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Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950) – TRUZZI (FH)
TRUZZI, Oswaldo. Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950). São Paulo: Editora Unesp, 2016, 137p. Resenha de: SUDATTI NETO, Reinaldo. Faces da História, Assis, v.5, n.1, p.349-355, jan./jun., 2018.
Oswaldo Maia Serra Truzzi nasceu em Campinas em 1958 e, atualmente, atua como historiador titular na Universidade Federal de São Carlos, nos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Engenharia de Produção. Possui trabalhos na área de Sociologia relacionados ao tema das imigrações, envolvendo a história social das imigrações, não somente a italiana, mas também a síria e libanesa. Além de obras de relevância como Roteiro de fontes sobre a imigração internacional em São Paulo (1850- 1950) e Repertório da legislação brasileira e paulista referente à imigração.
O livro Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950), lançado pela Editora Unesp em 2016, é apontado, no prefácio do historiador Ângelo Trento, como uma obra que procura levantar uma discussão inovadora no meio acadêmico, a saber: a formação de uma identidade étnica, envolvendo os imigrantes italianos no interior paulista, em um período precedente à construção identitária ocorrida na Itália.2 Em tempo, discute as circunstâncias que auxiliaram e prejudicaram essa construção, ocorrida entre os anos de 1880 e 1950.
O livro inicia-se tomando como referência os estudos de Philippe Poutignat (2008) e Jocelyne Streiff-Fenart que abordaram as concepções teóricas acerca do processo de construção das identidades culturais dos povos, quando confrontados com uma nova sociedade. Deve-se, aqui fazer uma ressalva a respeito do conceito de etnia, o qual não deve ser tomado como superioridade racial e, sim, como um conceito que permite refletir sobre o tema da identidade de si mesmo e sua constituição, a partir do contato entre grupos culturais.
Partindo dessa análise, o autor dirige-se ao mote da composição identitária. Para tanto, embasa-se no estudo de Benedict Anderson (2008) sobre as origens das noções de pertencimento no interior de comunidades construídas de forma heterogênea.
Acrescenta-se, ainda, as reflexões de Maurice Halbwalchs (2006) a respeito da ativação das memórias individuais e coletivas e, dos fatores que se cruzam, entre essas lembranças, criando uma noção de identidade cultural. Com isso, o autor busca reforçar sua tese de que houve um sentimento agregador de italianidade e de pertencimento, nascido primeiro no Brasil, e depois na Itália.
Como recurso teórico para analisar a formação da identidade italiana no Brasil, Oswaldo Truzzi se apoia nos estudos de Pierre Bourdieu (1996) e de Paula Beiguelman (2005), que enfatizam a relação de alteridade construída entre grupos culturais distintos.
Essa relação de alteridade teria fomentado o início da formação da identidade entre os imigrantes italianos que passaram a habitar o interior paulista, entre os anos finais do século XIX e o começo do XX.
Com o objetivo de ratificar a sua tese de uma identidade italiana surgida primeiro no Brasil, o historiador faz uso das tabelas contidas nas obras dos pesquisadores Zuleika Alvim (1986), Angelo Trento (1989) e na análise do demógrafo italiano Giorgio Mortara (1950), cujos dados indicam os números de entrada e saída dos imigrantes, grupos envolvidos nessas correntes migratórias e destinos dessas pessoas na nova terra.
Em seguida, Oswaldo Truzzi passa a descrever o contexto da Itália e do Brasil, em fins do século XIX, evidenciando os motivos que levaram à saída dos imigrantes italianos em direção ao Brasil; a partir de suas constatações e com base nos estudos de Nugent (1995), o autor concluiu que haveria uma dificuldade em afirmar uma italianidade trazida pelos imigrantes da sua terra natal, por outro lado, seria possível analisar uma italianidade construída aqui, no Brasil.
Com base nos estudos sobre a construção da identidade italiana, o autor segue para a diferenciação que se estabelecia entre os ambientes rurais e urbanos. Sobre os primeiros, destacou o modo de trabalho vigente nas fazendas, nas quais os imigrantes foram submetidos à mentalidade escravocrata e a impossibilidade de locomoção, bem como aos maus tratos que levavam às revoltas e resistências. Entretanto o autor avaliou as causas do pouco número de resistências e, valendo-se das análises do historiador Cliford Welch (1999), e de autores como Stuart Hall (2008) e Zuleika Alvim, concluiu que o isolamento dos colonos aliado a um baixo nível de educação formal dos imigrantes e de seus filhos foi fundamental para a pouca ocorrência de conflitos. O que não impediu o registro de formas de resistências como a mudança frequente de fazendas ou, até mesmo, a fuga delas, em alguns casos, para centros urbanos.
Outro ponto analisado foram os matrimônios entre pessoas de regiões semelhantes; para tanto, Truzzi se baseou em seus estudos anteriores sobre os casamentos na Cidade de São Carlos, entre 1860-1930, aliando-os aos trabalhos das historiadoras Maria Stella Levi e Julia Scarano (1999) e do pesquisador Angelo Trento.
O autor chega à conclusão que a união entre pessoas de mesma origem, até a Primeira Guerra Mundial, seria algo que facilitaria o retorno à terra natal, pois a estadia no Brasil era vista como temporária. Daí, a questão de tantos casamentos entre pessoas da mesma origem, havendo declínio desse costume após os anos 1930 e 1940, por conta dos desarranjos nas políticas de imigração assim como, o distanciamento dos laços de origem.
Já no meio urbano, o pesquisador faz um contraponto entre os trabalhos do historiador Warren Dean (1977), que apontava uma relação entre a bagagem profissional trazida do país de origem com novas possibilidades de crescimento do imigrante, os estudos da antropóloga Eunice Durham (2004) a respeito da cidade de Descalvado e os estudos da historiadora Flávia Oliveira (2008), na cidade de Jaú, nos quais as autoras ressaltam que a ascensão urbana se dava apenas com algumas famílias, sendo difícil precisar uma única causa.
O movimento associativo é destacado como via de ascensão social, afinal agregava parte da elite de imigrantes. Essas agremiações se constituíram em lugar de comemorações e festas nacionais que lembravam o local de origem, atraindo cada vez mais público. As elites italianas, por sua vez lançavam-se ao trabalho de construir uma unidade cultural e linguística entre os membros da colônia. A discussão sobre os movimentos associativos se amplia com os estudos de Fábio Bertonha (2005), e da socióloga Eunice Durham na cidade de Descalvado, que fazem referência a uma consciência de italianidade que se manifestava na promoção de solidariedade na colônia, na comemoração de datas patrióticas e na organização de atividades assistenciais e recreativas.
Associação de grande importância, a Sociedade Italiana de Beneficência de São Paulo Vitório Emanuel II, fundada na capital paulista, em 1879, é destacada por Truzzi por se constituir no modelo de sociedade para todas as outras que surgiram no Estado (BIONDI, 2011).
Ainda no que tange às associações de imigrantes, são reforçadas as causas que levavam à formação das mesmas (carência e ausência de políticas de amparo aos imigrantes), assim como as questões dos regionalismos trazidos da Itália que ocasionavam certas dificuldades à manutenção dessas agremiações. Tal processo pode ser observado pela visão negativa que os imigrantes do norte e sul da Itália tinham entre si, como exemplo, a tensão entre os vindos da região do Vêneto e da Calábria, ressaltando-se, ainda, o preconceito contra esses últimos por parte do restante dos imigrantes.
