and now their security and defence policies, but they will continue to diverge in the ways that most people in each country, I believe, will continue to celebrate (p. 126).
S. Neidhardt – Northview Heights S.S. History Department (retired). Toronto, Ontario.
[IF]Identités, Mémoires, Conscience historique – TUTIAUX-GUILLON; NOURISSON (CC)
TUTIAUX-GUILLON, Nicole; NOURISSON, Didier (Org). Identités, Mémoires, Conscience historique. Publications de l’Université de Saint-Etienne, 2003. 220p. Resenha de: AUDIGIER, François. Le cartable de Clio – Revue romande et tessinoise sur les didactiques de l’histoire, Lausanne, n.3, p.319-321, 2003.
Ce volume rassemble les contributions présentées lors du Congrès mondial de la Société internationale de didactique de l’histoire qui s’est tenu à Lyon en 2001. Les organisateurs avaient retenu trois mots – identités, mémoires, conscience historique – pour définir le thème principal de ce Congrès, trois mots qui dessinent un ensemble de questions qui traversent aujourd’hui nos sociétés, l’histoire savante, l’histoire scolaire. Les questions posées ont rencontré un large écho dans la plupart des États et systèmes scolaires européens mais aussi en Amérique du Nord et du Sud, dans certains États d’Afrique et d’Asie. La diversité des contributions témoigne de cette large ouverture et de cette convergence des préoccupations. C’est un des intérêts forts de cet ouvrage que de nous ouvrir ainsi à d’autres horizons, de pouvoir établir des rapprochements, nuancer des différences, tenter de partager la recherche de solutions pour répondre aux défis que l’enseignement de l’histoire doit affronter.
L’ouvrage est divisé en trois parties. Chacune rassemble, autour d’un axe directeur, des contributions dans lesquelles les trois termes choisis pour ce Congrès entrent en écho l’un avec l’autre. La perspective commune est aussi celle d’une nécessaire interrogation de l’histoire scolaire du point de vue de sa définition, de ses contenus et de ses modes de transmission.
La première interroge « l’enseignement de l’histoire entre principes et pratiques ». Dans sa conférence d’ouverture Christian Laville livre une analyse critique du concept de conscience historique et du courant qui le porte. Empruntant ses références aux situations européenne et québécoise, il ouvre très largement son propos aux travaux anglophones. Il introduit ainsi une préoccupation qui habite de nombreuses contributions de cet ouvrage avec la critique du récit largement développée chez certains historiens et à l’école, et l’importance de plus en plus grande accordée à l’enseignement des modes de pensée historique. Nicole Tutiaux-Guillon s’appuie en particulier sur sa participation à l’enquête Jeunes et histoire pour mettre l’intention de construction d’une conscience historique critique au regard des coutumes didactiques. Elle souligne le poids des secondes comme obstacle à la première et souligne l’importance accordée aux connaissances comme vecteur privilégié voire unique pour cette construction. En s’appuyant sur l’exemple français Annie Bruter questionne la relation entre l’identité, la mémoire collective et l’enseignement de l’histoire. Si certains facteurs internes à l’école expliquent le délitement de cette relation, il convient aussi de considérer le rôle déterminant joué par les transformations de l’idée de nation. Elle conclut sur les ambiguïtés et les écarts qui caractérisent l’histoire scolaire et les discours officiels. Avec la Commune de Paris, Didier Nourrisson introduit les « oubliés » de l’histoire scolaire, les contenus de celle-ci variant de manière souvent plus spontanée que vraiment réfléchie. Ses réflexions se prolongent dans ce numéro du Cartable. Arja Virta clôt cette première partie par la présentation d’une enquête menée auprès de futurs enseignants du primaire en Finlande, sur les conceptions que ces derniers ont de l’histoire et de son rôle dans la société et pour les individus. Elle met notamment en évidence les composantes intellectuelles et critiques, mais aussi affectives et émotionnelles des relations que les personnes entretiennent avec l’histoire.