Além das rivalidades e diferenças étnicas, que representavam problemas para as associações, Truzzi amparado pelos estudos de Luigi Biondi e Angelo Trento cita outros problemas que levaram as associações a se desestabilizarem. Dentre os motivos estavam os conflitos de agenda dos diretores das associações que precisavam manter os vínculos de identidade dentro da colônia, buscando o reconhecimento da comunidadeMesquita Filho”, UNESP, câmpus de Assis.
de imigrantes da qual faziam parte e, simultaneamente, procuravam vias de integração às elites locais. Essa situação vivenciada pelos dirigentes evidenciava uma ambiguidade entre a cultura interna trazida pelos imigrantes e seus descendentes e a cultura do país de acolhimento, colocando-se como limites a serem extrapolados, segundo os estudos de Robert Foerster (1919).
A questão do fascismo é retratada pelo autor como um meio de ligar novamente a Itália à comunidade de imigrantes. Com base nos estudos de Bertonha sobre a ação fascista junto à comunidade italiana analisa-se a forma como o regime totalitário foi caracterizado no Brasil e como as classes sociais interagiram com ele.
O autor levanta o ponto de vista das elites brasileiras, que viam os recémchegados como pessoas que conheciam seu lugar na sociedade distanciando-se por isso da política e não ameaçando o domínio das elites locais. Visão que se modificou com a Revolução de 1930, e consequente abertura de oportunidades de projeção social e política por meio das associações comerciais, formadas por uma maioria de origem italiana. Por outro lado, o autor observou-se na geração dos filhos de imigrantes um menor pendor a propagandearem a sua filiação étnica, implicando na diminuição da italianidade como critério de legitimação política e social.
Sabemos que o tema sobre o processo imigratório Itália – Brasil é algo muito estudado, parecendo à primeira vista que nada de inovador possa emergir dele. No entanto, lermos o livro citado, podemos verificar como “[…] essa abordagem do tema torna-se a linha mestra de Truzzi”, que pesquisa a formação e construção do sentimento de identidade italiana, no Brasil, antes de ser construído na Itália.
O livro Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950) traz, portanto, algo muito inovador e instigante. Essa pesquisa aumenta e revitaliza o entendimento sobre a importância da imigração italiana e identidade cultural, no Brasil, a despeito das diversidades regionais trazidas da Itália, além de permitir a compreensão de como esse processo repercutiu entre seus descendentes, assim como na sociedade de acolhimento, evidenciando a importância das trocas culturais tanto para imigrantes quanto para os brasileiros.
Notas
2 Mesmo após a unificação em 1870, os habitantes da Itália possuíam uma relação de identidade ligada mais ao local de origem do que à nação como um todo, não havendo uma identificação comum, antes e durante a fase que da grande imigração, entre as décadas de 1870 e 1920, período no qual a nação enfrentou instabilidades políticas e sociais, que prejudicaram a construção de uma identidade nacional.
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Reinaldo Sudatti Neto – Mestrando em história pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Campus de Assis.
[IF]Italianidade no interior paulista – TRUZZI (RH-USP)
TRUZZI, Oswaldo Mario Serra. Italianidade no interior paulista – percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950). São Paulo: Editora Unesp, 2016. Resenha de: ALMEIDA, Geraissati Castro de. Identidade étnica ou identidades étnicas? Italianidade em Oswaldo Truzzi. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo 2018.
Entre os anos de 1881 e 1915, cerca de 31 milhões de imigrantes chegaram à América no período classificado como o das grandes migrações.2 Estes deslocamentos ensejaram contatos entre pessoas de diferentes formações culturais que tornaram a construção de uma identificação de si um fenômeno recorrente ao longo dos séculos XIX e XX.
Inserido na produção que analisa essa conjuntura está o livro publicado em 2016, Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950), pelo professor da Universidade Federal de São Carlos, Oswaldo Truzzi. Seu objetivo é compreender como se deu o processo de estruturação de uma identidade étnica do grupo de indivíduos que emigraram da Itália no recorte temporal que abrange os anos de 1880 a 1950. O espaço geográfico privilegiado em sua análise é o interior paulista, pertencente ao estado que possuiu o maior afluxo migratório brasileiro neste contexto; do total de imigrantes que vieram ao Brasil, 57,7% optaram por São Paulo.3
O pesquisador é formado em Engenharia de Produção pela Universidade de São Paulo (1979), mestre em administração de empresas com a dissertação Café e indústria (1850-1950) – o caso de São Carlos pela Fundação Getúlio Vargas, SP (1985) e doutor em Ciências Sociais com o estudo Patrícios – sírios e libaneses em São Paulo pela Universidade Estadual de Campinas (1993). Sua tese de doutorado elucidou o processo da integração entre migração e imigração e salientou que há contextos específicos tanto na pátria de origem quanto na que os recepciona que possibilitam a estes indivíduos permanecerem em locais por vezes com costumes diversos.
Também autor do livro Sírios e libaneses: narrativa de história e cultura (2005), Truzzi propõe, por meio de uma análise quantitativa, uma periodização para as levas migratórias deste grupo. É coautor de livros que sistematizam informações sobre a imigração como Atlas da imigração internacional em São Paulo (1850-1950), Roteiro de fontes sobre a imigração em São Paulo (1850-1950) e Repertório da legislação brasileira e paulista referente à imigração, todos publicados em 2008 pela Editora Unesp. Entre os anos de 1990 e 2002, foi pesquisador do grupo de História Social da Imigração do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp) que visava a preencher a lacuna sobre a imigração de caráter urbano. Sua trajetória acadêmica e sua inserção em grupos como a Red de Estudios Migratorios Transatlánticos indicam sua importância no tema.
O livro, dividido em cinco capítulos, principia por apresentar quais foram as concepções teórico-metodológicas utilizadas para estruturar sua noção de identidade. No primeiro capítulo, “à guisa de uma introdução teórica”, o autor propõe que a identidade étnica é essencialmente uma fronteira social, produto da relação entre o imigrante, seu próprio grupo e sua sociedade receptora. Ao perscrutar as diversas camadas sobrepostas na identidade italiana, visa mostrá-la como um processo histórico constantemente negociado, em que ora ocorre a aceitação, ora a resistência à assimilação. Dessa forma, ao migrarem, inevitavelmente as culturas tradicionais passam por alterações (p. 17). Truzzi entende que a experiência social destes imigrantes se localiza em uma zona de intersecção entre background social, econômico e cultural de sua terra de origem, contexto político e econômico de ambas as nações no período de migração e condicionantes de inserção na nova terra com suas oportunidades de mobilidade (p. 20).
Para a construção da “italianidade”, uma forma de identificação a partir de uma experiência social heterogênea, o pesquisador se referencia na noção de comunidade imaginada proposta por Benedict Anderson que consiste em um sentimento de pertencimento a uma identidade nacional forjada. Entretanto, ao longo das páginas seguintes, demonstra que as primeiras levas migratórias advindas de uma Itália recém unificada possuíam vinculações com suas regiões de origem, identificando-se como calabreses, vênetos, dentre outros, e não com o Estado-nação italiano, algo que leva o leitor a indagar-se ao longo do livro se será possível emergir de fato a “italianidade”.
No capítulo “A profusão de italianos no interior paulista”, é reafirmada a importância do tema ao compilar bibliografia que analisa a imigração advinda da Itália: as cifras atestam que 57% dos imigrantes aportados no Brasil entre 1886 e 1900 provinham dessas regiões. Para possíveis questionamentos quanto ao recorte centrar-se no interior paulista, o autor retoma Thomas Holloway que estima que, nos anos 1893-1910, nove entre dez imigrantes que deixaram a hospedaria do Brás se dirigiram ao oeste paulista, sobretudo próximos à Ferrovia Paulista (São Carlos) e à Ferrovia Mogiana (Ribeirão Preto) (p. 23).
Para compreender o percurso que foi desenvolvido pela “italianidade” no interior paulista, o sociólogo elenca três ocasiões que se constituíram em marcos para uma mudança neste sentimento. São elas: os momentos iniciais da imigração e a construção da “italianidade” fora da Itália, isto é, forjada na sociedade de acolhimento; a emergência do fascismo na Itália e sua tentativa de revigorar um sentimento nacional; e o Estado Novo e a campanha de nacionalização encetada por Vargas. Os meandros desses processos e os argumentos do autor serão elencados a seguir.
O capítulo “Uma italianidade construída em São Paulo” aponta que inicialmente, ao migrarem, estes sujeitos não possuíam uma “italianidade”. Para corroborar esta afirmação o autor cita que Hobsbawm estimou que apenas 2,5% falavam italiano na época em que a Itália foi unificada (p.36). Logo, a designação “italiano” foi cunhada em solo brasileiro pela própria sociedade receptora que, assim, denominava a todos os advindos deste mesmo espaço geográfico. Apesar de haver sido criada de maneira exógena, o autor acredita que esta circunstância promoveu consequências na formação de uma identidade comum dentro desta comunidade. A relação com outros, cujas fronteiras identitárias nacionais e raciais já estavam bem demarcadas, a exemplo dos negros, propiciou a criação de um reconhecimento de si por contraste. O grupo se afirmou enquanto branco e vinculado a uma valorização da ética do trabalho, de caráter preponderantemente individualista (p. 41). Apesar de trazer este contexto como o momento inicial de sua identificação enquanto grupo, Truzzi destaca que houve desafios para sua consolidação tanto em virtude dos regionalismos, que se faziam presentes na trajetória destes imigrantes, quanto em função de sua progressiva diferenciação social ao gerar reconhecimentos de classe que superavam a identificação étnica.
Nos capítulos “No meio rural” e “No meio urbano” o autor pontua episódios que foram relevantes na trajetória destes sujeitos e que impactaram na formação de um sentimento de pertencimento a uma mesma comunidade. Entre eles, a proibição em 1902 pelo governo italiano das passagens subsidiadas em função das precárias condições de trabalho nas fazendas de café. Esta promoveu a queda dos fluxos migratórios de italianos que foram substituídos por espanhóis e portugueses (p. 55-56), fato que enfraqueceu as possibilidades da formação da “italianidade”.
Truzzi afirma que, para tentar articular estes indivíduos, a ação da imprensa, das escolas étnicas e das sociedades de auxílio mútuo desempenharam um papel significativo ao realizarem esforços para acomodar, em uma mesma instituição, indivíduos com credos e ideologias distintas. Contudo, a arregimentação e o entendimento entre estratos de uma colônia com diferenças de origem muito acentuadas foram árduos (p. 87) e pareceram se prestar mais aos interesses de uma camada bastante específica desta colônia. O autor tangencia o argumento de que uma “italianidade” ocorreu em função dos esforços de uma elite étnica que, ao integrar essas associações, visava se legitimar enquanto representante de uma numerosa coletividade e assim adquirir um prestígio que lhe outorgasse espaço nas oligarquias locais.
A efetivação da “italianidade” parece adquirir expressão a partir dos anos de 1920 com a emergência do fascismo na Itália. Ao propor uma vinculação direta entre regime e nação, o governo italiano entendia a comunidade dos emigrados como um importante representante e propagandista de seus interesses políticos e econômicos. Todavia, o autor destaca que a queda dos fluxos migratórios debilitava a adesão ao fascismo e que os filhos de imigrantes já se consideravam brasileiros e estavam mais propensos ao integralismo. Logo, o fascismo obteve impacto apenas entre os imigrantes que ascenderam socialmente e aspiravam se desvincular de sua aldeia de origem, e entre os comerciantes que viajavam para a Itália com frequência (p. 106). Para as classes subalternas essas questões permaneceram difusas e a condição de classe se fez mais presente que a étnica.
Por fim, o golpe final dado na tentativa da formação da “italianidade” foi perpetrado pelo Estado Novo que, com uma forte política nacionalista, reprimiu as escolas, imprensa e associações étnicas, ato que segundo o sociólogo fez com que o capital étnico migrasse para o social e político. Em fins dos anos de 1930 e especialmente no pós-Segunda Guerra, a “italianidade” não servia mais como legitimidade na comunidade já que a distância do processo migratório esvaziava o sentido de invocar essa noção (p. 120).
Ao fim do livro restam algumas indagações: afirmar a italianidade como uma comunidade imaginada, limitada e soberana aos moldes de Anderson não pressuporia especificidades em comum destes indivíduos? Atribuí-la a uma diferenciação com relação aos negros e ao fato de serem estrangeiros dentro de uma comunidade com costumes diferentes pode ser proposto a todas as comunidades de imigrantes. Indicar que a construção deste sentimento esbarrou em diferenças de formação social e histórica das diversas regiões da Itália implicaria que, para estes indivíduos, a noção de comunidade limitada nunca se fez presente.
Afirmar o protagonismo do imigrante no comércio e na indústria tanto como empresário quanto como empregado (p. 68), sem destacar todas as tensões que envolviam sua inserção na sociedade, oblitera um aspecto que foi relevante na formação destes indivíduos. Os imigrantes se tornaram a maior parte da população e exerceram inúmeras funções no campo e na cidade, o que gerou insegurança sobre como lidar com esse enorme contingente. No período abordado pelo autor, eram correntes os embates tensos entre a “assimilação” ou a “aculturação” destes indivíduos.4 Longe de embates que tensionavam constituírem uma população naturalizada no cotidiano, as crônicas e jornais demonstram que sua presença era percebida e incômoda. Foram criados estereótipos para as diferentes colônias que aqui aportaram, denotando uma insatisfação com a sua presença e demarcando-as como “o outro” na cidade. A respeito dos italianos houve a criação da imagem do “carcamano”, termo pejorativo para designar os comerciantes.
A imagem de São Paulo como um local de convivência harmoniosa foi forjada ao longo dos anos, a partir de um discurso que tentava imprimir marcas cosmopolitas à cidade e ao estado. Os imigrantes que enriqueceram e os operários que participaram de movimentos políticos não foram vistos com bons olhos pelas famílias tradicionais. O suposto cosmopolitismo possuiu outras faces, nas quais o incentivo à imigração se inseriu em virtude do fim da outrora lucrativa escravidão e da política de embranquecimento atrelada à ideia de modernidade. Em decorrência desse projeto nem todos os imigrantes eram bem-vindos e, como propõe Sevcenko, a capital estava mais para um “Cativeiro da Babilônia” que para uma “Babel invertida”, como sugeriu um cronista da época.5
Quanto ao fato de os imigrantes que adentraram na política não manejarem o capital étnico ao se colocarem como estrangeiros, pode-se indagar se isto não decorre da tentativa de ocupar espaços junto às oligarquias locais, tornando invisíveis suas origens para não parecerem uma ameaça aos nacionais. Para a historiadora Raquel Glezer a gênese da interpretação do passado colonial como um período glorioso foi cunhada neste momento em função da elite intelectual entender os imigrantes como uma ameaça constante que, uma vez trazidos para trabalhar na lavoura, impactaram a transformação do território.6 Logo, a análise de Truzzi não pontua alguns momentos relevantes na política e na legislação da cidade, necessários para pensar a inserção e as possíveis identidades manejadas pelos imigrantes ao atuarem nestes espaços.