La deuxième partie traite de la question des « enjeux » et des « contextes ». Trois communications sont présentées par des universitaires engagés dans la formation des maîtres et travaillant dans des contextes différents. Robert Martineau analyse le problème identitaire canadien dans quatre de ses dimensions: historique, politique, civique et éducative, pour appeler à une nécessaire refondation de la citoyenneté canadienne dans une société plurielle. Il met en écho les travaux de nombreux historiens de son pays avant de plaider pour un enseignement qui, loin des grands récits épiques, privilégie un apprentissage des modes de pensée historique. Elisabeth Erdmann interroge la mémoire dans l’Allemagne d’aujourd’hui alors que s’y développe une sorte de « boulimie commémorative » selon la formule de Pierre Nora. Elle compare Les lieux de mémoire avec un ouvrage paru en Allemagne et inspiré par la même problématique, pour souligner certaines des différences entre les deux œuvres, différences liées au contexte de chaque pays. Observant l’accent mis en Allemagne sur les deux derniers siècles, elle propose de reprendre la distinction entre mémoire «communiquée» très liée à la mémoire orale, mémoire culturelle qui renvoie aux signes multiples dans une société donnée et mémoire historique liée aux méthodes critiques, à l’usage raisonné des sources, etc. Elle plaide pour un enseignement permettant aux élèves de différencier ces mémoires et pour le développement d’enquêtes comparatives entre nos États. L’enquête est le matériau sur lequel s’appuie Lana Mara de Castro Siman pour étudier les représentations du passé qu’ont de jeunes brésiliens, en prenant pour objet principal la fondation de la nation au Brésil et en utilisant la lecture d’images. Elle conclut notamment sur l’importance de l’histoire scolaire dans la formation de ces représentations et se prononce pour un enseignement qui favorise la rupture avec les schémas binaires simplificateurs.
Les contributions de la troisième partie sont rassemblées sous le titre de « Penser le passé, apprendre l’histoire ». Charles Heimberg développe l’importance d’un enseignement centré sur l’apprentissage des modes de pensée de l’histoire comme contribution d’une nouvelle manière d’interroger son identité et de regarder le monde. Il insiste notamment sur la distinction entre histoire et mémoire avant de proposer quelques exemples de travail en classe et de poser quelques questions sur la difficile question de l’évaluation. Jacques Vieuxloup présente une recherche en cours sur l’enseignement des concepts d’État et de pouvoir dans des classes de quatrième et de troisième dans un collège français. Tout en faisant place aux interrogations que l’idée même de concept soulève en histoire, il se situe dans la perspective d’un enseignement qui privilégie la construction de concepts et fait état des premiers résultats obtenus auprès des élèves. En s’appuyant sur les expériences menées à l’Université catholique de Louvain, Kathleen Rogiers fait quelques suggestions sur l’usage des ordinateurs dans l’enseignement et l’apprentissage de compétences historiques avec des élèves de l’enseignement secondaire. Le support est un cd-rom comportant quatre dossiers de sources historiques permettant de travailler sur le concept de pouvoir dans la société médiévale. L’accent est mis sur l’autonomie, la participation active, le travail d’interprétation, autant de résultats importants pour un enseignement renouvelé de l’histoire. Susanne Popp étudie la spécificité de la mémoire concernant Rosa Luxembourg et Karl Liebknecht et ses transformations en Allemagne. Elle part du fait que cette mémoire est une mémoire centrée sur un « couple » et non sur un « héros » pour analyser les possibilités que cette particularité éveille mais aussi les obstacles. L’existence de deux Allemagnes pendant une quarantaine d’années permet de développer une comparaison entre deux traditions mémorielles qui se rejoignent dans l’oubli des textes politiques de ces deux personnages. Angelina Ogier Cesari analyse les discours sur Napo léon 1er dans un corpus de manuels scolaires de l’école élémentaire entre 1880 et 1995 en France. Elle construit une périodisation de ces discours qui s’achève, à partir des années 1980, par une très nette diminution de la place accordée à Napoléon. Le lien avec les finalités de l’enseignement de l’histoire est ici fortement établi, la construction d’une identité nationale essentielle hier, un déclin de cette référence et une ouverture au monde aujourd’hui. En relation avec la mondialisation, Tayeb Chenntouf étudie la place donnée à l’histoire des civilisations et au concept de civilisation dans les enseignements d’histoire et de géographie des pays du Maghreb et de France. Il constate l’ouverture internationale de l’histoire surtout pour l’étude des civilisations anciennes et, en revanche, la place relativement modeste accordée aux civilisations du temps présent. Le projet Braudel reprend toute sa pertinence dans un monde où la prise en compte des identités plurielles, l’ouverture aux autres et la tolérance sont plus que jamais nécessaires.
Il revient à Henri Moniot qui a incarné l’intérêt des historiens universitaires pour la didactique de l’histoire de conclure en convoquant quelques « saints » auxquels se vouer. Choisissant Braudel, Létourneau, Lepetit et plusieurs autres, il reprend à nouveau frais la double référence, incontournable comme on dit aujourd’hui, qui commande l’enseignement de l’histoire: la connaissance et la connivence. Tout cela appelle, exige suis-je tenté d’écrire, la poursuite de divers chantiers déjà engagés, l’ouverture de quelques nouveaux, et pour tous, le développement de solides recherches appuyées sur des données empiriques, seul moyen de mettre à distance, au moins un peu, les dimensions idéologiques, affectives, les passions dont l’histoire et son enseignement sont l’objet.
François Audigier – Université de Genève.
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