Em termos metodológicos, em seus artigos mais recentes, tal como “Redes em processos migratórios”,7 o sociólogo defende enfoques que caminhem no sentido de recuperar o papel do agente e de sua rede, fator decisivo na escolha dos locais de destino. Na abordagem proposta por Truzzi, visa-se dar ao imigrante um papel de agente racional, privilegiando o viés da micro-história na expectativa de encontrar a ação social e informações que se perderam nas escalas macroscópicas. Neste livro, apesar de realizar breves menções a imigrantes que atuaram nas cidades analisadas, não são consideradas suas trajetórias, usadas apenas para ilustrar algumas de suas proposições. Verifica-se tal procedimento ao versar sobre os imigrantes que, de forma precoce, adquiriram uma inserção privilegiada na sociedade de destino (p. 77). São citados alguns nomes e breves informações que não demonstram os meandros dessas ascensões sociais, gerando a heroicização desses self-made-men, uma vez que não há a significação e a problematização de suas trajetórias. Metodologia similar ocorre em relação à abordagem da iconografia que é utilizada ao longo do livro para corroborar suas afirmações, sem merecer maiores explanações.
A pertinência de Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950) está em historicizar o termo “italianidade” mostrando seus desafios e particularidades em diferentes temporalidades. Contudo, o leitor ao fim do livro, percebe que ocorreram múltiplas criações de identidades étnicas, frutos de uma ação ativa destes indivíduos. Porém, não fica convencido da equivalência entre identidade étnica e “italianidade”. A última parece nunca ter se efetivado para além de um projeto criado fora do grupo pela sociedade receptora e que, posteriormente, foi reapropriado por setores desta colônia que desejavam erigir seu poder simbólico.
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3 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. O Brasil dos imigrantes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, p. 22.
4 GORELIK, Ádrian. A aldeia na cidade. Ecos urbanos de um debate antropológico. In: LANNA, Ana Lucia Duarte; LIRA, José Tavares Correia de; PEIXOTO, Fernanda Arêas; SAMPAIO, Maria Ruth Amaral. São Paulo, os estrangeiros e a construção das cidades. São Paulo: Alameda Editorial, 2011; SEYFERTH, Giralda. Cartas e narrativas biográficas no estudo da imigração. In: DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri & TRUZZI, Oswaldo Mário Serra. Estudos migratórios: perspectivas metodológicas. São Paulo: EdUFSCar, 2005; PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In: VELHO, Otávio Guilherme (org.). O fenômeno urbano. 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.
5SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 37.
6GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Ed. Alameda, 2007, p. 179.
7TRUZZI, Oswaldo Mario Serra. Redes em processos migratórios. Tempo Social (USP. Impresso), vol. 20, p. 199-218, 2008. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ts/article/view/12567. Acesso em: 6 jun. 2018. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-20702008000100010.
Renata Geraissati Castro de Almeida – Doutoranda no Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. E-mail: rgeraissati@gmail.com.
Santa Felicidade, o bairro italiano de Curitiba: um estudo sobre restaurantes, rituais, e (re)construção da identidade étnica | Maria F. C. Maranhão
A presente resenha é referente ao livro Santa Felicidade, o bairro italiano de Curitiba: Um estudo sobre restaurantes, rituais e (re)construção de identidade étnica, da autora Maria Fernanda Campelo Maranhão. A obra é uma dissertação de Antropologia social defendida na UFPR no ano de 1996 e publicada como livro em 2014, integrando a Coleção de Teses do Museu Paranaense. A autora possui graduação em Arqueologia pela Universidade Estácio de Sá (1986), no Rio de Janeiro e mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná (1996). É funcionária pública do Estado do Paraná desde novembro de 1987, estando locada no Museu Paranaense, e atualmente é responsável pelo Setor de Antropologia da instituição, onde atua na gestão, pesquisa, catalogação, e cadastramento de acervos Etnográficos e Imagéticos em banco de dados digital. Possui experiência em Etnologia Indígena, Acervos Etnográficos e História da Antropologia.
A obra é estruturada em cinco capítulos. Eles tratam, respectivamente, de descrever brevemente a imigração italiana no Paraná no âmbito do projeto nacional de formação de um campesinato; explorar a identidade italiana e realizar uma etnografia do bairro; apresentar o bairro como centro gastronômico; discutir sobre o estudo da comida na antropologia, evidenciando o caráter simbólico e de construção de identidade; e apresentar de que forma as políticas públicas interferiram na formação de identidade no bairro italiano.
Em sua introdução, Maranhão afirma que pretende se utilizar da comida típica e dos restaurantes de Santa Felicidade como recorte para discutir questões de etnicidade, relações interétnicas e transnacionalidade, sendo o foco principal de sua análise a comida italiana e seus restaurantes enquanto símbolos de etnicidade. Desta maneira, ela aborda também a influência das políticas públicas locais e transnacionais na (re)construção da identidade italiana no bairro, no âmbito das comemorações do aniversário de 300 anos de Curitiba, quando houve uma valorização das etnias europeias. Ainda na introdução, a autora explica sua metodologia, na qual trabalhou com entrevistas tanto com moradores quanto com turistas, além de fazer uso de matérias documentais de pesquisa histórica, como jornais e revistas.
No primeiro capítulo, Do Vêneto a Colônia de Santa Felicidade, a autora trata da formação histórica do bairro. Assim, ela aborda a questão do incentivo à imigração para o Brasil no século XIX, responsável por um grande fluxo imigratório. A partir da década de 1850, com a imigração a cargo das províncias que agiam por intermédio das companhias de imigração, ela comenta que, no caso do Sul do Brasil, se pretendia estabelecer um campesinato, baseado na pequena propriedade e no trabalho familiar. No Paraná, núcleos coloniais foram instalados próximos aos centros urbanos, para abastecer um mercado que não era autossuficiente.
Os imigrantes que se dirigiram para Santa Felicidade eram, no entanto, originalmente da região italiana do Vêneto, e haviam sido instalados na colônia Nova Itália, no litoral do estado, mas esse assentamento não progrediu, pois os colonos não conseguiram se adaptar, devido à falta de mercado consumidor para seus produtos, e também pela ausência de orientação sobre as doenças tropicais, assim como sobre o cultivo apropriado e sobre as pragas da lavoura. Dessa forma, as famílias decidiram se mudar para o planalto, seguindo as informações recebidas pelos tropeiros que passavam pela região. Quinze dessas famílias que deixaram a colônia Nova Itália adquiriram, no planalto, terras da portuguesa Felicidade Borges, e estabeleceram sua colônia, que passou a se chamar Santa Felicidade e a atrair mais colonos italianos. Estabelecidos, passaram a vender seus produtos no centro de Curitiba.
No capítulo Identidade italiana e etnografia do bairro, Maranhão fornece algumas informações acerca da transformação da colônia em bairro de Curitiba, fruto do crescimento da cidade. Também devido à legislação, a autora afirma que não é permitida a construção de edifícios com mais de dois andares no local, o que fez com que o bairro mantivesse algumas características da arquitetura inspirada no Vêneto. Ela comenta também a diferença entre o centro – próximo à Avenida Manoel Ribas – e a periferia do bairro – mais distante, e aborda o comércio, destacando o artesanato, o vime, o vinho, e dá ênfase para os restaurantes, que são um cartão postal da cidade.
Neste capítulo, Maranhão procura fazer uma diferenciação entre o que chama de italianos de Santa Felicidade, colocando-os em oposição aos outros italianos e aos curitibanos. Ela embasa essa ideia no conceito de grupo étnico de Barth, onde mais do que uma cultura comum, é necessária a autoatribuição e a atribuição pelos outros para que se reconheça esse grupo, baseando-se também no conceito de identidade contrastiva, no qual o indivíduo constrói a sua identidade afirmando-se como diferente diante de outros grupos, ou seja, identidade que surge por uma oposição. Neste tópico, a autora considera uma identidade de italianos de Santa Felicidade que se constrói em oposição tanto aos não italianos quanto aos italianos de imigração mais recente, que não passaram pela experiência do campo. Ela ressalta que nos dois casos a Igreja Católica teria apresentado um papel fundamental nessa construção de identidade. Para a autora, a configuração atual do bairro segue os moldes dos primeiros imigrantes, visto que muitas das famílias ainda vivem em lotes originais, só que agora divididos entre os membros herdeiros, configurando o que Maranhão chama de contradas. E a rede de parentesco, que é em maneira recorrente definida como endogâmica, faz com que muitos italianos de Santa Felicidade ainda se vejam como parentes. Ela também comenta sobre a chegada, em anos mais recentes, de outras famílias italianas ou de descendentes, que acabaram por se tornar donos de restaurantes de sucesso, mas que não fizeram parte da construção inicial do bairro. Maranhão diferencia ainda o bairro dos turistas daquele dos italianos, onde convivem os descendentes das famílias.
Um Bairro Gastronômico é como se intitula o terceiro capítulo da obra, no qual a autora discute a origem dos restaurantes. O primeiro deles teria sido o restaurante Iguaçu, estabelecido com o intuito de vender um prato feito para os caminhoneiros que por ali passavam, nos anos 1940. Constituíram-se outros estabelecimentos na sequência, e o bairro foi se tornando famoso pela gastronomia. Esses restaurantes são considerados empreendimentos familiares. Outra característica comentada pela autora é a de que além de servir refeições, estes lugares são palcos para eventos. Os restaurantes típicos são diferenciados dos demais estabelecimentos de Curitiba por serem informais, ambientes familiares, destaca Maranhão.
Tratando a maneira pela qual as famílias típicas se relacionam com os restaurantes, a autora comenta que são poucas as que os frequentam, pois muitas mantém a tradição culinária em casa. Porém, desde o sucesso dos anos 1970, recorrem a eles em ocasiões festivas. Como afirma Maranhão, o bairro é relacionado com o lazer dominical dos curitibanos, e a cidade é identificada e se identifica com o bairro turístico e gastronômico.
No quarto capítulo, A boa comida de Santa Felicidade, ela comenta que o interesse dos antropólogos no estudo da alimentação existe desde o surgimento dessa ciência, mas que o alimento analisado em relações simbólicas é algo feito por pesquisadores contemporâneos. A autora cita os estudos de Roberto Da Matta, pioneiro destas discussões no Brasil, fazendo uma distinção clara entre alimento – aquilo de que o corpo precisa para sobreviver – e comida – o que se consome com prazer. Outra questão apontada é de que se deve contextualizar a refeição, identificando o que se come em dias de semana ou finais de semana, no cotidiano ou em celebrações, além de se fazer a distinção entre comida de casa e da rua. Quanto à comida nos restaurantes, Maranhão afirma que ela é composta pelo frango a passarinho, polenta frita e risoto de miúdos. Esses pratos, ainda que alterados para o consumo local, legitimam uma culinária tradicional do Vêneto, que contribui para a reinvenção da identidade italiana e do bairro de Santa Felicidade enquanto reduto gastronômico. Essa reinvenção de tradição estabelece uma continuidade com o passado histórico da colônia. Esses restaurantes levaram a comida local ao gosto dos curitibanos, que até então, tinham reservas em relação a alguns deles, como a polenta.
A comida aparece também nas festas do bairro, sendo elas 4 Giorni in Italia, e as festas da Uva e do Vinho – a primeira, realizada em outubro, para dar visibilidade aos restaurantes, a segunda em fevereiro, em comemoração da colheita da uva, e a terceira em julho para celebrar a safra anual do vinho. Nelas, os italianos de Santa Felicidade reafirmam sua identidade, em detrimento dos outros italianos e dos curitibanos. Maranhão detém sua análise nas duas últimas. A organização dessas festas é de responsabilidade quase total dos descendentes de italianos, onde eles reforçam a sua identidade étnica, baseada nos valores de família, trabalho e religião. A abertura da festa é o momento onde se dá o encontro cultural entre os donos do evento – os italianos de Santa Felicidade – e os curitibanos – para quem ele é destinado. O consumo da polenta na festa é o que a autora chama de agregação, momento no qual todos comem juntos, italianos e visitantes. Ainda é relevante comentarmos que, de acordo com Maranhão, uma vez que a Festa da Uva teve início em moldes diferentes do que se estabeleceu depois, e que somente à medida que crescia e recebia mais pessoas ela se italianizou, não há continuidade histórica dela com práticas trazidas da Itália, mas se configura numa tradição inventada.
O quinto capítulo é Um bairro “italiano” na Curitiba dos 300 anos, onde a autora explora a relação entre Santa Felicidade e Curitiba, e o papel das políticas públicas na (re)construção da etinicidade do bairro. Para ela, a relação entre Santa Felicidade e Curitiba foi bastante clara em dois momentos distintos: o centenário de fundação da colônia, em 1978, e os trezentos anos da Capital, entre 1990 e 1993. Essa (re)construção de identidade intensificada desde os anos 1970 deve ser pensada em um contexto mais amplo, o de desaparecimento da identidade italiana, como no exemplo da repressão contra italianos, alemães e japoneses realizada pela política de nacionalização do Estado Novo, de Getúlio Vargas, nos anos 1930. Com essa repressão, grande parte das atividades culturais existentes em Santa Felicidade antes da guerra desapareceu. O renascimento cultural do bairro viria apenas no final dos anos 1970. Essa divulgação de imagem italiana se deu, para a autora, em dois momentos: em 1978, no ano do centenário, o bairro já era um atrativo turístico e gastronômico, quando recebeu investimento na divulgação de sua imagem italiana pela Prefeitura de Curitiba, além do investimento em transformações que pretendiam deixar o bairro com cara de cidade italiana. Outro momento de investimento deste tipo foi nos anos 1990, com o aniversário dos 300 anos de Curitiba. Desta data, dentre outas construções, se destaca o portal italiano. Ela ressalta que estes últimos investimentos estavam de acordo com um plano de estabelecer Curitiba como cidade de primeiro mundo, cosmopolita e multiétnica.
Em sua Conclusão, ela comenta que o bairro de Santa Felicidade constrói sua imagem de duas maneiras: na perspectiva externa, olhando as pessoas de fora do bairro como os outros, curitibanos e turistas, e a perspectiva interna, se reconhecendo como italianos, sendo a imagem externa unificadora, conferindo à Santa Felicidade o status de bairro italiano de Curitiba, com destaque para o apelo gastronômico. Já para os moradores italianos, o bairro ainda é uma colônia vêneta, e eles formam, segundo Maranhão, um grupo étnico em torno de um território comum, de fronteiras simbólicas, “de temporalidade e especificidades culturais singulares: ancestralidade comum, intensa sociabilidade, laços de vizinhança, uma complexa rede de parentesco e uma ativa participação nos rituais realizados no interior do grupo” (MARANHÃO, 2014, p. 212). Por fim, a autora reafirma o fato de como a comida italiana e a politização do grupo étnico nas celebrações dos 300 anos de Curitiba têm um papel fundamental na (re)construção dessa imagem italiana, da cidade que se quer afirmar como cosmopolita.
Há alguns pontos que podemos destacar acerca da obra de Maranhão. O fato de a autora lançar um olhar antropológico sobre os moradores nos parece bastante relevante, pois, ela traz novas ferramentas para a pesquisa, como as entrevistas com moradores e turistas que, embora já tenham sido incorporadas pela historiografia como história oral, são consideradas características também da Antropologia. Ainda na questão das fontes, é interessante percebermos que a utilização da arquitetura e da geografia do bairro enriquece o seu trabalho.
Outro ponto relevante para analisarmos é a estruturação da obra. Maranhão explica desde o princípio o propósito de sua pesquisa, e constrói uma base sólida para essa análise ao longo do texto, tratando de como o bairro se constitui antes de fazer a sua análise crítica. Desta forma, o livro se torna uma leitura bastante clara e objetiva, que pode ser considerada como uma boa referência para quem pretende estudar o contexto da imigração italiana no Brasil.
Podemos comentar, por fim, a importância dos conceitos nos quais Maranhão se embasa para sua pesquisa. Citando Barth e Hobsbawm, ela deixa claro que sua análise se pauta em conceitos já bastante estabelecidos na Antropologia e na Historiografia. Trabalhando com as duas áreas de conhecimento, ela faz uma análise antropológica que acaba bastante enriquecida pela utilização conjunta de outras ciências, como a História.
Bruno Ercole – Graduando em História Licenciatura e Bacharelado pela UFPR.
MARANHÃO, Maria Fernanda Campelo. Santa Felicidade, o bairro italiano de Curitiba: um estudo sobre restaurantes, rituais, e (re)construção da identidade étnica. Curitiba: SAMP, 2014. Resenha de: ERCOLE, Bruno. Cadernos de Clio. Curitiba, v.7, n.2, p.145-153, 2016. Acessar publicação original [DR]
Problemáticas sociais para sociedades plurais: políticas indigenistas, sociais e de desenvolvimento em perspectiva comparada – SILVA et al (BMPEG-CH)
SILVA, Crishian Teófilo da Silva; LIMA, Antônio Carlos de Souza; BAINES, Stephen Grant (Orgs.). Problemáticas sociais para sociedades plurais: políticas indigenistas, sociais e de desenvolvimento em perspectiva comparada. São Paulo: Annablume; Distrito Federal: FAP-DF, 2009, 244p. Resenha de: SILVA, Nathália Thaís Cosmo da; DOULA, Sheila María. Desenvolvimento, políticas sociais e acesso à Justiça para os povos indígenas americanos. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.5, n.3, nov./dez. 2010.
O livro “Problemáticas sociais para sociedades plurais” aborda grandes temas relacionados às sociedades indígenas americanas, tais como identidade étnica, cidadania, direitos coletivos e diferenciados e problemas sociais. Dividida em três partes, a obra foi organizada por Cristhian Teófilo da Silva e Stephen Grant Baines, ambos professores da Universidade de Brasília, e por Antonio Carlos de Souza Lima, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A primeira parte do livro discute indigenismo e desenvolvimento, com ênfase na questão da convivência interétnica nas Américas; a segunda analisa as políticas sociais para povos indígenas em perspectiva comparada; e a terceira parte aborda os direitos diferenciados de acesso à Justiça.
Os fios condutores da primeira parte do livro são a construção da identidade e da autonomia indígena em face da identidade, da soberania e dos modelos de desenvolvimento nacionais, e as limitações da nova semântica multiculturalista. Os artigos são: “Desenvolvimento, etnodesenvolvimento e integração latino-americana”, de Ricardo Verdum; “Conflitos e reivindicações territoriais nas fronteiras: povos indígenas na fronteira Brasil-Guiana”, de Sthephen Grant Baines; “Políticas indigenistas e cidadania no México e EUA: John Collier, Moisés Sáenz e os índios das Américas”, de Thaddeus Gregory Blanchette; “Indigenismo, antropologia y pueblos índios en México”, de Mariano Baez Landa.
Sob a ótica da relação entre identidade indígena e soberania nacional, o texto de Verdum discute o conceito de ‘etnodesenvolvimento’ como alternativa que leva em consideração a autonomia dos grupos étnicos dos Estados Nacionais, destacando o papel protagonista do Banco Mundial (BIRD) na disseminação deste ideário. O autor assinala a existência de um campo de interesses e disputas presentes nas representações e nos discursos acerca do lugar dos povos indígenas no desenvolvimento da América Latina, enfatizando que as manifestações de diversidade cultural são limitadas por concepções sociais e econômicas de ‘pobreza’ e ‘marginalidade’. Segundo ele, a concepção do Banco Mundial sobre o ‘empoderamento’ é impregnada pela ideologia progressista com o intuito de capacitar os indígenas para participarem de todo o “ciclo de desenvolvimento”.
Seguindo o fio argumentativo sobre as fronteiras e a soberania nacional, o texto de Baines analisa o conflito social em torno da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, mostrando que a regularização desta área pelo governo brasileiro garante a Soberania Nacional e também o manejo sustentável pelos povos indígenas, ao passo que a exploração da terra pelos grileiros rizicultores tinha como objetivo a privatização das terras da União e, como consequência, danos ambientais irreversíveis pelo uso intensivo de agrotóxicos. Baines aponta, no contexto de fronteira entre Brasil e Guiana, o conflito de interesses entre os povos indígenas e o Exército, salientado o desrespeito histórico que marcou a construção de rodovias, de usinas hidrelétricas e a abertura de minas nos territórios indígenas Makuxi e Wapichana. Assim, a fronteira, como sugere o autor, deixa de ser uma questão militar – tendo em vista que ambos os povos expressam patriotismo em relação às suas nações – e passa a ser uma questão econômica.
Blanchette, por sua vez, contextualiza os períodos da construção da identidade indígena na história norte-americana e mexicana. No âmbito do indigenismo norte-americano, assinala a passagem do período de assimilação forçada no final do século XIX, quando os índios tinham a condição de cidadãos de segunda classe, para as primeiras décadas do século XX, quando eles foram representados como um símbolo nacional, assumindo o papel de protetores da fronteira. Esta transformação possibilitou o surgimento do pluralismo e do relativismo cultural dentro do campo político, abrindo caminhos para que, mais tarde, em meados do século XX, o grande personagem do indigenismo americano, John Collier, reformulasse a política assimilativa, priorizando a integração dos grupos numa estrutura pluralista. Collier, com o apoio do presidente Franklin Roosevelt e dos indigenistas mexicanos Moisés Sáenz Garza e Manuel Gamio, foi responsável por mudanças legislativas relevantes em relação às políticas indigenistas nas Américas.
Já na história mexicana, os índios eram considerados um ‘problema’ da nação, de modo que a lógica do progresso induzia o seu desaparecimento. O indigenismo mexicano somou esforços a fim de incorporar os índios como cidadãos, mas essa reorientação acabou se limitando à aparência, uma vez que os índios continuaram a ser vistos como imperfeitamente civilizados.
No que se refere à representação do indígena na trajetória mexicana, Landa expõe que, com uma história marcada por levantes e rebeliões, a figura do índio era a de um bravo combatente pela independência frente à Espanha. No entanto, após esse período, ele passou a significar um entrave à integração e ao desenvolvimento da nação. De acordo com o autor, a identidade nacional construída no México nega as diferenças, tanto pela via da exclusão, que separa e isola as diferentes etnias, quanto pela via da inclusão, que apaga as identidades. Landa sustenta que o indigenismo moderno se impôs igualando pequenos produtores, índios, latinos e mestiços para serem atendidos pelos programas de combate à pobreza e de compensação social, o que culminou na renúncia da condição étnica para obtenção de recursos governamentais.
A segunda parte do livro trata das políticas sociais envolvendo os povos indígenas em temas como a educação superior, as relações de gênero, saúde, contaminação com o vírus HIV e previdência social. Os artigos são: “Cooperação Internacional e Educação Superior para indígenas no Brasil: reflexões a partir de um caso específico”, de Antonio Carlos de Souza Lima; “Políticas sociais, diversidade cultural e igualdade de gênero”, de Lia Zanotta Machado; “Políticas de saúde indígena no Brasil em perspectiva”, de Carla Costa Teixeira; “Un acercamiento a la problemática del HIV/SIDA al interior de los pueblos índios”, de Patrícia Ponce Jimenez; “‘No soy mandado, soy jubilado’: previsión social y pueblos indígenas en el Amazonas brasileño”, de Gabriel O. Alvarez.
No que se refere à educação superior, é a partir da reflexão sobre o projeto “Trilhas do Conhecimento” que Lima discute a utilização dos recursos advindos da cooperação internacional e das políticas públicas. Argumenta que, embora a inovação promovida no cenário das políticas para os povos indígenas tenha se ancorado em subsídios da cooperação técnica internacional, com destaque para a Fundação Ford e para a Fundação Rockfeller, não se pode esquecer que os recursos de natureza privada servem a ações demonstrativas de curta duração e que, portanto, são incompatíveis com tarefas de longo prazo próprias das políticas públicas.
As relações de gênero são problematizadas por Machado, que alerta para o fato de que agressões morais e físicas podem não ser consideradas como violência em determinados contextos culturais e que o significado de violência e discriminação contra as mulheres é construído sem o reconhecimento da cultura local. A autora defende, pois, a diversidade cultural e a igualdade de gênero como questões que dizem respeito fundamentalmente à dignidade humana e, portanto, se antepõe a uma sociedade tradicional que tem arraigadas as práticas da discriminação.
Em outra perspectiva, por meio da análise do processo histórico e político institucional, Teixeira argumenta que a política pública brasileira de saúde para os povos indígenas é dotada de uma profunda força antidemocrática, uma vez que as intervenções sanitárias buscam a incorporação de novas práticas e valores higiênicos pelos indígenas. Aponta no Manual de Orientações Técnicas destinado aos agentes de saúde o predomínio da função simbólica nas ilustrações do texto, que enfatizam a proximidade de comportamentos entre índios, animais e fezes, evidenciando que o foco não é a ausência de infraestrutura sanitária, mas sim o inadequado comportamento higiênico dos indígenas, o que reforça a missão de “sanear pessoas” para o agente indígena.
Quanto à epidemia do vírus HIV, Ponce destaca os perigos de se desconsiderar sua proliferação entre os povos indígenas, entendendo que as políticas públicas nesse setor partem de alguns pressupostos equivocados: os índios são concebidos como exóticos que moram em lugares inacessíveis, inclusive para a AIDS, e a crença de que todos os índios são heterossexuais, sendo também comum a associação da epidemia com a homossexualidade. Novamente, portanto, a crítica recai na incapacidade verificada na formulação de políticas públicas que considerem a diversidade e as especificidades culturais. Essa situação remete a uma “vulnerabilidade multidimensional” que exige novas posturas de líderes e de comunidades indígenas, e também da academia no sentido de assumir o imperativo de falar de sexualidade e diversidade sexual.
O texto de Alvarez discute o impacto das políticas previdenciárias nas comunidades indígenas por meio de três experiências na Amazônia. Em primeiro lugar, nota-se uma valorização social dos aposentados, na medida em que, em alguns casos, os beneficiários conseguem abandonar a condição de trabalhadores e tornam-se patrões; em outros casos, verifica-se um fenômeno mais complexo, no qual o dinheiro passa a ter impacto sobre a vida cultural do grupo, pois os idosos assumem as despesas com rituais e ocupam um lugar proeminente no grupo; finalmente, a aposentadoria tem servido para reverter a situação de marginalidade econômica, subordinação social e estigmatização histórica sofrida, por exemplo, pelos Ticuna, representados como inaptos para o mundo do trabalho, alcoólatras e selvagens. O autor relata, ainda, o recente “drama dos documentos” em decorrência da atuação autoritária da Fundação Nacional do Índio, que, diante da apuração de denúncias de fraudes pontuais com a população indígena Ticuna no município de Tabatinga (AM), mandou suspender a emissão de declarações que dão início aos trâmites para obtenção de recursos previdenciários. Este episódio, por um lado, evoca a atualização dos estigmas ligados aos Ticuna; por outro, traz a reflexão de que, ao contrário do passado, quando muitos deles renunciaram sua identidade indígena, no presente, com a implementação de políticas diferenciadas, seus descendentes assumem suas identidades para ter acesso aos benefícios.
A terceira parte do livro se destina a discutir os direitos diferenciados de acesso à Justiça. Os artigos são: “A Convenção 169 da OIT e o Direito de Consulta Prévia”, de Simone Rodrigues Pinto; “Criminalização indígena e abandono legal: aspectos da situação penal dos índios no Brasil”, de Cristhian Teófilo da Silva.
As proposições de Pinto se referem ao direito de consulta prévia, que foi instituído na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e seu papel fundamental de intermediar e negociar as reivindicações dos povos indígenas e dos Estados. No caso brasileiro, esse direito ainda carece de regulamentação e a falta de definição clara do papel dos povos indígenas acarreta no risco de a consulta se tornar mera formalidade. Faz-se necessário, neste processo, a informação qualificada, que implica tradução não só dos aspectos linguísticos, mas dos “modos de pensar”. Tomando como exemplo os impactos causados por 200 obras propostas pelo Programa de Aceleração do Crescimento, a autora analisa as possíveis manipulações por parte das empresas responsáveis e chama a atenção para os empreendimentos que afetam diretamente as comunidades indígenas, mesmo que não estejam situados em suas terras.
Finalmente, no âmbito da criminalização indígena, o artigo de Silva denuncia o abandono legal dos índios nas prisões e a necessidade de um aprofundamento empírico e teórico sobre essa realidade no Brasil. O autor alerta para o não reconhecimento do status jurídico dos índios pela justiça criminal, apontando para uma distorção no uso das categorias ‘índios’ e ‘pardos’, e a consequente descaracterização étnica. Evidencia também o racismo institucional e a manipulação da indianidade pelos agentes que relegam aos índios, sob o discurso da aculturação, o tratamento diferenciado. Resta aos estudiosos somar esforços para tentar compreender o que a realidade desses processos de criminalização dos índios que estão nas prisões brasileiras nos diz sobre a pretensa democracia étnica e plural do país.
Nathália Thaís Cosmo da Silva – Mestranda em Extensão Rural na Universidade Federal de Viçosa. E-mail: nathaliacoop@yahoo.br
Sheila Maria Doula – Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Professora Associada da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: sheila@ufv.br
[MLPDB]
Traços étnicos: espacialidades e culturas negras e indígenas – RATTS (BGG)
RATTS, Alex. Traços étnicos: espacialidades e culturas negras e indígenas. Fortaleza: Museu do Ceará; Secult, 2009. 23p. (Coleção Outras Histórias, 56). Resenha de: RIOS, Flávia Matheus. Boletim Goiano de Geografia. Goiânia, v. 29 n. 1, jan./jun., 2009.
O autor de Traços Étnicos: espacialidades e culturas negras e indígenas não poderia ser mais feliz quando escolheu para a capa do seu livro a pintura de uma menina Tremembé. Eis que a pintura da pequena Josiane, que na época só tinha seis anos de idade, parece à primeira vista construir uma flor, desenho comum feito por crianças da sua idade. Entretanto, a “ingenuidade infantil” nos surpreende com um belo detalhe iconográfico: no centro de nossa suposta flor nos deparamos com o desenho de um olho. Um olho atento e vivo. O movimento plástico ultrapassa nossas primeiras impressões. Certamente a flor ainda está ali, mas agrega o olho à sua identidade. A flor agora é pensada na condição de algo que vê. Mais: pode ser agrupada – compartilha identidade – junto a todos seres que obedecem a mesma classificação: algo que vê. Exemplo: homem e flor podem ser o mesmo. Eis a primeira mensagem da pintura: aquilo que é heterogêneo, que inicialmente não compartilha as mesmas propriedades ontológicas, pode conviver e transformar-se, sem deixar de ser o que é. O homem e a flor são o mesmo e ainda assim, homem é homem e flor é flor. Mas o desenho não termina aí. Do núcleo da flor, exatamente onde reside sua visão, parte um traço quase reto em direção ao canto direito, que se finda no que chamaríamos uma “pequena florzinha”. Nesse movimento a flor é pensada na condição de algo que gera. A florzinha é muito diferente daquela outra que nos vê, mas está ligada por um traço firme e objetivo ao olho que nos captura. Segunda mensagem: o que liga algo que vê e algo que gera a sua própria continuidade e permanência no mundo não é a aparência externa, e sim a própria visão.
A menina Josiane teria composto um auto-retrato? Ela que é algo que vê e entre os Tremembé tem seu lugar como algo que gera? Não saberemos ao certo. Mas a questão lançada pelo antropólogo Alex Ratts parece ser: quais as possibilidades de que a pequenina Tremembé possuía para permanecer na história como algo que gera, mediante a visão atroz da especulação fundiária, migrações forçadas e encilhamento cultural impostos a todo o seu grupo étnico? Como manter o traço que unifica e transforma aquele algo que vê? Qual a relação entre tradição e criação cultural vivenciada por grupos étnicos que como índios Tremembé, quilombolas cearenses e comunidades negras urbanas, atravessam o dilema da expropriação das condições elementares de existência social e cultural? Esses são os dilemas enfrentados em Traços Étnicos, livro composto por artigos curtos escritos num período de amadurecimento intelectual e político entre 1992 e 2006. Ao longo de diversas temáticas, como mobilização política do ritual do Torém no processo de emergência étnica Tremembé, os impasses da comunidade do trilho com a especulação imobiliária em Fortaleza ou mesmo a apropriação de Zumbi de Palmares nas festas tradicionais da comunidade quilombola de Conceição dos Caetanos, o professor Ratts articula crítica social e análise antropológica na intersecção de dois conceitos basilares: cultura e espaço. Na verdade, o questionamento das fronteiras disciplinares entre a antropologia e a geografia tem sido a marca registrada do autor enquanto acadêmico e militante do movimento negro. Por um lado, a tradição disciplinar de Franz Boas tem lhe permitido notar que “o olho que vê é o órgão da tradição”, o olho que tem um lugar e uma história, aquilo que se depreende da poética plástica de Josiane: a cultura enquanto flores ligadas por uma visão. Por outro, a geografia crítica, atenta tentativa de guetização política do que Milton Santos chamou de o “espaço do cidadão”, informa que os imperativos políticos da economia, da técnica, do racismo ambiental alteram os lugares donde o órgão da tradição vê e neste caso, a visão é outra. Neste sentido, a luta de índios e negros pela terra, pelo direito à cidade e à identidade, ou seja, a emergência das identidades étnicas como variável significativa na economia espacial nordestina e brasileira nos mostra que “olho da tradição” é também o olho da indignação. O olho que tenciona as desigualdades através da re-criação de novos vínculos culturais e políticos, olho que indaga a terra da luz: “quanto dá de ti pra meu viver florir entre ares de verão?” O desafio da construção identitária entre indígenas e negros cearenses é o desafio de fazer emergir na rede urbana de Fortaleza, bem como na estrutura fundiária de todo o Ceará, espacialidades alternativas e democráticas. Negros e índios no Ceará compartilham a experiência de serem “povos invisíveis”, ambos tiveram suas imagens rasuradas nos discursos oficiais, que apresentavam o estado como resultante da mistura entre as raças.[1] Ainda é comum se ouvir dos mais informados cidadãos cearenses que inexistem negros no estado e que os índios que restaram não são “autênticos”. Essa ideologia opressiva, versão cearense do mito da democracia racial, tem relegado as comunidades indígenas e negras à completa invisibilidade até os dias atuais, privando-lhes de políticas públicas que resguardem seus direitos previstos pela Carta Constitucional de 1988. Em hora oportuna, o Museu do Ceará realizou a presente publicação, escrito para um público amplo de variadas faixas etárias. Sem dúvida, encontra-se nele um excelente material de apoio pedagógico para professores e alunos, tendo em vista as medidas atuais do país para garantir a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena, assegurado pela lei federal de número 11.465/08. Esforços intelectuais como esses cultivam a emersão de negros e indígenas como delicadas flores cearenses para aqueles que nunca as tinham visto com esses contornos, esses traços. E olhos.
[1] No segundo capítulo do livro (p. 17), Alex Ratts apresenta um trecho do funesto relatório apresentado a Assembléia Legislativa Provincial por José Bento da Cunha Figueiredo em 9 de outubro de 1863, no qual afirmava: “Já não existem aqui índios aldeados ou bravios. […] Ainda hoje se encontra maior número de descendentes das antigas raças; mas acham-se misturados na massa geral da população, composta na máxima parte de forasteiros, que excedendo-os em número, riqueza e indústria, têm havido por usurpação ou as terras pertencentes aos aborígenes. […] Os respectivos patrimônios territoriais foram mandados incorporar à fazenda por ordem cultural imperial, respeitando-se a posse de alguns índios.”
Matheus Gato de Jesus – Bacharel em Ciências Sociais pela UFMA, pós graduado em Sociologia pela USP.
Flávia Matheus Rios – Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo, pesquisadora em relações raciais do departamento de Sociologia da USP/CNPQ.